SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 30 de abril de 2013

EVANGELHOS SERTANEJOS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


O sertanejo sempre cultivou fervorosa religiosidade. Seja na cidade ou no campo, na casa arrumada ou na tapera, dificilmente não se encontram as mais singelas demonstrações de fé. O anúncio na entrada dizendo que Deus protege a casa, retratos e imagens de santos, vela acesa, o antigo oratório como miniatura do céu. Além, logicamente, da devoção presente em cada coração.
Lugar de beatices, fanatismos, promessas e devotamentos, o sertão é a síntese de uma religiosidade que não existe mais noutros lugares. A devoção é tamanha que nenhum tipo de sofrimento - seca, fome, sede, miséria - é imaginado como falta de piedade divina. E sim como culpa do próprio homem enquanto pecador e suas desastrosas ações sobre a terra.
Nos momentos mais difíceis, naqueles períodos em que a desolação toma conta dos quadrantes esturricados pelo sol escaldante, ainda assim é na religiosidade que se apegam na esperança de dias melhores. Então se avolumam as rezas e as promessas, os terços e rosários ficam mais desgastados, os joelhos se dobram com muito mais devoção e fervor.
Quanto mais humildes, pobres e calejados são os sertanejos, mais se entregam aos poderes de Deus, à força dos santos e dos anjos bons e a tudo que, sob o manto da religiosidade, elevem sua fé, sua proteção diante das dificuldades da vida e a sempre alentada esperança de salvação eterna. Muitos ainda possuem o jejum como obrigação, combatem fervorosamente os pecados mundanos, vivem segundo ordena cada conta de seu terço de todo dia.
Assim se expressa a religiosidade de um povo que, ao lado dos cultos oficiais, também se lança entusiasticamente na adoração de outros dois principais protetores, ou santos nordestinos, como preferem dizer: Padim Ciço, o Padre Cícero Romão Batista, e Frei Damião, o missionário e milagroso capuchinho. Em muitas casas e casebres, ainda que sobre a velha mesa não exista qualquer jarro barato de enfeite, será possível afastar as duas imagens dos dois santos sertanejos.
E um sertanejo entristecido pelo sol de mais de ano, vendo tudo esturricar ao redor, ouvindo o mugir do gado faminto e sedento, subiu numa montanha, fez uma oração em constrição aflitiva, depois levou à boca o berrante, deu uns três sopros dolentemente ritmados, e em seguida começou a aboiar. Expressava seu aboio triste como se estivesse declamando para o horizonte ressequido ouvir:
E entoando seu canto triste soltava suas angústias e esperanças, dizendo:
Bem-aventurados os pobres sertanejos, porque deles é esse sertão injustiçado, mas glorificado pelo Senhor.
Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados, terão chuva em abundância, colheita com toda fartura, comida sobre a mesa e alegria no coração.
Bem-aventurados os mansos, os pacientes, os que não se desesperam diante do sofrimento, porque herdarão a terra, e uma terra molhada, com grão semeado e a força de cada um para remover a terra até dela sair o broto, o fruto e o significado da vida do sertão e do sertanejo.
Bem-aventurados os que têm fome e sede não só de Justiça, mas também de clemência das autoridades, do olhar piedoso dos governantes, de compreensão de quem desconhece essa vida e de quem vê tudo isso e se faz de fingido. Porque precisamos também ser fartos dessas coisas que o mundo pode oferecer.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque encontrarão a Misericórdia, pois mesmo na terra seca semeamos a bondade, no chão ressecado da lagoa semeamos a esperança, no irmão desconhecido semeamos a amizade, e nos nosso corpo enfraquecido semeamos a prece e a oração, com a certeza de que Deus não nos faltará.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a face e Deus, e assim é o coração sertanejo, na sua vida para o trabalho, na sua lide sem mágoa, na sua vontade de sempre doar, ajudar o irmão. E se não faz aquilo que não pode é porque também está semeando para um dia fazer muito mais.
Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. E é por isso que o manto da paz se estende sertão adentro, lavando com as águas do tempo o sangue inocente que escorre e fazendo desse sal da vida um chamando para que vivamos em paz e comunhão.
Bem-aventurados os que sofrem perseguição dos poderosos, das autoridades, dos governantes, daqueles que deveriam ser a mão estendida e se comportam como algozes, pois o pequeno Davi matuto derruba com o sopro da força divina todo aquele que nos olha com o olhar de Golias.
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem, perseguirem e mentirem, dizendo todo mal contra vós por causa do Senhor. Não, não nos farão trocar nossa fé pelas promessas mundanas nem nosso Deus por ídolos sem altares, pois em cada barraco de taipa há uma imensa igreja e dentro dela um céu também de barro e com anjos nus, e ainda assim sorridentes e felizes.
Então exultai e alegrai-vos irmãos sertanejos, porque é grande a glória que descerá dos céus, porque de sede e de fome também sofreram os profetas que vieram antes de nós.

  
Poeta e cronista
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Amor querendo amar (Poesia)



Amor querendo amar


Sentir desejo
sentir querer
querer amar
ainda não diz
se o amor
fez aceno
no amoroso
e ávido
coração

quando o amor
quer amar
é um rebelde
desatinado
desobedece
os sonhos
os planos
e alça voo
na noite
e traz
o sol

no dia
e traz
a lua
na noite
e traz
o sol.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 239


Rangel Alves da Costa*


“Sonho um sonho bom...”.
“Sonho um sonho simples...”.
“Sonho campestre e bucólico...”.
“Sonho de mato e de flor...”.
“Sonho com grilo e revoada...”.
“Sonho com quintal e pomar...”.
“Sonho com água corrente...”.
“Sonho com janela aberta...”.
“Sonho com manhã e alegria...”.
“Sonho com queijo de coalho...”.
“Sonho com ovos de galinha de capoeira...”.
“Sonho saboroso...”.
“Sonho bom de sonhar...”.
“E muito mais de viver...”.
“Pois meu sonho me traz...”.
“Uma casinha pertinho da mataria...”.
“Uma vida simples e pacata...”.
“Uma rede de balançar...”.
“Um córrego mais adiante...”.
“Uma rede de pescar...”.
“Uma vara de pescar pensamento...”.
“Arvoredos ao redor...”.
“Árvores de sombra e fresca...”.
“Uma gaiola sem passarinho...”.
“Todos os passarinhos ao redor...”.
“Um tico-tico, um azulão...”.
“Um sabiá e um coleirinho...”.
“Uma fruta madura no pé...”.
“Uma graviola e um araçá...”.
“Goiaba e jabuticaba...”.
“Um cachorro brincando de fazer nada...”.
“Um gato com saudade do rato...”.
“Um ninho de fogo-pagô para visitar...”.
“Um peixe assado na brasa...”.
“Uma banana da terra...”.
“Água de coco fresquinha...”.
“Uma fogueira debaixo da lua...”.
“Uma lua tão faceira...”.
“Uma cantiga de vento...”.
“Valsa perfumada de brisa...”.
“Uma moda de viola...”.
“Para ouvir e relembrar de um dia...”.
“Morena trigueira danada...”.
“Mulher de flecha certeira...”.
“E sem piedade...”.
“Um dia se foi e me deixou com saudade...”.
“Mas assim mesmo a vida...”.
“Tudo passa na alegria da esperança...”.
“Porque depois do silêncio da noite...”.
“Ouvir o galo cantar...”.
“Abrir a porta da beleza maior...”.
“Tudo maravilhoso ao redor...”.
“E viver como um rei feliz...”.
“Mas só depois de preparar o café...”.
“Cuscuz de milho ralado...”.
“Leite de vaca por cima...”.
“Café com gosto antigo...”.
“Tão verdadeiro como sou...”.
“Tão feliz e tão triste...”.
“Porque aqui somente a vida...”.
“E não a eternidade...”.
“Quem me dera...”.
“A eternidade aqui...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 29 de abril de 2013

A BONECA DE PANO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Ela simplesmente foi esquecida. Quando os pais, na pressa danada de subir no caminhão pau de arara e seguir adiante sem rumo, gritaram que a menina se apressasse sob pena de ficar ali sozinha, a pequenina correu e acabou esquecendo sua boneca de pano.
O apressamento dos pais tinha razão de ser. Não suportavam mais continuar ali se despedindo daquilo que havia sido toda uma vida. Somente a seca terrível, inclemente, apavorante, para expulsar de seu lar e de seu chão esturricado aqueles que ali cresceram e enraizaram.
Três anos seguidos sem cair chuva de molhar chão, sem se ouvir o ronco do trovão ou avistar o facho do relampejar, sem uma trovoada sequer, havia se tornado impossível continuar sobrevivendo ali. Com tudo seco, sem comida e sem água nem pra gente nem pra bicho, a desvalia tinha batido à porta. E entrado.
Os pais, de olhos fundos e magreza esculpida nos corpos esquálidos, pareciam dois velhos roubando a jovialidade que ainda possuíam. O sofrimento demais, a tristeza também. Ninguém suportava mais não ter o que oferecer à filha como alimento. Ela não chorava, mas nem precisava. O entristecimento a fazia também definhar cada vez mais.
Menina bonita, de pele trigueira, cabelos alongados, olhos castanhos, uma flor. Mas isso noutros tempos, com coisa de dois anos atrás. Continuava bonita, porém sem o olhar fascinante da infância, sem o sorriso espontâneo, sem alegria para quase nada. A fome e a sede entristeciam por dentro e por fora.
A única coisa que ainda fazia a menina sorrir, conversar, mostrar um pouco de alegria e contentamento, era a sua boneca de pano. Como as portas da escola onde estudava estavam fechadas desde que a professorinha enlouqueceu diante da calamitosa situação, passava praticamente o dia inteiro com sua bonequinha.
A boneca de pano tinha história igual aos humanos. Passando de geração a geração, sendo remendada e ajeitada em cada mão que passava, um dia havia sido de sua avó, que presenteou sua mãe e lhe foi repassada como guardiã daquela vida de pano. Apesar do tempo, dos tantos anos que já possuía, continuava bela e autêntica: toda de pano mesmo, com linha como cabelo e bordados para marcar os contornos dos olhos, nariz, boca.
De vez em quando a menina era avistada debaixo do umbuzeiro conversando com sua boneca, que tanto era chamada de filha como amiguinha. Deitava e dormia com ela, quando tinha alguma coisa para comer sempre fingia colocar um bocadinho na sua boca. Não precisava nem casinha, pois com ela vivia pra cima e pra baixo.
Mas um dia o pai avistou, lá embaixo do umbuzeiro, a boneca esquecida num canto e sua filha chorando mais adiante. Correu para ver o que se passava, se sua filha estava com algum problema, e ao se aproximar e perguntar o que ela tinha para estar chorando, simplesmente ouviu: Tô com fome!
Foi a gota d’água. Ou melhor, o momento da corda arrebentar de vez. No mesmo instante decidiu que teria de fechar a porta de casa e seguir com a família pra outro lugar, pra onde o caminhão pau de arara fizesse a última parada e a situação não fosse tão medonha como aquela, na terra seca e sem jeito de sobreviver.
Vendeu o pedacinho de terra que tinha e deixou somente o chão da tapera quase na beira da estrada. Seu sonho era voltar qualquer dia e refazer a vida no mesmo lugar, pois sabia que ia sofrer muito distante dali. Mas não tinha mesmo como ficar. E na outra semana uns dois ou três sacos com tudo o que tinham já estavam colocados na beira da estrada, à espera do caminhão.
Foi quando o carro despontou na curva que os pais apressaram-se a gritar pela menina. Na correria, ela acabou esquecendo sua boneca no umbral da janela. E somente muitas léguas depois se lembrou de sua amiguinha e começou a chorar. Mas já estavam longe demais. E a bonequinha acabou ficando.
Dois dias no umbral da janela sem que ninguém passasse para avistá-la. No terceiro dia, a ventania empurrou a janela e ela foi arremessada para dentro. Caiu bem no quarto de sua amiguinha, por cima da cama de vara e sem colchão. E ali foi ficando. A janela balançando ao sabor do vento e ela ali estirada.
Um dia despertou com o barulho do trovão. Pulou da cama e correu até a janela. Lançou os olhos de boneca adiante e sentiu que trovoada das grandes não demoraria a chegar. Fechou a janela e correu pra debaixo da cama. Tinha medo de trovões. E logo começou a ouvir a chuva forte batendo no telhado.
Quando as paredes desabaram ela ficou debaixo do varal da cama, sem poder sair. E desacordada ficou pelo tempo quem nem imagina. Nem ouviu quando os donos da casa retornaram para, do barro, reerguer a vida. E nem quando a mão de sua amiguinha lhe retirou debaixo da cama encimada de pedaços de telha.
Nem sabia se continuava viva ou se era apenas uma boneca de pano.


Poeta e cronista
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Amor com amora (Poesia)



Amor com amora


Amor
tem sua cor
seu sabor
amora
é adocicada 
sumo vermelho
o amor
se derrama
pelo coração
a amora
se derrama
pelo lábio
amor com amora
avermelha
se torna rubra
cor da paixão
e apaixonado
o amor
se torna amora
com acidez
leve azedume.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 238


Rangel Alves da Costa*


“Era uma vez...”.
“Uma vida de tristeza...”.
“Desejos e solidão...”.
“Uma vida distante...”.
“Das alegrias e felicidades...”.
“Dos encontros e contentamentos...”.
“Uma vida apenas...”.
“Para vivê-la sem motivos...”.
“Por isso estranhava...”.
“Quando do seu quarto ouvia...”.
“Pessoas dizendo na sala...”.
“Que a vida é maravilhosa...”.
“É uma encantada festa...”.
“É cheia de prazeres e realizações...”.
“Não entendia nada disso...”.
“Conhecia a vida apenas através da janela...”.
“Do quarto à janela...”.
“Da janela à cama...”.
“Da cama às lágrimas...”.
“Mas chora por quê?”.
“Talvez com saudade...”.
“Saudade da vida...”.
“Mas ela deveria ser mesmo boa...”.
“De vez em quando pensava...”.
“A janela diz que ela é bonita...”.
“Tem bando de passarinhos...”.
“Tem borboletas de todo jeito...”.
“Tem beija-flor e colibri...”.
“Tem a natureza adiante...”.
“Plantas, folhas, flores...”.
“Bichos e seres estranhos...”.
“Gostava do vento e da brisa...”.
“O perfume trazido nas tardes...”.
“Um frasco de colônia derramado pelo ar...”.
“Por ali deveria haver um jardim...”.
“Com lindas e perfumadas flores...”.
“Ela tinha uma flor...”.
“Mas que não era mais assim...”.
“Nem cor tinha mais...”.
“Apenas parecendo uma folha morta...”.
“Debaixo do seu travesseiro...”.
“Queria pular a janela...”.
“E procurar outra flor...”.
“Seguiria ao contrário do vento...”.
“Lá deveria estar o jardim...”.
“Mas também tinha vontade...”.
“De fazer outras coisas após a janela...”.
“Caminhar pelos arredores...”.
“Catar goiaba e araçá...”.
“Beber água na fonte...”.
“Tomar um banho de chuva...”.
“E toda nua...”.
“E ainda nua sair correndo pela estrada...”.
“Mas voar antes de encontrar...”.
“Qualquer olhar adiante...”.
“E depois voltar vestida de nuvem...”.
“Com uma estrela no cabelo...”.
“E alegria no coração...”.
“Sabia que tinha um coração...”.
“Pois ele batia tanto...”.
“E pulsava muito mais...”.
“Quando pensava em viver...”.


Poeta e cronista
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domingo, 28 de abril de 2013

O MAR NO TELHADO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Toda vez que entro no meu quarto e deito na cama pra dormir, eis que surge o mar lá em cima, no meu telhado. Coisa estranha de acontecer, mas acontece. Deitado, antes mesmo que olhe para o alto e já ouço o murmurejar das águas, as gaivotas voando, aqueles sons de distâncias molhadas. O mar, imenso mar...
Esteja chovendo, barulhando no telhado na cantiga do pingo grosso, ou o silêncio tomando conta de tudo, nada importa, pois o mar sempre vai estar lá em cima. Com luz acesa ou apagada, nenhuma diferença faz. As telhas balançam no alto, as marés avançam e recuam, chego a avistar um barquinho solitário sem direção.
E ouço, como entrando pela janela entreaberta, uma cantiga dolente de marinheiro, apenas voz que se mistura às águas sopradas de brisa: “iá iê, iá iê, oní onã, iá iê, oní onã, nê onã, iá iê, lê lê ô, iê oní onã, iá lê onâ, ê ô, oní onã, onã nã nã naiê, ê ô...”. Porto, a mesma cantiga do mar de Gabriela.  
Talvez eu saiba por que sempre acontece assim. Ao deitar na cama, nunca virava de lado nem procurava fechar logo os olhos para adormecer. Muito menos jogava cobertas sobre o meu rosto. Posicionava-me virado para o alto e de olhos abertos começava a imaginar, a pensar num monte de coisas.
Contudo, diferente do que muitos fazem, nunca levei problemas para serem pensados ou resolvidos em cima da cama, antes de adormecer. E não porque os momentos que antecedem o sono e o dormir não merecem ser misturados com dissabores e aflições. São apropriados, isto sim, para inusitadas viagens no pensamento.
Por muito tempo misturei pensamentos. Um dia me via num castelo distante, num tempo mais distante ainda, olhando do alto da torre a aldeia campesina mais adiante. Noutro dia me via cortando caminhos, entrando em curvas, subindo e descendo montanhas, em busca de uma igrejinha inexistente. Assim percorri o mundo, fui quase tudo.
Mas tudo mudou depois que comecei a pensar no mar. Olhava pra cima e era como se estivesse avistando a imensidão de águas. E o mar grandioso me surgia com os seus sons, seus mistérios, seus caminhos, seus habitantes, suas incertezas e aflições. Mas também o mar de chegada e de contentamento. Por isso que já me vi marinheiro, barco vazio, pedra de cais, gaivota e vento.
Da beira do mar, apenas avistando o que infinitamente avança adiante, caminho pela areia, sento na pedra grande, molho os pés nas águas misteriosas. Mas tudo triste, solitário, apenas ouvindo o barulho das águas. Penso no castelo da sereia que dizem morar ali, penso na ilha invisível que dizem existir adiante, penso no barco que toda noite chega vazio na beira do cais. Encontro uma flor estendida na areia e depois já estou dormindo.
Fico imaginando em quantos portos, quantos cais e quantas margens aquele mar que avisto desembarca. Chego a ver gente correndo, trazendo cestos e caçuás para encher de frutas maduras chegadas no barco. Caixotes de peixes, caranguejos e frutos do mar são derramados em imensos vasilhames para transporte. Uma bela moça, trazida de uma ilha distante, é descida estendido numa maca. Adoeceu depois de ser beijada pelo vento do entardecer.
Outras vezes lá estou eu navegando sem rumo. Já em alto mar, com o vento da tarde açoitando veloz, nada vejo ao redor que me tire da solidão. Procuro avistar uma revoada, ou apenas um pássaro, mas nada surge no horizonte. Apenas nuvens negras, pesadas, que lentamente caminham na minha direção. Uma tempestade se aproxima.
Mas não tenho medo, não temo nada que venha desse mar. Mesmo que a ventania e a chuva forte ameacem virar o meu barco, ainda assim não tenho medo. Estou com sono demais e tenho certeza que adormecerei antes que a tempestade me alcance. E adormecido por certo me chegará um sonho desembarcando numa ilha. E encontrarei seu sorriso e braços abertos para o carinhoso afago. Meu amor chegou, ouvirei.
E na noite seguinte, na hora de dormir, novamente encontrarei o meu mar no telhado. Mas amanhã vou apenas escrever um poema na areia. E deixar que a saudade seja levada para bem longe, nas distâncias das águas do mar.
  

Poeta e cronista
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Poema com flor e espinho (Poesia)



Poema com flor e espinho


Poema de amor
cheira a flor
da rosa a cor
da primavera
o odor

porque o amor
é aroma singelo
aos sentimentos
aos desejos
e à vida

pensar diferente
é colher um buquê
e jogar as pétalas
pelo caminho
e seguir sozinho
levando no peito
os espinhos.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 237


Rangel Alves da Costa*


“Acaso esqueça a chave...”.
“Acaso esqueça o caminho...”.
“Acaso tenha outra ideia...”.
“Acaso tudo tome outro rumo...”.
“Ainda assim nenhum acaso...”.
“Realmente aconteceu...”.
“Não existem acasos na vida...”.
“Tudo destino...”.
“Predestinação...”.
“Inevitável acontecimento...”.
“O ser humano nunca está sozinho...”.
“A seu lado há sempre presença...”.
“Ainda que invisível presença...”.
“A sombra...”.
“Que é a pessoa mais consciente...”.
“Pois mais razão que ação...”.
“Tomando o outro...”.
“Quando este entorpece...”.
“Está o anjo...”.
“Que guia e que sopra...”.
“Que instiga, incentiva...”.
“Que guarda e protege...”.
“Que age para que caminhos não sejam seguidos...”.
“E outras estradas sejam percorridas...”.
“Diz não vá...”.
“Diz evite...”.
“Ainda não é tempo...”.
“Ainda não é o momento...”.
“E também há a força maior...”.
“A força divina iluminando...”.
“Guiando a mente para a melhor ação...”.
“E por isso mesmo...”.
“Não existe o acaso do esquecimento...”.
“Do não ir, do desistir...”.
“Do repentino temor...”.
“Do voltar do meio da estrada...”.
“Assim acontece porque assim está destinado a ser...”.
“Há o sopro na mente...”.
“A intercessão protetora...”.
“A ação impedindo que não aconteça...”.
“Daí o homem estar protegido...”.
“De encontrar armadilhas pelo caminho...”.
“De encontrar abismos adiante...”.
“De cair em armadilhas...”.
“E quando ele evita que aconteça...”.
“Está apenas obedecendo a forças superiores...”.
“Misteriosos instintos...”.
“Quem dizem vá ou não vá...”.
“Faça ou não faça...”.
“Mas também há o homem em si...”.
“Aquele que por arrogância...”.
“Teimosia e descrença...”.
“Quer agir sempre por conta própria...”.
“Raivosa e impensadamente...”.
“Fazendo o que não deveria...”.
“Indo por onde não deveria...”.
“Em casos assim...”.
“Quando o próprio destino é desvirtuado...”.
“Só lhe resta esperar...”.
“Que o inesperado aconteça...”.
“E de forma sofrida e dolorosa...”.


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sábado, 27 de abril de 2013

A FESTA DA MENINA NUA (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Alguns sinais anunciavam a festa da menina nua. O vento começava a soprar diferente e de modo mais apressado, as plantas farfalhavam murmurando, um bicho corria daqui e dali, a natureza ao redor ficava mais perfumada, o tempo parecia preguiçoso demais pra passar. E olhos passeavam pelos arredores.
E quando ela abria a porta de casa, começava caminhar pela rua e virar no beco do riachinho, então tudo parecia que ia desandar de vez. Com passos lentos, formosura no andar, corpo tão singelo que parecia uma flor, ela seguia sorrindo bonito, balançando a flor no cabelo e encantando aquele momento da vida.
E o lugar, cidadezinha pacata, de pessoas empobrecidas e lutadoras, nas suas janelas e calçadas de todo dia, parecia completamente transformado quando ela saía de casa ao entardecer e seguia para tomar seu banho no riachinho. Tomava outro em casa, assim que retornava, mas parecia promessa pra ser assim.
O banho era de roupa mesmo. Nem pensar em ficar na pele de nascimento diante dos tantos olhares mirando seu corpo. E não apenas os olhos dos meninos danados, dos molecotes traquinas, mas também dos bichos, das plantas,  das pedras, da própria água. Tudo tinha olhar espichado pra bela flor.
Ora, dizem que a beleza quando se expressa em toda sua pujança faz a pedra ativar seus sentidos. E certamente não haveria gente ou qualquer outro elemento da natureza que não se encantasse quando ela surgia, passava caminhando, mostrava suas formas divinais. E quase nua então, tomando banho então, com aquele vestidinho fino rente ao corpo molhado então.
Linda, linda, era a menina. Menina no modo de dizer, mas mocinha cheirando a leite, como se dizia por lá, nas distâncias do fim do mundo onde vivia. Na idade da espiga de milho rompendo da palha, da fruta amadurecendo, do café coado tomando cheiro e sabor. O nome dela? Ah, o nome dela sei não. Flor. Talvez flor. Outro nome não assentaria.
Mas a meninada a chamava de outro jeito. Brisa para uns, Mimosa para outros, ou simplesmente Linda Donzela. Ela não se importava com nada disso, pelo contrário. Respondia com um leve sorriso de qualquer jeito, deixando o mundo ainda mais feliz e apaixonado. Foi por isso que silenciosamente a pedra a tinha por Anjo.
Ao chegar sempre sozinha na beirada do riachinho, a menina tirava o chinelo, guardava a flor do cabelo e dava uns cinco passos até alcançar as águas. Abaixava-se, tocava a água com a mão direita, em seguida fazia o líquido se derramar pela testa e pela face. Estava benta e pronta para o seu banho.
Após colocar o pé direito, arremessava-se de corpo inteiro. Mergulhava solenemente, fazia a água borbulhar de prazer. E ao levantar, com pele e pano numa forma só, parecia estar completamente nua. E realmente nua era como os olhos ao redor a avistavam. O passarinho chegava até a ponta da pedra mais próxima, uma folha chegava no vento e se deixava cair bem ao lado.
Os meninos quase caíam dos galhos das árvores aonde subiam para se esconder e presenciar a deusa nua e molhada. Alguns molecotes disputavam com os bichos e as próprias pedras a melhor visão que pudessem ter. E coisa incrível acontecia, pois as águas paravam de correr para se avolumar e fazer festa ao redor da mocinha.
Mas um dia ela mergulhou e ficou mais tempo que o costume. Os olhares, preocupados, cresceram, só faltaram correr até o ponto borbulhante na água; palavras de espanto e temor ficaram forçosamente silenciadas; tudo sem saber o que havia acontecido. E de repente ela surgiu. E ao levantar estava completamente nua. Em pelo e pétala.
Um menino despencou de cima  da árvore nesse momento; uma algazarra imensa na mataria. As águas pareciam em turbilhão. E impossível descrever quando ela, assim todo nua, deitou numa pedra e assim ficou até o surgir da lua.
Foi o dia que a lua abriu caminho no por do sol e brilhou mais cedo. Apaixonada. Também.
  

Poeta e cronista
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Amar sem medo (Poesia)



Amar sem medo


Conto um segredo
e digo que não amei
por medo

medo de amar
amar demais
demasiadamente amar

mas agora conto
outro segredo
um segredo de amar

ao te encontrar
perdi o medo
de me apaixonar.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 236


Rangel Alves da Costa*


“Tudo voa, tudo passa...”.
“Tudo é estação...”.
“Uma nuvem...”.
“Uma revoada...”.
“Um leito de rio...”.
“O ontem passou...”.
“O instante passou...”.
“O segundo passou...”.
“E já não somos mais...”.
“Um segundo atrás...”.
“Já não temos mais...”.
“O que não foi conquistado...”.
“O tempo não perdoa...”.
“Não atrasa o relógio...”.
“Não desmente o calendário...”.
“Não remove a idade...”.
“Do passado apenas recordação...”.
“Do ontem as relembranças...”.
“E o que não foi feito...”.
“Servirá como exemplo...”.
“Para fazer a hora...”.
“Não esperar acontecer...”.
“Por isso voe...”.
“Se tem vontade de voar, então voe...”.
“Crie asas, suba às alturas...”.
“Escolha um norte e boa sorte...”.
“Faça o bolo de cenoura...”.
“Faça o doce de jaca...”.
“Plante a roseira...”.
“Tome banho nu na chuva...”.
“Cante no alto da montanha...”.
“Converse com a pedra...”.
“Saia por aí sem destino...”.
“Crie coragem...”.
“Revele o amor que sente...”.
“Entregue aquele presente...”.
“Peça perdão se errou...”.
“Pois é tempo de fazer...”.
“E fazer agora, sem demora...”.
“Mais tarde já será outro tempo...”.
“E amanhã tarde demais...”.
“Então corra, vá atrás...”.
“Se lambuze de sorvete...”.
“Peça o prato mais cheio...”.
“Peça sarapatel e rabada...”.
“Bata a porta na cara de quem desejar...”.
“Diga-lhe umas verdades...”.
“Desabafe, espante a ira...”.
“Seja realista no espelho...”.
“Jogue fora velhas coisas...”.
“Procure aquele livro...”.
“Comece a escrever um romance...”.
“Grite o quanto puder...”.
“Se assim desejar...”.
“Mas tem de ser agora...”.
“Sem demora...”.
“E antes que o instante...”.
“O minuto adiante...”.
“Que imaginou seja de sorte...”.
“Seja de morte...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 26 de abril de 2013

SAMBALELÊ TÁ DOENTE... (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Infelizmente, o que se constata é uma enfermidade generalizada nas autênticas brincadeiras e diversões infantis. O abandono das cantigas de roda, das velhas e comoventes canções, das inocentes brincadeiras e diversões e dos inventos artesanais que se tornavam a alegria da meninada, passou a comprometer a própria saúde da infância.
Fato é que a grande maioria das crianças de hoje jamais brincou de roda no meio da rua, arremessou bola de gude no pequeno buraco, pulou corda ao entardecer, brincou de pula-pula, teve boi de barro na estante de seu quartinho, cantarolou versinhos humanizando animais. E assim o fazem porque não conhecem e nem são ensinados e motivados ao ludismo nos moldes de antigamente.
Aquilo que tanto serviu como autêntico prazer aos avôs e pais foi, forçadamente, ficando para trás, relegado ao desuso. E de forma lamentável, pois aquelas brincadeiras repassadas de geração a geração poderiam se eternizar sendo consideradas cada vez mais importantes no desenvolvimento psicossocial dos meninos e meninas. E tudo porque possuidoras de singelezas que tão bem despertam o interesse dos pequeninos.
 Eram as mesmas crianças, com suas inocências, sonhos e aspirações, só que distantes dos apelos mercadológicos de hoje, onde se impõe a máquina como fator de atratividade infantil. E, por consequência, tornando a criança num mero manipulador de tecnologias desinteressantes e solitárias. A infância de hoje, infelizmente, se vê refém do brinquedo a pilha, a chip, computadorizado.
Quem tem mais idade certamente lembra-se do que estou falando. Esquecia-se de tudo brincando no meio da praça, debaixo da lua, nos quintais, nos cantos da casa, nos pátios escolares, nos instantes de recreação. Contudo, aos poucos tudo foi sendo relegado de tal forma que praticamente ninguém fala mais sequer em “pinta-lainha”. Isso mesmo, aquela brincadeira de adivinhar dando pequeno beliscão na mão do outro para ver se ali estava o segredo. “O rei mandou dizer que eu tirasse essa aqui...”.
O esquecimento e o desuso das velhas brincadeiras e cantigas, aliados à omissão e ao descaso dos responsáveis pela formação educacional e lúdica das crianças, vão empobrecendo o acervo e a memória das coisas belas e divertidas da vida. E é como se o cancioneiro infantil estivesse fragilizado, adoecido, tendente ao desaparecimento. Assim como um Sambalelê que tá doente.  
Não só o Sambalelê tá doente, mas também Os escravos de Jó, o Lobo mau, o Sapo que não lava o pé, a Galinha pintadinha, o Pirulito que bate-bate, o Marinheiro só, o Boi da cara preta e a Canoa que virou. E mais, muito mais cantigas infantis adoecidas pelos sintomas do progresso.
Não só as cantigas infantis estão em vias de esquecimento. As brincadeiras de crianças, as danças de roda, todas as manifestações infantis do passado também estão num gradativo processo de desuso e abandono. Menino não brinca mais de cavalo de pau, menina não brinca mais de boneca de pano nem de casinha em miniatura. Criança não tem mais carrinho de madeira nem corda pra pular.
Nos dias atuais, onde os brinquedos tecnológicos estão massificados no cotidiano das crianças, estas nem se importam com aqueles atrativos artesanais que acaso possam encontrar. Do mesmo modo, sempre acham que é melhor ir numa loja escolher seu brinquedo a serem presenteadas com algo que, por exemplo, não fala e não anda sozinho.
Verdade que as crianças do tempo presente não têm qualquer dever ou obrigação de conhecer e gostar dos brinquedos antigos, das velhas canções infantis, das brincadeiras de roda. A realidade é outra, como os mais velhos costumam dizer. Contudo, precisam conhecer para alargar suas opções.
Do mesmo modo que os pais gostam de contar aos filhos as boas experiências passadas, bem assim deveriam fazer com relação às suas brincadeiras de antigamente. E não somente isso, não apenas rememorar tais ludismos, mas também, e principalmente, incentivá-los a experimentar, a usar, a praticar.
Ora, as cantigas de roda e os brinquedos antigos não perderam sua validade nem sua importância. Pelo contrário, continuam como exemplos de práticas sadias e eficientes no desenvolvimento motor, sensorial e da criatividade. Além de se constituírem numa forma de preservação cultural.
Se a criançada de hoje soubesse o prazer contagiante daquelas antigas brincadeiras e cantigas, certamente cantaria: “Como poderei viver, como poderei viver, sem a tua, sem a tua companhia...”.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Direi agora... (Poesia)



Direi agora...


Há muito que silencio
a voz guardada em baú
o verso num livro antigo
o amor sempre escondido
por detrás das sombras
de um velho coração
temendo a revelação

mas direi agora...

a brisa diante da janela
a poesia voando na folha
o aroma suave do vento
o voo do pássaro ao redor
a melodia surgindo do nada
a flor na cama encontrada
foi tudo por mim levado
tudo que meu pensamento
fez surgir ao teu lado
porque o amor verdadeiro
é um misterioso alado

e tudo para fazer revelar
que nada é impossível
a quem tem certeza de amar.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 235


Rangel Alves da Costa*


“Nuvem carregada...”.
“Melancolia...”.
“Ao chuviscar...”.
“Vem a tristeza...”.
“Chovendo forte...”.
“Tanta agonia...”.
“Na trovoada...”.
“O desalento...”.
“Na tempestade...”.
“A aflição...”.
“O temporal...”.
“Devastando tudo...”.
“A ventania...”.
“Para desfolhar...”.
“Pois tudo acontece assim...”.
“Tudo no seu instante...”.
“No seu momento de ser...”.
“Desde a coisa mais simples...”.
“Ao inesperado que acontece...”.
“Assim como a manhã...”.
“Que dá esperança...”.
“Como o sol...”.
“Que desperta alegria...”.
“Como o frio...”.
“Que provoca distanciamento...”.
“Como o calor...”.
“Que traz pressa e euforia...”.
“Mas prefiro olhar a nuvem...”.
“E desenhar ali o que quiser...”.
“No horizonte...”.
“Imaginar que estou adiante...”.
“Na beira do rio...”.
“E já singrando suas águas...”.
“A tarde no mar...”.
“E o seu infinito...”.
“Um cais de partida e de chegada...”.
“Uma vela ao longe...”.
“Também tanta tristeza...”.
“Tanta solidão...”.
“Porque imagino um verso escrito...”.
“Rabiscado na areia...”.
“Dizendo do amor de um dia...”.
“Que partiu e não voltou...”.
“E vejo a concha...”.
“Sinto o sopro do vento...”.
“E uma flor murcha...”.
“Uma rosa desbotada...”.
“Sendo levada pelas ondas...”.
“E caminhando vou...”.
“Porque o entardecer já vermelho...”.
“E talvez ainda haja tempo...”.
“De alcançar a última revoada...”.
“Pois também sou passarinho...”.
“E quero voar...”.
“Pássaro de canto e sonho...”.
“E de amor distante...”.
“Por isso quero...”.
“Por isso preciso...”.
“Quero voar...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com