SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 31 de dezembro de 2016

UM RIO. NO OUTRO LADO DO RIO...


*Rangel Alves da Costa


Há um rio. Vejo um rio. Um rio bonito, manso, por vezes largo, por vezes apenas um caminho em curvas molhadas. Mas o que atiça minha imaginação está no outro lado do rio.
Povos desconhecidos. Vidas desconhecidas. Costumes e tradições ainda não conhecidos. Tudo tão próximo e ainda tão inacessível por estar do outro lado rio. E eu ainda não haver alcançado a outra margem do rio.
Há um rio. Um rio diante do meu olhar. Que solene e majestoso rio, dançando em valsa danubiana, passando leve como uma pluma. Mas o que me chama vem do outro lado do rio.
Talvez um povo bárbaro. Talvez uma tribo nativa ou um povo se preparando para um sagrado ritual. Quem sabe apenas a solidão numa terra ainda inexplorada. Mas a certeza de um caminho que deva ser percorrido no outro lado do rio.
Há um rio. Sinto um rio. Um barco que vem, um barco que vai, uma margem, um caudal piscoso que emerge e vai sumindo. Mas penso é no que está no outro lado do rio.
Ali do outro lado pode ser a moradia daquele que fugiu da selva de pedra para viver sua doce e bucólica solidão, vivendo entre luas e coqueirais, entre sóis e canções da natureza. Numa rede de dormir ao luar e numa tapera levantada em bambu.
Há um rio. Pertinho de mim há um rio. O seu leito preexiste a toda a vida, a toda terra, a todo o viver, pois fincado nas entranhas de margem a margem. E no outro lado o que quase me faz voar na ânsia de conhecer.
No outro lado avisto apenas o outro lado. Nada está visível ou definido ao olhar. Sombras, réstias, brumas, miragens, idealizações de tudo o que possa existir ali. Talvez um barco esteja repousando nas margens, talvez um olhar esteja escondido entre os tufos verdosos a vigiar a vida desse outro lado. A minha vida.
Há um rio. Quase piso nos rasos das águas desse rio que está aqui. Mas certamente pisarei, adentrarei o seu leito até alcançar a sua outra margem. É lá que quero conhecer e desvendar todo o mistério e encanto de sua existência.
Quando eu era menino e nos braços de minha avó me jogava para ela fazer cafuné, então de sua voz ouvia que o que importa mesmo na vida de um ser humano não é avistar somente o rio que passa diante do olhar, mas o que está do outro lado.
E minha avó me dizia mais: Todo olhar da pessoa é um rio e tudo o que ela avista é um rio. Mas o que importa mesmo é não se contentar com o mesmo rio, as mesmas águas, a mesma mansidão e a mesma correnteza que passa. Impossível viver sem conhecer o outro lado rio.
A pessoa – continuava minha avó – deve sempre procurar a outra margem do rio por que esta outra margem representa todo o conhecimento que ainda não foi alcançado e que tanto se faz necessário à vida. Não se deve contentar apenas com o visto e sua aparência, deve-se sempre buscar alcançar outras realidades.
Neste sentido, a outra margem do rio como o livro que continua fechado. No outro lado, páginas que precisam ser lidas, lições aprendidas, realidades vivenciadas. Não apenas o oculto e o desconhecido, mas o tênue véu que espera ser afastado e conhecido na outra face.
Daí que preciso alcançar a outra margem do rio. Daí que preciso chegar ao outro lado do rio. E até por que já cansei de caminhar pelos mesmos caminhos. Já não suporto mais ter noites de manhãs não acontecidas. Já não posso mais ter os mesmos dias e as mesmas noites.
E sinto que chega um barco e repousa na margem onde estou. Está vazio, talvez esperando apenas que alguém nele suba e vá com ele a outra margem do rio. Olho ao redor e sinto que sequer precisarei dar adeus a alguém ou alguma coisa.
E pelas águas vou...


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...



E a terra sertão me veio e me beijou e me chamou de filho. E no seu colo deitei...






Da paz (Poesia)


Da paz


Quero paz
qualquer paz
no silêncio
na canção
da paz

um luar
no meu olhar
uma flor
na janela
da paz

e o amor
de céu azul
e tão lilás
assim
a paz.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – o coração na curva do rio


*Rangel Alves da Costa


Agora recordei de um livro que muito li na adolescência: Enterrem meu coração da curva do rio, de Dee Brown. O livro trata do amor do povo indígena pela sua terra e seus antepassados e sobre o extermínio voraz perpetrado pelo homem branco no seu avanço rumo ao velho oeste, deixando em cinzas nações nativas inteiras. É, assim, um canto de apego, de amor, de profunda afeição. Também um eco de angústia, de medo, de aflição. Enterrar o coração na curva do rio significa, pois, permanecer na espiritualidade e na alma da terra, dos antepassados, dos costumes e das tradições. É não morrer totalmente perante a simbologia cósmica que une passado e presente num só contexto de vivência: a eternidade, pois ninguém é como se apresenta senão como aquela primeira raiz, aquela primeira geração. Ao pedir para enterrar o coração na curva do rio é dizer que o túmulo seja nas entranhas da própria vida de seu povo, pois o rio tem alma, o rio tem vida, o rio possui tamanho significado espiritual que transcende a toda existência visível. O rio, para o povo que o tem como vida e alma, é como a própria terra encharcada da seiva da existência. Por isso peço que também enterrem meu coração na curva do rio. Do rio que passa pela minha aldeia. O mesmo rio que segundo Fernando Pessoa é belo por passar na sua aldeia, e não por ser o maior dos rios.


Escritor
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sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

DO DIÁRIO DE UM SERTÃO


*Rangel Alves da Costa


POÇO REDONDO, SERTÃO SERGIPANO DO SÃO FRANCISCO, SITUADO NO POLÍGONO DAS SECAS, NA REGIÃO SEMIÁRIDA DO NORDESTE, CARACTERIZADO PELA VEGETAÇÃO ARBUSTIVA NORDESTINA, COM PREDOMINÂNCIA DE CACTÁCEAS. AS ESTIAGENS, COM SECAS PROLONGADAS, PERDURAM POR ANOS SEGUIDOS.
Estrada de asfalto nas rodovias e principais áreas de acesso. Estrada de chão poeirento e espinhento nos demais interiores e ao redor das povoações. Veredas que se alongam em meio ao que restou da mataria. Mas tudo como um campo aberto pelo desmatamento e morte das plantas pela ausência de chuvas.
O sol começa a afoguear já nas primeiras horas do dia. As noites já não são tão refrescantes como noutros tempos. Ao aproximar-se o meio-dia então tudo se transforma em fornalha. No céu sem nuvens, apenas o clarão que desce em quentura e desolação. De canto a outro e nunca se avista uma formação chuvosa.
Casebres e casinholas de beira de estrada e mais adentro, tudo parece abandonado. Casa fechadas ou de porta batendo sem aparecer vivalma. Mas os moradores continuam nos mesmos lugares onde estiveram, só que agora sem o ânimo para aparecer na janela ou caminhar fazendo uma coisa e outra pelos arredores ou na malhada.
São poucos, mas ainda são avistados os bichos próprios desse sertão. Ali e acolá andeja uma vaquinha magra, ossuda, tropeçando no próprio passo. Mais adiante um cachorro magro deitado a pouca sombra de um umbuzeiro. Jegue, cavalo, burro, tudo num só sofrimento pela falta do pão da terra e da fonte. Não há mais água e nem capim.
Comer o que? O que o bicho vai comer ou beber? Eis o santo sacrifício de tudo. Menino passa fome, mulher passa fome, velho passa fome, mas com o bicho é diferente. Assim diz o sertanejo. E por isso seu sofrimento quando já não há palma, não há resto de folha, não há qualquer broto no chão.
Da porta adentro uma tristeza só. Nada sobre o fogão de lenha. Num canto uma menina bonita brincando com uma velha boneca sem braços. Noutro canto um menino bonito brincando com ponta de vaca. Mas como conseguem brincar e até sorrir diante uma situação dessas?
Passa um calango correndo. Tem que correr para não acabar assado no fogo de chão. Não há caça nem fruta do mato. Desde muito que o preá deixou de correr pelos arredores e não há mais codorna ou nambu. A mata sertaneja já não existe. E onde não existe mata não pode existir caça, passarinho, avoante ou qualquer ser que faça ninho ou pouse no pé de pau.
Ante a seca devastadora, já não se consegue avistar plantas nativas nem aquelas que suportam as estiagens mais prolongadas. As catingueiras são magras, definhadas, acinzentadas e desnudas.
As cactáceas como o mandacaru, o xiquexique, a palma, o facheiro e a jurubeba, mesmo sendo adaptadas aos climas mais áridos e secos, já não suportam a força do sol e a queimação do calor. Igualmente a demais vegetação, também vão morrendo aos poucos.
Mas o sertanejo é o mesmo. E continua mais forte. Não haveria que se pensar diferente quando o sofrimento é tão grande e devastador e ele continua adiante da porta, no meio do tempo e debaixo do sol, tentando avistar nuvem de chuva, sonhando com pingo d’água, fazendo planos para o futuro.
Mas em Poço Redondo já são quatro anos de seca. Oito dias sem um pingo d’água na torneira. E agora sem água mineral pra vender. Só restam as bolhas de suor da luta. E quando acabar o suor?


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...


Eu. No silêncio...




Sem roupa (Poesia)


Sem roupa


O meu amor chegou
me sorriu e me beijou
e me olhou de um jeito
que fiquei sem roupa

e já desnudo pelo desejo
sorri e beijei o meu amor
e quando percebi sua nudez
vesti seu corpo no meu.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – brincando com um povo já sofrido demais


*Rangel Alves da Costa


Além dos sofrimentos causados pela seca que se prolonga desde mais de quatro anos, o povo sertanejo do sertão sergipano, principalmente no município de Poço Redondo, tem de suportar a igualmente duradoura falta de água nas torneiras. É um descalabro total, um absurdo indescritível, que a estatal fornecedora de água trate o sertanejo de forma tão abjeta e desprezível. Dia após dia, noite após noite, e quando se abre a torneira em busca de pingo d’água nada é encontrado. O serviço no abastecimento de água sequer pode ser tido como deficiente, pois totalmente imprestável. Não se admite – sob qualquer justificativa – que uma empresa que exige o pagamento em dia das faturas não dê a contrapartida na prestação eficiente de serviços. Mas tal situação se inverte à medida que é feito corte no fornecimento por falta de pagamento, mesmo não havendo qualquer tipo de fornecimento de água encanada. E assim as misérias sertanejas vão se alastrando pela desvalia do clima e da incúria do homem. E uma situação angustiante e dolorosa que é tratada com negligência e omissão pelos que têm o dever de resolução do problema. Mas chegam as eleições, chegam as promessas, as enganações, e assim tudo continua.
  
Escritor
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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

NUMA ESTRADA DE ESPINHOS


*Rangel Alves da Costa


Não. Não culpo a vida. A vida é bela. E viver não deixa de ser prazeroso a quem possa compartilhar da felicidade. No entanto, a meus pés, sinto chão o chão apunhalado duma estrada de espinhos.
Não. A culpa não é da vida. A vida é maravilhosa. O que não se pode dizer o mesmo é sobre a existência. Melhor existir entre lobos que em meio a homens. Melhor o instinto da selvageria que a sordidez do homem.
Mas a culpa talvez não seja do homem enquanto ser humano. Mas apenas minha. Sim. Talvez a culpa seja toda minha pela descrença em quase tudo, seja no próprio homem, seja nas relações que permeiam e conduzem a vida.
Por todo lugar e tendo que caminhar por estradas de espinhos. Temo me acostumar às feridas na pele e perder o dom de apreciar algumas plantinhas miúdas e floridas que ainda restam pelas beiradas e nos escondidos das pedras.
Espinhos que refletem o ódio, a vingança, a traição, a desconfiança, a vileza, a falsidade. Pontas finas e vorazes que espelham os medos, as angústias, as aflições, os sofrimentos do viver. E o sangue que nem mais escorre ante a anestesiada sensibilidade.
O que dizer do amor, então? Sem direito a amar, a sentir felicidade, a compartilhar, a encontrar no afeto uma razão de viver. Amor que se falseia, que se dilui e se dissolve, que está tão próximo e tão evaporado em névoa que dolorosamente se dissipa ante o olhar.
Querer amar e não poder. Pensar que ama e ser derrotado pela palavra, pela traição, pela insensibilidade. Ser usado como folha morta, sem açoitado como poeira velha, ser achincalhado como verme asqueroso. E depois do beijo, do abraço, da confissão amorosa.
Amar num instante e no seguinte já ser rasgado como um papel qualquer, descartado como imprestável qualquer coisa, jogado fora como se faz com lixo. E ter de suportar a tudo no silêncio do sofrimento, na dor sem voz e na agonia dos mártires inocentes.
Nem para ser o ferro que enferruja e se consome em si mesmo. Nem para ser a pedra que vira pó e se deixa levar pela ventania. Nem para ser o fogo que se torna em chamas e dá por satisfeita sua existência. Mas não. Ser apenas o fígado de Hércules.
Ser apenas o fígado e as entranhas de Hércules em eterno sofrer e renascimento para a dor. Não obstante o sofrimento, mas a junção contínua de dores, angústias, insuportabilidades. Mas ter de suportar por que a águia sempre se aproxima para devorar.
Impossível até viver de recordações. Ora, se ontem houve um abraço, um beijo, uma promessa de amor, e hoje apenas o avesso, então por que se imaginar ainda em falsa felicidade, em falsa alegria, em falso amor? E o pior é a certeza da incerteza em tudo.
Porta afora e a estrada de espinhos. No caminho de chão ou por cima do asfalto e essa estrada de espinhos. Por todo lugar e essa estrada de espinhos. E sei muito bem que na mesma estrada existem árvores sombreadas, flores do campo, borboletas e colibris. Por que fogem de mim?
Cadê o céu de passarinhos, de revoadas, de nuvens festivas e pousos contentes? Cadê a brisa perfumada, a boa aragem, o vento refrescante que esvoaça varais? Nada disso parece acontecer mais. Adiante as aves agourentas, carnicentas. Adiante as sombras e as tempestades.
Cansados e doridos estão meus pés por essa estrada de espinhos. Meu olhar cansado, perdido, vazio. Minha boca sedenta e áspera, minha rouquidão agonizante. Como caminhando num deserto, apenas o sol abrasador da desvalia e da desesperança.
E eu não queria viver assim. Eu não queria caminhar assim por essa estrada de espinhos. Mereço viver minha dádiva de vida. Mereço ter qualquer instante de felicidade. Ah como novamente eu queria seu rosto diante do meu!
Deus, meu Deus, como novamente eu queria seu rosto diante do meu!


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...


Essa casa é minha. Esse bicho é meu. Esse entardecer é meu. Esse chão é meu. Esse horizonte é meu. Tudo é meu. Sou sertanejo. No coração, tudo meu...




Poema de amor para o meu amor (Poesia)


Poema de amor para o meu amor


Somos a feição e a pele
somos a estatura e o rosto
somos o nome e o sobrenome
mas não somos apenas assim
pois também somos muito além
daquilo que se mostra e se conhece

somos nossos íntimos desejos
nossos íntimos amores e quereres
somos nossas paixões apaixonadas
nossas nuas volúpias e êxtases carnais
somos nossos segredos mais pessoais
revelados somente no calor da entrega

por que há em nós outras vidas
muito além dessas que apenas somos
vidas que sentem saudades um do outro
que lacrimejam nas noites frias de solidão
e chamam o nome num silêncio desesperado
como se nada mais existisse senão o desejo
de reencontrar para amar e amar e mais amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - silêncios meus


*Rangel Alves da Costa


Não temo a vida. Não temo a morte. Tanto faz gato preto ou escada levantada no meu caminho. Gosto de goiabada com queijo e não de doce importado. Causa-me prazer o silêncio, a máxima plenitude do silêncio. Gosto de Offenbach, não nego. Gosto de ouvir Barcarolle ao entardecer. Não beijo a borda da taça por que não bebo mais. Fumaria um charuto cubano se houvesse ao meu alcance. Gosto de estrada nua, de chão, de espinhos e pedras, ladeadas de pequeninas flores do campo. Água fresca bebida com a mão. Repouso debaixo do umbuzeiro. Sinto saudade de incenso. Gosto de acender uma vela rente ao meu oratório. Converso com Deus, a ele tudo digo do meu viver. Não tenho medo de revelar segredos ou pecados. Sou humano, contudo parecido com folha de outono. Sim, gosto do outono com suas cores tristes. Eu também sou triste. Dentro de mim um tanto Clarice Lispector, um tanto Florbela Espanca, uma dor, uma dor. Um grito. Deixo a chuva chegar para sofrer melhor. Eis um tempo bom para sentir saudade. A chuva, a chuva. Engano meu. São apenas meus olhos molhados. Adeus.

Escritor
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quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

MEMÓRIA GUARDADA EM RETALHOS


*Rangel Alves da Costa


O descuido provoca a destruição, não há como discordar de tal assertiva. Do mesmo modo, o desconhecimento da importância de coisas, relíquias e objetos, acaba com a desvalorização dos mesmos. Por consequência, aquilo que mais tarde poderia servir como boa recordação tem sumiço antes que se torne saudade.
Tais afirmações se voltam para uma perspectiva de sertão, de uma terra de inigualável riqueza histórica, mas cuja população parece não se dar conta de que sua vida e da vida familiar, bem como da própria feição sertaneja, pode ser guardada para as futuras gerações através da preservação de pequenas coisas. Simples objetos pessoais ou de uso familiar, bem como retratos, móveis e utensílios de uso cotidiano, mais tarde poderão servir para retratar um tempo passado.
A voracidade do tempo e os modismos vão apagando tudo numa rapidez quase sempre indesejada. Nada mais tem tempo de ficar velho, de ser colocado num canto após tanto uso, pois nada mais dura além do tempo de surgimento do novo. É o próprio espelho social que reflete o chamado aos modismos, a tudo que surge como novidade. O apelo é tanto que a maioria das pessoas, por vergonha ou vaidade, dá tudo de si para ter o que está sendo usado na novela televisiva.
Tal enxurrada modista, contudo, é de recente surgimento. Ao menos no sertão sergipano. Até os anos 80 ainda se valorizava o jeito próprio de ser e havia um cuidado especial – de amor mesmo – com cada objeto que guarnecia o lar da família. O apego era tanto que somente pela inevitabilidade do desgaste, coisas e objetos eram trocados por novidades. Mesmo assim não se jogava ao lixo aquilo que havia feito parte de gerações. Sempre havia um cantinho na casa para abrigar as relíquias.
Para uma ideia clara do que vem acontecendo, basta citar uma velha calça como exemplo. Não faz muito tempo que as roupas de uso, principalmente aquelas usadas nos ofícios do dia a dia, eram cuidadas com carinho todo especial. Desgastadas, velhinhas, quase sem cor, mas ainda assim sempre lavadas, passadas a ferro, cuidadosamente dobradas. E mais: remendadas todas as vezes que surgisse um buraquinho no tecido. Hoje em dia, antes mesmo que ela desbote logo vem o filho ou a filha para jogar no lixo. E coloca no seu lugar uma nova, de marca.
Outro exemplo. São raras as residências onde os armários e baús ainda guardam as recordações familiares. Costumei frequentar as casas sertanejas e sempre encontrava não só retratos de avôs, avós, pais e mães, de gerações inteiras, belamente emoldurados nas varandas, salas e quartos. Não só retratos de pessoas como figuras de santos, oratórios, jarros com flores de plástico, porta-retratos por cima de móveis de madeira envernizadas pelo tempo, até mesmo baús e pilões dos tempos da escravidão.
Hoje em dia é muito difícil encontrar algo assim. As casas estão enfeitadas com quadros de lojas, os móveis deixaram de ser de madeira para se tornarem de material prensado e frágil, os sofás coloridos e pouco duradouros, televisões de plasma, local para o computador e outras inovações tecnológicas. Tudo isso na mesma casa onde já avistei mesa de madeira de lei, tamborete, rede armada na varanda, oratório, santos de madeira por cima dos móveis, maravilhosos baús trabalhados à mão, verdadeiras relíquias de feições sertanejas.
Sim, verdade que os novos tempos chamam ao novo. Verdade que muitas dessas pessoas passaram até a se envergonhar dos objetos que guarneciam suas casas. E pensando na transformação como acompanhamento da realidade, acabaram trocando tudo por móveis e coisas de falsa beleza e cuja duração nem sempre vai além do pagamento da última prestação. E agora pergunto: o que fizeram das relíquias do passado, daqueles móveis maravilhosos, daqueles objetos que contam toda uma história?
Lamentável que hoje seja difícil encontrar qualquer antiguidade nas residências sertanejas, nem de uso nem por estar guardada. Candeeiro, lamparina, alguidar, suporte para bacia de lavar mãos, baú, oratório, cristaleira, tamborete, castiçal, jarro antigo, cabaças, cumbucas, tudo isso se tornou comumente difícil de ser encontrado. Até mesmo os retratos de família deixaram de enfeitar as paredes.
Quando indagados sobre os objetos antigos, os mais velhos geralmente afirmam que não sabem mais onde estão, que acham que deram fim. Quando perguntados sobre o mesmo, os mais jovens repetem que acabaram jogando no lixo tanta velharia. Quer dizer, com a desculpa de faxina e embelezamento, toda a história vai sendo menosprezada, relegada, jogada nos entulhos, se apagando de vez.
Não sabem, pois, que a história, a verdadeira história de um povo, é feita de retalhos. É feita de pedaços das tradições, dos costumes, dos usos, dos objetos, de tudo aquilo que fez parte da vida pessoal, da família, do meio social onde se gesta a vida. Há que se dizer que a vida é a história de tudo, de todo o percurso, e que por isso mesmo se afeiçoa a um museu. E não há museu da existência que faça entender o passado através somente do novo.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...


Meu Poço Redondo. E o meu olhar que diz: Feliz!





Flor sobre flor (Poesia)


Flor sobre flor


Quando acorda
encontra flores
buquês
pétalas
perfumes
aromas

no teu leito
outras flores
rosas
violetas
jasmins
girassóis

e da janela
avisto um jardim
nas flores
em ti.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - confraternizar-se


*Rangel Alves da Costa


Fim de ano. Festas e mais festas. Amigos secretos. Reuniões festivas. Confraternizações. E tudo a toda hora e a todo instante. A pessoa sai de uma festa e vai pra outra, já pensando no dia seguinte. Goles. Brindes. Bebedeiras. Alegrias. Mil ilusões. Todas as ilusões do mundo. E tudo num momento onde se deveria se resguardar ao menos alguns momentos para a reflexão, para a meditação, para o diálogo íntimo. Sem menosprezar as festanças dos outros, vez que todo mundo tem direito de buscar alegria e contentamento onde puder encontrar, creio ser também o tempo mais que necessário à íntima confraternização. Confraternizar-se intimamente significa brinda o valor de si mesmo, das conquistas, dos caminhos percorridos e alcançados. Sim, brindar a si mesmo. Ora, se não merece brindar a si mesmo também não merece viver as ilusões das demais confraternizações. Regozijar-se intimamente acima de tudo, derramar sobre o cálice o melhor e vinho e dizer: eu mereço. Ou virar o mesmo cálice de cabeça pra baixo e se prometer e comprometer a merecer um brinde no próximo final de ano.

Escritor
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terça-feira, 27 de dezembro de 2016

SILÊNCIO E SABEDORIA


*Rangel Alves da Costa


Vozes inusitadas trazidas ao vento, espalhadas na areia, lançadas às aguas, transmitidas no olhar. Palavras e lições que ninguém jamais leu ou ouviu, mas mesmo assim extrai de sua sabedoria o sentido da existência e da própria vida.
Palavras e escritos jamais ditos na voz ou na escrita. Palavras e escritos perdidos no tempo, soprados ao sabor da natureza ao redor. Sábios, filósofos, profetas, todos ora escrevendo na areia ou fazendo uso do olhar e da imaginação para transmitirem a essência de tudo.
Pois disse o profeta somente com o olhar: Tanto mundo e tanto nada. Tanta beleza e tanta negligência na força do avistar. Tanta força e pujança e tanta fragilidade de morte. Nem que o mundo fosse o único alimento do homem, ainda assim ele cultivaria sua dádiva sagrada.
Pois disse o filósofo enquanto meditava: Há uma irracionalidade no homem que não pode ser explicada no próprio homem. Impossível que um ser dotado de inteligência e racionalidade tanto se contraponha à sua própria existência. Creio haver um outro homem escondido no próprio homem.
Pois disse o sábio na passagem de uma folha seca: Eis a vida. Já tive a primavera, já tive as alegrias e o os sofrimentos de todas as estações, mas hoje sou somente o outono. E sinto o sopro do vento cada vez mais forte. E sinto que o resto de seiva já não pode sustentar no galho da vida a morte que chama.
Pois disse o velho sertanejo enquanto matutava debaixo do sol: O valor da vida é o valor do tempo. Toda a alegria do homem depende da chuva, da terra molhada, da plantação, da colheita. Toda a tristeza do homem depende do sol, da seca, do calor, do bicho sofrendo, da morte da planta, da vida sem vida. E o pior é saber que a tristeza vem a cada manhã e a alegria tarda demais a chegar.
Pois disse o evangelista quando rabiscou na areia: Escrever para a onda chegar e levar. Aqui forjo um Sermão onde digo da força divina e mostro os doces mistérios da aceitação inconteste de seu manto. Bem assim está escrito nos livros. Mas quantos leem os livros e quantos guardam sua sabedoria na ação? Igualmente ao que escrevo agora e a onda que logo mais chegará para tudo apagar.
Pois disse o profeta no alto da montanha. Vejo o Eclesiastes em tudo. Ontem um deserto, hoje uma pujança. Ontem a fé, hoje apenas a oração como remédio passageiro. E do homem, que um dia já foi mais forte e mais resistente, nada mais há que se temer senão o perecimento pela fragilidade de sua espiritualidade.
Pois assim disse o poeta enquanto dialogava com a pedra: Tua pele tão áspera e tão macia. Sinto perfume e vejo aridez. Eu beijaria sua boca de ferro, petrificada. Eu beijaria sua boca porque sei do milagre que existe no ferro e na pedra. Não há candura e afeto que não derreta o mais insensível dos lábios.
Pois assim eu disse enquanto caminhava na estrada: Caminhar é igual a destino. A pessoa sai na porta e não sabe onde vai chegar. Contudo, ao menos não percorrer os desconhecidos e evitar os labirintos e as curvas por todo lugar. Tudo que tiver de acontecer acontecerá. Mas procurando flores na estrada não se lança somente aos espinhos.
Pois assim você pode dizer também. E diz a todo instante. As palavras mais fortes e vivas não surgem na boca através da voz, mas pelo silêncio da mente, pela mudez do pensamento. Cada ser humano possui o poder de dialogar a vida através do silêncio, meditando, refletindo.
Ademais, poucos são aqueles que desejam ouvir verdades. Estas possuem tão íntima serventia que o homem somente deveria pronunciá-las em silêncio.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...


Vovô Rangel e o netinho Joaquim.




Gato no cio (Poesia)


Gato no cio


Psiu
é o gato
no cio

vadio
é o gato
no cio

arrepio
no gato
no cio

quem viu
meu gato
no cio

desconfio
que sou gato
no cio.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - o mar no telhado


*Rangel Alves da Costa


Quem ainda tem a felicidade de dormir em quarto com telhado, certamente tem o prazer de ter o mar no telhado. Eu mesmo tenho um mar no telhado. Toda vez que deito e fico pensando, fantasiando, relembrando, buscando na memória a recordação, é no porto telhado que encontro um mar adiante. E entre lembranças e nostalgias, entre retratos mentais e cartas relidas, vou singrando aquele mar imenso em busca de um cais de paz. Nunca chego, nunca aporto, pois o meu mar é grande demais para ser conquistado. E também por que minhas tristezas e aflições são intensas demais para serem reveladas em terra firme. O olhar voltado ao telhado, tantas vezes molhados da cor do mar, e a viagem incerta entre desvãos e desvalias, perpassando tormentas e tempestades, em busca do sonho da calmaria. Mas esta nunca vem. Não sei por que é tão distante e inacessível o porto da paz, do amor, da felicidade.

Escritor
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segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

PADRE MÁRIO E O SERMÃO NA BARCA (OU A MISSA DE NATAL NA IGREJA SEM TELHADO)


*Rangel Alves da Costa


A mais maravilhosa e a mais inusitada das missas. O mais intenso, comovente e profundo dos sermões: O Sermão na Barca. E o pregador, como se pairasse sobre as águas em asas de anjo, o Padre Mário.
Mas por que o Sermão da Barca quando o Padre Mário pregou sobre um menino humilde nascido em manjedoura e que veio ao mundo e, persistente e esperançosamente, se lançou no esforço contínuo da salvação humana?
Nas palavras do Padre Mário a explicação: Aqui nesta igreja aberta, sem teto, sob o luar sertanejo, igual barca acolhendo os seus em travessia, a missa para celebrar o nascimento daquele que não desistiu do homem!
Sim, Ele não desistiu do homem! Quase bradou o Padre Mário na sua palavra inicial. E daí em diante mostrou a esperança como a força maior da vida humana, pois somente através dela o homem segue, sonha, persiste, luta, encontra valia e valor na vida.
Sentado na sua cadeira de rodas ao lado do singelo presépio, Padre Mário apontava a humilde e rústica manjedoura para dizer que aquele que veio assim ao mundo, enfaixado em capim e pobreza, venceu todas as dificuldades impostas em nome daquele que veio para salvar: o homem.
“Um menino que nasceu de braços abertos na sua rústica manjedoura. Aquele que pregou de braços abertos por onde andou, nos montes e nos templos. Aquele que morreu de braços abertos numa cruz. E também aquele que ressuscitou de braços abertos!”. Eis a força expressiva nas palavras do Padre Mário.
“Vejam. Sintam que coisa maravilhosa. Aquele que de braços abertos persistiu em nome do homem. E o fez pela esperança de que seu exemplo de luta, persistência e destemor, jamais fosse esquecido pelo homem”. Assim, este homem acreditado, amado, confiado, deve buscar no seu exemplo a mesma esperança que lhe foi creditada.
“Deus que é o Deus do improvável para se fazer presença. Assustou Herodes, assustou Maria, assustou os pastores, assustou a todos por ser tão forte e tão humilde. Nascido envolto em faixas, pobre e como os pobres depositado na palha de feno, certamente ainda assusta a todos. E assim por que ainda somos arrogantes, orgulhosos, vaidosos, e Ele com sua humildade assustadora”.
“Esse Deus improvável que agora surge nesta barca, nesta igreja aberta, ali na sua manjedoura, na sua simplicidade”. Deveras, uma presença numa situação jamais imaginada pelos fiéis de poço Redondo. Uma missa natalina numa igreja sem telhado, aberta, escancarada, fato que a muitos também assusta.
Mas assim a ação divina, eis que no templo desnudo de telhado também a visão do menino pobre nascido em meio a barca do tempo, entre palhas e capins, ao redor de animais, na proximidade de pastores e de gente humilde. O mesmo menino nascido assim, de modo tão improvável, e que reinou sobre a terra.
Logicamente que não foram exatamente essas as palavras utilizadas pelo Padre Mário, pois apenas sintetizadas. Logicamente que barca, significando um templo aberto, foi no sentido de expressar a Igreja Matriz sem telhado como está agora, nua das paredes acima, mostrando no teto o clarão do dia e o negrume enluarado da noite.
Não imaginei que Padre Mário fosse celebrar missa natalina na situação e na feição que a igreja se encontra agora. Contudo, não havia pensado que o nosso pastor também gosta de agir perante o improvável, o inusitado, o inimaginável. E tenho certeza que sua satisfação foi maior que se estivesse entre luzes e castiçais da mais suntuosa catedral.
Padre Mário é também do mesmo capim da manjedoura. É do mesmo feno que enfaixou o menino. É da mesma pobreza e humildade ali presentes quando daquele nascimento. Mas é principalmente a esperança. A grande esperança que hoje prega aos sertanejos.


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Lá no meu sertão...


A perfeição do pôr do sol no crepúsculo sertanejo. A moldura no entardecer de Poço Redondo, no sertão sergipano.




O menino e a bola (Poesia)


O menino e a bola


O menino chutava
e a bola subia
sumia no alto
e depois descia

mas um dia
o menino chutou
a bola subiu
e jamais voltou

o menino esperou
o menino chorou
a bola sumiu
e nunca voltou

a mãe disse a ele
para não  chorar
sua bola no alto
sempre ia avistar

um bola no sol
depois do amanhecer
uma bola na lua
depois do anoitecer

então o menino
saiu para a rua
e todo contente
viu sua bola na lua

então o menino
jogou futebol
chutando no alto
sua bola de sol.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – um gato preto


*Rangel Alves da Costa


Um gato preto e um medo. Um gato preto e um caminho. Um gato preto de repente cruzando o passo da caminhada. O azar, o azar. Um gato preto surgindo ao olhar como a mais terrível das criaturas. Com ele o atraso, a derrota, o afastamento da sorte. O infortúnio, o nada acontecer. Mas ele é apenas um gato, um gato preto. Tudo possui sua cor, e a dele é preta. Nada mais que isso, um bichano tantas vezes sem rumo que não vê outra saída senão cortar o caminho do homem. Um felino de cor preta que vai passando com um animal doméstico qualquer. E sua cor, antes de ser o negrume do infortúnio, pode ser branca, marrom, cinza, de negro retinto. Apenas um gatinho que tanto necessita de carinho, de afeto, de compreensão. Ademais, o bicho perigoso cruzando caminhos não é o gato ou qualquer outro bicho, mas o animal humano, o bicho humano. Este não só atrasa a vida do próximo como a dizima.


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domingo, 25 de dezembro de 2016

TRISTE, NO ALTO DA MONTANHA


*Rangel Alves da Costa


Triste, no alto da Montanha, reconheço a inteireza da verdade nas palavras do Eclesiastes: Há um tempo de tudo. Tempo de plantar e tempo de colher, tempo de lua e tempo de sol, tempo de chegar e tempo de partir, tempo de sorrir e tempo de chorar. E o meu tempo em tudo...
Aqui, do alto da Montanha, anuncio minha plenitude em Eclesiastes. Acreditava ser diferente, mas percebi que realmente não há nada de novo debaixo do sol. Quem me fez alegre me fez triste, quem me adoçou a boca respingou veneno. Que amei e desamei...
Entristecido no alto da Montanha, eis que avisto a vida como se avistasse o tudo em seu oposto. Ali a alegria e a tristeza se digladiando em busca de seu momento, o silêncio e a algazarra em disputa pela prevalência no homem. E eu cansado de sofrer pelas batalhas alheias.
Triste, no alto da Montanha, confesso-me resoluto à aceitação. Não vou mudar o mundo pelas minhas mãos. Não vou mudar a face da vida pelo meu querer. Não vou nada mudar pelo meu querer. Ora, só quero a impossibilidade do possível. E é impossível que assim aconteça.
Aqui, do alto mais alto da Montanha, revelo que mantenho a porta de trás como mantenho a porta da frente: aberta. Que tudo que venha passe, que tudo que chegue siga o seu rumo, que tudo que se aproxima logo se vá em despedida. Não adianta nada fazer permanecer. Se tudo muda, não sei da mão que na chegada me foi estendida.
Entristecido no alto da Montanha, e mais abaixo avistando tudo, juro não desejar que aconteça o que está predestinado a acontecer. Vejo ouro, vejo prata, vejo diamante. E vejo o resto, vejo a sobra, vejo o nada, vejo a desilusão. Eis as vaidades que se dissipam em pó de ventania.
Triste, no alto da Montanha, tudo faço para não me desintegrar de vez do resto que me resta. Sei que bastaria cuspir para lançar o sangue, sei que bastaria chorar para tudo ressecar, sei que bastaria tirar um pedaço de mim para nada mais existir. E já não tenho além de escombros que me recobrem uma inexistente aparência.
Aqui, do alto da Montanha, talvez não consiga negar a mim mesmo. Tenho de chorar e vou chorar, tenho de sofrer e vou sofrer, tenho de me espantar com os motivos do sofrimento e me assustarei. Os escondidos haverão de brotar como o dia após a noite, como a morte após a vida.
Entristecido no alto da Montanha, eis que sinto o ecoar cada vez mais forte do Eclesiastes com suas verdades. Um ser que nada é, uma vida que já não será, apenas uma passagem apressada. E sem tempo de dizer que fui feliz ou que simplesmente tristeza.
Triste, no alto da Montanha, ainda assim não quero descer de seu cume. Que cheguem os temporais, os vendavais, as tempestades, os redemoinhos, todas as fúrias do mundo. De que adiantaria descer se em tudo a ilusão do sorriso, do contentamento, da felicidade? Adianta colher flores para depois perceber que só restam os espinhos?
Aqui, do alto da Montanha, toda a certeza alongada, sem pressa, exaustivamente vívida. A profunda e tão necessária percepção que sobre os pés humanos há caminhos essenciais e que jamais serão caminhados, experiências que jamais deveriam ser olvidadas. Mas o homem sempre prefere o conforto do passo ligeiro e seguro.
A Montanha parece se fazer mais alta, subir e subir. E daqui de cima tudo embaixo se torna grão. Mas talvez não seja assim. É que a ilusão humana faz imaginar estar na altura ou no pedestal. Quando, na verdade, é o próprio homem o seu grão em tudo.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Noite que vai chegando sertão adentro...




Cálice à mão


Cálice à mão


O cálice à mão
e o vinho
e o veneno
como opção

beber alegria
ou decepção

tragar o afeto
ou a desolação

sorver o desejo
ou o fel da paixão

brindar o amor
ou a vida em vão

cálice à mão
ou beba
ou cale-se
ao chão.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – não sei se monstro, não sei se flor


*Rangel Alves da Costa


Estou triste. Mas não era para estar assim. Pelo contrário, a essa hora eu deveria estar feliz e cheio de contentamento. Mas o tempo faz e desfaz da gente, transforma tudo a seu bel-prazer e nos deixa como roupas em varais em tardes de ventania. Estava tudo certo, estava tudo combinado, estava tudo semeado para acontecer. E aconteceu. Ou não aconteceu. E tudo pelo avesso. As horas passando e nada acontecendo, o dia se indo e nada de esperança. O pior de tudo é o silêncio, a dúvida, a indecisão, a incerteza. E primeiro a desconfiança, depois a certeza, e ainda depois a raiva, o ódio, a dor intimamente profunda. E o que era anjo vira serpente, o que era lua vira vulcão, o que era paz vira tormento. Por isso não sei se monstro ou se flor, mas sei que possui feição horrenda, garras afiadas, olhos de fogo. Ou algo assim como um desejo que se torna em perda.


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sábado, 24 de dezembro de 2016

CACHORRO DE RUA


*Rangel Alves da Costa


Olhares que sempre abrem janelas para avistar belas paisagens, jardins floridos, sensações confortantes ao espírito e alma. Pessoas que caminham por canteiros perfumados, alamedas verdejantes, flamboyants vistosos. Seres que passeiam fugindo de outras realidades, distanciando-se como podem das periferias empobrecidas e das pessoas rotas. E dos cachorros sem coleira e dono.
Pés existem que fogem da terra, da estrada nua, da pedra e do espinho, da poeira e do pó. Óculos escuros e andejar cabisbaixo acaso corra-se o risco de se deparar diante daquilo que jamais deseja encontrar: a pobreza, a magrém, a desvalia, o molambo, o pé descalço, o olho remelento, a boca seca de sede, a barriga roncando de fome, o olhar entristecido de desesperança. O mesmo semblante de um cão sem dono que passa a viver a miséria renegada de tudo. Ninguém sequer ousa se aproximar.
Cão sem dono, vidas de cachorros inermes, de imprestáveis vira-latas, de pelancudos e desdentados. No mesmo caminho da vida também a estrada por onde segue o cão sem dono, o faminto, o abandonado e esquecido. Talvez um latido fizesse com que alguém prestasse atenção à sua presença, se tivesse força para morder talvez sentisse sua ameaçadora importância. Mas apenas um cão sem dono, um vira-lata, um cachorro qualquer. E pelas ruas uma verdadeira matilha ao querer do sol, ao querer da lua.
Cachorro de rua! E logo a simbologia do imprestável, do asqueroso, do fedorento, do pulguento, da doença e da mazela. Ora, já não possui serventia alguma. O mundo só valoriza aquilo que lhe retribui com lucro ou outro proveito material. Afagando os egoísmos e as vaidades estão os cachorros de raça e não os vira-latas. Coloca-se veneno no osso jogado e pronto, o serviço está feito, menos um cachorro para importunar aquele que precisa passar com o seu basenji, o seu pastor alemão, o seu basset, o seu beagle, o seu chiahuahua. Os dálmatas podem viver, os dobermanns e os lhasas também. Mas cachorro de rua não.
O cachorro de rua é a praga, é a erva daninha, como disse a madama enquanto passava ao longe com o seu lulu embonecado. De serventia de lixão e monturo, jamais deveria se misturar aos que estão pela cidade, como asseverou o de anel enquanto beijava o focinho de seu terrier. Há perfume de cachorro de luxo, há shampoo para cachorro de rico, há roupinhas, fraldas, bercinhos e até pousadas e creches. Comida importada também. E apenas a rua ao cachorro de rua.
Contudo, não se engane que a mesma analogia é feita com relação ao menino de rua, ao adulto de rua, ao idoso de rua, a tudo que perambule ao leu e ao abandono pelos caminhos da desumana cidade. São os cães sem dono, os cães evitáveis, os cães insuportáveis. Ao lulu burguês não falta a dieta balanceada, mas como matar a fome destes que nem sempre possuem um pão? Ora, como se costuma desumanamente dizer, quem vive na rua deve catar o seu próprio lixo e se fartar dos restos dos restos. Significa dizer que não precisariam viver.
Sim, evita-se, chuta-se, espana-se pra lá aquele cachorro magricela, sarnento, repelente. Mas ele não está fazendo nada para ser enxotado assim, pois somente catando comida nas beiradas da calçada, nas bordas do lixo, pelos monturos e lixões. E qual o mal que faz o cachorro de rua? O mesmo mal que a muitos faz o menino de rua, o adulto de rua, o velho de rua, tudo que erra sem lar pelas ruas.
Não um mal que cause comoção, piedade, sofrimento interior, mas o mal da ojeriza, o mal da repugnância, o mal da maldade no coração. Crianças, adultos, velhos, pobres, famintos, abandonados, que são avistados e evitados como se cachorros de ruas fossem, e carregassem na feição a mesma imprestabilidade do cão sem dono. Sem tecer ficção, a verdade é que para muitos olhares não há nenhuma diferença entre o cachorro de rua no esgoto e o menino de rua em impossível sonho debaixo da marquise.
Quanta maldade no olhar humano, quanta maldade no coração humano, quanta desumanidade no homem. Nada lhe compraz se não for de sua conveniência, nada merece atenção se não puder redundar em algum proveito pessoal. E por isso mesmo, além de ter como inexistente o cão sem dono e o ser humano ao relento, não será difícil que tudo possa fazer para exterminar de seu meio aquela coisa abjeta que enfeia a vida. E os cães sem raça ou dono amanhecem sem vida. E os meninos nem sempre amanhecem.
Bastaria que abrissem o livro do coração para saber que o cão é amigo, que o ser humano ao abandono é também um irmão. E a estes não basta o pão jogado na calçada nem a mão forçosamente estendida, e sim o contínuo afeto, o carinho, o amor. Sim, evitem o cachorro feioso, evite a criança suja e maltrapilha, podem evitar o que quiserem. Porém saibam que as curvas da vida também podem trazer a fome, a sede e o abandono àqueles que se imaginam nos pedestais da riqueza e da glória.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...


Vovô e o seu melhor presente de Natal!




No teu mar (Poesia)


No teu mar


No teu rosto
uma moldura
de mar

brisa no olhar
concha e cais
um mar

um entardecer
de gaivota
teu mar

lábio de lua
boca de sol
no mar

e ao longe
o meu olhar
a navegar

no corpo mar
no mais profundo
do teu mar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - toda vez que chove eu choro de saudade


*Rangel Alves da Costa


Toda vez que chove eu choro de saudade. Toda vez que choro sempre está chovendo. Em toda saudade uma chuva caindo. Toda vez que chove eu também sou chuva. Toda vez que é chuva eu também despenco da nuvem do olhar. Toda vez que sou nuvem de chuva sou muita saudade. Toda saudade que é nuvem vai chover em mim. Toda vez que chove eu me molho inteiro. Toda vez que choro me lanço em enxurrada. Toda a saudade que choro se faz correnteza. Toda vez que a saudade é chuva se faz aguaceiro. Mas quando a saudade é grande o mundo desaba. Então não sou chuva nem pingo de chuva, não sou aguaceiro nem sou enxurrada, sou a fúria da natureza do pranto, sou a força que devasta a alma. Sou temporal, sou tempestade. Sou uma saudade sem fim. Sou a falta de você em mim.

Escritor
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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

DEVERIA SER SEMPRE DEZEMBRO


*Rangel Alves da Costa


Pensei, pensei e cheguei à seguinte conclusão: deveria ser sempre dezembro. Mesmo que já não exista aquela atmosfera melódica ou aquele clima nostálgico, mesmo que as pessoas já não cultivem e cativem a simbologia do Natal como noutros tempos, e ainda que as luzes não brilhem mais como antigamente, dezembro deveria estar em todos os meses do ano, do início ao fim.
Foram-se os tempos dos presépios preparados ainda ao final de novembro, das manjedouras acolhendo os pais do menino, dos animais ao redor em singela reverência e dos reis magos chegando com seus presentes. Foram-se os idos dos cantos natalinos de harpas angelicais e daquele Luis Bordón sendo ouvido das janelas em piscadelas multicoloridas. Foram-se os dias dos autos natalinos, dos corais enternecendo corações e dos presentinhos trocados com afeto e doçura.
Foram-se aqueles natais. O professor Vilder Santos chega mesmo a chorar recordando do Carrossel do Tobias dando vivacidade aos festejos na praça. E também na lembrança viva da cristandade em devoção pelo nascimento do menino e o quanto de significação havia em cada lar, em cada mesa, em cada reencontro de amigos. Ora, não há mais folhinha nem calendário como presentinho de final de ano. Dizem que um carteiro se espantou ao encontrar na sua mochila um cartão natalino para ser entregue.
Tudo isso acontecia em dezembro. Mas muito mais. Era no período natalino que as pessoas mais se humanizavam. Mesmo que para muitos fosse uma época de tristezas pelas saudades e de aflições pelas solidões, ainda assim as pessoas gostavam de sua atmosfera entre o melancólico e o festivo. Certamente as recordações aflorando e as relembranças daqueles de adeuses dados e das ausências pela distância. Por isso mesmo um tempo de reencontros, de visitas, de abraços, de afetos e amores.
Como é bom recordar aquele Papai Noel que chegaria trazendo um mundo de coisas boas. Como é bom relembrar a pujança das esperanças renascidas, dos espíritos fortalecidos e das almas alentadas pela auréola iluminada daquela representatividade. O menininho com seu sapatinho na janela, a árvore de natal piscando num canto da casa, a família se preparando para a ceia. Tanto fazia se mesa pobre, ou mesmo desnuda de panetone ou qualquer pão, mas tudo alimentado na fé, na crença e na esperança de um povo.
E hoje, num mundo de esquecimentos e abandonos, de empobrecimentos cada vez maiores e de insensibilidades cada vez mais visíveis, o Natal vai perdendo seu sentido de ser para, em seu lugar, surgir apenas um tempo onde a maioria deseja apenas que passe logo. Sim, ao invés de celebrar e absorver o espírito natalino, as pessoas desejam somente que o ano termine logo. Nas desilusões da vida, nas agonias do dia a dia, parece não haver mais lugar para a contemplação nem o afeto, apenas desejar que o ano vindouro chegue para espantar os tantos não conseguidos naquele que se finda.
Mas nem tudo está perdido. Natal sempre será Natal, ainda que com a feição ou do tamanho que os corações o desejem acolher. Verdade que não se fala mais em ceias suntuosas, presentes caros, champanhas importadas ou iguarias estrangeiras, mas as famílias ainda se reúnem, algumas luzes ainda são avistadas piscando nas varandas, reflexões e meditações ainda encontram suas razões de ser perante a manjedoura dos espíritos. Ainda há a lágrima pelo reencontro e um presentinho de amigo secreto sendo ofertado ao ocultado no sincero coração.
Contudo, algumas ações, fatos e comportamentos, dizem do imenso desejo de que todo o ano deveria ser como o mês de dezembro. Somente o fato de fazer com que pessoas recordem a existência dos seus, que procurem reencontrá-las para um abraço e um brinde, já possui grande importância em meio às friezas sentimentais da vida. Somente o fato de se preparar para reunir a família já demonstra que os laços ainda não estão totalmente desfeitos como se supõe nos demais meses do ano. Os insensíveis relembram, os distantes sentem saudades, os ausentes desejam retornar para dizerem como a vida vai.
Os gestos humanistas, as ações fraternas e os pequenos acenos perante o próximo, igualmente pontuam com mais intensidade no último mês do ano. Daí que tão bom seria se durante o ano inteiro as pessoas promovessem campanhas para ajudar os mais carentes, para presentear criancinhas que dificilmente teriam uma boneca bonita ou uma bola boa de chutar, para visitar e levar alegria aos enfermos, aos idosos esquecidos em asilos, aos que se escondem atrás das cortinas por não terem porta nos barracos.
Infelizmente, as campanhas natalinas possuem seus momentos de existência. Colhem produtos, brinquedos e alimentos, distribuem e se dão por realizadas. E depois? Depois continua o mesmo Natal, pois o Menino Jesus renascendo a cada dia nos corações humanos. Depois do Natal surge um novo Natal em cada um que deseje iluminar-se ainda naquela estrela de Belém. Nunca acaba o Natal. E por isso mesmo o ano inteiro deveria ser sempre dezembro.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
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Lá no meu sertão...


Sala de Leitura e Pesquisa do Memorial Alcino Alves Costa, no município de Poço Redondo, sertão sergipano.