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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

CANGACILDO: O CANGACEIRO QUE NÃO FOI (Crônica)

CANGACILDO: O CANGACEIRO QUE NÃO FOI

                                          Rangel Alves da Costa*


Não gosto nunca de desconfiar da palavra de um homem, principalmente quando ele já está envelhecido. Mas juro que esta ouvi um tanto desconfiado e só estou repassando por curiosidade, e não porque tenha certeza que haja fundamento de verdade no que o homem me disse.
Mesmo idoso, pelas bandas onde ele mora todo mundo, até mesmo os parentes, diz se tratar da pessoa mais mentirosa do mundo, um verdadeiro falastrão, conversador de meia sola. Ainda assim, pela estranheza do causo conto o que o dito me contou.
Segundo Tibério Badaró, esse é o nome dele, lá pelos idos de 1930, quando o cangaço fervilhava no sertão nordestino e o bando de Herculano reinava como principal grupo organizado de cangaceiros, uma gente afoita levando pelas caatingas a bandeira da luta contra as injustiças sociais e as perseguições de determinados poderosos, surgiu um homem que a história se omitiu de falar.
O nome desse homem era Geromo Baraúna, mais conhecido por Cangacildo, alcunha colocada pelos amigos como homenagem ao seu sonho jamais realizado. Sonho jamais concretizado porque na sua adolescência e juventude outra coisa não fez senão pensar em ser cangaceiro, em entrar para o bando do Capitão Herculano, mostrar toda sua força e raça empunhando um mosquetão no confronto com a volante.
Vontade não faltava no homem, coragem também tinha de sobra, não falava noutra coisa a não ser no dia que fosse aceito no bando e passasse a empunhar aquela pesada indumentária de couro, o chapeu rico em adornos dourados, o embornal cheia de bala e a cartucheira descendo do ombro e cortando o peito.
O problema é que Cangacildo tinha um probleminha que dificilmente lhe possibilitaria entrar para o bando de Herculano. Era anão, raquítico, desengonçado das pernas e só enxergava bem de um olho. Mas quanto a esse último ponto se defendia dizendo que havia outro cangaceiro famoso, um tal de Virgulino Lampião, que também só enxergava de um olho.
O pai de Cangacildo, um senhor de muitas posses na região agrestina, vendo a aflição e o destemor do filho, fazia de tudo para que o seu pimpolho fosse aceito como cangaceiro. Mandou oferecer dinheiro, ouro e propriedades para ver o sonho do rapazinho realizado, mas a resposta que vinha era que aguardasse mais um pouco até Cangacildo ganhar mais corpo, se desenvolver mais fisicamente. Mas como, meu Deus do céu, se o danadinho era anão e já tinha muito mais idade do que se imaginava?
Um dia, já revoltado demais pelo não reconhecimento de sua valentia, Cangacildo disse ao pai que não se preocupasse mais não que ele mesmo ia dar um jeito nessa história, e com o sangue na veia que tinha ia mostrar ao safado do Herculano e seu bando com quantos raios de sangue se fazia um sol sertanejo. E saiu convocando amigos para formar um grupo de cangaceiros.
Como a rapaziada das redondezas, ainda que revoltada com as injustiças sociais imperantes em tudo, não acolheu de bom agrado o convite de Cangacildo, então este mandou arregimentar, a preço de ouro, um verdadeiro bando que deveria ficar pronto para a luta dali a um mês. Como visto, quis tornar a rapaziada em seus comandados na base do dinheiro. E conseguiu.
Porém, o grupo de Cangacildo não conseguiu se reunir a tempo de enfrentar o bando de Herculano que havia mandado um recado dizendo que na boquinha da noite estaria ali para ver quem era aquele engraçadinho que andava espalhando que desafiaria e botaria pra correr dos seus sertões ele próprio e seus cabras. E mandou que o coiteiro que foi dar o recado cuspisse aos pés do destinatário e dissesse que antes que o cuspe secasse ele estaria ali.
O destinatário do recado não foi ninguém mais senão o pai de Cangacildo, que se tremendo todo, mijando nas calças, mandou chamar o seu valentão para dar a notícia. Quando este soube o que inevitavelmente ia acontecer, vestiu sua roupa de cangaceiro e correu mata adentro numa velocidade que nem cavalo alazão pegava.
Assim que Herculano mandou avisar que havia chegado, o pai de Cangacildo correu a se ajoelhar a seus pés. O cangaceiro perguntou por que aquilo tudo e o homem, ainda beijando o couro cru das alpercatas, disse apenas que estava limpando o chinelo para o grande forró que ia dar em sua homenagem naquela noite.
E quando perguntou sobre o seu filho que tinha vontade de ser cangaceiro, o velho nervoso, todo borrado, falou o que não devia: “Ele é valente mesmo, mas agora passou pro outro lado. E saiu daqui inda agorinha pra dizer à polícia que você ia chegar a essa hora. Num demora muito e ele já tá de volta com a volante do Tenente João Carneiro”.
E então Cangacildo de repente apareceu na malhada todo cansado, suado, botando as tripas pela boca. A polícia não tinha acreditado na sua palavra e agora encontrava o seu pai estirado no chão, desmaiado pelos tabefes que levou, mas não enxergava mais ninguém ao redor. Mas quando se virou e viu um mosquetão na sua cara disse apenas: “Eu quelo mamãe!”.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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