SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 30 de setembro de 2018

SOU SERTANEJO



*Rangel Alves da Costa


Sou sertanejo é o que sou. Mesmo estando longe ali estou, como andorinha que voou, mas que depois da seca voltou.
Sou sertanejo, e isso me faz orgulhoso. Sou feito umbu travoso, mas como o araçá saboroso, no fogão de lenha o cozido mais gostoso.
Sou sertanejo de vaquejada, de cavalgada, de cavalhada. De aboio e de toada, de canto vaqueiro na estrada, o eco da vaqueirama e da boiada.
Sou sertanejo de chapéu de couro e gibão, de peitoral e de cavalo alazão. Espora uso mais não nem açoito o animal da pele virar lanhão. O bicho é amigo, é irmão.
Sou sertanejo de casa de cipó e barro, ainda o carro-de-boi como carro e fumo de rolo no cigarro. Flor de plástico no meu jarro, à vida me lança e me agarro.
Sou sertanejo de moringa na janela, de rangido na cancela, de braseiro sob a panela e qualquer pão na tigela. Prato de estanho numa mesa tão singela e a humildade tão bela.
Sou sertanejo ainda de candeeiro, e eu mesmo bato tempero e colho pimento de cheiro. Nunca quis ser o primeiro, mas nunca o derradeiro, e tenho riqueza mais que dinheiro.
Sou sertanejo de porta aberta pra malhada, de carroça na sombreada, de poeirão na estrada. Mesmo a vida cansada, o rei sou eu nesse reinado de sol grande e luarada.
Sou sertanejo de semente e de grão, também de tristeza e de aflição se não chove no sertão. Quando o sol desce em clarão, entristecido eu penso no bicho em ruminação.
Sou sertanejo de leite bebido em curral, esguichado do peito animal, com um pouquinho de farinha e sal. Uma comida de sustança e que a ninguém já fez mal.
Sou sertanejo de graveto e cipó, de embornal e aió, da rolinha e curió, de laçadura e nó. Da pedra grande e do pó, em meio a tudo e tão só.
Sou sertanejo de sonhar com trovoada, de esperar a invernada, de orar pela chuvarada. Levo São José na estrada, procissão e caminhada para que do céu o trovão dê ribombada.
Sou sertanejo de um sertão tão sertão, de Padre Ciço e de Lampião, do Conselheiro e do Frei Damião. Tudo se revela ao coração não como apenas viver, mas como santa missão.
Sou sertanejo do mandacaru e xiquexique, da zabumba e do repique, da roupa de feira mais chique, de pinga da terra e alambique. E da perna de preá fazer piquenique.
Sou sertanejo da fé e da devoção, do rosário de contas e de oração, de oratório e de comunhão, do Padre Mário e seu sermão. E ouvir o que diz, e sentir emoção.
Sou sertanejo da terra de Dona Zefa parteira, do Mestre Tonho da aroeira, do Mestre Orlando da algibeira, de Naní nossa doceira, de Zé Leno e sua arte cangaceira.
Sou sertanejo de um sertão que é de Alcino, do caçador Mané de Tino, de Felipe o menino que faz do xaxado um destino. Um sertão assim, como na escrita de Belarmino.
Sou sertanejo do Velho Chico em ribeira, da história cangaceira, da pomada de peixe-boi ainda vendida na feira. E daquela panelada que o cheiro vai além da cumeeira.
Sou sertanejo do passado e da memória, do proseado e da história, do sofrimento e da glória, até daquele cigarro antigo, o Continental e Astória.
Sou sertanejo daquele forró do Miltinho, da novena em Curralinho, de toda estrada e caminho. Daquele leilão tão antigo que recordo com carinho.
Sou sertanejo como a Família Vito a tocar, como Geno a aboiar, como Niltão a ecoar a toada tão tristonha da vaqueirama que foi pro céu vaquejar.
Sou sertanejo daquele mesmo sertão que um dia foi de Zé de Julião e que hoje, com o merecido perdão, está entregue ao desvão, nas mãos de uma gente estranha que não é pai nem irmão.

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Lá no meu sertão...


Cheiro de sertão!


Dizer te amo (Poesia)



Dizer te amo


Já repeti
te amo
te amo
te amo

a palavra
diz apenas
e tenho mais
a dizer

no silêncio
no olhar
um te amo
infinito.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - vivendo a imensidão do amor



*Rangel Alves da Costa


Minha menina, minha linda, minha namorada. Que tal a gente viver toda a imensidão do amor. Não o amor frágil, quebradiço, de guerra e de paz, de luas e de sóis, de sombras e claridades. Não. O amor que seja tão verdadeiro que até nos faça compreender quanto tempo perdemos sem fruir de sua beleza, de sua doçura, de seu encantamento. Um amor como de dois enamorados, como adolescentes apaixonados, como pessoas que de repente sobem às nuvens depois de um beijo. E eu chegando de buquê perfumado, e eu chegando com concha de mar, e eu chegando com uma fruta de pomar, e eu chegando com um sorriso no olhar e um brilho no lábio. E você me esperando como a alva do dia espera o primeiro sol. Mirando o mar no seu olhar, abraçando o seu corpo, tocar em seus lábios uma palavra: te amor! E repetir mil vezes: te amo, te amo, te amo!


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sábado, 29 de setembro de 2018

COISAS DO SERTÃO



*Rangel Alves da Costa


Não adianta pretender esquecer ou mudar. A bolsa de viagem, de caçada ou de trabalho do sertanejo sempre foi e sempre será o aió, o alforje e o embornal. Não do sertanejo tomado pelos modismos recentes e suas sacolas, pastas e mochilas requintadas, mas sim daquele que tem sua bolsa encourada e tingida de sol e suor como verdadeiro instrumento de trabalho.
Com destino à mente, ou mesmo diante de um fato inesperado e urgente, lá se vai o caboclo lançando mão de sua companheira de viagem. Envelhecida, carcomida pelo tempo, já de cor muito além do barro queimado, mas sempre firme nas suas costuras e fechamentos. Ou ainda de cipó trançado com maestria artesanal, cujo tempo vai amolecendo as tiras e nós, mas sem diminuir sua resistência.
Quando produzidas em larga escala e comercializadas pelos quatro cantos, tais mochilas sertanejas possuem a mesma serventia para o viajante, mas não a mesma durabilidade. Esta só é conseguida quando cada peça é feita artesanalmente, uma a uma, na dureza dos dias, manualmente cortadas, costuradas ou enlaçadas, segredos maiores do velho coureiro ou do enlaçador de cipós.
Depois de dias e mais dias, assim que o velho artesão dá como pronta sua encomenda, a primeira coisa que se observa é o cheiro forte no alforje ou no embornal. Aliás, todo instrumento de couro exala um cheiro intenso quando novo. Precisa, pois, ser batizado pelo sol, receber uns solavancos e sofrer as mesmas agruras sofridas pelo homem. Depois disso fica macio, de cor envernizada, humilde e singelo como o filho da terra onde terá serventia.
O mesmo ocorre com o aió, mas não pelo cheiro, e sim pelo trabalho que dá. Feito de caroá, uma planta da família das bromélias, vai surgindo do cuidadoso trabalho do artesão para cortar as folhas, retirar toda a pele e ir repuxando as longas e resistentes fibras. Quando isoladas das folhas, as fibras passam a se assemelhar muito mais a fiapos esbranquiçados, que unidos vão formando verdadeiros cordames. Do entrelaçamento dessas cordas finas é que vai surgindo o aió.
Sempre colocado num armador do canto da casa, de modo a ser logo alcançado quando já próximo da saída para o afazer cotidiano, o aió, o alforje ou o embornal passa a ter quase a mesma utilidade daqueles tão conhecidos instrumentos sertanejos. Presente no homem como o gibão, o chapéu de couro, a perneira, a taca de couro cru, a sela, o cantil. E assume tanta importância porque dentro dele estará tudo que necessitar nas horas que a fome apertar ou quiser lançar mão de um cigarro de palha, de uma espoleta ou de qualquer outra coisa de pequeno porte.  
Por mais que chamem de embornal aquela sacola de muitos bolsos e trancas que os jovens de hoje andam carregando às costas, geralmente de pano ou sintética, em nada se parece com aquele outro, obra artesanal e autenticamente sertaneja. Este é traçado no couro curtido debaixo do sol, com enfeites à moda cangaceira ou não e feito para a eternidade. Embornais passam de geração a geração e, além da história familiar, continuam carregando dentro de si as necessidades dos novos tempos.   
Tanto o aió como embornal e o alforje surgiram da necessidade de o sertanejo obter mais facilidade de alcance daqueles objetos de menor porte que faziam parte do seu cotidiano além da moradia. Por mais que levasse consigo a cartucheira, o cantil, o canivete de cinta, precisava de uma bolsa que fosse espaçosa e resistente para as durezas da lide. Bastava arrumar lá dentro a carne seca com farinha, o fumo e a garrafa de pinga, o frasco com espoleta e tudo que fosse de serventia, deitar nas costas ou no lombo do animal e seguir adiante.
Luiz Gonzaga, na música “Pau de Arara” fala de outro objeto dessa mesma família sertaneja: o matulão. Um pouco maior que os citados, a serventia desse utilitário de retirantes é descrita com precisão: “Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó/ A maleta era um saco e o cadeado era um nó/ Só trazia a coragem e a cara, viajando num pau de arara/ Eu penei, mas aqui cheguei/ Trouxe um triângulo no matulão/ Trouxe um gonguê no matulão/ Trouxe um zabumba dentro do matulão/ Xote, maracatu e baião, tudo isso eu trouxe no meu matulão...”.


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Lá no meu sertão...



Em Poço Redondo, um sol ao longe. E tão perto. E tão dentro da gente.




Náufrago (Poesia)



Náufrago


Olhei
e não deveria olhar

vi o mar
e não deveria navegar

era amor
e não deveria amar

a paixão
que me fez naufragar

quero cais
preciso me salvar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – disfarces do sofrimento



*Rangel Alves da Costa


Não tem jeito. Por mais que a gente deseje sempre estar bem, estar alegre, feliz e contente, mas a gente sofre. De repente, cortam nosso pé de laranja lima, jogam por terra nossas esperanças, lançam ao vazio aquilo que era o nosso tudo. Com o amor nem se fala. O que poderia ser a seiva de tudo, o alimento do espírito e alma, a semeadura nos nossos dias, eis que chegam as ventanias, as tempestades, os vendavais. E o sofrimento como consequência de tudo. Contudo, o que mais dilacera não é o simples ato de sofrer, mas toda uma junção de desalentos que acompanham o sofrer. E então a lágrima, o grito, o desespero. Tudo por causa daquilo que ilusoriamente nos chegam como amor. Amor? Não, não, jamais amor. Apenas os disfarces do sofrimento.


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sexta-feira, 28 de setembro de 2018

NAS GARRAS DA SOLIDÃO



*Rangel Alves da Costa


Na solidão profunda, na solidão mais aterrorizante, o homem agoniza, transmuda-se, entorpece. Na solidão o homem estertoriza, lamente, chora, grita, sofre. Não é sequer humano, apenas o ser transbordante em outro ser horrendo e moribundo.
Na solidão entranhada nas profundezas, o homem geme, germina a infindável melancolia dos abandonados. Uma solidão tão absolutamente sozinha que no silêncio maior assobiam e açoitam as ventanias vorazes, as tempestades atrozes, os famintos vendavais. Um deserto de caminho de fogo.
Na solidão, naquela solidão sem chão nem altura, sem lado nem saída, o homem se desumaniza, desnorteia-se em redemoinhos gulosos de vida. Quer pular, quer gritar, quer subir pelas paredes, quer encontra uma fresta, quer uma lua, quer um sol, mas só encontra o negrume retinto da solidão. E de boca aberta e feia. Dentes pontudos e língua bifurcada, tudo assim na boca da solidão.
Um ser solitário e metamorfoseado na exata forma kafkiana. Um verme asqueroso, um se repelente e abominável, um bicho em imprestabilidade rastejante. Membros e troncos, mente e lucidez, que de nada servem senão para o reconhecimento da própria desvalia humana. Embaixo da cama, pelos cantos escuros, a miséria humana latejando a animalidade mais terrificante.
Ou seria um lobo uivante na altura do monte, de caninos afiados e olhos vermelhos pelo fogo da solidão? Lobo e sua tristeza, sua angústia, seu terrível e voraz sofrimento. Na sua solidão apenas o uivo, o brado, o grito dilacerado na noite, mas quem o avistasse certamente encontraria um espectro forçando a existência. Terríveis sons na escuridão da montanha, ecos que avançam adiante como se quisesse tudo transformar no mais cruel desalento.
Assim o homem na sua solidão. Uma fera, um bicho, um selvagem, um ser bestial, qualquer coisa ferina que avança e se consome a si mesma. Um ser animalizado, transformado em irreconhecível criatura. Uma bestialidade de garras afiadas e pulsações violentas na alma, na pele, nos olhos, na boca, nos sentimentos. Um ser solto da jaula e preso no seu próprio labirinto. Uma animalesca figura que sequer se reconhece na sua dor.
Uivos, brados, gemidos, berros, bramidos, clamores, soluços, lamentos, agonias, alaridos, clamores. Eis a voz da mais solitária solidão. Eis o que ecoa no meio da noturna selva dos desvalidos sentimentos, dos devastadores abandonos.
“Contorce-se. Desgrenha-se em gemidos roucos. Move suas garras afiadas no chão duro. Deitado, rola de lado a outro, um ser em transmudação. Grita ou berra, geme ou uiva, ou tudo ao mesmo tempo. Sacoleja, bate no chão, coloca as duas mãos sobre a cabeça, puxa vorazmente os cabelos, lanha o corpo inteiro, depois se move rapidamente em direção à parede. Quer subir, quer escalar a parede, quer alcançar o telhado. Escorrega suas mãos perto da janela. Salta e cai, e novamente se contorce na mais profunda agonia. Quer fugir, quer encontrar uma saída para a solidão. Mas o que lhe resta é somente a solidão...”.
“Vai subindo como pode até alcançar o telhado. Suas mãos em garras afastam telhas e fazem surgir um laivo de lua. O quarto escuro toma uma cor amarelada e de tez enferrujada. A pouca luz reflete o rosto crispado, o olhar de fera, a boca de fera, o corpo da fera em ritual de solidão. Mas não é fera, é homem. Mas não é mais o homem, é simplesmente a fera gestada na solidão...”.
“Avançou sobre móveis, derrubou o cálice em cima da mesinha, estilhaçou a garrafa de vinho. Quis beber veneno, mas não reconhecia o frasco. Sua pele estava rija demais para que o fio do punhal respingasse o vermelho da aflição. Não havia arma de fogo, mas naquele momento ele não era caçador, apenas frágil presa. Cansou-se de tudo, cansou-se do mundo, cansou-se da vida e de si mesmo. Quis morrer. Decidiu. Urrou pela última vez e adormeceu. Pela luz que descia do telhado afastado, apenas um vulto lançado ao chão. Dormia. Ainda pulsando lágrimas e agonias, apenas dormia. Uma fera na solidão adormecida”.
Eis o homem na sua solidão. Uma solidão tamanha que o torna fera. E já não será mais homem, mas apenas o bicho perdido na selva escura de si mesmo.


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Lá no meu sertão...



Ao entardecer desta sexta-feira, caminhando por aí, pelas ruas calmas e murmurantes de Poço Redondo, eis que encontro duas pessoas que merecem todo aplauso e toda veneração: Dona Conceição de Laura e Dona Das Dores. E eu entre elas, apenas guardando no embornal da memória as tão doces e sábias palavras.




Tudo e nada (Poesia)



Tudo e nada


Tanto amor e mais
tanto querer e mais
a soma infinita
de beijos e abraços
e agora nada mais

depois da metade o fim
nem alecrim nem jasmim
de tudo que eu tinha
e tudo o que eu dei
nada mais restou pra mim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – a preocupação da safada



*Rangel Alves da Costa


Essa história eu já ouvi várias vezes. Não sei se verdadeira, mas merece ser recontada. Então vamos lá: Dizem que uma mulher traía seu marido na casa do casal e principalmente na cama conjugal. Até aí dentro da normalidade dos adultérios, das traições e das safadezas. Fato estranho mesmo é que o traído, o marido corneado, noutro lugar não ficava senão debaixo da cama do casal, onde ele toda noite dormia com a dita esposa. Mas não se escondia ali para flagrar, para pegar os dois. Ele já sabia de tudo e até consentia, pois a intenção dele ali debaixo era outra. Assim, enquanto a esposa e a amante estavam nos preparativos é que chegava a voz dele agir. A mulher sempre pedia que o amante não se esquecesse de comprar um presentinho para ela agradar o marido corneado. Então, quando ela dizia que o amante trouxesse uma camisa, o corneado dizia baixinho lá debaixo: “azul, azul”. Se era um relógio, o corno dizia: “com pulseira de couro”. E se era uma calça, o corno logo lembrava o tamanho. E assim tudo acontecia. O corno dando a mulher e recebendo um presentinho de vez em quando.


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quinta-feira, 27 de setembro de 2018

MÃO DE POESIA E DE PUNHAL



*Rangel Alves da Costa


Se há um instrumento terrível, devastador, covardemente destruidor, este é a mão do homem. Aonde o seu passo chega, seu braço alcança, sua mão toca, ali estará o fim.
A mão que tocou a maçã proibida no Paraíso, a saudação nazista e sua mão arrogantemente estendida, a mão cujo dedo polegar gesticula a destruição, a mão onde as linhas do destino se transformam no arrebatamento do destino do próximo.
Não se cogita aqui de ver a mão humana pelo lado humanista, defendendo-a nas suas virtudes. Seria raridade apontar uma mão que se volte única e exclusivamente para fazer o bem, para a benção, para doar o pão.
Logicamente que existe a mão do carinho, do afago, do conforto. Contudo, tal órgão anatômico ao repousar afetuosamente sobre o outro está despido de intencionalidade própria, pois obedecendo aos sentimentos de afeição e talvez de amor. E tudo parte do coração, órgão aliás que poucos parecem ter. 
Contudo, a grande verdade é que não existe mão santa, inocente, imune às tentações tão próprias do homem. Assim, a mão que doa continua estendida esperando receber; a mão que entrega a flor dá um tapa na cara, e muitas vezes logo após entregar a flor. A mão que desenha a pomba da paz assina a ordem de ataque, da guerra, da devastação.
O que sobreleva na mão é o seu poder de ser tão verdadeira. Ela não volta atrás, até porque o estrago já foi feito ou a intencionalidade cumpriu seu objetivo. Com o dedo em riste, aponta, indica, sinaliza, gesticula, sentencia de vida ou de morte. E na carícia que faz é para sentir o valor que tem e se apoderar.
Lógico que a mão não é membro que age sozinho. Toda a ação que vier a praticar é comandada pelo querer da pessoa, pelos seus sentidos, pelo seu objetivo mental. E neste poderia afirmar que não se deveria culpabilizar a mão, mas o homem em si.
Contudo, o recorte que se faz é no sentido de, essencialmente, mostrar o poder de ação, e como age, desse pequeno órgão da extremidade dos membros superiores, que também é responsável pelo tato, um dos sentidos humanos.
A mão deveria ser vista no mesmo patamar dos outros órgãos humanos. Contudo, os outros são praticamente inocentes e ineficazes diante do poder que uma mão possui. Os olhos, por exemplo, veem, sentem, sofrem, mas não podem modificar nada. Com a mão é diferente, pois vai lá e transforma tudo.
Por mais que pretendam inocentar a mão pela prática de crimes, atrocidades, violências, destruições, não há como deixar de vê-la segurando os instrumentos que provocam tudo isso, levando com segurança aquilo que mais tarde provocará terríveis consequências para o seu próprio dono.
É ela, a mão sedenta de sangue, que puxa a arma, aponta e aperta e gatilho; e a mesma que coloca o objeto assassino no mesmo lugar, e como se nada demais tivesse acontecido. Ora, uma vida talvez não valha mesmo nada. É ela, a infame mão, que amola e recolhe a pedra, amola a faca, coloca-a na bainha e depois na cintura. E no momento certo retalha o que bem entender.
É ela, a abjeta mão, que aponta o local na mata, indica árvore que deve ser derrubada, segura a motosserra e depois, como num sopro, dá um leve empurrão para a morte da natureza. E é também ela que cuida de cortar a madeira, colocá-la no transporte, indicar o destino final para a transformação. Satisfeita, é exatamente ela que recolhe o dinheiro com a venda.
É ela, a mão assassina, que de facão em punho vai abrindo a floresta, cortando a mata, até encontrar os ninhos dos pássaros, a moradia das onças, dos veados, dos caititus, das antas, das seriemas, de tudo que for bicho ainda existente. E depois é ela que aponta a arma, aperta o gatilho e em seguida vai recolher seu troféu. E também é ela que sangra o bicho de estimação para fazer molho pardo para o refestelo das gulodices.
É ela, a mão covarde, que coloca o copo na boca e faz a cachaça se derramar goela abaixo. É a mesma que empurra a porta de casa, esbofeteia a esposa, agride os filhos, levanta violentamente as tampas de panelas e depois atira uma a uma no quintal. E aponta o dedo para ameaçar, quando não procura violentar novamente.
É ela, a mão insensível, pusilânime, desumana, que desenha o mapa da guerra, aponta os locais de ataques, escreve nas estatísticas o número de mortos. E sem falar que é também ela que rouba, furta, lesiona, atira pedra na vidraça do outro.
Quem dera que a mão só servisse para dar adeus. E adeus para sempre àqueles que fazem das mãos a vergonha da vida, a desonra humana.
  

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Lá no meu sertão...


Comida de Feira em Poço Redondo, sertão sergipano. Coisa melhor não há!





Amor e sequidão (Poesia)



Amor e sequidão


Uma triste comparação
um amor bonito
e a seca do sertão

um amor semente
que não mais vingou
pelo sol ardente

um dia lado a lado
como planta e flor
e depois separado

amor de cada instante
sem no adeus pensar
e depois um retirante

um fica na porta
e o outro vai embora
e talvez sem volta

no sol chamejante
sofrimento e dor
no amor já distante

se a chuva chegar
ninguém sabe porém
se o amor vai amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – a politicalha nas redes sociais



*Rangel Alves da Costa


Por causa da política, candidatos e paixonites de momento, verdadeiros absurdos estão acontecendo nas redes sociais, principalmente no facebook. Paixões desenfreadas, fanatismos, verdadeiras enfermidades, tudo fazendo parte de um jogo insensato e desarrazoado. Ora, a maioria, principalmente aquela mais fanatizada e briguenta, sequer possui um olhar ao passado político e dos partidos. Defendem com unhas e dentes, mas nada sabem da honradez e do caráter do candidato, ignoram totalmente os lamaçais e as teias de corrupções dos partidos, vão sendo levados pelas euforias e pelas ignorâncias, nos dois sentidos. Bolsonaro, por exemplo, a muitos exemplifica o pecado, enquanto Haddad é a verdadeira santidade. Doutra forma, Haddad é mais um filhote do lamaçal petista, enquanto Bolsonaro é o salvador da pátria. Para muitos, Lula (que nem é candidato pela óbvias razões) não passa de um prisioneiro, de um condenado por ser criminoso, enquanto para outros é a pessoa mais inocente do mundo, o pai dos pobres e dos desvalidos, a honradez em pessoa. Vá entender um negócio desses. E como se expressam, e como defendem seus escolhidos, até parece que vão morrer se os seus candidatos não forem eleitos. Mas que tal anteciparem um suicídio coletivo? Ao menos a gente se livraria, em parte, de tamanhas aberrações.


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quarta-feira, 26 de setembro de 2018

TUDO É SERTÃO!



*Rangel Alves da Costa


Do lado de dentro ou de fora. De dentro da casa velha ou do lado de fora, na solidão da malhada, não importa. Tudo é sertão!
Curral de tora potente ou de garrancho de pau, não importa. Não importa que seja muito gado ou apenas uma ou duas vaquinhas. Tudo é sertão!
Pote d’água antigo, moringa molhada ao amanhecer da janela, tamborete no meio da sala e um velho baú pelos cantos. Tudo é sertão!
Menino brincando com ponta de vaca e vaca mugindo no pasto. Menino correndo atrás de calango e calango no alto da pedra. Tudo é sertão.
Moca bela na janela, sonhando com seu príncipe encantado, e mais adiante o encantamento da amarela flor da catingueira. Tudo é sertão!
Um entardecer que chega, um sol afogueado que vai sumindo, um fogaréu chamejante desaparecendo no horizonte, até tudo escurecer. Tudo é sertão!
Lenha colhida no mato antes de a chuva cair, fogão de chão aberto em quintal, e por cima uma grelha para o toucinho ou pedaço de qualquer coisa. Tudo é sertão!
Pastagem esturricada de sol, poeira solta pelos espaços, caminhos ardentes e plantas murchando entristecidas, quanta tristeza e agonia na vida. Tudo é sertão!
João catingueiro, Maria lenhadora, Bastão caçador, Zefinha parteira, Inácio vaqueiro, Jurema dona de casa, Licurgo mateiro, Donana doceira, Tiziu sofredor. Tudo é sertão!
Uma lua bela numa noite de breu. Um proseado adiante da casa, uma viola de pinho, uma talagada de pinga e uma saudade grande. Alguém chora bem baixinho. Tudo é sertão!
Saudade de Tonico que arribou no pau-de-arara e ainda não voltou. Filozinha todo dia espera uma carta sua. Ele disse que vai voltar, mas o tempo passa e nada. Tudo é sertão!
Um quintal de farmácia e de benzimento, de cura e até de milagre. A velha rezadeira vai juntando folha, ramos e o inusitado, e basta uma prece para a cura chegar. Tudo é sertão!
Um chão de espinho e uma desolação. Dia após dia e nada de chuva. Quando a porta é aberta e nada de nuvem, então os olhos lacrimejam o sofrimento e a dor. Tudo é sertão!
Um cesto de palma, um tiquinho de água. Tanque secando e o barreiro no barro. Não demora muito e tudo acaba de vez. Teme-se até pela vida em meio à sequidão. Tudo é sertão!
O sol em fornalha tanto queima como devora a vida. Não há planta que dê um sorriso, não há arvoredo que ainda tenha folhagem. Tudo parece viver pra morrer. Tudo é sertão!
O anoitecer traz uma saudade. O radinho de pilha faz lembrar-se de alguém. As velhas cartas já não chegam mais. Um forasteiro ou outro traz notícia do mundo. Tudo é sertão!
O vento soprando parece um grito. A folhagem zune querendo falar. O bicho se esconde com medo de tudo. A lua lá em cima se faz testemunha. Tudo é sertão!
Amores desfeitos, amores distantes. Um luto de vivo pela dor da ausência. Uma partida demorada a voltar. A porta aberta e ninguém pra entrar. Tudo é sertão!
Canta o silêncio pela ausência do pássaro. Sabiá sumiu, sumiu a rolinha. A canção passarinheira já não se ouve mais. O bicho voou e não quis mais voltar. Tudo é sertão!
Aquele passado que insiste em ficar. Casas abandonadas, chiqueiros vazios, janelas fechadas e portas cerradas. Os fantasmas passeiam nos escombros de agora. Tudo é sertão!
Uma panela de barro em riba de fogão. Um cheiro cheiroso e uma fome das grandes. Qualquer coisa serve na vida sem luxo, qualquer pão é pão na grande riqueza. Tudo é sertão!
Uma melancia, um feijão de corda. Uma espiga de milha, uma abóbora leiteira. O fruto da terra é tudo na vida. E sem o brotar não há a existência. Tudo é sertão!
As mãos calejadas, a face lanhada de tempo e de sol. O chapéu de couro e os olhos profundos. Quer viver, quer estar, quer sentir o seu mundo. Pois tudo é sertão!


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Lá no meu sertão...


À espera de chuva



Beijos (Poesia)



Beijos


Tanto sonhei com tua boca
e o sonho tanto me fez beijar
que amanheci faminto de beijo
e logo corri em direção ao pomar

beijei e beijei com ânsia
a graviola, a manga, a goiaba
beijei e mordi sedento
graviola, sapoti, jabuticaba

infelizmente não eram teus lábios
mas beijei a fruta sentindo saudade.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - Folha de São Paulo, exemplo maior de jornalismo nojento e partidário



*Rangel Alves da Costa


Imaginei que o jornal Folha de São Paulo jamais pudesse descer ao reles da desavergonhada politicagem como está fazendo agora. Distante de qual ética jornalística, de qualquer seriedade no que noticia, de qualquer compromisso com o seu leitor, a Folha de São Paulo prostitui-se politicamente de tal modo que mais parece ser rampeira de beira de cais. E com o devido respeito às prostitutas, que possuem maior credibilidade que este repugnante e asqueroso jornal. Mas o que o Folha de São Paulo fez para ser assim caracterizada? Ora, leiam as manchetes, leias os subtítulos, leiam suas notícias políticas. Não há um só dia que o jornal não procure achincalhar o candidato Bolsonaro, não há um só dia que o jornal não deturpe a sua imagem, não há um só dia que o jornal não procure enlamear o candidato. E as manchetes são construídas de tal modo que nada parece favorável ao candidato Bolsonaro. Por exemplo, ao invés de dizer que o mesmo continua em primeiro lugar nas pesquisas e que venceria na maioria dos estados, prefere dizer que o mesmo será derrotado no segundo turno. Quer dizer, procura desconstruir totalmente a sua candidatura. Em nome de quem faz isso? Logicamente que em nome do PT e de seu candidato. E certamente não faz isso de graça. Uma pena que um jornal tão conceituado no passado chegue ao nível mais baixo do jornalismo brasileiro. Uma nojeira, apenas.


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terça-feira, 25 de setembro de 2018

O SANTO REMÉDIO (OU A SOLUÇÃO DE TODOS OS PROBLEMAS)



*Rangel Alves da Costa


Vixe, Maria, é problema demais! Arre égua, é desacerto de num acabar mais! Lascou tudo, do jeito que a coisa tá feia nem reza forte dá jeito! E assim os lamentos, os queixumes e as lamentações. Cada um com um problema a resolver, e algumas situações tão difíceis que muitos já não acreditam mais sequer em milagre.
Mas como diz o vendeirim ervas e pomadas de mercado, o folheto da mãe-de-santo, a propaganda da vidente e o boca-a-boca do falso milagreiro, há jeito pra tudo. Tem gente que só acredita em reza, em oração, em auxílio do alto, mas outros até se deixam levar pelas tentações milagreiras.
E tem gente com todo tipo de problema: espinhela caída, dor de veado, quebranto, mau olhado, coisa feita, enfeitiçamento, dívida impagável, má sorte no amor, traição, falta de apetite, apetite demais, bebedeira, sofrência, desgosto, quebradeira, reumatismo, inchaço das pernas, falta de apetite sexual, falta de vergonha na cara. E tem mais.
E tem mais: erisipela, junta doendo, dor nas costas, ciúmes, paixão doentia, solteirice, donzelice, dor de cabeça crônica, olho caído, síndrome de riqueza, fofoquice aguda, preguiça constante, bolso sempre vazio, desilusão amorosa, fogo de viuvez, boca porca, gravidez escondida, pulação de cerca, sibiteza.
E outros males tão conhecidos: puxa-saquismo, bajulice, baba-ovismo, dor de cotovelo, puxação de escada, falsidade, dupla personalidade, safadeza, entreguismo, mentira, arrogância, esnobismo, síndrome de maria-vai-com-as-outras, cinismo, babaquismo, pedantismo, síndrome da vitimização, valentia de poder.
E além logicamente daqueles males que afetam quase todo mundo: restrição de crédito, dívida de não acabar mais, nome sujo, conta negativa, cheque no vermelho, total pindaíba. Mas também aqueles que sofrem de síndrome de endeusamento, do riquismo, do tudo ter sem ter nada, da ostentação com dívida até o pescoço, do esbanjamento com tudo financiado e sem pagar.
Como visto, são males demais. Algumas coisas não são nem males, pois com aparência de disfunção pessoal, de desacerto comportamental ou falta de vergonha mesmo. Claro que muitas doenças existem e precisam ser curadas, e para tal existem os meios normais da medicina e da farmácia. Para outros, apenas uma consulta ao fundo de quintal pelas mãos de uma boa benzedeira. Outras coisas, porém, só no cacete mesmo.
Segundo o velho Janjão Catingueira, pra muita coisa só mesmo uma surra bem danada com um feixe de urtiga com cansanção. Não há remédio de mais efeito que uma surra bem dada em puxa-saco, em bajulador, em baba-ovo. E dizia ainda que tem gente que só se apruma quando o quarto é esquentado com uma boa vara de cipó verde. Cabra que não tem o que fazer e quer ser rico sem poder, brilhando com ouro falso, mas sem poder dormir de preocupação com o que deve, é um desses que merece uma boa sova. Tudo na lição do velho Catingueira.
Contudo, por outro lado a velha Fedegosa, rezadeira sem igual nas bandas do Quelemente, sempre diz que muita coisa pode ser reparado naqueles de mau olhado, de fraquejamento espiritual, de olho caído, de espinhela caída, de sofrimento sem motivo algum. Tudo fraqueza do corpo e da inveja do outro, assevera a velha. E afirma ainda que nada melhor que um benzimento do corpo com folha ou ramo de mato. Escolhendo a oração certa para cada caso, logo a murcheza da planta mostrará que o mal também esturricou, perdeu sua força, e vai ser jogado nas lonjuras do mundo.
Para outras coisas, males que são criados pela própria pessoa, como assuntos passionais, de desamores, de paixões não retribuídas, de chutes na bunda e até cornice, somente com Tição do Caboclo Sete-Estacas. Segundo dizem, no terreiro dele tanto o amor é trazido como levado embora, tanto o nó é apertado mais como é desfeito sem volta. Homem apaixonado e que quer mulher a todo custo, é só ir lá botar nota na mão do Tição. Mulher que quer homem casado, basta chegar com um maço de notas e um retrato, que o Caboclo faz ele deixar a esposa e a família e pular de vez a janela da também casada. E safada.
Ajuda sagrada, clamor ao divino, aos santos e anjos, pela cura dos males, somente para quem tem fé, para quem sabe o sentido da crença, da religiosidade, da força dos ensinamentos bíblicos. Estes, até que podem procurar uma benzedeira, um rezador, um médico, uma farmácia, mas primeiro pede ajuda aos céus na cura de seus males. Na fé, a cura, muitas vezes. Mas outros nem adiantam mil promessas nem milhões de velas acesa. Quando mal é moral, é mundano mesmo, só mesmo com uma boa surra de urtiga e cansanção.


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Lá no meu sertão...


Fé sertaneja!





Calango na pedra (Poesia)



Calango na pedra


Calango na pedra
o sol bateu
a pedra esquentou
calango pulou
e gritou:
queimou!

com o sol e o calor
a pedra chorou
lágrima derramou
e o calango voltou
e gritou:
meu Senhor!

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - um abraço, Lucinha



*Rangel Alves da Costa


UM ABRAÇO, LUCINHA - Lucinha é minha amiga. Eu sempre gostei de Lucinha. Uma pessoa decente e que no passado exemplificou com perfeição o charme da mulher poço-redondense. Sempre bem penteada, sempre bem arrumada, sempre perfumada. Por um desejo próprio, por um gostar de ser assim. Acometida por enfermidade, muito sofreu, muito imaginou jamais voltar ser a mesma. Temeu pela própria vida. E todos os seus amigos sofreram com ela. Mas aos poucos foi se recuperando e hoje ela voltou a sorrir, voltou a prosear cheia de contentamento como no passado. E quem passar na curva da Praça da Matriz, já entrando na Avenida Alcino Alves Costa, na cidade sergipana e sertaneja de Poço Redondo, certamente encontrará Lucinha ao entardecer em proseado junto com suas amigas. Aquela calçada parece não existir sem sua presença. De vez em quando eu passo por ali e aproveito para o prazer do reencontro. Lucinha é assim, um doce de pessoa. Abraço, amiga.



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segunda-feira, 24 de setembro de 2018

AS DIFAMADAS



*Rangel Alves da Costa


“Creuzina, minha fia, vosmicê nem quera saber o que vi dizer. Mai eu bem sabia. Muié que quer ser séria demais dá nisso. Num é que me dissero que aquela mocinha que mora ali, aquela merma toda metida a sonsa, num passa de uma levantadera de saia, que num pode ver macho que arriba a saia...”. A outra logo arregalou os olhos e muito mais os ouvidos. Queria ouvir mais. Queria saber de tudo. “Conte, conte...”. Implorou à amiga.
Tudo para falar mentira, fofoca, aleivosia. A coitada da mocinha agora festejada pela boca maldita e maldosa, não passava de uma pobre criatura que outra coisa não fazia senão abrir a janela e sonhar com príncipe encantado. Quase não saía, não bebia, não dançava, não era festeira. De vez em quando folheava uma fotonovela antiga e se danava a entristecer com o final feliz que todo mundo devia ter. Menos ela.
De nome Florisete, a mocinha era uma verdadeira flor em desconhecido jardim. Dava bom dia ou boa tarde a todo mundo, mas não abria a boca para algo além disso. Não gostava de ouvir falar sobre a vida dos outros e muito menos cuidar sobre a vida de ninguém. Quando não estava à janela sonhando e sonhando, seu hábito mais costumeiro era ficar diante a penteadeira alisando os cabelos e se perfumando com Topázio ou Toque de Amor. Por dentro dizia que um príncipe encantado espera encontrar uma princesa bem linda.
A mocinha Florisete sequer imaginava o que falam dela, e exatamente por ser assim, tão comportada, tão quieta, tão caseira e sonhadora. E falavam mal não só dela como de toda mocinha que não fizesse por onde ser falada. Quer dizer, as fofoqueiras procuravam sempre macular a imagem daquelas que mais exemplificavam a mocidade distanciada dos modismos, das badalações, das coisas erradas e das perdições da vida. Como já não tinham o que falar sobre as conhecidas ou faladas demais, então se compraziam em difamar aquelas mais honradas que existiam.
“Vixe Maria, num posso aquerditá no que meus uvido num quiria uvi e uiviu. Sabe aquela mocinha fia de Creontina da Rua de Cima, aquela merma que sequer abre a boca pá falar? Comade, mai num lhe conto. Uvi de voiz das mais sera que aquilo ali é mais safada do que muié dos cabaré. Aquerdite, quem me contou até dixe que ela já embuchou pá mais de treis veiz. E tomem que ela é mais passada que inceradera. Tarvez seja purisso mermo que ninguém avista ela depois da boca da noite. Deve tá nos escondido das safadeza com um e com outo. E adespois quer ser mais era que todo mundo. Uma quenga, cumade. Num passa de uma quenga. E quem me contou é pessoa das mais sera...”.
Mais uma vítima da língua nojenta do povo, da gente que não tem o que fazer e vive pelas janelas e esquinas catando conversinha sobre a vida de quem sequer quer saber de suas existências. Desde o amanhecer ao anoitecer, e uma monte de línguas ferinas difamando mocinhas, falando mal de jovens, enlameando a vida de todo mundo. Muitas vezes, deixam os afazeres da casa para cuidar da vida alheia, deixam a panela queimar para ir atrás de fofoca e falar mal dos outros. Uma lástima que se estende por todo lugar e a cada dia procura fazer novas vítimas de suas maldades.
Assim, as cidades interioranas vão sendo povoadas por jovens e mocinhas difamadas. Quem nunca namorou e já é puta. Quem pouco sai de casa e já faz tudo escondido. Quem sempre se afasta das permissividades e logo é chamada de perdida, de vagabunda, de mulher de qualquer um. E não adianta mostrar a estas pessoas - fofoqueiras de impuras almas - que as pessoas merecem respeito e consideração. Não adianta. Tem que difamar a filha dos outros para o caso de suas filhas incorrerem em erros. E assim ter o direito de dizer que as outras fazem até pior.
Uma lástima!


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Lá no meu sertão...


Velho Chico





Que os sonhos renasçam (Poesia)



Que os sonhos renasçam


Da tristeza veio a desilusão
da desilusão veio a melancolia
e tudo o mais que veio foi dor
depois que os sonhos sumiram
e no seu lugar apenas a realidade

que os sonhos então renasçam
que o medo desaparte do coração
que a dor se dissipe por todo o ser
pois o merecimento maior da vida
é a felicidade perfumada de flor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - bala perdida no banheiro e a rotina insustentável de violência



*Rangel Alves da Costa


O noticiário de hoje informa mais uma situação de violência envolvendo bala perdida. Só que dessa vez a vítima foi atingida quando estava dentro de banheiro, e não se escondendo, não fugindo dos tiros lá fora, mas por uma triste consequência do desenfreio dessa barbárie brasileira. A verdade é que mesmo dentro do banheiro, na altura de um apartamento, a moradora foi atingida durante um tiroteio no Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro. Será que ninguém mais pode estar em segurança dentro de quatro paredes e com portas fechadas? Será que a barbárie vai tomar conta de tudo, derrubar paredes, e alcançar pessoas onde elas estiverem? Como não temer ser o próximo alvo num mundo assim, onde os tiros estão por todo lugar e ninguém mais pode ter paz em lugar algum? Será que mesmo a vida isolada entre quatro paredes, sem janelas, portas, frestas e telhados, vai ser alcançada por alguma bala perdida vinda debaixo da terra? Não duvido mais que assim não aconteça. No Brasil, não há que se duvidar de nada. Tudo perdido, sem jeito, em escombros.


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domingo, 23 de setembro de 2018

MEU AMIGO LAMPIÃO



*Rangel Alves da Costa


Ache estranho não, moço bom. Haverá de dizer que pelo tempo, pelas distâncias de tudo, eu jamais poderia ser dos idos de Virgulino Ferreira da Silva, aquele que depois se fez Lampião, e ainda mais tarde Capitão, e muito menos de ter sido seu amigo. Mas fui amigo sim, e ainda sou, e de modo que jamais seja desapartado nosso laço de amizade. Maluquice, doideira? Não, moço. Nada disso. Vi Virgulino na infância, vi Lampião conhecendo uma arma pela primeira vez, e vi o Capitão já patenteado na luta. E vi muito mais, conforme haverá de saber.
Até pode não acreditar, mas vou dizer sim senhor. Nesta manhã de sertão, avistando o arvoredo gemendo a sua dor, enxergando a ventania levando garrancho e folhagem, tudo numa sequidão de causar sofrimento, eis que ao longe foram surgindo as carnicentas. Urubus, gaviões, carcarás. O que será, que bicho morreu, foi o que me perguntei. Desceram em rasante mais adiante e sumiram. Não havia cheiro podre, de bicho morto, de carniça ou de sangue novo. Fiquei pensativo demais.
Pouco depois me lembrei de suas palavras, ainda meninote, nas bandas de cá do cercado da fazendola de seu pai. Você, amigo Lampião, ainda era no tudo e no todo aquele nascido como Virgolino Ferreira da Silva. No nome assinado assim, mas na palavra dita a pronúncia Virgulino, aquele mesmo menino que espantado avistava as aves carnicentas descendo em nuvem para bicar vaca morta pelas mãos odiosas da vizinhança. Como disse, espantado, entre o entristecido e o enraivecido, eu ouvi você apenas dizer: Vão me pagar!
Coisas que eu nem gostaria de recordar, juro por Deus. Um menino tão quieto, tão comportado, mas parecia pelo avesso perante os acontecimentos que se repetiam. Naquele tempo, igualmente meninote, eu também não atinava muito para as durezas da vida, apenas via o que faziam à sua família, apenas sentia o sangue fervendo nas entranhas dos seus, mas sequer conhecia uma frase que depois fiquei conhecendo: Pisado, até um verme se revira! Isso mesmo, amigo Lampião, o boi só suporta a canga por que não tem a mesma vara de ferrão.
Recordo-me muito bem quando você deu o primeiro tiro. Mirou na ponta do pedaço de pau e a carcaça oca da cabeça de vaca ali colocada foi parar ao longe. Desde aquela vez, sua mão nunca tremeu segurando arma. Difícil imaginar quantos tiros deu, mas ainda hoje se ouve grito e gemido da bala acertada. Mas depois de tanto tempo, depois de ouvir tantas histórias tronchas sobre sua vida, eu achei até bom que ontem você tivesse me aparecido em sonho para contar a verdade sobre muita coisa que andam lorotando de canto a outro, na palavra e na escrita.
Também não posso deixar de lembrar quando sua mãe exigia que jamais se esquecesse das horas sagradas. Meio-dia, e estivesse onde estivesse, você tinha que tremular na boca uma reza e fazer o sinal da cruz. Do mesmo modo na hora maior, já na boca da noite, quando o anoitecer surgia. Foi por isso mesmo que você sempre carregou tanta fé. Foi por isso mesmo que você jamais se separou das coisas sagradas, dos anjos e santos, das rezas, da crença em milagre e da fé. Sua fé era tão grande que levava oração nos apetrechos do corpo e sempre que podia se afastava um pouco para falar com o seu Deus e sua Nossa Senhora da Conceição.
Perante os olhos de muitos – e de modo que até se acredita -, no seu coração já não cabia mais nenhuma piedade, compaixão ou fé. Ledo engano, amigo, eu bem sei disso. Não só se abnegava pelas forças do alto como da terra. Padre Cícero é exemplo maior. Quanta devoção e respeito você sempre nutriu por ele. Quando, em 26, você foi chamado a Juazeiro para ser patenteado como Capitão, eu não tenho dúvida que nenhuma patente lhe interessava, não lhe interessava perseguir a Coluna Prestes e muito menos firmar qualquer tipo de compromisso militar com o Estado. Você só foi por que o chamado foi feito pelo Padre Cícero. O que lhe interessava mesmo era estar com aquele que, em sua opinião, já era um santo homem.
Amigo Lampião, só eu sei o quanto relutou para não levar adiante a vida de bandoleiro, de sanguinário, de bicho entrincheirado nas caatingas. Mas também só eu sei de sua determinação em não permitir que a sua honra e de sua família fossem ultrajadas pelo poder e o mando. Ora, invadiram suas terras, feriram seu pequeno rebanho, intimidaram e, por fim, fizeram com que fossem como que expulsos do próprio lar. Já havia sido demais. E por todo lugar que chegassem havia perseguições e ameaças. Como se diz, amigo Lampião, o seu sangue já estava envenenado de tanta desdita. E ainda por cima foram ferir um seu bem maior: mataram seu pai.
Daí em diante o homem se tornou cangaceiro. E aquele “vão pagar” começou a ser escrito com toda voracidade. E durante vinte anos você varou os carrascais nordestinos em intensa luta de vida e de morte. Chorei muito quando soube da notícia do acontecido lá em Angico. E entristecido continuei até você me aparecer em sonho para dizer o inimaginável: “Ainda tô vivo. E ainda tô vivo por todo lugar!”.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Recordando o Cariri Cangaço poço Redondo 2018