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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 30 de agosto de 2011

SANGUE ESCORRENDO NO SOL (Crônica)

SANGUE ESCORRENDO NO SOL

                                  Rangel Alves da Costa*


Por ser testemunha de todas as guerras no sertão, todas as batalhas cangaceiras no seu solo, todas as vinditas pela terra no seu chão, todas as lutas pela sobrevivência no seu leito árido de espinho e massapê, o sol sertanejo se encheu um dia e ainda transborda sangue cheirando a suor.
Desde muito tempo que o chão sertanejo vem sendo constantemente demarcado nos seus limites através de sangrentas disputas. Num passado mais distante, onde o coronel latifundiário expandia suas posses a todo custo, aquele vizinho que fosse empecilho à sua sede de ter sempre mais estava marcado para morrer. Ou cedia ou não tinha saída.
Urubus e outros animais carniceiros velaram muitos corpos que jaziam esquecidos nas beiras das estradas, nos confins da mataria, embaixo das catingueiras, dos cedros, dos umbuzeiros, mortos de tocaias, na falsidade, na mais abjeta covardia. Pequenas cruzes de garranchos indicavam as inúmeras mortes ao desalento, vidas que deixavam para trás viúvas empobrecidas e filhos sem nenhum destino.
A fama de um sertão violento correu mundo. Até hoje o citadino olha com reserva para o sertanejo, sempre enxergando nele resquícios de um tempo de rixas, vinganças, juras de morte, perseguições, desentendimentos baratos que causavam tragédias. Nada disso mudou muito, pois a violência persiste desenfreada. Só que antes a lide sangrenta era coisa séria, com evidente motivação para toda tragédia que houvesse.
Ao lado das contendas envolvendo a honra das famílias, as lutas pelo poder político e outros poderes, bem como as inimizades construídas desde outras gerações, também se viam a violência barata, as brigas e mortes motivadas por embriaguez, disputa de vizinhos, histórias passionais, desavenças que começavam numa troca de tapas e terminava na bala. Ainda assim muito diferente do que se vê hoje em dia, quando a discórdia e a inimizade pautam a maioria das relações entre conterrâneos.
O sangue então jorrado não é mais na vermelhidão abjeta das tocaias e emboscadas, mas numa covardia igualmente abominável, que é da violência importada dos grandes centros urbanos. As dores, os sofrimentos, as mortes matadas e as mortes em vida causadas pelas drogas, pelas armas potentes utilizadas nos roubos a propriedades, nos assaltos à luz do dia, no medo espalhado por todo lugar. E não há violência maior do que um sertanejo viver de porta fechada, tremendo lá dentro, por medo do inimigo que pode chegar a qualquer instante.
Se hoje o sangue que jorra na terra sertaneja é fruto da covardia, noutros tempos pode-se afirmar que havia honra até em matar. Os pistoleiros, jagunços, capangas ou homens do coronel, do político ou do latifundiário não saíam por aí atirando em qualquer um, saqueando casas e propriedades, destruindo tudo que encontrasse pela frente. Como naqueles tempos os poderosos viviam cercados de inimigos do mesmo quilate, geralmente seus cabras serviam como escudo e proteção quando, aí sim, se entregavam numa sagacidade sanguinária desmedida.
Rios e mais rios de sangue encharcaram o sertão quando o cangaço se espalhou pelos quatro cantos e fez suas vítimas. Primeiramente com os bandos primitivos de audazes homens do seu tempo como Jesuíno Brilhante e Antonio Silvino, e depois na voracidade e disposição de Lampião e seu bando. No cangaço residia a violência justificada, a luta com claros objetivos, mas também exacerbadas perseguições que vitimavam jovens e inocentes.
No auge do cangaceirismo, lá pelos idos de 1930, tanto os cabras do Capitão Virgulino como a polícia que vivia em seu encalço espalharam um terror desmedido, fazendo todos os tipos de vítimas não só entre contendores, mas principalmente em meio à população sertaneja. Nas cidades, lugarejos, fazendas e descampados o medo rondava dia e noite, os gritos cortavam os silêncios amedrontados assim que tomavam conhecimento da aproximação tanto dos cangaceiros como da volante.
Assim, na terra árida que se pisa hoje sonhando que ali brotará alguma coisa, algum alimento, algum flor nordestina, num tempo remoto tudo foi palco de guerras infindáveis. Em cada canto e cada coito, em cada moita fechada e por trás dos pés de pau, a morte rondava faceira, fria, já assassina sem apertar o gatilho. Mas não somente isso, não somente quando a bala varava a vítima, mas também nos lanhões rasgando os corpos dos que corriam desesperados, nos rostos cortados pelos espinhos e galhos, no corpo inteiro marcado por uma vida cheirando a sangue.
Disso tudo só se salvou a história. Mas da violência barata de hoje, num banditismo covarde escondido por trás de bandeiras modernas, nem a história, que mais tarde cuida de relembrar o que grandiosamente existiu, guardará em si uma recordação sequer de tamanha vileza e abjeção. Contudo, a violência injustificada é a que mais doi, mesmo que amanhã uma dor maior faça esquecer tudo



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com   

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