SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 31 de março de 2017

AIÓ, FARINHA SECA E RAPADURA


*Rangel Alves da Costa


Segundo Clenaldo, amigo radialista e viajante dos quatro cantos, o sertão possui especificidades que não podem ser esquecidas. E diz ainda que sertanejo autêntico é aquele que teve como sua primeira escola o campo, que também aprendeu a escrita do cabo da enxada e que teve o pirilampo como brinquedo favorito. Sertanejo pra valer já armou pedra de queixo, pegou preá e mocó, foi atrás de rolinha fogo-pagô, cavou peba nos tabuleiros, tirou enxu nas moitas das capoeiras. Sertanejo de vera é aquele que passou pelas mãos de benzedeira procurando desapartar de olhado, papeira, dor de dente, bucho inchado e espinhela caída.
Mas há muito mais. Sertanejo de vera enterra a melancia até que ela perca o calor do sol até o ponto de ser cortada ali mesmo no meio da roça. Leva na cuia, enrolada em pano, o de comer para suportar as durezas da lida. Vai tirar leite da vaquinha já levando prato de estanho ou caneca com tiquinho de farinha. Uma gostosura quando o leite quentinho desce espumando e é logo mexido e comido em papa rala. Leva no prato um tantinho de açúcar e desmancha por cima o melão coalhada. Ou enche o chapéu de araçá madurinho e depois se ajeita debaixo de sombreado umbuzeiro.
Farinha seca e rapadura, eis os mantimentos indispensáveis ao aió, alforje ou embornal do autêntico caçador sertanejo. Ao menos de antigamente, pois hoje praticamente não há mais caça nem caçador. As queimadas, devastações e destruição da natureza acabaram também com os bichos. O preá, por exemplo, que chegava a infestar em determinadas ocasiões, agora sumiu de vez.
Mas ainda há quem se arrisque a adentrar no que resta de mataria, principalmente em torno dos tufos, macambiras e locas das pedras grandes, pronto para disparar a espingarda de chumbo socado em qualquer rastejante que encontrar. Faz isso por necessidade, ainda sai em caçada na esperança de levar pra casa qualquer coisa que ao menos engane a fome da filharada.
Noutros tempos era muito diferente. A caça fazia parte da sobrevivência do sertanejo e na catinga sempre encontrava o alimento tão importante. Não fazia por esporte, por brincadeira ou no intuito de dizimar qualquer espécie, mas por pura necessidade. Em época de estiagem grande, com a voracidade do sol devorando tudo, não havia outra saída senão buscar no mato a mistura da farinha seca.
Por isso mesmo que a caçada era uma prática tão constante, vez que também tão frequente a falta comida de feira no fogão de lenha. E caçadas que duravam dias, até uma semana inteira com o velho rastejador no encalço da carne gorda, do bicho farto. Voltava trazendo veados, caititus, codornas, nambus, preás, cágados, teiús e muitos outros bichos ainda abundantes nas caatingas sertanejas. Mas hoje tudo diferente.
Nos descampados sertanejos de agora não há mais mato nem bicho. O calango corre de canto a outro, descendo e subindo pedra, porque não encontra mais uma boa sombra de mato. Passarinho não encontra galhagem nem para o voo nem para o ninho. Cágado se entoca de ninguém mais encontrar. Até mesmo cobra desapareceu debaixo das pedras e das beiras de estradas.
Por consequência, quando a seca vem esturricando tudo e na dispensa do pobre não resta mais nada para iludir barriga, só mesmo o desespero para fazer com que o sertanejo decida arriscar uma caçada. Quando resolve partir, então se prepara como faziam os velhos caçadores de outrora, do mesmo jeitinho. Lançam mão da espingarda, da indumentária própria para enfrentar tocos de paus e espinhos, guarnecem o velho cantil e jogam nas costas o saco para colocar a caça e cruzando o peito o aió, o alforje ou o embornal. E chama o velho e magro cachorro perdigueiro, farejador, caçador nato.
Também o alimento que leva é o mesmo de outros tempos, pois sempre a farinha seca e a rapadura, e esta bem embrulhada em sacola plástica pra não se derreter inteira no calorão da caatinga. Um ou outro ainda consegue levar um pedaço de carne seca ou pedaço de queijo, mas já é luxo demais pra quem vai caçar porque a comida escasseou de vez no fundo da panela. Assim, a farinha seca com rapadura sempre consistindo na amizade inseparável do homem da terra.
A farinha seca com rapadura continua sendo o sustento de muito sertanejo na sua lide no mundo. Contudo, se for caçador, só sendo doido para entrar na vereda sem levar um pedaço de fumo e meia garrafa de cachaça. Sua parte também levava, mas não podia esquecer de jeito nenhum a oferenda para os seres encantados da natureza. Assim, ao colocar o pé por cima do espinho, na primeira pedra grande que encontrasse tinha que deixar o presente para a caipora. Para esta o fumo e para outros a cachaça.
E ai de esquecer. Mais adiante vai levar uma surra tão grande que após desacordar e levantar moído, ainda vai ficar amalucado e sem saber o caminho de volta. Coisas do sertão, coisas do meu sertão!


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Lá no meu sertão...


O que escrever?




Flores (Poesia)


Flores


Apenas uma noite
dura a tão bela flor
do triste mandacaru

apenas um instante
dura a tão linda flor
de muitos amores

para além da noite
e para além do instante
pede para ser toda flor

e somente a semente
renovada no coração
faz renascer toda flor

da vida e do amor...


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - bolo de feira e outros bolos


*Rangel Alves da Costa


Está cada vez mais difícil encontrar um bolo verdadeiramente bom, gostoso, saboroso, apetitoso, com gostinho de quero mais. Uma raridade encontrar bolos que chegam a dar saudades das delícias de forno da vovó. Os bolos feitos como em linha de produção de produção não possuem qualquer apetitoso sabor. É bolo de leite, mas sem gosto de leite. É bolo de milho, mas com massa industrializada de milho. É bolo de mandioca ou de puba, porém sem nenhum gosto que autentique sequer uma porçãozinha de puba ou mandioca. Também parece que não usam leite de vaca ou leite de coco na fabricação. Não tem gosto de nada. Outro dia, numa mercearia aqui perto, sequer o padeiro sabia dizer que bolo era aquele. E feito no seu próprio forno. Somente nos bolos de feira, de produção artesanal, é que ainda se encontra um tiquinho de sabor tanto do coco como da mandioca ou puba. E de vez em quanto trago do mercado um que seja do agrado do olhar. Assim mesmo, pois muitas vezes somente e o olhar e a vontade para suprir as faltas das gostosuras de antigamente, para colocar novamente na boca um sabor que seja de nostalgia e de saudade da vovó fatiando sua delícia.


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quinta-feira, 30 de março de 2017

VULGATA VIDA


*Rangel Alves da Costa


Vulgata vida. Não vida vulgar, banal, medíocre ou ordinária. E sim a vida comum do povo, ao que lhe pertence por natureza, ao que não se pode se distinguir por classe social, poder ou riqueza. Não vida de má procedência ou sexualmente permissiva ou depravada. E sim a vida segundo sua normal existência ou o que é corriqueiro no fazer e existir de um povo. Neste sentido, distingue-se dos regramentos sociais impostos para diferenciar pessoas e seus atos.
Uma vida vulgata que para sobreviver, para pagar as contas do mês, para ter o pão de cada dia, não está nem aí para o que surja como moda, não está se importando nem um tantinho assim para o preço pago a um jogador de futebol ou a um desembargador. A preocupação mesmo é com o preço do pão, do remédio, da farinha, do feijão, do açúcar. Diferentemente daqueles que não estão na vulgata vida, qualquer aumento na luz elétrica lhe surge como assombro, qualquer choro da criança doente lhe chega como um aperreio danado.
Há nessa vida vulgata uma originalidade muito maior que nas molduras sociais criadas para distinguir pessoas pelos cargos, funções, poderes, riquezas. Ora, o povo com a caracterização do comum é aquele que, mesmo considerado em condição subalterna ou de pobreza, sustenta toda a nação com o seu trabalho, faz com que o progresso e o crescimento ocorram. É o pedreiro e não o ministro, é o leiteiro e não o secretário, é o plantador e não o magistrado, é o servente e não o importante nas esferas de poder. Nestes, a moldura carece de ornamentos dourados, apernas mostrando a feição lanhada de luta e de tempo.
Na vulgata vida há o que Mário de Andrade denominou de tempo da humildade, do convívio, do respeito maior entre as pessoas. É que as pessoas comuns são de leitura de fácil compreensão, de fácil entendimento, de ligeiro reconhecimento. Não são diferentes daquilo que dizem ser, não são compreendidas pelos seus ocultos, não são avistadas a partir de obscuros labirintos. João é João, José é José, Maria é Maria. Não há lugar para vossa excelência, para excelentíssimo, para a dignificação pelo anel, pompa ou toga.
Vulgata vida que surgiu como exemplar tradução de um povo antes mesmo que determinadas classes sociais forjassem escritas de méritos, conquistas e honrarias. O povo real, verdadeiro, não tem sua vida escrita a partir do que foi escrito sobre a nobreza, mas pelo seu próprio costume de ser apenas povo. O que foi escrito para enobrecer classes sociais, jamais possuiu serventia para falar do povo como verdadeiramente é. O povo da vulgata vida não se amolda nem deseja se amoldar ao que só existe pela dignificação que possui.
Na escrita da vida, a vulgata povo é aquele que nem precisa ser muito lida para ser compreendida. Diferentemente do que ocorre com as teorias que procuram explicar o povo comum dentro de parâmetros biológicos, históricos e sociais, a leitura dessa vulgata visível por todo lugar não requer hermenêutica nem mirabolantes interpretações. Rasgam-se as teorias e nas páginas reais o que se encontram são os escritos tão conhecidos por todos. Basta conhecer o fazer e o viver do povo comum para compreender todo o livro.
A vulgata vida jamais será compreensível através de tratados acadêmicos. Contudo, se forem feitas versões dos tratados, teses e teorias, de modo a caracterizar em sua plenitude cotidiana o comum do povo, então se terá a visão do comum em sua plenitude e profundidade. Então se verá que é no comum do povo, ou na sua vulgata vida, que as dores da nação são sentidas, que as boas e más consequências das políticas econômicas são lançadas, que as injustiças e as ausências governamentais são refletidas.
O que se faz realmente necessário é conhecer o povo em sua vulgata, e esta como a única e verdadeira versão daquilo que o academicismo chama de complexidade social. Lógico que a sociedade é complexa e que os povos se diferenciam, mas o que importa mesmo é compreender o povo numa só feição: o comum e mais importante de uma sociedade, vez que contextualizado no trabalhador, naquele que vive seu dia a dia para se manter e para construir, naquele que apenas vive sem fazer do viver um além de suas possibilidades. E é este povo que está por todo lugar.
É neste sentido que se aplica o termo vulgata, algo como uma tradução sem floreios de povo perante o seu mundo. É também no mesmo sentido que o termo vulgar poderia ser utilizado, porém como divulgação de fácil entendimento e não como coisa banal ou desprezível. Vulgarizar, assim, não para tornar coisa pequena ou inexpressiva, mas para difundir ou divulgar uma realidade ao maior número de pessoas, principalmente porque estas teriam dificuldades de entendimento da complexidade se dito de outro modo.
Assim a vulgata vida. Vulgata presente na minha, na sua vida, e na vida de todos aqueles que se reconhecem apenas gente, de pés no chão e que incessantemente lutam para continuar sobrevivendo entre deuses e endeusados.


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Lá no meu sertão...


A Semana Santa se aproxima e precisamos de ajuda para ajudar aos mais necessitados!




No tempo de viver e de amar (Poesia)


No tempo de viver e de amar


Tempo, tempo
quanto me ensinaste
a viver e a amar

aprendi no tempo
que o viver a vida
é amolar a pedra
é lamber o fogo
e depois de tudo
esperar o amanhã

aprendi no tempo
que amar de amor
é também sofrer
é também chorar
e depois de tudo
sorrir de felicidade

tudo no seu tempo
no tempo do tempo
de viver e de amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - previsão do tempo para o sertão sergipano


*Rangel Alves da Costa


Desde muito não há nenhuma necessidade de se fazer previsão do tempo para o sertão sergipano. Tenho notícias que nesta terça-feira o sol desceu sobre a terra e quase incendeia tudo. Mariinha endoidou de tanto calor e correu nua pelo meio da rua gritando por socorro. Cremença levava cuia d’água à mão por todo canto que ia. De vez em quanto pingava um tiquinho na cabeça. O picolé derreteu, a geladeira não tem serventia, ventilador só sopra um queimor insuportável. E todo dia assim, apenas sol escaldante, um calor de vulcão e todo parecendo que vai incendiar a qualquer momento. E incendeia mesmo. As labaredas sobem nos monturos e onde houver madeira seca. A renda da saia de Joaninha começou a pegar fogo e foi um deus nos acuda. E o doido, que não se sabe como ainda suporta subir no alto da pedra, diz sorridente: quando tudo virar carvão é que vou acender o fogo. Então, diante do terrível quadro demonstrado, qual será previsão do tempo para o sertão sergipano amanhã, depois e depois? Calor, fogo, labareda, um fim de mundo.


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quarta-feira, 29 de março de 2017

A QUEDA E O VOO


*Rangel Alves da Costa


“Venham até a borda, ele disse. Eles disseram: Nós temos medo. Venham até a borda, ele insistiu. Eles foram. Ele os empurrou... E eles voaram”.
A belíssima frase acima é do escritor e poeta francês Guillaume Apollinaire. E nela está demonstrada a força humana ante o perigo. Ou a capacidade de vencer os obstáculos tidos como insuperáveis.
Chamar até a borda e eles se recusarem a ir por medo. Novamente chamar até a borda e eles seguirem pela insistência. E já à borda, sem tempo de qualquer diálogo ou confabulação, simplesmente serem empurrados. E de repente a queda de cima pelos espaços vazios.
Mas sem que vagassem pelos espaços vazios entre a borda e os desvãos abaixo, pois bastou o impacto do empurrão e logo eles encontraram a única solução que os livrassem do pior: o voo. Mas sequer sabiam que seriam empurrados, sequer sabiam voar, e então como voaram?
Há neste ímpeto de voo uma máxima simbologia. Ou mesmo muitas simbologias a partir de uma mesma situação de voo repentino, num bater de asas como única salvação para se fugir do abismo. E o que realmente significa tal voo?
Eles não sabiam voar, mas foram repentinamente empurrados e se sentiram capazes de voar no instante mais desesperador que podia existir. O que os salvaria senão o voo? Eis o tino humano em busca de soluções em instantes de aflição e sempre encontrando um meio de salvação.
Ante o perigo real, o voo como o encontro da instintiva força humana. Ante o empurrão inesperado, o afloramento ligeiro da capacidade de encontrar uma solução a todo e qualquer custo. Certamente eles não voariam se não fossem empurrados.
Certamente eles não voariam se não fossem empurrados por que não instigados a agir assim. Eis, então, o confronto entre a comodidade e a necessidade. Aquele que só caminha nunca vai saber que também pode voar. Aquele que se contenta somente com a planura do chão jamais conhecerá a beleza das nuvens.
A verdade é que todo ser humano possui asas e sabe voar. A verdade é que toda pessoa tem a capacidade de abrir suas asas e alcançar outros horizontes. Não apenas em instantes desesperadores, mas a todo o momento que deseje fluir sua capacidade de realizar.
O voo após o empurrão se situa no mesmo contexto de outras situações. Ante a sede, bebe-se lama. Ante a fome, se farta de folhagem e de qualquer coisa. Ante o desespero, qualquer saída é sinal de salvação. Estando em jogo a própria existência, então o homem inventa-se dentro de possibilidades antes desconhecidas em si mesmo.
Ainda assim, acaso eles não fossem empurrados e a queda se desse por um descuido qualquer ou por desejo próprio, certamente que não encontrariam tão rapidamente aquela saída do voo. Somente voaram por que foram empurrados.
E sendo tão traiçoeiramente empurrados, então o susto. No susto, o desespero. No desespero, a busca de qualquer luz. Em quantos instantes aflitos assim o homem tem que encontrar as mais rápidas saídas para não sucumbir? Ou faz fruir toda a sua capacidade ou simplesmente desaba.
Há nesse voo uma grande lição: A capacidade de voar deve ser conhecida pelo homem antes mesmo de qualquer situação desesperadora. E assim por que se corre o risco de as asas não abrirem no momento que mais necessitar de um voo que garanta salvação.
E as mesmas palavras dirigidas a você, tão temeroso e amedrontado: “Venha até a borda, ele disse. Você disse: Eu tenho medo. Venha até a borda, ele insistiu. Você foi. Ele o empurrou... E você voou”.
Você teria sido encorajado a voar se não se visse na iminência da queda, de despencar da borda do penhasco? Você se sentiria com tamanha capacidade de vencer aquela tão nova e difícil situação se não fosse instigado a isso?
Agora a vida lhe dizendo: “Suba ao ponto mais alto do penhasco e depois se atire abaixo, de modo a encontrar seu destino de vitória. Você diz: Mas eu tenho medo. Suba logo até a beirada e pule, a vida ordenou. Você subiu. Forças invisíveis o empurraram... E você naquele instante, já em queda livre, criou asas para voar e no voo alcançar outros horizontes, e nos horizontes vencer as demais dificuldades impostas pela vida”.
Agora saiba que perto de você sempre há uma borda. E que alguém pode lhe empurrar a qualquer momento. Cadê suas asas?


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Lá no meu sertão...


No sertão, um Velho Chico... E lindo, lindo!




Um e outro (Poesia)


Um e outro


Amar sozinho
é ser pássaro
no ninho

para o amor
há a semente
e a flor

em dois
o amor feijão
com arroz.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - cartinha


*Rangel Alves da Costa


São Paulo, 25 de março de 2017. Saudações. Desculpe minha letra trêmula e meus erros de português. Escrevo essa cartinha somente para dizer que estou com muita saudade de você. Quase não consigo escrever com o coração partido de tanta saudade. Pinguei perfume no cantinho do papel para que saiba que não esqueço o seu cheiro bom de alfazema. Também desenhei dois coraçõezinhos para lembrar aquele dia que a gente jurou se amar para sempre no tronco da árvore. Se eu pudesse chegaria aí voando e entrava na sua janela levando uma rosa vermelha. Mas volto logo e vou levar um presente bonito e uma radiola. Também comprei um pano bonito pra você fazer um vestido. Hoje ouvi uma música de José Ribeiro e quase chorei: “Tens a beleza da rosa, uma das flores mais formosas. Tu és a flor do meu lindo jardim e eu a quero só para mim... Tenho medo que tua beleza de rosa se transforme num espinho, quase morro só em pensar em perder teu carinho...” E também aquela bonita de Diana: “Quanto mais eu penso em lhe deixar mais eu sinto que eu não posso, pois eu me prendi a sua vida muito mais do que devia...”. Juro que estou chorando e tenho medo de molhar o papel todinho. Não sei mais o que fazer assim longe de você. Me despeço dizendo apenas que te amo demais. Dê lembranças a Tia Cotinha e a Madrinha Zefinha. Diga a Tio Beraldo que cuide de minha vaquinha, se a seca já não levou a bichinha. Logo vou chegar aí de surpresa e encontrar você bem bonita, de vestido de chita e brinco na orelha. Um beijo bem grande. Do seu amor Ismeraldo.


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terça-feira, 28 de março de 2017

PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES MORTAS


*Rangel Alves da Costa


As flores sempre serão flores, desde o broto vicejante à primeira pétala surgida, desde o seu completo florescer ao seu desvanecer na existência. Flores que brilham e encantam perante o olhar, flores que continuam vivas na recordação.
E para dizer que não falei das flores, a elas retorno noutro sentido. Não mais para dizer de seus encantos e formosuras, suas inspirações e poesias exaladas, mas para falar sobre aquelas que não mais estão em jardins, jarros ou buquês, mas continuam existindo com mesmo perfume e fulgor.
As flores são eternas, já disse o poeta. E sua eternidade está na representação, na sua simbologia, não na sua vivacidade de toque e perfume. Flores de plástico que também são flores, flores murchas que também são flores, flores de adeuses e saudades que também são flores.
As flores mortas aqui representadas são aquelas mesmas flores do jardim da memória, do pensamento, da saudade, da nostalgia. Flores mortas que ainda são visíveis ao lado das molduras dos entes queridos, nos jazigos sem flores, nos instantes de tristeza e solidão onde o olhar somente avista réstias floridas de um tempo que já não existe.
Volto-me, assim, às flores mortas, aquelas cuja significação será eterna e terão sempre a mesma beleza daquelas que surgem a cada manhã primaveril. Flores mortas que sumiram no tempo, que foram levadas pela ventania, que ao pó do jardim retornaram, mas que ainda assim continuam vivas e pulsantes.
Muito eu já disse sobre as flores vivas, sobre aquelas flores após as janelas, nos jardins de além, nas praças de um lugar, nas floriculturas enfeitadas. Mas tão menos vivas que as flores mortas, eis que tais flores vivas permanecem somente até o instante dos usos que a elas se dê. Diferente com as flores mortas, que sempre permanecem tão belas e tão dolorosas.
Assim, pra não dizer que não falei das flores mortas é que me alimento a falar das saudades e recordações por elas representadas, é que me animo a dizer de seus simbolismos ante os instantes passados, ante as lágrimas acompanhadas de flores, ante os campos abertos com suas pétalas solitárias ladeando cruzes e túmulos.
Pra não dizer que não falei das flores mortas, ainda hoje muitas avistei além da janela. Não havia jardim, canteiro, vaso ou plantação, mas elas estavam lá como noutros tempos de manhãs e cantos passarinheiros. Flores mortas que surgiam ao meu olhar como se o instante, pálido e feio, tanto necessitasse de suas presenças.
Pra não dizer que não falei das flores mortas, eis que sinto em cada saudade um buquê florido. Terna e tristonha é a recordação quando as flores não existem mais ao lado da mesinha do quarto ou por cima de algum móvel da sala de estar. Ao lado dos porta-retratos aquelas rosas e aqueles jasmins que hoje ainda perfumam a lembrança.
Pra não dizer que não falei das flores mortas, não há como não entristecer pela ausência das flores vivas e ter de se contentar com as flores de plástico sobre o umbral da janela. Mas as flores mortas, que sempre suprem a ausência das flores vivas, ainda contentam a memória pela significação no passado. É o pensamento que vai novamente colhendo cada flor de esperança.
Pra não dizer que não falei das flores mortas, pergunto-me então o que esteja vivo. Sim, o que está vivo? Mesmo flores acaso existentes em profusão pelos jardins adiante ou nos jarros enfeitados das residências, nenhuma importância terão se não forem sentidas e vivenciadas na sua essência. Diferentemente dos motivos do passado, hoje em dia pouco ou tanto faz uma rosa ou um espinho.
Para não dizer que não falei das flores mortas, talvez nelas esteja a única vida dos túmulos. E por que as flores ali existem, então nada morre, nada perece, nada é esquecido de vez. E quando as flores murcham então os olhos encontram o próprio significado da vida e sua frágil transitoriedade. E faz da saudade, da vontade de vida, o apego maior à existência. Por isso mesmo que as flores nunca morrem totalmente.
Pra não dizer que não falei das flores mortas, eis que digo do canteiro solitário de agora em comparação aos vastos campos floridos de outros tempos. Desde o nascer ao final da adolescência, todo o viver parece sempre aromático e perfumado, nutrido de flores viçosas e belas. Depois disso também, mas raros lírios e jasmins sobre a mesa da existência. Até chegar um tempo de flores de plástico. E de nenhuma flor.
Repousa, então, seu olhar também sobre as flores mortas. O passado é vida. Nele o caminho ao jardim mais belo que já existiu. E nele encontrará sua mão colhendo uma rosa nova para o seu amor. Sentirá saudade, sim. Mas necessário que seja assim. Comprova-se que as flores mortas nunca morrem em você.


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Lá no meu sertão...


No sertão, perto da boca da noite...






Quem quer amar assim? (Poesia)


Quem quer amar assim?


Um amor
quem quer
amar assim?

brisa leve
aroma
e perfume

a palavra
a voz
o sussurro

o silêncio
o olhar
a presença

eu quero
amor assim
jardim

eu quero
amar assim
sem fim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - o mal da má-interpretação


*Rangel Alves da Costa


Eu escrevo muito. Não sei se com serventia ou não, mas escrevo muito mesmo. Escrevo textos aqui, mais longos, mais aprimorados, mas também outros menores no facebook, e estes geralmente voltados para os meus conterrâneos de Poço Redondo, no sertão sergipano. E um paradoxo nisso tudo. Quanto mais os textos são curtos mais sou incompreendido. Não por culpa minha, que procuro ser claro e coerente com o que expresso, mas pela interpretação, ou pela interpretação equivocada. A má-intepretação destrói toda a escrita, joga no lixo toda a palavra, dizima com o pensamento escrito. E o pior é que na má-interpretação, o que se interpreta sempre se volta para o lado político. E então começam as guerras nos comentários, as críticas e uma série de insinuações descabidas. E se digo que estou falando de cultura e de história e não de política não adianta. A leitura não muda, a interpretação também. Como diz o outro, qualquer dia, ao invés de escrever, eu terei de desenhar.


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segunda-feira, 27 de março de 2017

RANGEL E SEU MUNDO


*Rangel Alves da Costa


O mundo de Rangel começa quando Rangel corta chão e coloca os pés em sua Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo. É, pois, em Poço Redondo, mais precisamente pelos arredores da cidade, nas estradas de chão e veredas de espinho e pó, e dentro do Memorial Alcino Alves Costa, que o mundo de Rangel começa e se expande. E se alarga e se transforma em horizonte.
Há nesse Rangel de mundo sertão um orgulho bom que antecede a tudo. A graça divina de ter nascido de Dona Peta e Alcino é fato incomparável a qualquer outro. E também das raízes vindas de Mãeta e Pai China, de Dona Emeliana e Seu Ermerindo. Significa dizer que esse Rangel já vem de raiz tão pujante quanto o sertão mais rico em históricos valores.
Quando Rangel da capital desaparta e vai chegando às entranhas do seu sertão, então é como se a vida nele renascesse em sua inteireza. Depois da Boca da Mata, quando logo é acenado pelo xiquexique, o facheiro e o mandacaru, passando pelas casinholas de beira de estrada e sombreados umbuzeiros, seu olhar não é outro senão de encantamento.
Encantamento com a vida, com tanta vida, com a vida sertaneja que se mostra grandiosa mesmo perante as mais difíceis situações. Então Rangel vai entrando com o olhar em cada casinha, vai conversando com o olhar com cada criança debaixo de pé de pau, vai proseando com cada sertanejo. Conversa e é ouvido, pois tudo isso depois se transforma em escrita.
Mas já depois de Sítios Novos é que Rangel se despe de vez da cidade, da vida acadêmica, do mundo jurídico, dos afazeres e ofícios da capital e além. A partir desse limite é que Rangel se sente tomado, de corpo e alma, pelo sol, pela lua, pelo gibão, pelo chapéu de couro, pela aprecata de couro cru, pelo aió, pela simplicidade de um povo, pela humildade do conterrâneo.
De Sítios Novos à sede municipal é um pulo, como se diz. No asfalto, a linha reta é apenas uma estrada. Mas que nada aos olhos de Rangel. Cada passo e cada pedaço de chão são de história pura. Naquelas terras um dia brotaram as grandes fazendas de potentados como João Maria de Carvalho e seu irmão Piduca Alexandre, dentre outros, ali reinado de Manoel e Bastião Joaquim.
Naqueles arredores batalhas sangrentas entre cangaceiros e volantes, naqueles horizontes ainda o chão cravado de balas da Fazenda Pias e da Maranduba, adentrando mais arriba. Por ali também as nascentes das lutas pelo reforma agrária no latifúndio da Barra da Onça de Toinho Leite. Mais perto da beira da estrada a Queimada Grande e a lembrança de Seu Zé Ferreira e todos os grandes proprietários que o antecederam.
Ali também a recordação dos barracos na beira da pista e as bandeira do MST tremulando o grito da inclusão. Quem avista hoje o Assentamento Queimada Grande, com seu aspecto de povoação em crescimento, há também que lançar um olhar ao passado de tantas lutas. Desde aquelas lutas cangaceiras às lutas do homem em busca de seu pedaço de chão, e nisso tudo a face da violência, do medo e do espanto.
Rangel avista tudo isso e vai anotando no embornal de sua memória. E quando, já do alto do Hotel Fazenda, lança o olhar sobre sua cidade, seu berço de nascimento, então os seus olhos começam a brilhar diferente, o seu coração a pulsar mais forte, a sua ânsia extremada de colocar logo os pés no chão e sentir a quentura da terra. Somente aqueles que amam abraçam todo o seu mundo com um simples olhar.
E perante o Memorial Alcino Alves Costa, certamente que Rangel encontra o seu paraíso. Ali o lar de um dia, mas hoje ainda com maior significação em sua vida. Quando abre as portas e encontra diante de si tudo o que foi construído para preservar memórias e vidas, é como se um filho querido corresse aos seus pés para o abraço. Mas o filho ali é outro. É o próprio Rangel diante do pai Alcino, de sua obra, de sua importância no mundo sertanejo e nordestino.
E quando Rangel vai lentamente caminhando pelo Memorial, limpando e ajeitando em cada canto, sente que está sendo carinhosamente olhado por olhos que certamente não estão somente nos retratos e banners. Seu Alcino e Dona Peta jamais deixam de olhar cada passo de seu filho Rangel. Ali no Memorial e na vida.


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Lá no meu sertão...


Às vezes escrevo...




Porto seguro (Poesia)


Porto seguro


Em teu mar
há um porto seguro
que navego no escuro
sem nada amedrontar
e nele me aventuro
e avisto o futuro
no azul do olhar

teu olhar
é meu porto seguro
um barco inauguro
e quero navegar
pulo desse muro
o mar que procuro
em você está.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - um adeus sem lágrimas, uma saudade sem dor


*Rangel Alves da Costa


Minha namorada arrumou as malas para ir embora. Dessa vez não como adeus ou despedida de doer coração, mas de retorno depois de haver passado alguns dias comigo. Já estou com saudades, juro. Escrevo neste domingo, e nesta segunda ela já estará no sertão, nas terras de onde vim, onde nascemos e crescemos. Ainda a avisto aqui ao meu lado, toda bela e toda linda, toda faceira e toda dengosa. Tão mulher e tão menina, tão adulta e tão pequenina é minha menininha. Vou sentir saudade do perfume de sua pele sem loção, vou sentir saudade do loção de seus cabelos sem perfume, vou sentir saudade de seu abraço apertado e de seu beijo profundo e gostoso. Vou sentir saudade de tê-la dormindo ao meu lado, de tê-la em meus braços, vou sentir saudade de seu olhar procurando o meu e de sua boca me pedindo tudo em silêncio. Agora ela foi, e nesta segunda já está no sertão. Mas nessa sexta será minha vez de ir ao seu encontro. E dissipar toda a saudade com todo o amor da vida.


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domingo, 26 de março de 2017

SERTÃO: CENAS FORTES, IMAGENS CHOCANTES


*Rangel Alves da Costa


Aviso: As imagens aqui descritas não dizem respeito a cenas de sexo explícito ou de retratos sangrentos da barbárie humana e sua desmedida violência, mas representações de um sertão devastado pela seca que já avança em ininterruptos cinco anos.
O que se avista é uma terra tão vasta quanto nua e desolada. Pelas distâncias, ou até onde o olho alcança, apenas a acinzentada devastação. Não há ao menos resquício de verdor nem viço nas plantas ou folhagens. Em tudo uma paisagem definhando, quebradiça e morta.
Verdade que nos últimos dias, um tiquinho aqui outro ali, um arremedo de pingo de chuva acabou caindo. Coisinha pouca, quase nada perante uma terra rachada de sol. Muita chuva teria que cair para que ao menos o verdor voltasse às pastagens.
Os pingos caídos em nada resolveram da situação devastadora. O calor aumentou e a desesperança também, pois passado o Dia de São José sem que as nuvens carregadas chegassem. E sem chuva nesse dia, pouco há que se esperar nos meses seguintes.
Sem chuva no Dia de São José não haverá plantação, não haverá colheita, tão cedo não haverá milho de fogueira, de panela ou de canjica, também não haverá melancia, abóbora, feijão, quiabo, batata, melão de pasto, nada que rame e brote.
A situação de agora é verdadeiramente dantesca. O coitado do sertanejo já sem ter o que fazer, tantas vezes apenas caminha pelas em meio ao solo murcho para avistar as ossadas num canto e noutro. Restos mortos daquilo que era toda a sua vida de esperança matuta.
Uma situação de enlouquecer qualquer um. Sai dia e vem dia e a mesma paisagem de sofrimento e devastação. O olho não avista uma alegria sequer, a boca esqueceu de vez o sorriso, não há qualquer palavra diante do doloroso espanto de cada instante.
Num mar que virou sertão, as funduras queimadas guardam por riba os esqueletos, as cabeças ocas, as pontas, os ossos repartidos como de baleia que desde muito se exauriu no cais. Não são pedras brancas, pontudas, mas os restos dos animais que tombaram pela fraqueza.
Não há moscas nem urubus, gaviões, carcarás. As aves carnicentas se fartam da pele magra, seus bicos afiados avançam sobre as entranhas mortas. E mais carniça logo adiante onde a ultima vaquinha do sertanejo se estende na terra seca. Uma pisada em falso e a queda para a morte.
A morte caída sobre a morte. Nada mais parece com vida nesse sertão de desvalia e dor, de miséria e sofrimento. Pote seco, barriga vazia, moringa rachada, panela sem serventia, prato sem nada. Apenas o sol descendo pelas frestas e mostrando a agonia de um povo.
Curral de porteira aberta. Não há mais o que chiqueirar. O estrume petrificado, duro, já sem qualquer marca de casco de bicho. A cocheira vazia, feia, abandonada. Já desde muito tempo que ali não é derramado um farelo. O cesto de palmas pendido num canto. Tudo vazio e abandonado.
As lágrimas também ressecaram nos olhos sertanejos. Sem água pra beber, sem água pra chorar. O carro-pipa que passa de mês em mês só deixa um tico d’água pra tudo na vida. Quando tem, cuia d’agua pra beber, cozinhar o que aparecer, molhar o resto e fazer papa d’água pro menino que chora sem parar. Quando tem a farinha.
Quintal sem galinha ciscando, malhada sem calango correndo de lado a outro. Calango se mete agora pelas locas de pedras fugindo da mão humana. Sem preá ou qualquer caça, de vez em quando um calango é assado no fogo de chão. E é o que se tem para o dia inteiro. E talvez também na fome do seguinte.
Dizem que em tempos assim até a palma é pinicada e colocada em panela. Retiram-se os espinhos e a família se alimenta de sua carne branca e magricela. Mas não há mais palma, não há mais fruto de mandacaru, não há mais urtiga pra ser descascada e comida com avidez. A coisa é feia demais.
O cacto de marrom-acinzentado, murcho, ressequido, de espinhos sem pontas nem qualquer finura. Até mesmo os espinhos queimaram de sol e recurvaram à morte. Onde havia carne somente a magreza ossuda, a pele seca entranhada nos ossos da planta.
Cacto já sem jeito ou feição de cacto. Xiquexique, mandacaru, facheiro, jurubeba, palma, tudo na finura envernizada de sol. A planta adaptada ao sertão para resistir às grandes estiagens e agora agonizando seus últimos suspiros. Desde muito que não brota radiante a flor do mandacaru.
Na estrada adiante e além, igualmente nos caminhos curtos e veredas no que era mataria, apenas as pedras miúdas em meio à areia escaldante e solta. Sem o viço da terra, sem pingo d’agua que assente a firmeza da terra, de repente os redemoinhos vão misturando poeira e folhagens mortas.
E cantos fúnebres de uma voz inexistente. Velório da vaca magra, do bicho, da terra. Mas a tudo a morte ronda e o sertão inteiro agoniza.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Quanta beleza e sabedoria. Poço Redondo tem Dona Zefa da Guia, sim senhor. Poço Redondo tem crença e fé, sim senhor!







Pingo d’água (Poesia)


Pingo d’água


Pingo d’água
secou
pé de sol
queimou
e tudo
esturricou
e o menino
chorou

pé de lua
vingou
e no céu
clareou
e o menino
orou
e pingo d’água
chegou.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - quantos Deus existe?


*Rangel Alves da Costa


Cada religião, cada credo, cada seita, cada culto, parece possuir um Deus diferente. E o mesmo se diga com relação a cada pastor, cada missionário, cada padre, cada beata, cada crente, cada religioso. O mesmo mistério de Deus continua na sua face, na sua feição, na sua caracterização, na sua individualização perante cada um fiel, pregador ou devoto. Ao perguntar a pessoa comum sobre o que seja Deus, as respostas nunca se comungam. Surge um Deus como protetor, um Deus como um desconhecido, um Deus sem qualquer resposta. Na missa, o padre cuida de um Deus pai, de um Deus misericordioso e cujos mandamentos conduzem a vida humana. No templo evangélico, o pastor cuida de um Deus irado com os pecados humanos, como aquele que se contrapõe a todo pecado. O Deus protestante possui espada à mão como ameaça àqueles que não seguem seus ensinamentos. O Deus da Bíblia, que sempre está em seu filho Jesus, é o mais humanizado de todos. É o Deus da coroa de espinhos, do sofrimento, do incansável pregador das boas-aventuranças. Já o meu Deus é tão próprio que possui um altar dignificado no coração. Possui feição de luz e está onde estou. E o seu Deus, como é?


Escritor
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sábado, 25 de março de 2017

A CASA DE VENTO


*Rangel Alves da Costa


Pelos quadrantes o vento vem soprando. Vento norte, vento sul, tanto faz. Se não se apresenta como ventania ou outro sopro mais voraz e devastador, quase sempre chega e passa quase sem despertar atenção. Contudo, no seu íntimo, oculto na sua fome, o vendaval, o redemoinho, a destruição.
Há no vento um perigoso silêncio. Há na sua face uma imperceptível e voraz ameaça. Que ninguém se sinta protegido quando de sua fúria ou de sua sanha de arrebatamento. As folhas que apenas balançam, os coqueirais que apenas murmurejam, os outonos que viajam em seus braços, nada reflete com exatidão sua silenciosa ira.
Protege-se do vento somente pela certeza de que não se está no seu caminho ou confrontando sua força. Somente evitando sua fúria é que será possível permanecer sem qualquer esvoaçamento. A proteção, contudo, não diz respeito a meios materiais que evitem os seus avanços.
Como a brisa leve pode levar pelos ares o ser em sua fragilidade espiritual, igualmente o vento em qualquer outra situação onde a pessoa não esteja devidamente protegida de corpo e alma. Não precisa colocar um muro adiante de si aquele que dentro de si mesmo já está protegido contra qualquer sanha do vento ou da ventania.
Ilusão imaginar que a vida na terra se dá na proteção de muralhas, fortalezas, muros impenetráveis. Utopia imaginar que se habita em moradias tão absolutamente seguras que nada poderá abalar ou destruir suas estruturas. Ora, tudo não passa de casa de vento.
Por mais sólidas que sejam as estruturas, por mais que sejam impenetráveis os portões e as portas, por mais que seja impossível alcançar os interiores e dependências, nada disso impede que os redemoinhos da existência a tudo destruam. Ora, tudo não passa de casa de vidro.
O ser humano, a pessoa humana, não passa de uma casa de vento. Sim, é cálice frágil, é asa de borboleta, é folha de outono, é uma poeira ao espaço, mas principalmente é vento. E vento este cuja força sempre está na dependência e predisposição da força humana. Quanto maior a fragilidade na pessoa maior será o poder de transformação do vento em ventania, em vendaval, em redemoinho.
Enquanto casa de vento, o ser humano pode abrir suas portas sem que sinta ameaçado por redemoinhos. Não há fúria de vento que não passe além e deixe intacto aquele que se reforçou intimamente de tal modo que jamais estará de corpo aberto para os acasos. Mesmo casa de vento, a pessoa estará imune aos vendavais toda vez que se encontrar mais preparado que a fúria mais repentina.
Na casa de vento tudo pode ser levado, destruído, estraçalhado, menos a própria pessoa. Livros, estantes, louças, roupas, toalhas, quadros, móveis, tudo pode ser levado pelos ares como uma folha qualquer, mas não a pessoa que já estava suficientemente protegida de sua tempestuosa fúria.
Por que o sábio foi o único a permanecer no alto da montanha depois que a ventania passou estraçalhando tudo? Por que o homem sensato continua se embalando na sua cadeira enquanto o redemoinho fazia sua festa de destruição? Por que o vendaval arranca plantas e árvores de suas raízes e é como se não tocasse naquele que calmamente repousa debaixo de um sombreado de um pé de pau que foi levado?
Simplesmente por que a casa de vento estava mais forte que a ventania, que o vendaval, que o redemoinho. Simplesmente por que a casa de vento estava mais protegida ante qualquer fúria da vida ou da natureza. Uma casa impenetrável e indestrutível pela própria tenacidade humana. E não uma casa aonde a brisa chegue e de porta a outra não deixe mais nada em pé.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Depois do sertão, meu outro mundo...




Ciranda namoradeira (Poesia)


Ciranda namoradeira


Chore não menina
menina afaste a sina
enxugue esse mar no olhar
abra um sorriso e vá cantar

numa ciranda de rua
cirandando debaixo da lua
e tanta alegria chega ao coração
e de repente uma mão na sua mão

menina num chora não
afaste de si tanta desilusão
a ciranda te chama a cirandar
e o coração dizendo vá namorar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - uma menina nua


*Rangel Alves da Costa


Sim, uma menina nua. Apenas uma menina nua. Nada mais há que se avistar que uma menina nua. Por que olhos maldosos, por que taras doentias, por que intencionalidades abomináveis, sempre avistam com outros olhos a menina nua? Mas a menina está nua. Nua no meio da rua, nua dentro do quintal, nua na ladeia, nua no meio da tribo, nua perante os seus e na sua comunidade. Ora, é apenas uma menina nua. Noutros tempos, em idos de pessoas de comportamentos menos deturpados, a menina saía nua para tomar banho de chuva, nua brincava de boneca, nuca corria de canto a outro, e todo mundo a avistava não como mulher em afloração sexual, como objeto de desejo, mas tão somente como uma menina nua. Tempo de respeito às pessoas, à infância, aos primeiros anos de vida. Tempo de decência e honradez, onde a nudez era apenas um corpo nu e não um chamado à volúpia, ao insano prazer. Hoje nem no seu quarto a menina pode ficar mais nua. Mesmo vestida, a bestialidade humana a desnuda com más intenções. Tristes tempos estes, tristes dias onde a infância perdeu, perante olhos maldosos, toda a flor da inocência, da pureza, da singeleza da vida.


Escritor
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sexta-feira, 24 de março de 2017

DO OUTRO LADO DA PONTE


*Rangel Alves da Costa


Sei que há uma ponte mais adiante ou em qualquer lugar. E ela me espera passar. E essa dúvida que não cessa em mim: o que haverá do outro lado da ponte, da ponte que me espera passar?
Há um início e um fim na vida, e em todo caminhar. Nada segue em linha reta e sem percalços, nada é alcançado sem depois de muitas curvas e sem à ponte ao longe chegar. E ela me espera passar.
Uma ponte no outro lado do passo, no outro lado do olhar. Uma travessia que logo se avista entre o temor e a aflição, pois impossível conhecer o que está do outro lado. Mas é preciso chegar à ponte. E ela me espera passar.
Pensamos viver em terra firme, assentando o passo como donos do mundo, sem a verdade sobre a ponte despertar. Mas ela está diante de todos. E ela me espera passar.
A quem foi dado destino de estar do lado de cá, outro destino lhe aguarda do lado de cá. A única certeza da vida é a existência da ponte. E ela me espera passar.
Vaidades, egoísmos, arrogâncias, soberbas e ostentações pesam demais sobre a ponte. Somente o ser despido em maldade consegue atravessar. E talvez ela me deixe passar.
Não adianta fazer rodeios, fugir, outros caminhos buscar. A ponte existe como um caminho do homem, destino que jamais poderá mudar. E ela me espera passar.
Não conheço a largura nem a extensão, se de madeira ou cimento, se envolta em névoa ou na claridade do sol, mas sei que ela está lá. E ela me espera passar.
A ponte no passo, no caminho, na direção. Ninguém se eterniza onde está, eis que tem de seguir adiante, e a ponte não pode esperar. E ela me espera passar.
Há dois lados separando a ponte, um onde estou agora e outro mais ao longe, aonde terei de chegar. É o outro lado que terei de alcançar. E a ponte me espera passar.
Em tudo há uma ponte, um limite que deve ser ultrapassado. Depois da tristeza o caminho da alegria, depois da solidão alguém encontrar. E a ponte me espera passar.
Mas a ponte não separa apenas a vida da morte, pois também significa vencer as aflições de agora. Vence-se a agonia para o sorriso chegar. E ela me espera passar.
Os objetivos na vida são apenas passos em direção à ponte. Todos se esforçam para vencer os desafios e dificuldades e logo a ela chegar. E ela me espera passar.
O homem vive além-fronteiras. Mas sabe que também pertence ao lado de lá, onde ainda não esteve mas breve estará, após a ponte ultrapassar. E ela me espera passar.
Difícil é ter a certeza da ponte e que dela não se pode fugir, mas ainda assim ter de esperar no lado que está até o instante que ela chamar. E a ponte me espera passar.
Dizem que há um rio debaixo da ponte, dizem também que há um mar. Talvez apenas água corrente para o barco passar. E acima dela todo caminhar. E a ponte me espera passar.
Na ponte está a folha em branco, a página limpa, o papel esquecido. Ninguém chega à ponte permanecendo com a escrita de cá. E ela me espera passar.
Os olhos molhados de lágrima se tornam brilhosos após a ponte. A tristeza, a angústia e desilusão, tornam-se contentamento após o seu limiar. E a ponte me espera passar.
E assim acontece porque a ponte também significa transformação. Ninguém quer ultrapassar a ponte para continuar como está. E ela me espera passar.
Ninguém deseja transformação sem que a mudança seja com boa feição. E dificilmente as coisas mudam continuando no mesmo lugar. E a ponte me espera passar.
A semente lançada é fruto após a ponte. Depois da ponte o outono é primavera. As flores murchas e entristecidas logo começam a brilhar. E a ponte me espera passar.
Difícil de ser avistada, mas a ponte sempre está ao redor. Tantas vezes o homem se aproxima dela se ao menos notar, sem nada desconfiar. Mas ela me espera passar.
O ser humano chega a terra através de uma ponte e também por uma ponte irá retornar. O homem vive e ela permanece a esperar. E ela me espera passar.
A existência é passagem, e não há outro caminho a seguir senão através da ponte. E a vida permite que o chamado da ponte possa se demorar. E ela há de me esperar pra passar.
Não tenho pressa de nada, não corro para desejos alcançar, não dou um passo além nem para amar. Daqui avisto a ponte. Já sigo em sua direção, mas um dia caminharei até ela.
E talvez lá encontre uma escada que ao céu possa levar.


Escritor
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Lá no meu sertão...



Quanta beleza e genialidade. Poço Redondo tem Mestre Tonho, sim senhor!






Três amores (Poesia)


Três amores


No primeiro amor
desejar a primavera
e beijar a beleza da flor
e se encantar a cada manhã

no segundo amor
encontrar os espinhos
avistar o jardim ressequido
e desejar o perfume da flor

no terceiro amor
entre saudades e adeuses
querer a felicidade no coração
sem doces ilusões nem feridas.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - um povo conscientemente lesado


*Rangel Alves da Costa


A tal da Operação Carne Fraca mostrou a ponta de um iceberg de enganações, espertezas e ludibriações. No putrefato contexto, o mundo da ganância, da cobiça, do lucro a todo custo, do capitalismo mais vergonhoso e voraz que possa existir. Contudo, em muitas outras situações, o povo é lesado porque quer, porque permite, porque consente. Há alguma pureza e credibilidade em político? Há alguma honestidade de político? Verdadeiramente não há. Mas o povo vota, elege, eleva ao patamar do poder, dá-lhe o direito de dar coices como troco, de legislar em desfavor da população. O povo já sabia ou não que político é assim? Diz-se, então, que é um povo conscientemente lesado e que pouco tem de reclamar dos trocos recebidos depois. Ora, o povo não sabe que o leite que compra não tem nada de leite? O povo não sabe que o requeijão que compra é uma mistura de amido de milho, farinha de trigo e batata? O povo não sabe que não há pão limpo que venha dos fundos de uma padaria? O povo não sabe que todo vendedor rouba na balança? Então, não há muito que reclamar não, ao menos naquilo que tem anterior consciência da falcatrua.


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quinta-feira, 23 de março de 2017

MEMÓRIAS DO PUTEIRO


*Rangel Alves da Costa


Agora apenas uma luz apagada. Aqueles afastados do centro da cidade não mais ficam iluminados pela luz vermelha anunciando o puteiro, dizendo que ali a feira do sexo, da carne, do pecado, da busca e da entrega. Buscando em Jorge Amado uma descrição, ali os xibius em flor procuram jardineiros ávidos para despetalar prazeres fingidos. Xoxotas a preço de cesto de mangas e priquitas a custo de banana de fim de feira.
Nunca foi de ostentação. Sempre uma ambientação simples como o próprio lugar onde estava instalado. Não havia falsas francesas de línguas enroladas nem virgens disputadas entre os mais endinheirados. Tudo que chegava ali já era gado de outros pastos, de outros matadouros, fazendo vida noutros cabarés ou mesmo nas traições conjugais ou nos escondidos das famílias.
Mas todas de cabaré, desde a mais novinha a mais velha de todas elas. Algumas mais novas tentavam manter seus status de seriedade a todo custo. Sempre repetiam que na cidade ninguém sabia que faziam vida. Chegavam pelos fundos e se escondiam entre batons e carregadas pinturas. A cada cliente pediam por tudo na vida que não espalhasse aos quatro cantos que abria as pernas em troca de vintém. Mas não adiantava. Onde passava todo mundo avistava a puta, jamais a mulher.
E as motivações para tal? Ao ouvi-las, não raro que surgissem reflexões além daquela realidade. Uma havia sido flagrada pelo marido em ato de traição e daí em diante acostumou na putaria. Outra foi desvirginada à força pelo capataz da fazenda e depois jogada pela família no meio do mundo, então não encontrou outra coisa a fazer senão bater às portas de cabaré. Já outra sempre afirmava que vivia muito triste com a vida que levava, pois era moça séria e de respeito, mas uma força desconhecida a jogava em qualquer cama e já de pernas abertas.
Contudo, em algumas havia também um realismo mais que aflorado. Uma dizia que gostava de homem mesmo, que dava o xibiu por que gostava de trepar mesmo. Outra dizia que foi acostumando com a safadeza e de repente já nem se importava mais que fosse chamada de puta de cabaré. Ao que outra dizia: Tenho uma profissão e minha profissão é ser puta. Encaixo macho, boto dentro homem, lido com todo tipo de coisa mole e dura. Não é trabalho fácil não. E o pior de tudo é que já não sinto prazer algum e o que ganho nem dá pra ser uma puta sequer arrumada.
Assim naquele puteiro antigo. Ao menos assim no passado, pois tais depoimentos já não fazem parte das mulheres que vivem sua realidade. Algumas sumiram, muitas rumaram pelas estradas em busca de outros puteiros igualmente chinfrins, outras fecharam o tacho por absoluta falta de quem quisesse se lambuzar em restos malcheirosos e engilhados. As putas de hoje são umas quengas velhas que ainda continuam na lide por absoluto saudosismo, mas quase sem clientes. De vez em quando um bêbado, um velho afogueado, um viajante desconhecedor daquele resto de feira.
Ao longe se avista apenas a casa carcomida de tempo. Já de perto e porta adentro, apenas os restos daquilo que um dia foi de farta clientela. Que ambiente mais sombrio e triste. Na velha vitrola um bolero antigo, melancólico, choroso demais. Cheiro de limão e aguardente pelo ar, um aroma mofado de sexo encardido e suarento. Pelos cantos e escondidos, como se fantasmas nus, de bocas lânguidas e corpos cansados de entrega, buscassem nas camas imundas seus últimos refúgios de qualquer prazer.
Apenas um arremedo de cabaré. O velho puteiro agora não passava de escombros. Depois das guerras e batalhas de corpos baratos em refregas, depois das sedes embriagadas e dos gozos fingidos, agora apenas um puteiro em escombros, em entulhos de malcheirosas lembranças, em retalhos apodrecidos de corpos lamacentos da ilusão do prazer. As pulgas ainda povoam as camas, os ácaros estão por todo lugar, há respingos de sangue que jamais se apagam, há ainda um falso gemido nas noites fantasmas.
Aproximar-se de uma mesa num canto é a certeza de encontrar uma velha quenga chorosa e embriagada. Diante de si um copo de aguardente misturada com refrigerante e uma carteira barata de cigarros já chegando ao fim. Numa mão segura o cigarro e com a outra leva o copo à boca. Usa um bato vermelho que se espalha muito além dos lábios. Um pó avermelhado tenta dar alguma cor ao rosto murcho e enrugado. Não tem brilho algum nos olhos, nem por fora nem por dentro, apenas um olhar perdido em lembranças ébrias.
Nunca mais teve qualquer cliente. Também tanto faz, segundo diz. Continua por ali apenas como uma vigilante de um cemitério maldito e abandonado. Diariamente convive com fantasmas do passado, mas também com alguma lembrança boa de quando era mais jovem. Chega senta no mesmo lugar e pede a mesma bebida. Bebe avidamente e ouve bolero antigo. Mas não há mais bebida nem bolero, apenas a velha puta nos seus idílios de sofrimento e solidão.


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