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terça-feira, 30 de agosto de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 15 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 15

                                         Rangel Alves da Costa*


Dr. Auto procurou atender à curiosidade do amigo informando que Carmen Lúcia era apenas uma mocinha que estava no escritório atuando ao mesmo tempo como secretária e estagiária, vez que não demoraria a se formar em direito. Explicou que era uma boa e honesta pessoa e que quanto a ela não se preocupasse de jeito nenhum.
Com os olhos brilhando, agora visivelmente nervoso, o deputado retrucou:
“Lá vem você novamente com sua meninice, homem de Deus. Parece criança, parece não entender que a gente não deve confiar nem no próprio travesseiro, em nós mesmos, em nada. Perece que você está esquecendo que o que fez com aqueles dois pobres rapazes e com suas mães foi uma coisa nojenta, abjeta, uma sem-vergonhice sem tamanho, pois mentiu o tempo todo que estava fazendo a defesa correta deles, se esforçando de corpo e alma para livrá-los da prisão, quando, na verdade, estava iludindo, falseando, plantando as sementes da condenação. E ela, como pessoa inteligente e futura advogada, basta botar os olhos naqueles processos e verá que você não fez praticamente nada do que poderia fazer, foi omisso nos procedimentos, nos remédios jurídicos que os casos exigiam, perdeu prazos, esculhambou com tudo. Verdade é que isso não saiu barato, pelo contrário, pois até o carro você já trocou, já tá com um novinho em folha, e graças ao empresário pai da mocinha e ao salafrário do Alfredinho Trinta Por Cento. Mas certamente você guardou a cópia daqueles processos no cofre particular, não foi?”.
E o Dr. Auto, agora também nervoso, tentou argumentar: “Mas deputado, trata-se de uma menina séria demais, que jamais tencionaria ao menos em comentar nada daquilo...”.
Então, inesperadamente o deputado falou o que o causídico não gostaria de ouvir de jeito nenhum:
“Você vai ter de despedir essa mocinha. Procure uma justa causa e demita ela imediatamente. Não, não, pois assim seria o fim da picada, pois se ela já tiver inteirada sobre as maracutaias vai dar com a língua nos dentes, vai dizer às mães, pode até espalhar na imprensa e então será o nosso fim. Como vou ter morte certa, primeiro mando dar um jeito em você, seu desprecavido. Deixe essa mocinha, essa tal de Carmen Lúcia comigo que vou pensar o que fazer com ela”.
“Mas deputado, o senhor não está pensando em?...”, indagou o advogado, levantando aflito. E o deputado Serapião Procópio não respondeu mais nada, apenas colocou o terno, ajeitou a gravata e saiu sem se despedir nem olhar pra trás.
O advogado conhecia esse estranho temperamento do parlamentar e deixou pra lá, apenas pegou sua pasta e decidiu voltar ao escritório. Entrou no seu ambiente de trabalho, quase já hora do almoço, mas a mocinha continuava ali, mantendo sua costumeira pontualidade. Dessa vez não se dirigiu diretamente à sua sala, como costumava fazer e de lá chamá-la para dar ordens ou pedir alguma coisa. Resolveu cumprimentá-la e arrastar uma cadeira e sentar ali mesmo próximo ao birô, defronte a ela.
Ao sentar, percebeu que ela cuidava nuns rascunhos, transpondo alguns escritos avulsos para sua agenda. Após retornar os cumprimentos, silenciosamente esperou que o patrão falasse alguma coisa. Era muito estranho ele estar ali, sentado diante dela, fato que raramente acontecia. E quando acontecia era sempre para reclamar da vida, da solidão que sentia, da falta que fazia uma boa esposa. Ela entendia muito bem o significado disso e sempre respondia que mais cedo ou mais tarde ele encontraria a mulher ideal. Nesse aspecto sabia se defender muito bem.
Com ele continuando ali sentando, repentinamente ela pensou num monte de coisas, mas resolveu esperar. Se fosse falar alguma coisa naquele momento certamente perguntaria por que ele havia feito aquilo com os rapazes e suas mães, por que tinha mentido tanto o tempo todo e principalmente por que ele estava ajudando também a condenar aqueles dois inocentes. Tais pensamentos lhe encheram de rancor, de profundo enraivecimento, porém fazendo tudo para não demonstrar que não suportava mais nem olhar na cara dele.
Mas, enfim, o causídico falou primeiro:
“Carmen, a essa altura do curso certamente você já estudou ética profissional, não foi? Você acha que o advogado, enquanto profissional, deve seguir os preceitos éticos e morais a todo custo?”.
Ela gostou da pergunta e imediatamente se perguntou se ele de certa forma não estaria se martirizando pelas suas indesculpáveis condutas, mas esperou para ver o que viria depois. “Desculpe Dr. Auto, mas por que essa pergunta?”. E ele prosseguiu:
“Quando eu ainda estava na universidade os professores falavam da importância dos brocardos jurídicos, das expressões próprias do mundo jurídico, da importância da filosofia, da arte e da retórica no direito e consequentemente na vida do advogado. Mas falavam principalmente na importância da ética na vida do operador do direito, pois segundo o professor o profissional que não tem tiver comportamento ético não preservará sua moral, será desacreditado e não demorará a ser rejeitado pela sociedade. O comportamento ético correto dura para ser percebido, mas tudo que for antiético se espalha como cinzas ao vento.  A ética, segundo ele, é o verdadeiro patamar onde se assenta o fazer do profissional, pois a nobreza na conduta é o próprio reflexo da moral da pessoa...”.
Continuava achando interessante demais, e por isso mesmo interrompeu para colocar mais chama naquela fogueira:
“Existe uma classe de advogados que realmente age contrariamente a qualquer senso ético, de toda conduta ética, de qualquer aspecto moral, e são muitos que existem por aí. Mais do que eu o senhor sabe muito bem que se fosse possível certos tipos de advogados trabalhavam para os dois lados, negociavam informações para partes adversas, enlameavam completamente o direito. Agem erroneamente não só com os clientes, mas também com os processos. Mas por outro lado existem outros advogados, como o senhor por exemplo, que são altamente corretos, conduzem os processos com responsabilidade e por isso mesmo são tão confiados pelos cliente, não é isso mesmo?”.
Certamente que ele sentiu íntima e dolorosamente tais observações. Levantou e se dirigiu até a parede, ficou de costas para ela observando as paisagens numa pintura e disse: “É isso mesmo Carmen, é isso mesmo. O advogado que não tem ética não deve exercer esse mister tão importante, pois se trata, muitas vezes, da vida e da liberdade das pessoas, dos seus bens e da sua honra. Pelo visto você aprendeu muito bem o que é ética. Será uma excelente advogada se continuar pensando assim”.
Com ele ainda de costas, Carmen aproveitou para fazer um questionamento que o faria repensar muito sobre suas ações. E perguntou: “O senhor jamais conduziu qualquer processo com falta de ética profissional, desrespeito aos clientes ou descaso com os procedimentos, não foi mesmo Dr. Auto?”.

                                                     continua...






Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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