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terça-feira, 23 de agosto de 2011

TOCAIA (Crônica)

TOCAIA

                                    Rangel Alves da Costa*


No sertão todo mundo sabia e sabe que difícil não é caminhar, cortar estradões de lamaçal ou massapé, vencer veredas espinhentas e fugir dos bichos brabos, peçonhentos, sempre à espreita, mas sim passar por alguma moita sem temer pela vida ou a pessoa ficar ali estirada, varada de balas, morta à traição, na vileza da emboscada.
Gente que diz que não teme nada nesse mundo faz de tudo pra não passar naquela curva da estradinha, pois adiante tem uma moita famosa; cabra valente e matador, por mais carregado que esteja o revólver, nenhuma valia terá com o zunido quase silencioso da bala cortante, sem face, sem mão, se gatilho, que vem de dentro ou detrás da moita. Não há como fugir da tocaia.
Segundo os livros, tem-se por moita um grupo espesso de plantas arborescentes e de pouca altura; mm arbusto baixo, com muitos ramos e folhagens, onde as plantas formam um verdadeiro esconderijo; arbustos que vão se juntando para formar um matagal fechado. É no fechado da moita que a morte se prepara para fazer mais uma vítima. A tocaia tem ali seu cenário.
Como visto, quando se vai por uma estrada e num cantinho dela, ao lado ou logo ao virar o trecho, se avista um tufo fechado de plantas, como se diversas espécies se juntassem para formar uma só, ali estará uma moita. Mas o pior é que dentro ou por detrás dela mora um imenso perigo. Naquilo que seria somente uma formação da natureza pode estar uma das feições mais cruéis das lides sangrentas sertanejas.
Não há que duvidar que a moita é o lugar mais apropriado para que inimigos, assassinos, covardes e todo o tipo de gente, se esconda esperando o outro passar. Quem vem pela estrada nem de longe nem de perto perceberá que aquele tufo de plantas poderá selar o seu destino, que ali está o seu inimigo à sua espreita. O silêncio e a paz do momento não dizem nada do imenso perigo.
Quem está dentro ou atrás da moita tem uma excelente visão de tudo o que ocorre adiante, quem vem ao longe, quem se aproxima ou quem já está na mira de sua arma. Daí é só apertar o gatilho. Mas quem vem caminhando despreocupado ou mesmo que já ande receoso, por mais que vá olhando para ver se percebe algum sinal na moita, dificilmente avistará qualquer movimentação suspeita.
E diante da moita, sem que a pessoa possa se defender, está feita a tocaia. Os olhos vermelhos se fecham mirando, a boca escorre fumo pelos cantos, a mão busca firmeza, a arma se acasala na palma e é acariciada pelos dedos, as juntas se movem e o dedo indicador aperta. Às vezes basta um tiro, outras vezes tantos quantos o corpo possa ser alvejado.
Após os disparos as folhagens se movem, os galhos retorcem e pássaros apressadamente voam, as solas das botinas de couro cru se apressam para sair do lugar, para rapidamente correr até adiante e pular em cima do cavalo que está esperando o pistoleiro barato, o perigoso jagunço.. Tudo é feito estrategicamente para não falhar.
Basta um pulo e o animal sair em disparada, restando o corpo estendido lá na curva do caminho, lá por cima das pedras e espinhos da estrada, para que mais uma sina sangrenta se concretize. Às vezes outros caminhantes encontram, muitas vezes urubus se refestelam, quase sempre tanto faz.
Era e ainda acontece de ser assim naqueles rincões de tantas honras a serem resolvidas, tantas covardias a serem empreendidas e tantas mortes a serem morridas para que a ignorância, a violência e a brutalidade digam que é assim mesmo, pois quem não deve viver faz da estrada seu túmulo. Ao menos é assim que pensa o mandante.
Nos sertões a tocaia simboliza a astúcia maldosa, a covardia maliciosa, a traição solenemente premeditada, a frieza graciosa de quem recebe vintém para tirar a vida do outro sem lhe dá chance de se defender. Na emboscada, onde o silêncio e o olhar que caminha no passo da vítima são estremecidos num instante, há a verdadeira síntese da maldade que olha escondida para sua presa.
Por mais abjeta e abominável que seja a tocaia, e que horrivelmente ainda persista em algumas áridas curvas de estrada, verdade é que esse tipo de covarde enfrentamento do inimigo foi uma das armas mais utilizadas pelos coronéis para dizimar desafetos e delimitar seus latifúndios. O coronel não ia não, que não era besta, mas mandava o jagunço ficar de tocaia, muitas vezes, dias e noites inteiras só pelo prazer de se apertar o gatilho e satisfazer a honra do senhor de terra, gente e vida.
Até que se poderia dizer que naquele tempo era um tempo de honra, mas qual a honraria de se eliminar o inimigo com tamanha covardia? Muitas vezes, por não saber quem iria matar ou não visualizar direito a fisionomia da vítima, depois, quando ia confirmar o trabalho, se assustava com a pessoa que vitimara.
Mas certa vez um jagunço não conseguiu. Esperou e esperou, a pessoa que deveria morrer ia passando montada, pensou duas vezes e deitou ao chão a espingarda. Depois gritou pedindo uma garupa ao seu irmão e sumiu no meio do mundo.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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