SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 31 de março de 2018

A INFÂNCIA E AS SAUDADES DA LUA CHEIA



*Rangel Alves da Costa


Há uma fase na vida que é arco-íris e algodão doce, que é ciranda de roda e carrossel enluarado, que é fantasia e alucinação, que é cantiga de pássaro e farfalhar de folhagens: a infância. Tamanho é o encantamento nesta fase da vida que os demais anos buscam no seu espelho a validade de toda a felicidade da vida.
Num poema de Casimiro de Abreu (Meus oito anos), a doce recordação: “Oh! que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais!..”. E digo: Oh que saudades que tenho daquele luar sertanejo, onde a criançada em festejo dizia que a noite era sua e se espalhava pela rua na ciranda a cirandar e no cavalo de pau a reinar... Poço Redondo, meu Poço Redondo, tuas noites tão fagueiras, como num luzir de fogueiras para um povo iluminar.
Um mundo diferente da meninada. Criançada nascida e crescida num mundo de quase paz. Calçadas de proseados, os ventos da noite soprados como beijo em cada face. Uma vida sem disfarce, em cada amizade um enlace, e na humildade da vida a paz por Deus concebida. Noites de lua bela, as mocinhas na janela fazendo do sonho aquarela. Crianças por todo lugar, pois a noite é um “meninar” que ninguém pode domar.
Meninas se dando a mão e na voz a bela canção: “Se essa rua se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante, para o meu, para o meu amor passar...”. “Como pode um peixe vivo viver fora de água fria, como poderei viver, como poderei viver, sem a sua, sem a sua companhia...”.
E os meninos, dando na noite pernoite, faziam da lua um açoite e começavam a se danar. Bola de gude jogar, cavalo de pau pra voar, pega-de-boi pra caçar, bola de meia a encantar. Os meninos lambuzados de mundo, molhados de alegria, respingado o suave suor da idade.
Não havia tempo ruim para a criançada. Pelos quintais, pelos monturos, nas malhadas, nas calçadas, nos escondidos dos quartos, sempre um lugar e uma motivação para a festa da idade. Medo somente de crescer, de chegar a uma idade onde o viver já não caiba mais a armação de arapucas nem os banhos debaixo da chuva.
Nas noites de candeeiro, o cinema era a imagem lançada na parede nua. Brincar de esconde-esconde, de pular corda, de pelada em campinho e de pés descalços. Quem já não chutou uma bola em vidraça e depois teve de correr por que a dona da casa aparecia furiosa e tendo na mão uma vassoura com cabo e tudo?
Noites da infância, doces noturnos da criançada. Pular, correr, dançar, rodar, cirandar. Mas não demorava muito e chegava o grito: “Tá na hora de criança dormir!”. E a meninada tudo fazia para descumprir as imperiosas ordens maternas. Corriam, escondiam-se, mas tinham de aparecer quando as promessas de chinelas ecoavam. Então tinha de ir tomar banho e adormecer. Sonhando, sonhando, sonhando com aquele belo mundo, aquele jeito tão sublime e cativante de se viver.
E hoje, o que se faz nas noites de Poço Redondo? Que mundo transmudado em coisa. Onde estão os meninos, onde estão as meninas? Venham, venham brincar na rua, venha cirandar debaixo da lua. Onde está a infância, meu Deus? “Oh! que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais!..”.


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Lá no meu sertão...


Grande Sertão



Amém! (Poesia)



Amém!


Já chegada noite
o sino toca
uma prece
uma fé
amém

um gole de café
uma lua grande
céu estrelado
uma brisa
amém

um viver assim
de paz muito além
na cidadezinha
viver que se tem
amém!

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – Sábado de Judas



*Rangel Alves da Costa


Sábado de Aleluia é dia de Judas ser escorraçado. Depois da morte e ressureição de Jesus, seu traidor paga o merecido pelas mãos humanas. Assim enraizou-se o costume da malhação de Judas. O personagem bíblico então vira um boneco que é pregado num pau e depois recebe pedradas, chicotadas, todo tipo de ataque. E mais é rasgado, estraçalhado e os seus restos tocados fogo. Mas não sem antes da leitura das deixas, que antecede tudo e que é um tipo de testamento onde o Judas deixa o seu espólio a pessoas previamente escolhidas, geralmente políticos, autoridades e pessoas de renome na sociedade. “Para político tal, que não tenho o que deixar, deixo meu bolso vazio que é pra ele a dinheirama guardar”. “Para sicrano de tal que não tenho o que deixar, deixo meu par de chifres que é pra ele se acostumar”. E assim vai a costumeira tradição que ainda persiste nas cidades e pequenas povoações. Contudo, não como noutros tempos, onde a queima do Judas era motivo de grande expectativa e aglomeração, principalmente pelas deixas. As deixas é que deixavam muitos carecas de cabelos em pé.


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sexta-feira, 30 de março de 2018

AQUELE FEMININO CANGAÇO



*Rangel Alves da Costa


Outro dia, enfim a Tv Senado deixou um pouco de lado aqueles enfadonhos discursos senatoriais e aquelas pouco digestas entrevistas parlamentares, para mostrar um documentário deveras interessante: Feminino Cangaço. A película foi produzida pelo Centro de Estudos Euclydes da Cunha, com direção de Lucas Viana e Manoel Neto.
Baseado em imagens, filmes e entrevistas, o documentário procurou mostrar a presença feminina no cangaço e, por consequência, dialogar sobre o papel da mulher em meio àquela aridez de cansaço e luta, de correria e refrega, onde ao próprio homem extasiava em demasia.
A literatura cangaceira já se debruçou em profundidade acerca de tais aspectos, analisando perfis específicos de mulheres cangaceiras, bem como seus cotidianos naquela trágica guerra debaixo do sol. Livros que cuidaram das valentias, dos destemores, das traições, mas principalmente das motivações para que os pés macios da feminilidade enveredassem pelos caminhos de espinhos.
Contudo, há no documentário uma leva de depoimentos de pesquisadores e escritores (Antônio Amaury, Frederico Pernambucano, Luiz Ruben, Vera Ferreira, Germana, dentre outros) e testemunhos femininos daquela saga (Dadá e Sila, principalmente), que permitem a pormenorização de alguns aspectos bastante interessantes, ainda que já devidamente esmiuçados nos livros.
Segundo os depoimentos, foi o encantamento de Lampião por Maria Bonita que acabou permitindo a entrada de mulheres ao cangaço, antes um meio reservado apenas aos homens. Quando o líder cangaceiro deu a mão à bela Maria, então os demais cangaceiros passaram a se arvorar do direito de também ter suas companheiras.
Contrariamente ao que muito se difundiu, as mocinhas sertanejas nem sempre eram obrigadas a seguir a vida das caatingas quando escolhidas pelos cangaceiros. Algumas delas até sonhavam viver ao lado daqueles cabeludos e paramentados homens, numa atração geralmente motivada pelas roupas, pelos ouros, pelos anéis, pelas feições de artistas do meio do mundo.
Os cangaceiros atraíam de tal modo as jovens e mocinhas sertanejas que não raro seus pais tinham que fugir ante o anúncio da aproximação do bando. Era perigoso demais permanecer com sua bela flor mulher às vistas daqueles sedentos de tudo. Mais perigoso ainda se algum resolvesse levar a sertaneja consigo. Em casos tais, os familiares pouco podiam fazer.
No seu testemunho, a cangaceira Adília não mede palavras para ojerizar seu companheiro de cagaço. Demonstrando verdadeiro ódio a Canário, ela diz que nunca deu um sorriso ao seu companheiro, nunca beijou-lhe sequer a face, nunca se sentiu bem ao seu lado. Tudo motivado pela sua desmedida violência e os constantes maus-tratos cometidos. E diz mais que não derramou uma só lágrima quando ele foi assassinado.
Interessante quando os entrevistados passaram a relatar sobre a vida sexual no cangaço. Segundo afirmaram, os relacionamentos se davam nos tufos do mato, próximo aos demais, sem qualquer privacidade para uma entrega maior. Daí os encontros sexuais se darem quase vestidos, baixando apenas as roupas, na pressa exigida perante as situações.
Não podiam se afastar muito e também não podiam manter relações à vista de todos. Uma situação realmente difícil de ser resolvida em meio à caatinga e à aproximação das volantes. Além da pressa, o silêncio nas ações. Ainda assim a história cangaceira registra traições. E também morte pela traição.
Segundo afirmado nos depoimentos e testemunhos, a mulher cangaceira não participativa diretamente dos confrontos com as volantes. Carregavam pequenas armas e punhais, porém muito mais para proteção pessoal do que para atacar. Tais armas também eram utilizadas para informar onde estavam depois que o grupo ficava desapartado. Conhecendo o disparo, logo a cangaceirada seguia naquela direção.
Em situação de confronto, geralmente dois cangaceiros ficavam protegendo as mulheres enquanto os demais homens seguiam para o ataque. Logo se imagina as mulheres aflitas esperando o retorno de seus companheiros. Não o caso de Adília, que tanto fazia que Canário voltasse vivo ou não.
Não se evitava a gravidez, mas uma vez parida a mulher tinha que entregar seu filho para uma família fora do cangaço criar. Assim aconteceu com Maria Bonita, Sila e outras, que tiveram de deixar seus rebentos em mãos de pessoas conhecidas e que fossem compromissadas em criá-los com todo zelo. Mas nunca se arvorando do direito de filho. Os pais eram os cangaceiros.
Eis, assim, em apertada síntese, relances do amplamente mostrado no documentário Feminino Cangaço. Não uma visão feminina no cangaço, mas a compreensão de como se deu a participação feminina naquele mundo de vinditas debaixo do sol e da lua.


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Lá no meu sertão...


Memorial Alcino Alves Costa - Poço Redondo/SE




Paixão sobre tela com fundo vermelho (Poesia)



Paixão sobre tela com fundo vermelho


Da boca escorreu o vermelho líquido
do batom desfeito pelo beijo lânguido
como se o morango fosse devorado
pela boca ávida da pele e da polpa

e pelo corpo o suor vertendo o espasmo
de um vermelho molhado em orgasmo
de uma pulsão incontida em cada pelo
feito gata em cio gozando pela pele

e um homem e uma mulher na selva
dois bichanos nus rolando pela relva
uma paixão tornada em gozo e prazer
na insanidade do corpo e seu enlouquecer.


Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – o que ainda resta da Sexta-feira Santa interiorana



*Rangel Alves da Costa


Logicamente que o tempo vai modificando tudo. Não há que se imaginar o agora com a feição de ontem nem que os costumes antigos continuem hoje em pena validade. Assim também na Semana Santa e na Sexta-feira Maior, como se diz no sertão. Noutros tempos – ainda recordo – desde a quarta-feira que os costumes eram transformados em quase penitência. Comida só com coco, nada de carne de gado, frango, porco, bode, etc. Nada de festas nem de farras. A Sexta-feira então era com feição de luto fechado. Roupa preta de cima abaixo, de luto mesmo, nada de banho, de pentear os cabelos nem varrer a casa. Sair somente para a igreja. Nada de conversinha com vizinhas nem falar da vida alheia. Olhares entristecidos, aspectos melancólicos pelas ruas, rezas e orações. A vez das beatas, das devotas, dos terços e dos rosários. De tudo isso, apenas as sombras ou algum resquício. Hoje em dia, o que se tem como Semana Santa e Sexta Maior são apenas datas e nomes. O comércio dolorosamente fecha suas portas, mas os bares nem sempre. Ainda assim é farra por todo lugar. Aproveita-se o feriado para bebemorar, para o festim, para tudo. Acaso pergunte a algum jovem se foi ou vai a igreja, será uma única e só resposta: igreja é coisa pra velha. Assim os tempos modernos interioranos. Assim a falsa fé e a falsa devoção de um povo.


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quinta-feira, 29 de março de 2018

CANÇÃO AOS AFETOS



*Rangel Alves da Costa


Sinto saudade, mas muita saudade mesmo, dos pequenos afetos. Das coisas simples da vida, mas que causam satisfação desmedida. Só quem transmite ou recebe afeto sabe o significado do prazer na alma, do espírito confortado, da vida nutrida em perfume de flor.
O afeto é sentimento de doce pronúncia e de imensa significância para quem recebe e para quem transmite afeição. Gesto tantas vezes simples, despojado, porém de indescritível beleza quando verdadeiramente expressado.
Ter afeto é gostar, é querer bem, é sentir carinho por outra pessoa; o afeto se expressa no sentimento de ternura e amizade para com o outro. Daí a afeição ser o cuidado e a dedicação para que tal sentimento seja compreendido e acatado no coração, reconhecendo aquele gesto amável ou benevolente.
Contudo - e infelizmente -, nem todas as pessoas são capazes de transmitir afetos verdadeiros. Do mesmo modo, nem todos sabem compreender e corresponder as afeições recebidas. Nem externa nem internamente, o que é mais conflitante.
Expressar afeição não requer receita nem preparo. O sentimento afetuoso está em cada um, é instintivo do ser humano, já está enraizado no coração mais ou menos generoso que a pessoa tem. Quanto a isso, não depende de classe social, de sexo, de idade, de poder econômico ou de qualquer outra coisa.
A arte do afeto é a arte do humano, da humanização, da valorização do próximo. Só é afetuoso quem estima e aprecia o outro, quem o reconhece indistintamente; só consegue mostrar verdadeira afeição aquele que pelo outro é reconhecido como portador de cordialidade no coração.
Mas é muito fácil ser afetuoso. Está ao alcance de todos o amável cumprimento, a saudação cordial, a demonstração da saudade sentida pela ausência, o abraço afável e o aperto de mão, a palavra amiga e confortante dita quando do encontro. Tudo mundo é capaz de ser assim e agir assim.
Um sorriso sincero de satisfação é exemplo maior de afeto. Todo mundo admira ser reconhecido, relembrado, saudado, valorizado pelo outro amigo. Não há indivíduo consciente que não se encha de admiração quando o amigo lhe chega querendo saber se está precisando de alguma coisa, como está a família, se todos estão com saúde e paz.
Os gestos de afeto são inumeráveis. Entretanto, apenas um pode fazer surtir o efeito de todos. Num dado momento, num inesperado instante, aquele que se achava esquecido é relembrado e festejado pelo outro. E não há instante de magia maior que um conforto ou um reconhecimento num momento que parece ser de esquecimento. Ou de dor.
Já convivi e ainda convivo com muitos instantes assim. Porque geralmente estou distante de meu berço de nascimento, minha abençoada Nossa Senhora da Conceição do Poço Redondo, toda vez que coloco o pé na terra sagrada sou recebido e reconhecido com inestimável afeição. Só eu sei o quanto me enche de orgulho e graça sentir nos olhos e no semblante de cada conterrâneo o prazer pela minha presença.
Somente eu para saber o quanto me irradia ser saudado por um e outro, ser abraçado, ouvir palavras de carinho e amizade. E o orgulho é ainda maior quando estou diante das pessoas mais humildes, mais envelhecidas ou que são de meus tempos ou de outros tempos de convívio naquelas distâncias. Abraçar um velho amigo sertanejo é fazer reacender a chama da presença eterna.
Do mesmo modo, logo percebo a imensa satisfação quando me dirijo a cada um que, mesmo me reconhecendo, permanece afastado por estar acanhado ou vergonhoso de se aproximar. Os olhos brilham, o coração pulsa, o sentimento aflora. Reconheço isso porque conheço a sinceridade de meu povo, de meus bons amigos de Poço Redondo. Do mesmo modo pressinto o cumprimento falso de quem mente a si mesmo.
Convivo e sinto tais pequenos afetos. Nada de grandioso trocaria senão por um sorriso, por um abraço, por gesto simples e sincero de amizade. E que a humildade seja tudo. Ainda.


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Lá no meu sertão...


No Alto de João Paulo, Poço Redondo/SE





Conceito de solidão (Poesia)



Conceito de solidão


Dizem que solidão
é estar sozinho
não é não

solidão é a companhia
da pessoa e si mesma
todo dia

a solidão é querer ter
outra companhia
outro ser

mas se o querer é desvão
não ser sozinho
é solidão

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - recadinho



*Rangel Alves da Costa


Ei você, se avexe não minha fia, se aperreie não meu fio. Escreva de qualquer jeito, escreva como souber e até sem saber, mas escreva. Escreva “voçê”, escreva “vosse”, escreva “mim” ao invés de “me”, escreva “nóis foi”, escreva “a gente fomos”, escreva engolindo o “r”, colocando acento onde não tem, mas escreva. Besteira lhe criticar, dizendo que escreve errado, dizendo isso ou aquilo. Se você escreve e eu entendo, então sua mensagem está perfeita. Se você escreveu de forma errada aquilo que estaria certo na voz, então pode continuar escrevendo assim mesmo. Diga que polícia é “poliça”, “puliça” ou de outro jeito, diga que a professora é “perfessora”, que está com dor de “estambo”, que está com “sordade de arguém”, que sua amiga é só “farsidade”. E seja mais nordestino, mais sertaneja. Extravase no “vôte”, no “vixe”, no “vije”, no “apois”, “no vosmicê”, no “inté”, no que vier no poder da expressão. E não se importe se “argum fi de uma égua” ou uma “cabruquenta quarqué” disser que escreve ou fala errado. Mande tudo ir pra baixa da égua!


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quarta-feira, 28 de março de 2018

FLOR DO MANDACARU (OU O INSTANTE DA VIDA)



*Rangel Alves da Costa


Não há flor mais bela que a flor do mandacaru. Mas não há flor de mais triste que a flor do mandacaru. Nasce ao entardecer, vive em pujante beleza por uma noite inteira, para já desfalecer ao amanhecer.
Que coisa mais estranha na natureza. Durar tanto para brotar e se formar, e depois florescer e durar apenas uma noite. Mas assim é a vida tão efêmera da flor do mandacaru. Não há exemplo maior de transitoriedade, de fragilidade, de existência tão curta quanto bela.
Ainda assim, majestosamente bela é a flor do mandacaru. Não há flor mais admirável que a flor do mandacaru. Em tons de pétalas esbranquiçadas, ornados pelo amarelo-alaranjado dos filamentos e o esverdeado das sépalas. Mas depois tudo recurvado em si mesmo, sem flor.
Pelos sertões, onde os mandacarus vivem de braços estendidos rogando chuvas aos céus, soltos no meio do tempo e ao querer das tantas luas e tantos sóis que sobre si se derramam noite e dia, será no silêncio noturno que as flores matutas surgirão como estrelas.
As flores do mandacaru esperam o luar sertanejo para se abrirem. Nos noturnos sertanejos, lentamente vão irrompendo de seu casulo esverdeado para desabrocharem em beleza sem igual. Abrolham ao clarão da lua e recolhem suas pétalas ao primeiro sol.
Recolhem e recurvam suas pétalas para não mais se abrirem em flor. Muitas flores existem que se repetem nas manhãs seguintes, que novamente se abrem com a mesma beleza, mas não com a flor de mandacaru. É de vingar único e por poucos instantes da vida.
Ao nascerem, logo as pétalas se abrem em majestade. E certamente o olho dirá que ainda assim estarão no dia seguinte e no outro dia. No primeiro raio de sol, contudo, as pétalas já estarão definhando e assim continuarão até novamente se recolherem, murchas, ao casulo.
E eis outro paradoxo na tão bela flor e seu ventre, entre a flor do mandacaru e o próprio mandacaru. Qual sentimento de um ventre que, em meio a tantos sacrifícios e dificuldades, vai lentamente gestando aquilo que vai morrer poucas horas após nascer?
Que estranha sensação no mandacaru. De seu ventre magro, seco, ossudo, sobre sua pele rija e espinhenta, e de repente o nascer da mais bela flor entre todas as flores. Porém sem tempo sequer de se alimentar de sertão e encontrar no meio a mesma força de sobrevivência.
Mas é mesmo um nascer destinado à morte. O broto vai lentamente surgindo na magreza do mandacaru, formando um fruto ovalado e esverdeado, até que vão sendo divididas as sépalas que recobrem as pétalas, e então a noite chega e logo cuida de desabrochar a flor.
Já nasce bela, grande, majestosa, pois as pétalas rapidamente despontam como encantamento. E num instante, o que era apenas como um fruto ovalado, irrompe de seu ventre uma magia sem igual. A flor que resplandece como lua cheia em meio à escuridão.
Um mistério a ser desvendado pela natureza. Enquanto o mandacaru dura um século inteiro em meio ao calor escaldante, ao sol abrasador, perante as secas mais devastadoras, de seu ventre surge a flor que não dura sequer um segundo da vida inteira do próprio mandacaru.
E também o mistério do florescimento naquilo que já se imagina sem vida. Ora, chega um tempo que o mandacaru está tão magro e tão seco que ninguém imagina existir ali senão espinhos. Mas em meio as espinhos vai brotando a vida tão belamente transformada em flor.
O olhar sertanejo conhece o padecer eterno do mandacaru e por isso mesmo ainda mais se encanta quando avista a flor tão viva em seus braços abertos. Talvez por isso mesmo tanto acredite no poder de transformação de seu mundo: a secura da terra e logo a trovoada.
Contudo, há também na flor do mandacaru uma desalentadora simbologia: a efemeridade da vida. E, neste sentido, a curta duração das coisas, a fugacidade das situações, a transitoriedade dos fatos e das existências. Tudo nasce para morrer, numa sina, num destino.
A flor do mandacaru como uma lição do Eclesiastes: há um tempo de tudo, tempo de nascer e tempo de morrer, tempo de sorrir e tempo de entristecer. Assim também no tempo de muitos amores: um amor tão amado e na manhã seguinte já simplesmente desamado.
Quem dera durasse mais a flor do mandacaru. Que na manhã, mesmo com o sol já alto, ela ainda brilhasse em seu fulgor, ela ainda encantasse com a plenitude de sua beleza. Mas não. Apenas nasce para morrer.


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Lá no meu sertão...


Em Bonsucesso, Poço Redondo/SE, a fé do povo ribeirinho



Em nós (Poesia)



Em nós


De que adianta
fechar a porta assim
e tentar se esconder
para fugir de mim

nada adianta
fingir que não me quer
e depois sofrer
a paixão de uma mulher

então abra a porta
e me deixe entrar
e mostre seu sorriso
e todo o amor no olhar

em nós adianta
viver o que somos
pelo amor que temos
e pelo que amamos.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - Brasis



*Rangel Alves da Costa


Há vários Brasis. O Brasil sofrido pelas atrocidades dos governantes. O Brasil de inigualável beleza pelas suas potencialidades. O Brasil do frio e passivo sangue português. O Brasil de riqueza tamanha que nem toda a roubalheira conseguiu levá-lo ao fundo do poço. O Brasil de classes sociais ainda oprimidas, escravizadas, submetidas aos jugos governamentais. O Brasil do medo e da insegurança, da violência e da criminalidade desenfreada. O Brasil dos ricos e opulentos, daqueles cujas riquezas são maiores que a de todos os demais brasileiros. O Brasil dos acovardados, daqueles que gritam batem panelas e depois se escondem debaixo de camas. O Brasil do mau votante, do péssimo eleitor, do vendido e do bajulador político. O Brasil onde a Corte Suprema é mais baixa que os mais fétidos porões. O Brasil de grandiosos como Darcy Ribeiro, Jorge Amado, Dom Hélder Câmara, Irmã Dulce. O Brasil de vergonhosos como estes envolvidos em propinas, improbidades, corrupções. O Brasil da esperança que nunca se encerra em alguns. O Brasil desesperançado pelas desvalias impostas à sua população. O Brasil do passado e o Brasil sem futuro. O Brasil onde a cada eleição uma nova rataria se aglomera nos poderes, nas câmaras e nos legislativos. O Brasil da mentira tão mentirosa que nada mais parece acreditado. O Brasil do possível viver perante as agruras tantas. O Brasil que está aí. Mas que não merecia ser ou estar assim.


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terça-feira, 27 de março de 2018

RELEMBRANDO A MANHÃ DE OUTONO DE GRIMSHAW



*Rangel Alves da Costa


Relendo escritos de tempos outros, eis que encontro este texto que escrevi sobre uma pintura famosa: Manhã de Outono, de Grimshaw. Naquela ocasião, indaguei se se tratava de uma pintura ou de uma poesia, ante a beleza da obra. Recordo, então, o que descrevi.
Não duvido que Grimshaw tenha permanecido dolorosamente triste durante todo o tempo que lançou na tela pinceladas outonais na sua magistral pintura Manhã de Outono. E não um outono qualquer, em tons sombrios e folhas secas, mas a própria representatividade do ar nebuloso, enevoado, solitário e melancólico dessa estação.
Logo se vê que Manhã de Outono (Autumn Morning) não é uma produção artística qualquer. Jamais passaria despercebida ao olhar mais atento. E isto porque é incerto saber se o que pintor inglês John Atkinson Grimshaw (06 de setembro de 1836 - 13 de Outubro 1893) nos oferece é pintura ou poesia. Creio que se pode consensualizar afirmando ser um poema pintado em cores fortes.
Grimshaw viveu na era vitoriana, famoso no seu tempo e posteriormente por suas paisagens de cores firmes, fortes ou suavemente meditativas, cuidadosamente iluminadas e com ricos detalhes. Contudo, buscando sempre representar cenários sublimes, nevoentos, como se estivesse jogando um véu de melancolia em cima de cada tela.
Especializou-se em pinturas de docas, paisagens representando estações, ruas solitárias de subúrbios, cores enluaradas descendo sobre cenários quase desertos. Em cada pincelada a solidão, o abandono, a realidade melancolicamente existente. Daí utilizar ambientes com pouca presença humana para falar da solidão cotidiana, da poesia angustiante da vida.
Em Autumn Morning, ou Manhã de Outono, Grimshaw ultrapassa sua estética, sua força de paisagista, para oferecer um cenário instigante e encantador, ao mesmo tempo misterioso e triste. Poesia da alma, poesia do espírito, poesia do olhar. Indubitavelmente uma poesia com força suficiente para transportar o olhar para o seu interior. Contudo, o que nos espera além do portão?
Como bem sintetiza o nome consignado à obra, a pintura cuida de uma paisagem outonal. Diz ser manhã de outono, porém com nuances que mais parecem um entardecer. E um fim de tarde daqueles entristecidos, com o sol se pondo melancólico e avermelhado sobre o contorno em que está situado um casarão, apenas avistado em réstia no interior do jardim.
E surge mais uma indagação instigante: Ao redor não há pessoa alguma, não há ninguém, mas estaria o casarão abandonado ou algum ser solitário se esconde por trás de alguma vidraça mirando as cores afogueadas? A tela é enevoada demais para buscar uma resposta em alguma porta ou janela, nos lados ou na entrada do casarão.
Mas alguém poderia dizer que a pintura nada mais representa que uma paisagem de outono, com suas cores mortas, folhas caindo, um aspecto solenemente triste em todo o cenário. E não estaria errado não, pois é isto mesmo, só com a sutil diferença de que tudo ali pintado possui simbolização única. Quer dizer, os motivos dispostos na tela dizem qual outono quer mostrar: o da alma, do espírito, da solidão humana.
Assim, num cenário envelhecido, tem-se um portão entreaberto, ladeado por muros, tendo à frente um caminho cimentado em meio ao chão de terra batida; ao fundo, avista-se o velho casarão envolto em névoa, com galhos de árvores secos e desnudos tanto na parte interna como externa. E folhas secas, mortas, caindo dos galhos e espalhadas fartamente pelo chão.
Mas isso ainda não é tudo, vez que a maestria de Grimshaw reside precisamente nas cores escolhidas para representar seu outono. O fundo amarelado ouro vai tomando outra cor quando encontra o velho casarão e o muro. E então se observa a nebulosidade de um verniz esbranquiçado que envolve o casarão e o quase vermelho fogo, misturado ao ocre e o marrom das folhagens.
Todas as cores de outono, logicamente, mas guardando no todo uma visão onde tudo se mistura num matiz único: a perplexidade do vazio e da tristeza diante de um jardim abandono de outono. E é como se precisássemos estar ali para refazer a vida há muito inexistente.
E tomado de inspiração na pintura de Grimshaw, o poeta Derek Soares Castro escreveu um belíssimo poema intitulado “Nódoa d’Outono”, que merece transcrição:

“— Como a nódoa d'azeite que s'espalma,
A tristeza manchou tôda a minh'alma! (Guerra-Duval)

Nos cinamomos d'ambárico outono,
Já s'envergou o amarelo d'ardência
Em uma flébil, letal decadência,
Tombando as árvores cheias de sono.

Nessa pintura d'extremo abandono,
Vejo a ramagem fanar em dolência;
E junto dessa augustal ambiência
Fico a morgar num profundo ressono...

Ó tardes d'áurea — mortal soledade!
Vem m'envolver com a tua mortalha
Feita das folhas dum morto jardim!

Toda essa mágoa, toda essa saudade,
Toda a tristeza que tanto s'espalha,
— Maculou tudo por dentro de mim!”


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Lá no meu sertão...


Rangel Alves da Costa e Dona Zefa da Guia



Para sempre (Poesia)



Para sempre


Sim, envelhecemos
o tempo passou
mas ainda somos
o mesmo amor

nosso livro é eternidade
nossa poesia é para sempre
temos ainda o mesmo afeto
e nos amamos cada vez mais

mesmo envelhecidos
e com o tempo passando
somos de nós conhecidos
e mais amor semeando.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - uma rosa para Rose



*Rangel Alves da Costa


Ontem foi comemorado o natalício de uma grande amiga. Rose, conterrânea de Poço Redondo, nas lonjuras do sertão sergipano. Então, feliz aniversário, amiga Rose. Uma Rosa para Rose, eis que mulher e flor num só ser de luta e superação, de angústia e reencontro com a felicidade. Mulher e flor em Rose e na Rosa Rose num jardim que hoje brota a paz onde já houve a devastação pela perda. Naquele jardim que um dia amanheceu pranteado de dor, a mão divina novamente fez semear o renascimento e o reencontro com as belezas da vida. Hoje, amiga Rose, reencontrar seu sorriso e sua obstinação pela vida, é alegria sem igual no coração de todos que tanto lhe admiram e querem ver e sentir a sua felicidade. Receba, pois, esta flor de reconhecimento pelo prazer da amizade. Receba esta flor Rosa de Rose pela encantadora presença em todos os instantes de nossas vidas. Eis uma amiga essencial, sempre bondosa e afetuosa. Eis mulher e mãe que novamente sorriu para cativar nossos sorrisos e corações. Receba, então, nesta data tão preciosa em sua vida, o nosso abraço e nosso carinho maior. Aqui dizemos, parabéns Rose. Lá do alto se ouve: Parabéns, minha mãe!


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segunda-feira, 26 de março de 2018

DONA ZEFA DA GUIA



*Rangel Alves da Costa


De Poço Redondo, no sertão sergipano. Seu nome: Maria Josefa Maria da Silva Santos, ou simplesmente Zefa da Guia. Parteira, benzedeira, rezadeira, líder comunitária, líder espiritual, mulher do povo, dos santos, das raízes distantes, das crendices e dos encantados. Possui na linhagem o negrume da escravidão e do sangue indígena. Possui no olhar um espelho de onde brilham sua fé, sua crença, sua sabedoria, sua maestria no trato do homem, seu conhecimento das curas, seu entrelaçamento com os poderosos seres da natureza. Nascida na Guia, povoação quilombola ao redor da serra mais alta, vai lá no alto das raízes primeiras e de lá retorna como a guia de seu povo e do povo do mundo. Todo mundo procura Zefa da Guia e todo mundo por ela é recebido no seu viver de humildade. Quer uma reza, quer um benzimento, quer uma cura, quer que a parteira acuda sua mulher com dor de parir, quer que ela passe o ramo, quer que ela cubra de bençãos, quer que ela afaste todo o mal mundano, quer que ela faça uma guia para uma vida melhor? Então vá lá na Guia e procure Dona Zefa da Guia.

“Com este ramo te curo
com este ramo te guio
do seu corpo todo o  mal
vai ser derrotado na cruz
pois nenhum mal do homem
vence o poder de Jesus
e todo mal que chegar
será ofuscado na luz...”


Uma Zefa que guia, uma Zefa que benze, uma Zefa que a vida cria e recria, uma Zefa que irradia nobreza e sabedoria. Uma Zefa lá da serra de longe, lá do quilombo na cor, lá perto dos mistérios do mundo e dos encantamentos da natureza. De lá ela guia, faz parto e dá vida, faz cura e manda todo o mal para onde o mal deva estar. Ela desce da serra, lá do alto do monte, com folhas e relicários dos encantados. Ela balbucia uma prece, passa o ramo pelo corpo, faz esturricar todo ramo e toda folha, e depois manda o cristão levantar para a vida. Onde ela estudou? Por que ela sabe tanto? Por que é assim tão sábia da natureza, da cura, das orações, dos antigos e poderosos rituais? Porque ela vem do alto, lá do alto da serra, e traz na sua mão e no seu olhar os ensinamentos do mais antigo dos livros: o livro da fé. E traz no seu peito uma guia. E por isso é Zefa da Guia, é a Zefa que Guia.

“Ramo que se curva em prece
para as mazelas afastar
vem da natureza sua força
e todo o poder de salvar
pois é o santo milagroso
que lhe recobre de benção
com a força desta oração
é a força do Pai maior
que dá paz ao coração...”.

É uma Zefa mulher, é uma Zefa que guia. O toque de sua mão, o caminhar de seus dedos, seu olhar de proteção. Que vá embora o mau-olhado, que vá embora o corpo alquebrado, que as forças do mal vão embora pela intercessão de seu gesto, de sua prece, do seu ramo de folha. Crê nos encantados da natureza, nos ensinamentos do alto da serra, mas crê muito mais em Deus. Sabe que a cura só vem de Deus. Assim a guia de Dona Zefa. Assim Dona Zefa da Guia.


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Lá no meu sertão...


Em Bonsucesso, comunidade ribeirinha de Poço Redondo/SE, um santo e seu rio!




Procura-se (Poesia)



Procura-se


Procura-se
um amor singelo
que tão amado seja
que ame pelo querer

procura-se
um amor sublime
que de tão verdade
queira apenas amar

procura-se
um amor sentimento
cuja existência
independa do sexo

procura-se
um amor que goze
não apenas no sexo
mas no prazer de amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - você confia no STF?



*Rangel Alves da Costa


A pergunta que deve ser feita neste momento melancólico e angustiante da Justiça brasileira: você confia no Supremo Tribunal Federal? Este mesmo poder que recebe o pomposo nome de Suprema Corte, de Instância Máxima da Justiça Brasileira, de Casa Guardiã da Constituição Federal. Então, você confia nesta instância superior que tem se mostrado a mais inferior das instâncias morais? Eu não confio. Já confiei, mas hoje não confio mais. E digo mais: muitas casas de tolerância estão se pautando mais honrosamente que o STF, através de alguns de seus vergonhosos membros e suas decisões estapafúrdias. Descabida de qualquer seriedade, de honradez e moralidade, uma instância de máxima judicatura cujos membros se esculhambam e se desonram com afirmações lamacentas, onde muitas decisões são indubitavelmente pessoais, políticas, apadrinhadas, onde os entendimentos dos julgadores mudam acintosamente. Como confiar em ministros que não estão ali para julgar, mas tão somente para defender interesses políticos e pessoais? Como confiar numa corte que julga não pela lei, mas para proteger condenados de prestígio? Como confiar numa instância jurídica onde suas decisões, ao invés de unificar os entendimentos legais, acabam transformando o judiciário brasileiro numa Babel jurisprudencial: para uns condenados vale um entendimento, para outros não. Como confiar numa corte que faz surgir de suas entranhas o mais vergonhoso dos princípios jurídicos: o Princípio Lula? Você até que pode confiar, mas eu não confio.


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domingo, 25 de março de 2018

PRETO, POBRE, PRESO...



*Rangel Alves da Costa


Talvez numa gaveta de gabinete de delegacia, ou mesmo em cima da mesa de uma autoridade policial, esteja um caderno de anotações de como devam ser tratados determinados “bichos sociais”, de como possam ser abordados determinados “estorvos da vida”, de como mereçam ser cuidados determinados “bandidos a todo custo”.
Talvez numa gaveta de gabinete de fórum, ou mesmo em cima da mesa de uma autoridade judiciária ou julgador criminal, esteja uma agenda de anotações os conceitos pré-constituídos sobre alguns elementos qualificados como réus e que logo estarão perante a tábua da lei: “Preto, pobre, preso...”, “Indivíduo de conduta perigosa pelo meio onde vive, pela cor e pela propensão à prática delitiva...”, “Preto, da favela, um típico marginal que se desentranha de seu perigoso meio para vitimar a sociedade...”.
Talvez numa gaveta qualquer da consciência social, ou mesmo no livro sempre fechado da visão social sobre o outro - como se determinadas pessoas já estivessem predestinadas à adequação aos seus conceitos de preconceitos -, esteja o norteamento sempre ambivalente de como o estranho ao seu mundo deva ser qualificado. Tudo na dependência da raça, da cor, do meio onde vive, do poder aquisitivo, do que significa perante o primeiro e amedrontado e enojado olhar.
Enquanto isso, nos cubículos imundos das delegacias, nos subterrâneos onde são jogados os que não servem ao mundo, misturados estão os que não prestam e os imprestáveis. Alguns não prestam à vida em sociedade por afrontar o convívio humano pelos delitos e ameaçadas praticados, enquanto outros são imprestáveis por estarem justamente caracterizados e conceituados naqueles livros, agendas e papéis dos conceitos sociais, como “pretos e pobres”, “de raça inferior e propensa à criminalidade”, “bichos que saem dos seus guetos para aterrorizar a lídima sociedade”.
Por mais que as palavras tentem iludir, por mais que as atitudes possam mostrar o contrário, não há como negar o preconceito e a discriminação disfarçados em cada mente julgadora, em cada pensamento social, em cada olhar da sociedade sobre o que mereça ser visto e o que precisa ser evitado. Há no ser humano uma Caixa de Pandora inversa: os males não são espalhados exteriormente, mas de modo interior. Daí o mal estar muito mais interiorizado do que demonstrado exteriormente. E o preconceito e a discriminação são alguns desses males que atuam internamente. Dizem uma coisa, mas no âmago está o seu inverso.
Não adianta dizer que a sociedade compreendeu o preconceito e a discriminação como males que devem ser evitados. Até que são evitados exteriormente, mas continuam determinando atitudes exteriores. É como se a boca dissesse que todos devem ser respeitados e perante sua raça e sua cor, mas intimamente os negros continuem sendo evitados e até enojados. É como se dissesse que todos são iguais e todas as pessoas devem ser vistas perante suas essências humanas, mas intimamente tudo esteja com outra escrita. A consciência manda evitar o pobre, o negro, o mendigo, a criança de rua, a pessoa que bate à porta de mão estendida.
Como dito, o ser humano geralmente age pelo inverso da “pureza” de suas intenções. O que está purificado por fora, pelo simples dizer, internamente transforma-se em ódio, em hostilidade, em negação, na verdadeira essência do preconceito e da discriminação. Não só no ser comum, mas também nas pessoas segundo suas funções, cargos, encargos, autoridades e profissões. Por mais que se diga o contrário, inegável que o olhar de determinadas pessoas sobre outras é o que determina sua forma de tratamento, e daí o antecipado julgamento. Por exemplo, numa mesa de audiência o pobre, preto e preso, já leva na sua feição muito mais elementos de acusação do que aquelas contidas nos autos.
Noutra exemplificação, a noção geral de bandido, de marginal ou de ladrão, criada e arraigada pela sociedade, tem no negro, no favelado e no pobre, a sua caracterização maior. Por consequência, ser negro, ser pobre, ser favelado, além do problema social em si se tornou num grave problema de liberdade humana. O negro, pobre, saído de seu meio para honestamente trabalhar, não raro acaba sendo confundido pelo olhar preconceituoso da sociedade e da polícia. E quando injustamente é preso já leva, infelizmente, sua cor e sua condição social, como principais testemunhas de acusação.
A questão do preconceito e da discriminação contra a cor da pele e a condição econômica, acaba produzindo não só a negação humana contra os direitos fundamentais, os atributos da dignidade humana e o respeito indissolúvel ao próximo, como um problema maior: a marginalização de classes pela cor. E marginalização no sentido de criminalização mesmo, vez que muitas pessoas são criminalizadas pelo simples fato de serem negras e pobres. E levadas aos cubículos imundos para depois já chegarem sentenciadas perante as autoridades julgadoras.
Não significa dizer que os negros e pobres agora presos, encarcerados e apenados, sejam apenas vítimas do preconceito e da discriminação. Não. Significa dizer que muitos destes são acusados apenas de serem negros e pobres.


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Lá no meu sertão...


Em Poço Redondo, sertão sergipano, de vez em quando o Riacho Jacaré fica assim.






Tão minha (Poesia)



Tão minha


Diante de ti
não imagino a deusa
a flor ou a lua imensa

apenas a mulher
com cheiro e suor
e assim tão minha

diante de ti
não imagino um poema
a joia em bela princesa

apenas a mulher
de singela humildade
e assim tão minha

pois não és além
daquilo que há em ti
e por isso tão minha.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a soma da fofoca



*Rangel Alves da Costa


Apenas uma mocinha passando. Apenas duas vizinhas na calçada enquanto a mocinha passa. Uma comadre diz a outra: Você viu. A outra pergunta o que. Então a primeira ajunta: Aquela ali parece gordinha demais de uma hora pra outra, sei não viu. Então a fofoca já está feita. A outra, com jeito de falso espanto indaga: Será? Daí em diante a mocinha já engravidou sem saber. Mais adiante a mocinha engravidou sem ter namorado. Mais adiante a mocinha não só está grávida de um alguém que sequer sabe quem como não é aquela a primeira vez, pois já abortou. E mais adiante já dizem que a mocinha é mulher de qualquer um. E depois já dizem que os pais já expulsaram até ela de casa. E depois dizem que ela é uma perdida. E outras bocas já dizem que ela é a vergonha da cidade. E mais à frente outras bocas já sentenciam que daquele jeito ela vai logo pro cabaré. E ainda mais adiante já sabem que a mocinha vai ter gêmeos. E mais adiante já sabem que vai ter gêmeos e que depois vai deixar os filhos numa caixa na porta da igreja. Tudo isso em menos de uma hora. Enquanto isso, a mocinha que sequer sabe que o seu o nome vai sendo costurado de boca e boca, apenas se põe à janela sonhando em algum dia aparecer o seu príncipe encantado.


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sábado, 24 de março de 2018

ESPELHOS E SOMBRAS



*Rangel Alves da Costa


Estou desconhecendo a mim mesmo. Nunca mais caminhei pelas estradas e ruas, de pés descalços, pelo prazer de pisar na terra, sentir o calor do chão e estar mais aproximado do mais puro ventre.
Estou entristecido comigo mesmo. Nunca mais abri a janela para esperar borboletas, para a chegada de colibris nem pássaros do amanhecer. E sei que agora me falta aquele sorriso da flor e o beijo da brisa do amanhecer.
Estou me sentindo desumanizado demais. Chego a me perguntar se não perdi a sensibilidade, se não desacalantei o amor pelas coisas simples, se não reneguei o prazer pela jabuticaba e a sapoti de quintal.  E tão doce era beijar a boca do araçá.
Estou me distanciando de mim mesmo. Temo ter deixado ir embora a criança que sempre esteve em mim, o menino traquina que sempre gostou de brincar e de sorrir. Temo que até a memória e as doces lembranças e nostalgias tenham se distanciado de mim.
Estou me tornando cada vez mais insensível, e eis o medo maior que dá. Não desejo a lágrima petrificada nem o soluço preso, não quero olhos sem brilho nem coração que não pulse mais perante as situações de vida. E tudo parece simplesmente acontecer.
Estou sem tempo para as coisas boas da vida, estou sem encorajamento para reencontrar as coisas boas da vida. Nunca mais sentei na pedra, nunca mais conversei com a pedra, nunca mais deitei no colo da pedra e sonhei com um jardim florido e perfumado.
Estou envelhecendo demais sem ainda ter alcançado os portais da velhice. Imagino que os espelhos vão me negar o sorriso, penso que os espelhos vão acrescentar minhas rugas, imagino que de repente já serei outro, triste e alquebrado, num corpo apenas cansado.
Estou sem tempo de fazer o que sempre fiz mesmo sem ter tempo. Sempre encontrei um instante para subir à montanha, para sentar à beira das águas, para me aquecer com as brasas do pôr do sol. E sequer tenho tido tempo de olhar o horizonte e imaginar o que está além e mais além.
Estou sem tempo de pensar nas coisas boas da vida, de trazer ao pensamento o que sempre me confortou, ainda que com saudades. É como se o sabor do café torrado já não mais esteja na minha boca, é como se o perfume do café na chaleira já não estivesse ao meu alcance.
Estou sem auroras e entardeceres que realmente sejam auroras e entardeceres. Não adianta apenas acordar, levantar e caminhar pelo quarto, sem que pule a janela e vá logo beijar a primeira luz e o primeiro sol. Não adianta chegar ao fim da tarde e perante o pôr do sol apenas fingir que o avista.
Estou sem tempo para mim, sem tempo para ser eu mesmo, sem tempo para fazer o que gosto e o que me faz bem. Preciso conversar com o vizinho, falar com as pessoas que passem adiante, sentar na calçada e conversar sozinho. Preciso jogar pedrinhas no meio do nada e riscar o chão com uma varinha qualquer.
Preciso chupar picolé de graviola, de coco e mangaba. Preciso pedir um algodão doce e uma maçã do amor. Preciso de pipoca colorida e de cocada de rua. Preciso piscar o olho pra menina bonita que passa de flor vermelha no cabelo. Preciso beijar a palma da mão e depois lançar o beijar em qualquer direção.
Preciso riscar o tronco da madeira e nele desenhar coração. Preciso escrever versos rimando amor e bilhetinhos com letras miúdas e implorando ao menos um olhar. Preciso ler um livro do começo ao fim e depois reescrever o mesmo livro do fim ao começo. Preciso abrir a janela. Preciso abrir a porta.
Preciso também de um sorriso e de um espelho que não negue as verdades, mas que não doa tanto nas suas verdades.


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