SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 31 de julho de 2015

“A CASA É SUA, SEU MOÇO...”


Rangel Alves da Costa*


No sertão, quem vê cara vê o coração. A feição humilde do povo sofrido, o rosto sincero do povo lutador, a tez marcada de esperança do povo trabalhador, tudo isso também revelado no coração desse povo. Um povo sertanejo que não nega sua autenticidade nem vive a inventar uma vida além daquela que realmente possui.
Logicamente que não todos, mas a grande maioria da gente sertaneja guarda em si, dentro da alma, o que mostra na face. É verdadeiro do lado de fora e por dentro, não guardando a desonra de ser diferente daquilo que se mostra no seu dia a dia. Por isso que não adianta pensar em ego sertanejo, mas tão somente uma junção singela de corpo e alma.
Por consequência, não pense em encontrar diferente o que o sertanejo afirma ser de determinado modo. Ou é ou não é, sem rodeios ou embromações. Daí sua coragem de enfrentar a difícil realidade sem medo, daí o seu senso de verdade acima de tudo e de todos. Acaso diga que há três dias não coloca uma panela no fogo por falta de arroz ou feijão, que ninguém duvide do fogão em cinzas.
O senso de enfrentamento sem medo da realidade é o que torna o sertanejo ajustado à terra, ao tempo, ao clima, ao barro, ou ao pingo d’água, à molhação, à semente, à paisagem verdosa de seu sertão. Assim como mandacaru espera mil anos a chuva chegar, mesmo que de braços abertos implorando trovoada, assim também o homem da terra diante de sua esperança imorredoura.
Por isso que nunca vive tempo ruim. Vive tempos difíceis, mas não ruins. Na ótica sertaneja, o ruim é o que é provocado pelo homem, é o que vem a mando ou por feitura humana, mas não aquilo que é da vontade de Deus. Sua alegria e sua tristeza dependem das forças divinas. Os tempos difíceis chegam para que o homem não se esqueça dessa força maior sobre tudo. E é na fé, na oração, na força da religiosidade, que tudo se refaz depois que a trovoada começa a cair.
Mas seja em tempos de bonança, com a terra molhada, a boneca de milho brotando, o feijão em tempo de colheita e a melancia e a abóbora ao redor, ou em tempos difíceis, quando tanto o homem como o bicho não tem o que comer nem beber, a postura do sertanejo é uma só, sem mudar um tantinho assim. A prova disso se dá toda vez que alguém, amigo, conhecido ou forasteiro, bater à porta de sua casinha de cipó e barro.
É nas lonjuras sertanejas, nas moradias esquecidas no meio do mato, ou mesmo nas pequenas propriedades de quintal, malhada e dois bichos berrando, que o homem da terra mostra sua grandeza. Avista-se uma casinha pobre – como de fato é -, um velho umbuzeiro ao redor, um cercado de troncos caídos, uma desolação de doer no coração. Parece casa abandonada, um lar deixado para trás por retirantes da seca. Não se avista ninguém, nada se ouve além dos sons da mataria gemendo a secura e um cachorro magro que surge do nada. Mas eis a pujança da vida.
Lá dentro talvez apenas tamboretes, alguns utensílios de madeira, barro e alumínio, uma imagem do Senhor na parede de barro, um candeeiro apagado, um velho jarro com velhas flores de plástico, pouca coisa mais do que isso. Ou mesmo numa casa mais alentada, com mesa e cadeira de pé, bico de luz, fogão a gás e até rádio ou televisão. Não importa. Pois o que importa mesmo é a forma como o povo dessas moradias recebe o visitante.
Um toque na madeira e o silêncio lá dentro. Passos se arrastam e chegam rente à porta para olhar pela fresta. Se é gente desconhecida, espera-se que se anuncie. “Oi de casa, estou de passagem e queria apenas um copo d’água, se acaso ainda restar no fundo do pote ou na moringa”. “Oi de fora, se vem na paz de Deus, então espere que já vou abrir a porta. A casa é de pobre, mas não deixa de matar a sede de quem caminha debaixo do sol”. E assim a porta vai rangendo para aparecer o olhar sincero do morador. Distante, profundo, parecendo de pouco brilho, mas com uma intensidade que chega a encantar. Não há sorriso ainda, mas dentro da alma o coração já acolhe.
A partir de então o jeito de ser sertanejo se mostra em toda sua dimensão. A moradia é pobre, pouca coisa em cima do fogão ou no armário, mas logo surgirá a xícara apetitosa de café, o pão com manteiga, o pedaço de bolo, a coalhada, o pedaço de queijo, o doce de leite ou de goiabada. A água fresquinha da moringa é oferecida em caneca que chega a brilhar de tão areada. E em tudo um prazer infinito de bem servir.
Assim no sertão, assim no coração sertanejo. Por mais empobrecido que seja, seu pão será repartido e sua acolhida tão cordial que não há palacete mais rico que ao menos pareça com esse reino de grata humildade.


Poeta e cronista
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Araçá e flor (Poesia)


Araçá e flor


Tome esse araçá
embrenhei-me no mato
e procurei pra você
é gostoso e docinho
e talvez traga recordação

aceite essa flor do campo
caminhei pelas veredas
e fui colher pra você
é singela e graciosa
e talvez traga recordação

também volto ao teu olhar
retorno com araçá e flor
e talvez desperte recordação
quando todo dia eu chegava
para entregar meu coração.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: à sombra dos laranjais


Rangel Alves da Costa*


À sombra dos laranjais. Muito acontecia à sombra dos laranjais. Eis o passado para dizer como era doce e singela a vida. Um tempo de romantismo, de verdadeiros amores, de paixões justificadamente profundas, de poesia nas relações, de beijos e abraços apaixonados, de saudades lacrimosas e atormentadoras. À sombra dos laranjais, sob o entardecer de brisa e flor, a mocinha suspirava seu saudoso amor ou mesmo sua devastadora vontade de ser amada. Tão bela e tão solitária, tão linda e tão carente de afeto amoroso, tão pulsante no jardim corporal e tão relegada à tristeza da solidão. Somente lhe resta abrir a janela, sentir o perfume da brisa, olhar para as nuvens e avistar e sonhar com o príncipe encantado chegando num belo cavalo alado. E passa o dia inteiro assim, entre livros de amores impossíveis, paixões proibidas e poesias de dilacerar corações. E mais tarde, quando o sol se escondia um pouquinho, seguia até à sombra dos laranjais. O vento batendo no seu vestido longo, a brisa beijando a face rosácea, a flor da laranjeira caindo sobre seus cabelos. Assim no passado, assim num tempo de meiguice e ternura. Hoje não há quem não recorde com nostalgia e saudade das sombras dos laranjais. Não há mais laranjais que guardem nos seus sombreados a beleza da vida. Tudo muito diferente. E também ninguém mais se importa com o romantismo nem com as sutilezas de um coração despertado para o amor e as belezas da vida.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 30 de julho de 2015

COM RAIVA DO MUNDO


Rangel Alves da Costa*


Tem gente que parece viver com raiva do mundo. E há um monte de pessoas assim. Uma gente que já amanhece raivosa, com cara feia, desconfortável a todos. Uma gente que não dá um bom dia ou boa tarde, que jamais se mostra contente com qualquer coisa, que sempre olha para o outro ou com desdém ou rancor.
Creio que não seja genético nem de aprendizado de vida, mas tão somente um desejo próprio de ser pessimista sobre tudo, de ser ruim ao extremo, de ser verdadeiramente insuportável. Cria-se uma redoma e jamais deseja que alguém se aproxime mostrando amizade, com pretensão de apoio ou apenas para dialogar. E se guarda e se fecha nessa redoma vazia e dela só sai para ir espalhando seus maus humores, suas discórdias, suas indiferenças.
Infelizmente há muita gente assim. Uma gente que jamais pronuncia qualquer coisa que seja boa, que vive no pensamento do quanto pior melhor, que silenciosamente roga para que nada dê certo com o outro. Uma gente que mente com o único intuito de macular a imagem de alguém, que logo cuida de espalhar tempestades onde haja calmaria, onde reine a bonança. Ora, sendo infeliz consigo mesma, logicamente deseja que todo o resto do mundo viva sob o manto da infelicidade.
Gente há que parece não conhecer ninguém, vive distanciada de todo mundo, nega até mesmo o seio familiar. Uma gente difícil demais de se lidar, pois sempre revoltada com tudo, inacessível, que nunca está pronta para ouvir uma boa palavra. É uma gente ignorante, arrogante, egoísta, dona demais de si mesma e de nada. Do jeito que vive e do modo como critica as atitudes do próximo, até parece viver num estado de perfeição. Contudo, apenas fingimento para não ter de enfrentar o espelho da própria alma.
Sim, o espelho da alma porque toda alma nasce bondosa e assim permanece no íntimo do indivíduo. O que o sujeito vai mudando é a sua visão exterior de mundo, sua noção de como as realidades devem ser absorvidas e vivenciadas. Daí que o íntimo do sujeito nem sempre reflete suas atitudes exteriores. Na verdade, há no ser humano várias vertentes num único ser. Há aquele que se impõe perante os outros, forçando seu íntimo jeito de ser. Há aquele que permanece correspondendo aos desejos da alma. E há aquele que simplesmente se transmuda segundo a conveniência da situação.
Em determinadas pessoas, contudo, o que somente se observa é aquela feição mais bruta, mais rude, mais ignorante, mais impenetrável. São pessoas que não refletem sobre sua condição de insociabilidade, sobre o relacionamento com os demais, sobre seu jeito tão intragável de ser e conviver. Pessoas assim vivem semeando a infelicidade, bem como vivem única e exclusivamente para dar vazão à imprestabilidade na vida. Negam-se a sorrir, a ser agradáveis, a serem cordiais, a serem pessoas comuns.
Muitas pessoas sequer se importam que existam pessoas assim, pois simplesmente as ignoram. Outras buscam a todo custo compreender as razões de tanta dureza no coração, de tanta insensibilidade, de um comportamento sempre preparado para maldizer a vida e os feitos do outro. Contudo, difícil é não ter de lidar com tais apatias e antipatias. De fato, encontrar alguém conhecido e não poder sequer cumprimentá-la por medo de uma inesperada reação, não é fácil de ser assimilado por qualquer um.
Mas enquanto isso elas permanecem por aí destratando a todos, espalhando desavenças, proliferando suas arrogâncias. Difícil saber se estão doentes, tristes ou simplesmente raivosas, pois sempre com as mesmas feições. Também difícil sorrir para uma pessoa assim ou mesmo encontrá-la pelas esquinas. A qualquer momento uma felicidade pode ser destruída por um único olhar que parece ter avistado um inimigo. E por isso mesmo quer destruí-lo.
Elas existem e estão por aí. Mas deixai que vivam seus infortúnios. Assim como se deve fugir do cão raivoso, também se deve evitar encontros com pessoas sem Deus, sem paz e sem fé.


Poeta e cronista
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Coisas antigas (Poesia)


Coisas antigas


E agora que ouço
aquela canção antiga
e agora que vejo
aquela lua antiga
e agora que encontro
aquela carta antiga
e agora que choro
uma lágrima inusitada
e agora que sinto
uma saudade infinita
e agora que percebo
o quanto te amei
e quanto ainda amo
só me resta agora
retornar no tempo
para tudo recomeçar
reaprender a dividir
e mais amor semear
ser fiel ao coração
e todo amor confessar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: lobos uivando


Rangel Alves da Costa*


Os lobos uivam nas noites das solitárias estepes. E são gemidos tão lamentosos e aflitivos que se imagina a grande dor da floresta. Triste, muito triste ouvir os uivos dos lobos solitários. Mas os ecos fazem lembrar outros uivos, outros berros, outros lamentos. Na dor, na tristeza, na angústia, não há diferença entre os canídeos e o homem. E este, sem mais poder fingir o silêncio, sem mais suportar reter intimamente a aflição, também sobe nas suas montanhas para soltar seus gritos lancinantes. Mas as montanhas ou as estepes do homem não despontam em meio ao negrume da natureza, pois em qualquer lugar, principalmente nos seus recantos de solidão. A qualquer hora do dia, mais comumente depois do entardecer em diante, eis que o homem se transforma em lobo para o seu gemido. Não pode falar, não pode chamar pelo nome, não pode abraçar, não pode ter aquilo que deseja, se vê atormentado nas horas lamuriosas, e então procura uma lua na mente, avista qualquer auréola na cegueira do olhar, mira o inexistente e solta sua voz. Um grito de dor, um uivo aflito, um lobo sofrido chamado homem.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 29 de julho de 2015

DOIS NOMES


Rangel Alves da Costa*


Estive em Poço Redondo – e logo estarei de volta – e de lá retornei muito esperançoso. Antes que fale das esperanças, preciso agradecer a forma cordial como fui tratado pelo prefeito Roberto Araújo quando de sua visita ao Memorial Alcino Alves Costa.
O encontro foi breve, pois em meio a uma multidão que estava visitando o espaço de cultura sertaneja, porém muito amigável e proveitoso. O prefeito falou-me da efetiva inauguração da Avenida Alcino Alves Costa e do compromisso de colocar o nome de meu avô paterno Ermerindo Alves Costa numa das ruas vizinhas. E falou-me também das melhorias que pretende promover na cidade e no município. Desse modo, não posso deixar de reconhecer a atitude do prefeito Roberto Araújo como um gesto grandioso de um administrador.
Com relação às esperanças, estas se voltam para dois nomes: Pedro Lima e Jaime Mendonça. O primeiro como pleiteante a assegurar mais vez sua atuação no Conselho Tutelar Municipal, e o segundo como nome bastante comentado para disputar o próximo pleito para a prefeitura municipal.
E por que duas boas esperanças? Simplesmente porque os dois já comprovaram qualidades essenciais nas áreas em que atuam. E certamente levarão suas experiências em direção aos anseios da população. Pedro Lima tornou-se respeitado e admirado como conselheiro tutelar porque vive diuturnamente as atribuições de seu ofício e não se cansa de lutar pela proteção dos menores em situação de risco.


Mesmo atuando numa esfera diferente, pois empreendedor e administrador de empresas, não é diferente o compromisso de Jaime Mendonça. Basta que se lance um olhar sobre a atuação de Jaime em Poço Redondo, desde que chegou como Engenheiro Agrônomo aos dias atuais, para se ter a ideia do quanto ele se envolveu com a vida do município e o quanto vem ajudando na economia local e na colocação de poço-redondenses no mercado de trabalho.
Jaime Mendonça abdicou de sua rentável profissão para se dedicar exclusivamente a Poço Redondo. Não precisa muito esforço para se saber o quanto Jaime e sua esposa Erivalda ajudam no desenvolvimento municipal e tudo fazem para que a cidade progrida através dos serviços essenciais que são disponibilizados pelas suas atividades empresariais.
Não seria errôneo afirmar que sem Jaime Mendonça Poço Redondo estaria um passo atrás em muito do que hoje está em pleno funcionamento. E só faz isto – e num município empobrecido – quem tem verdadeiro compromisso com o seu progresso. E é tal compromisso e tal experiência empresarial que estarão a serviço de toda municipalidade acaso a sua candidatura se confirme e o seu pleito seja vitorioso.
Cabe, pois, ao povo escolher. Pedro Lima e Jaime Mendonça não são nem aventureiros nem sonhadores. Estão com os pés no chão no mesmo patamar que o mais humilde poço-redondense. Por isso conhecem suas estradas e seus caminhos. E sabem muito bem que somente o trabalho sério e incessante provoca as mudanças tão essenciais à vida.
Voltei de Poço Redondo com estas duas boas esperanças. E desejo que o futuro confirme a esperança de todos.


Poeta e cronista
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Depois do amor (Poesia)


Depois do amor


Depois do tempo de amor
somente o espinho da flor
somente a feição do outono
folhas tristes ao abandono

o amor era como a estação
uma primavera ou verão
de flores e sóis radiantes
jardim acolhendo amantes

mas depois do tempo de amor
e da triste solidão que brotou
haverei de semear novo jardim
antes que o desalento seja o fim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: insônia


Rangel Alves da Costa*


O sono é grande demais, porém a renitência de adormecer é muito maior. Os olhos pesam, a cabeça gira, tudo parece querer desabar, mas não há como adormecer. Deita, o colchão é macio e a cama imensa, tudo chamando a uma boa noite de sono. Há também uma música clássica, uma sonata quase inaudível, apenas para a flutuação nos espaços e a descida já de olhos fechados e sono profundo. Há ainda um teto onde se viaja entre reinos, castelos, brumas, fantasias e ilusões. Ou simplesmente carneirinhos cor de algodão que vão, um a um, pulando as fronteiras do olhar. Tudo pronto para dormir, mas não dorme. Fecha os olhos e assim permanece até revirar na cama. Mexe o cobertor, afaga o travesseiro, toma um gole d’água, coloca na boca um comprimido e novamente se mantem de olhos fechados. Mas nada de adormecer. Já uma da madrugada. Depois duas, três, e assim por diante. E o sono não chega porque não adormece aquele que não consegue também fazer adormecer a saudade, a tristeza, as angústias, as preocupações. Sem querer que assim aconteça, mas de repente o noturno é envolvido pelo que a mente vai rebuscar no lugar do silêncio. E os olhos se molham, os passos caminham, janelas são abertas, uma vontade danada de viver. E adormecer. Mas somente quando a dor extasia a alma é que o insuportável entorpece o ser. E a pessoa fecha os olhos e adormece o sono das almas dilaceradas pelo sofrimento.


Poeta e cronista
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terça-feira, 28 de julho de 2015

CASEBRES DE BEIRA DE ESTRADA


Rangel Alves da Costa*


Na última quinta-feira, dia 23, peguei a estrada rumo a Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, meu berço abençoado. De lá retornei ao entardecer deste domingo 26. Tanto na ida como no retorno, outra coisa não fiz senão ficar observando os casebres de beira de estrada, principalmente na região do autêntico sertão sergipano, da Boca da Mata em diante ou até este que é o verdadeiro portal do mundo da catingueira, do mandacaru e do xiquexique.
Diferente de outras vezes, na viagem de agora encontrei uma paisagem que nem parecia sertão. O normal é que a chegada à região sertaneja já seja emoldurada pelo céu sem nuvens, terra esfarelada pela secura e uma vegetação acinzentada e definhando. Mas desta vez, após as chuvas caídas nos últimos tempos, a paisagem entristecida deu lugar a campos verdosos, arvoredos floridos e milhares de garças brancas ao redor das fontes. Um verdadeiro deslumbre aos olhos acostumados com outros retratos.
Da Boca da Mata em diante, onde hoje está a suntuosa cidade de Nossa Senhora da Glória, o cenário sertanejo se mostra de forma diferenciada, mesmo que de Aracaju ao sertão tudo esteja com as consequências da terra molhada. Ou seja, um só leito verdejante e cheio de vida. Mas o mundo sertão logo se mostra inconfundível. A vegetação, num misto de arbustos espinhentos, árvores com copas espessas, catingueiras de troncos finos e galhos recurvados, além das cactáceas tão características da região, logo se mistura aos retratos humanos e às pequenas propriedades com suas humildes moradias.
Há também uma profusão de grandes fazendas com moradias alentadas, currais e automóveis pelas malhadas, além de bichos pastando pelos arredores. E assim porque o sertão é também um misto de riqueza e pobreza, de potentados fazendo vizinhança com um terreninho de duas tarefas e de moradias com três ou quatro vãos, quase sempre mostrando que da porta da frente adiante pouca coisa pode ser encontrada. E diferente de outras regiões sergipanas onde muitas árvores frutíferas são avistadas adiante das casas, no sertão apenas o umbuzeiro faz sombreamento ao homem cansado de sol.
As estradas, pois, são ladeadas pela riqueza e pela pobreza quase oculta nas suas moradias. Oculta porque dificilmente se avista uma porta aberta, pessoas sentadas nos sombreados, caminhando pelos arredores, lidando com uma coisa e outra. Ali há famílias inteiras com jovens, crianças, velhos e os senhores das moradias, mas dificilmente se avista um pé de pessoa numa janela, saindo à porta, tangendo um bicho. Parecem seres escondidos que vivem somente para o seu mundo, e um mundo que parece existente somente da porta dos fundos adiante, adentrando na mataria ou nos descampados distantes.
O carro no seu percurso e eu olhando e imaginando a vida de tais moradias, o jeito de ser e viver destes habitantes ocultos. Passa uma casinha e mais outra, todas parecidas. De barro ou tijolo, porém todas miúdas, pequeninas, com apenas porta e janela. Uma ou outra com um puxadinho à frente onde o telhado descendo um pouco mais forma um pequeno alpendre onde se avista um velho banco esquecido ou mesmo uma cadeira de balanço sacudindo sozinha. Uma porção de madeira deitada num canto, um tronco de umburana de muito uso, um silêncio intrigante.
O carro seguindo e eu imaginando o porquê de aquelas casas estarem quase sempre de portas e janelas fechadas. Uma ou outra assim permanece porque já abandonada pelos seus moradores, talvez saídos do lugar na última seca medonha, mas difícil compreender que ali existindo pessoas e tudo se mostra como se não existisse ninguém. Não se ouve uma voz, um grito, um aboio, uma canção cabocla num rádio, nada. Não se ouve um cachorro latindo, uma panela caindo, um feixe de lenha sendo jogado ao chão. Nada.
O homem geralmente sai para trabalhar, mas a esposa sempre fica cuidando dos afazeres da casa. Os meninos, quando não estudando nas escolas pelos arredores, ao menos deveriam ser avistados correndo de lado a outro, zanzando, brincando. Mas nem a dona da casa aparece nem a meninada corre atrás do gato ou do cachorro, brinca de ponta de vaca ou fica na beira da estrada vendo a estranheza passar.
É verdadeiramente um mundo de desolação e de silêncio instigante. Por que os moradores não abrem as portas para o sol entrar, para um sopro de brisa levar esperanças, para que a luz ilumine a vida? Lá dentro ocorre o desconhecido. Ou o conhecido de todo sertanejo: a contação do grão na cozinha, o fogão de lenha sendo preparado para receber a panela de barro, a mulher cantando uma velha canção em silêncio. E no quintal a visão do paraíso: uma galinha ciscando, um pé de mastruço, um varal estendido.
E quando a noite chega a chama amarelada do candeeiro ou o brilho da luz elétrica despontando pelas frestas das portas ainda fechadas. Ou mesmo abertas, pois o dono da casa, depois da luta do dia, entra e sai com uma xícara numa mão e na outra seu radinho de pilha. E na malhada o menino brincando de ser amigo da lua.


Poeta e cronista
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Grão de saudade (Poesia)


Grão de saudade


Do silêncio fiz bela canção
da noite fiz uma saudade
abracei-me a tanta emoção
que quase chorei de verdade

da canção fiz chegar tua voz
da saudade fiz suave carinho
e vivi todo aquele tempo de nós
construindo um mesmo caminho

nada mais fiz senão recordar
e sentir teu doce beijo de amor
como dói o sofrer por amar
e ser a flor sem o seu beija-flor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: palavras de quase-silêncio


Rangel Alves da Costa*


Gosto das palavras de quase-silêncio. O quase-silêncio das palavras é o mais audível e silencioso das palavras. Conversar sozinho, eis o quase-silêncio das palavras. Nada mais encantador, realista e verdadeiro do que o diálogo do sujeito consigo mesmo, ainda que sua voz seja ouvida como um diálogo qualquer. Há quem veja nisto um sinal de insanidade, de pouco juízo ou de maluquice mesmo. Contudo, diferentemente do imaginado, é no conversar sozinho que há o encontro entre o pensamento e a palavra, entre a imaginação e a verbalização e entre a voz interior e a expressão exterior. Ademais, as pessoas conversam muito mais sozinhas do que qualquer um possa imaginar. Quase todo mundo solta sua voz de quase-silêncio. Fala sozinho no banheiro, enquanto lava ou passa a roupa, quando está caminhando, quando está sentando ao entardecer na calçada, enquanto mira o horizonte e as vastidões do mundo tão vasto. Não são palavras desconexas nem acasos incompreensíveis, mas expressões que traduzem ideias claras. Talvez a boca não tenha encontrado um interlocutor à altura de palavras tão importantes que resolve se expressar sozinha, aos ouvidos do vento e da própria pessoa. Mas esta nunca ouve o que diz. Como a boca que se articula sozinha, também sozinhos os ouvidos deixam que tudo aconteça sem interferir nas suas razões. Melhor assim, pois nem tudo que o homem diz nem ele mesmo é capaz de ouvir.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 27 de julho de 2015

O SILÊNCIO TRISTE DA CATINGUEIRA


Rangel Alves da Costa*


Catingueira nunca foi árvore gorda, robusta, de tronco grosso e galhagem alentada. Pelo contrário, sempre magra, esguia, com tronco e galhos parecendo pernas e mãos de magrez sertaneja.
Catingueira também jamais se sobressaiu altaneira em meio aos arvoredos próprios das caatingas. Bela, altiva, imponente, mas miúda se comparada às titanias da umburana, do angico, do cedro, do bonome, do umbuzeiro.
Mas de beleza sem igual. Com o corpo reto que vai se retorcendo sem formar uma copa fechada, procura ser espaçosa o suficiente para que suas folhas miúdas bailem ao sabor da ventania que chega veloz dos descampados.
E de repente, quando chegam as primeiras chuvas, vão surgindo pequenas flores amareladas, de beleza somente comparável ao festim de cores apresentado pelas floradas dos caibreiros. Flores perfumadas, adocicadas, atraentes, verdadeiros assovios para abelhas e pássaros.
É no período chuvoso que abre suas janelas e portas para os convidados. Não só as folhagens novas e as flores brotando, mas pelos braços que parecem crescidos para acolher a fogo-pagô, o cabeça, o coleirinho, a nambu, o beija-flor e toda uma passarada sertaneja.
E então a catingueira bailava sua indisfarçável felicidade, cantarolava baixinho sua alegria, valsava leve o seu grandioso contentamento. Sentia-se reconhecida, admirada, amada e visitada por seres tão singelos naquele meio doloroso demais de vez em quanto. Sim, nas estiagens a dor, o sofrimento.
Desde o tronco à copa tudo parecia uma festa. Pelos inexplicáveis mistérios da natureza, nem mesmo os arbustos e árvores de maior porte eram tão visitados como a singela catingueira. Não se sabe se pelo perfume da flor ou pela maciez da folha nova, mas a verdade é que ali estava uma mesa farta e um salão suntuoso para festividade passarinheira.
E assim ano após ano, bastando que a chuvarada resolvesse chegar. Mas depois de uma invernada a catingueira começou a sentir algo diferente sobre suas folhagens e ao redor. Os pássaros rareavam, as abelhas haviam sumido, os seres da mataria não eram mais avistados como antigamente.
Logo pressentiu o pior, mas não sabia o que. E começou a entristecer mesmo tendo por cima de si um ou outro visitante. Entristeceu mais ainda quando mirou a paisagem ao redor e percebeu algo que ainda não havia se dado conta: a mata estava sendo devastada e apenas umas poucas árvores continuavam em pé.
Olhou com atenção por cima da terra e não avistou restos caídos pelo chão, apenas troncos cortados já quase perto da raiz. Aquelas árvores não haviam morrido, tinham sido mortas. E somente a mão do homem com o machado ou o facão para agir com tamanha brutalidade.
A estação seguinte e ao longo do ano se mostraram terríveis pela seca esturricando tudo. Como das outras vezes, sabia que suportaria mais aquela estiagem, mas talvez não suportasse aquela desolação da mata nua, aquele silêncio mortal e estarrecedor.
Ao invés de cantante, alegre, festiva, a catingueira se tornara na feição mais desoladora que podia existir. Continuar existindo apenas por existir não significava nada ante a solidão a qual estava relegada.
Os arvoredos de antigamente agora eram como fantasmas que ressurgiam como lembranças amarguradas. A mata cantava, farfalhava, vivia continuamente em festa. As flores, os frutos, as folhas, os bichos, os ninhos, tudo numa só família.
E agora somente um retrato na parede da natureza. Uma parede cinzenta, feia, carcomida, devastada. E na moldura apenas a catingueira na sua solidão de todos os dias. Até que um dia seja o seu último dia.
Assim foi com o último dia da onça, do tamanduá, do veado, da seriema. Igualmente o último dia da aroeira, da quixabeira, do cedro. Há o último dia de tudo. Sobre a terra, o homem age como um deus da devastação.
Como o homem sempre continuará. Certamente que da natureza somente restará o grão de areia na terra nua. Um deserto como dádiva de seu poder de destruição.


Poeta e cronista
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Amor de amar (Poesia)


Amor de amar


Nem chuva nem sol
por que o amor um girassol
manhã procurando arrebol
um barco avistando o farol

nem manhã nem anoitecer
por que o amor um entardecer
vindo em revoada para comover
a saudade que não quer sofrer

nem chegada nem despedida
por que o amor tem guarida
por toda a eternidade da vida
pois no coração sua sobrevida.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: a percepção do tempo que passa


Rangel Alves da Costa*


O tempo é o segundo ou o século. Ou a infinitude. Ele faz seu percurso alheio ao homem. Mas este não se desprende do compasso daquele. Segue seu curso sem perceber. O que é criança de repente já está adolescente, e rapidamente adulto e envelhecido. Contudo, o ser humano nunca percebe sua mudança de tempo. Até que avista rugas, o surgimento de cabelos brancos, alguns sinais de cansaço e das marcas próprias do peso dos anos, mas ainda assim insiste em não se dar conta de sua real idade, de sua caminhada, de quanto já envelheceu. A idade só é percebida através do outro, de outro ser humano, e geralmente quando este bem jovem. Então a pessoa olha para o menino já se tornando rapaz e diz que ainda recorda do seu nascimento, quando era de colo e criança chorona de não acabar mais. E daí começa a percepção de quanto o tempo já passou a partir daquele que vem fazendo seu percurso de crescimento. Mas não apenas isso, pois quando, depois de muitos anos, a pessoa pergunta quem este ou aquele era rapaz e é informado que é filho de um amigo seu, então a constatação do muito tempo que já passou e o quanto sua idade também avançou. Talvez já esteja velho, porém sem o espelho da compreensão dizendo que a vida é assim mesmo. Melhor envelhecer sem o espelho se quebrar antes do tempo.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 23 de julho de 2015

UM OUTONO


Rangel Alves da Costa*


O outono agora. Como as árvores que frágeis e entristecidas vão desfolhando, igualmente a paisagem emoldurada por ondo passo, aonde chego, onde estou.
As folhas vão perdendo a seiva, perdendo a cor, o viço e todo o encanto. Depois que o tormento rouba a essência, nada mais resta senão pender à espera da ventania.
Folhas são os sonhos, as esperanças, as alegrias, as promessas de vida e tudo aquilo que vai alicerçando a existência. Mas também tais folhas vão se esvaindo com as angústias, as tristezas, as desilusões.
Nada pode domar a natureza, a não ser suas próprias forças e seus próprios mistérios. Ninguém imagina que uma paisagem verdejante, com folhas vivas e farfalhantes, de repente possa ser encontrada com uma feição totalmente diferente: a palidez da existência.
A natureza humana, muito mais frágil, não suporta sequer as dores do acaso. Um dia feliz e cheio de contentamento não traz a certeza de uma noite confortada ao coração. Basta que o silêncio traga uma recordação ou uma saudade que tudo parece desandar.
Os pássaros pousam na árvore e nem imagina como ela estará diferente amanhã. No dia seguinte ainda a encontrará altiva, porém já com os sintomas de uma alma agonizante. Apenas é árvore, mas já sem aquela essência que alimenta os galhos, as flores, os frutos.
O ser humano também se sente fragilizado. Não está enfermo, não sente dores físicas, não se sente prostrado. Mas dói-lhe a alma, o espírito. Dói-lhe a sensação de perda, de sofrimento, de carência.
O vento da tarde faz a festa do arvoredo. As folhas dançam, cantam, vivem seu júbilo. Estão fortes, saudáveis, cheias de vida e de cor. E assim por que há vida nas folhas. Mas não viverão eternamente na festa dos dias. Os seus dias de tristeza também surgirão.
Não quer sofrer, o ser humano nunca quer sofrer. Mas muitos não compreendem que possuem apenas o nome e o sobrenome. E apenas isto. Todo o seu restante, tudo o que lhe guarnece, desde o corpo ao sorriso, nada disso é de serventia ao bel-prazer. Há outro dono de tudo isso.
As árvores bem sabem que vivem em ciclos existenciais. Conhecem bem o frescor e o perfume da primavera, os dias quentes e abafados do verão, as chuvas e as florações do inverno, bem como os padecimentos e aflições do outono. Mas é no outono que todo o seu viver é colocado ao sacrifício.
O ser humano vive seu outono sem precisar do percurso das estações. Igualmente à árvore também teme a sua chegada. E não após qualquer outra estação, mas a qualquer instante. Eis a diferença do outono do homem: chega devastador após um dia que mais parecia uma canção de primavera.
A árvore se suporta no seu tronco vasto, mas seus galhos perdem os seus adornos. É como se um braço se mantivesse sustentado um bem querido e de repente sente que terá de abdicar daquela vida. As folhas se desprenderão e cairão.
E o que é o homem? Como dito, de si mesmo só possui o nome e o sobrenome, pois quando se despede ainda ficarão tais identidades em alguma memória. Mas nada mais do que possui não tem outro dono senão o destino. E é o destino que faz o outono humano chegar a qualquer momento.
Então os galhos fecham os olhos para não chorar. Por mais que sustente as folhas, por mais que deseje permanecer ao lado delas, logo sentirá que tudo se desprendeu. Ou a ventania a tudo levou ou o chão em lápide resguarda as folhas mortas.
Uma saudade, uma tristeza, um problema difícil de ser resolvido, um amor desfeito, um desejo não realizado. Tudo dói na alma, atormenta o espírito humano. E mesmo as lágrimas não trarão alento à folha que é. E se atormenta sem saber o que fazer.
Até que o dono do destino torne aquele outono apenas como um sofrimento necessário ao fortalecer do ser. E o faça renascer novamente.


Poeta e cronista
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Ainda há tempo (Poesia)


Ainda há tempo


Não envelheci ainda
nem cansei na estrada
é que avisto um sombreado
e sei que preciso sonhar

não desisti de nada
nem me dei por vencido
é que avisto a razão das coisas
e preciso ouvir sua voz

não vou voltar agora
nem deixar de caminhar
é que avisto o passo de tudo
e aprendo a não ter pressa.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: aquele poema


Rangel Alves da Costa*


Aquele poema tinha razão. Eduardo Alves da Costa tinha razão. O seu poema “No Caminho com Maiakovski” tinha razão. O mundo atual está exatamente o que o poema já previa desde algum tempo. Mas não é a violência simbólica do poema, não o sentido político entremeando o poema, não é a crítica presente na escrita, mas o livro aberto da vida. É a violência violenta, a violência do medo, a violência do sangue, a violência da barbárie, a violência diante, do lado e por todo lugar. O poema diz que na primeira vez eles apenas passaram olhando a casa, da segunda vez olharam para dentro do muro, da terceira vez violaram o portão, depois entraram na casa, roubaram o cachorro, os sonhos, tudo. Mais ou menos assim. Alguma coisa diferente da realidade vivenciada por todos? Logicamente que não. A única diferença é que eles (os marginais) nem se dão mais ao trabalho de passar uma vez diante da casa para observar se o instante é propício ao roubo, pois já chegam entrando, violando, levando tudo. O que se pode dizer é que um passa a primeira vez e rouba uma coisa, outra passa em seguida e leva outra coisa, já outro chega depois para levar o restante. E a população simplesmente à mercê da bandidagem, da insegurança, do medo de até estar trancada dentro de casa. Quando a vida não se torna num reles poema de sangue.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 22 de julho de 2015

A solidão do mandacaru, da catingueira, do quipá...


Rangel Alves da Costa*


Numa mata nativa não há solidão. O mato fechado, virgem, ainda sem a presença humana, é dos bichos, das plantas, dos encantados, dos seres que encontram moradia por todo lugar. Tudo canta, tudo farfalha, zune, arrelia. E assim permanecerá até que chegue o primeiro desbravador abrindo picada, formando vereda, entrando pelas suas entranhas e rumando nas suas lonjuras. Então tudo começa a se modificar, a entristecer, a perder o jeito de ser apenas natureza.
Igualmente uma nação nativa inteira que é dizimada com a chegada do homem branco e suas doenças, fincando o pé de conquistador e de cobiça em terras secularmente imunes aos malefícios desconhecidos, bem assim o choque sentido pela natureza selvagem ante o novo que chega para se sobrepor a tudo. A luta entre presa e predador para sobrevivência dentro do reino animal dá lugar a um enfrentamento ainda mais feroz. E sempre desigual. O bicho agora passa a fugir é da mão do homem com sua arma ou seu facão de derrubar mundo inteiro.
Aliás, nada mais cruel e devastador que o uso e serventia que o homem dá à sua mão. E onde a mão do homem repousa, se lança ou se estende, logo ficarão as marcas da destruição. Poderia muito bem edificar ou conservar, mas sempre prefere destruir. E quando chega com objetivos de transformação da paisagem secular para assentar sua sobrevivência ou por mera exploração, então quase nada mais restará ao que é da terra como o próprio chão. A extinção dos animais e o desmatamento da mata nativa já começam aí, de modo vagaroso como o próprio tempo.
Mesmo que a natureza possua o dom de refazer-se por si mesma, impossível lutar contra a voracidade humana. Os animais e a vegetação da mata nativa procriam e renascem num ciclo próprio. Nunca precisou nem precisará do homem para existir em abundância. Mas tudo muda de contorno quando o forasteiro começa a pensar que aquele mundo é somente seu. Não só as plantas ressentem a sangria na veia como os bichos se espantam pelas ameaças. E na mente do homem a falsa concepção de que nenhuma consequência terá se destruir um pouquinho em meio a tanto. Um erro que pode vitimar de morte todo um habitat natural.
Assim aconteceu no sertão sergipano e noutros sertões nordestinos. Antes que as águas do Velho Chico trouxessem no seu largo leito de então os primeiros desbravadores, colonizadores que se transmudavam das paragens litorâneas rumos às terras inóspitas, toda aquela região parecia intocada. Terras a perder de vista, com poucos nativos fixados em locais distintos, uma vastidão natural com dono apenas nos simbólicos papéis das capitanias, sesmarias e concessões. E um lugar sem posse não pode ter outro proprietário senão aquele que o habita desde os primeiros tempos de tudo: os seres da natureza.
Desnecessário caracterizar o bioma sertanejo, vez que tão conhecido na mente de cada um, ainda que o avistado hoje não passe de feição insignificante se comparada aos tempos idos. Com efeito, de canto a outro havia uma natureza pujante, viva, habitada por onças, tatus, veados, tamanduás, teiús. E também por catingueiras, angicos, aroeiras, bonomes, cedros, quipás, juazeiros, craibeiras, umbuzeiros. E lar natural do mandacaru, do xiquexique, do cansanção e da urtiga, da cabeça-de-frade e do facheiro, dentre outras cactáceas. Um emaranhado de cipós, velames, macambiras, tufos, espinhos cortantes e flores surgidas na aridez.
Da beira do rio em diante existia uma verdadeira selva, fechada, quase impenetrável. E no meio da mata os habitantes dos galhos, das locas, dos arbustos, dos escondidos da macambira, das grutas nas pedras grandes, numa variedade de bichos em luta renhida na disputa pelos espaços e fazendo a natureza fervilhar. Mesmo em épocas de grandes estiagens, quando tudo acinzentava e a maioria das plantas se curvava na magreza da morte, ainda assim os animais encontravam abrigo nos arredores sombreados das grandes árvores sertanejas, aquelas que enfraquecem os galhos mas não se dobram pela secura escaldante.
Tempos, tempos, como diria a ventania que sopra sem encontrar folhagem para levar. Nada mais como antes, nem por ideia de aproximação. O que era grandioso se tornou empobrecido, o que era pujante perdeu sua altivez, o que era de exuberância singular tem de se conformar com um pé de pau ou outro que continua fincado nas terras de sempre. De sempre, mas agora tão devastadas pelo homem que abre na carne e sangra na raiz a dura etimologia do nome sertão: desertão.
Desertão, significando terras áridas, inóspitas, distantes. E o mais doloroso que agora uma terra tão devastada pelo homem que quase nada resta de planta, bicho, arvoredo. Clarões surgiram onde havia mata, silêncios profundos tomaram o lugar dos cantos passarinheiros e do rebuliço dos animais. Não que os bichos do sertão tenham sido extintos, pois expulsos pelo homem. Não que a mata tenha sumido numa seca maior, mas derrubada pela mão do homem. E o que se tem hoje é a solidão do mandacaru, da catingueira, do quipá.


Poeta e cronista
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Olhos (aos que talvez não possam ler) (Poesia)


Olhos (aos que talvez não possam ler)

Se meus olhos brilhassem
como um sol de verão
assim talvez clareassem
muito além da imensidão

os meus olhos sem sol
como a penumbra da tarde
é um triste mar sem farol
uma chama que já não arde

os meus olhos entristecidos
pela penumbra dos dias
são dois pássaros perdidos
entre as perdidas alegrias.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: imaginação e palavra


Rangel Alves da Costa*


A palavra, por mais realista que surja, jamais traduz a imaginação, o pensamento, a ideia. E quando é escrita então. Na escrita a palavra se esconde, se amedronta, fica querendo fugir. Mas há uma explicação: quando se escreve não se tem a liberdade de expressar o que vem à mente. Até que a pessoa se esforça, tudo faz para descrever exatamente aquilo enraizado no pensamento, mas sempre sai um tantinho diferente. E principalmente quando a escrita é literária, eis que já nasce direcionada. Então tudo complica. O escritor quer dizer uma coisa, porém sua construção não permite que seja assim. Tantas vezes lhe surge uma ideia tão bela que se desenvolvida daquele modo seria de magistral criação, mas se vê impedido pela forma, pela gramática, pela estética, pela suposição da aceitação ou não do leitor. Seja literária ou não, a verdade é que a escrita já nasce capenga. Acaso nascesse pura seria muito mais inteligível, vez que sentimento escrevendo emoção. Bastaria que o escrevente, em primeiro lugar, não procurasse rebuscar o que lhe surgiu tão singelo. Ora, se vai descrever um outono não precisa enveredar pelos idílios das quatro estações, em termos comparativos e complexos. Uma flor é uma flor. E por que se meter a descrever Versalhes? Não adianta. Se quero descrever uma casinha de cipó e barro tenho que avistar o cipó e sentir o barro. Ou faço assim ou sai diferente. Nunca me atrevo a inventar demais. Meu pensamento conhece o que seja beijo, minha boca um dia já sentiu sua presença. E não posso agora dizer sobre um ósculo relvado no lume.


Poeta e cronista
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terça-feira, 21 de julho de 2015

VOU MORAR NO MEIO DO MATO


Rangel Alves da Costa*


Os motivos são mais que óbvios, por isso vou morar no meio do mato. Quem gosta de cidade é fumaça, buzina, asfalto, barulho, violência, arrogância, brutalidade. E não sou estátua para suportar tudo isso.
Já caminhei demais por suas estradas, suas ruas, suas entranhas. Já esperei demais o sinal fechar para seguir, já me desgastei demais esperando o atendente para informar, já cansei demais em filas e mais. Por isso vou morar no meio do mato.
Cansa conviver com o mesmo nada, com a mesma pressa, com o mesmo passo, e para lugar algum. Não há destino que alegre a alma, cative o coração, torne o olhar um poeta e o coração um apaixonado. Tudo frio, tudo vazio. Por isso vou pro meio do mato.
Conviver com a cidade não foi uma experiência boa. Pensei que as pessoas poderiam ser cordiais, imaginei que de vez em quando um sorriso surgisse numa face qualquer, pensei que poderia esquecer o portão aberto. Mas em tudo a desilusão. Por isso vou morar no meio do mato.
Na cidade nada é de seu dono. Na cidade tudo é do outro, do bandido, do assaltante, do marginal. Ele tem a chave da porta, tem a chave do carro, tem a mão para afanar o que quiser. Ele tem a faca, tem a arma, tem a ameaça, tem tudo para a prática do mal. E o que possui o cidadão?
Não, não fico mais aqui, vou embora pra longe, vou morar no meio do mato. A cidade também tem muito bicho, mas de uma linhagem diferente. Pelas ruas é fácil encontrar jumento, burro, cachorro, gambá, lobos famintos. Bicho estranho tem um bocado, tem até demais. Também sucuri e caninana.
As cidades crescem, se desenvolvem, e se diminuem em tudo. Falta afeto, falta amizade, falta companheirismo, falta fraternidade. Cada um por si e todos contra todos. Não vivo numa guerra assim, não quero mais viver jogado às feras. Quem uiva com os lobos que viva sua solidão. Eu não.
Ademais, sou pássaro vindo de outro ninho e bem distante daqui. Sou quase um forasteiro que não quer mais ficar, até mesmo porque a permanência vai sangrar os meus sonhos, acorrentar minhas esperanças e mortificar meus desejos. Preciso de uma porta e de uma janela e não de cimento encobrindo a vida.
Preciso pensar, preciso refletir, preciso viver. Preciso estender a cadeira de balanço debaixo do sombreado e esperar a brisa da tarde chegar. Preciso tomar café torrado feito em fogão de chão, preparar cuscuz de milho ralado e saborear da manteiga da terra. Nada disso encontro aqui, e se tem é falsificado como o viver.
Preciso acordar cedinho e caminhar pelos campos, cortar veredas, colher o araçá bem distante. Há uma fonte ou um riachinho, e também uma pedra grande onde o corpo estendido esquece tudo ao redor para encontrar a paz. Ouvirei um canto passarinho, avistarei um calango correndo ao redor, cantarei a canção da existência a cada alvorecer e anoitecer.
Não, não irei para Pasárgada e lá ser amigo do rei. Não, não irei para Macondo e lá ser amigo dos Buendía. Não, não irei a nenhum lugar idílico ou fantasioso. O que quero ter é chão de verdade e a certeza de que algum sossego ainda existe em meio ao caos da existência.
Uma rede de armar, uma esteira de chão, um caderno de riscado, um radinho de pilha. A lua que desce, o sol que se espalha, tudo me satisfaz. Não quero nada além de dias preguiçosos, lentos, sem pressa alguma. Não quero nada além de poder adormecer e sonhar apenas com o possível de acontecer.
Já sinto o calor ensolarado do dia e a aragem do entardecer. Na noite uma frieza boa de abraçar a lua e contar vaga-lumes como se fossem estrelas. E buscar na voz do silêncio qualquer canção que seja de louvação daquele mundo que quero ter.


Poeta e cronista
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O artista (Poesia)


O artista

Meu amor me fez artista
meu amor me fez artesão
um dia fui um flautista
um dia moldei barro do chão

meu amor inventou de ouvir
uma antiga canção de ninar
então na flauta fiz traduzir
a doce música de acalantar

meu amor quis artesanato
e só aceitava de barro batido
então procurei um regato
para o enfeite mais bonito

faça assim não meu amor
não sou flautista nem artesão
apenas sei cultivar a flor
para enfeitar o teu coração.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: lua e candeeiro


Rangel Alves da Costa*


Belarmino mora distante. Nas lonjuras do mundo, pois nas brenhas do mais matuto dos sertões mais matutos. Mora sozinho num casinha de cipó e barro. Três vãos apenas: a entrada, a cozinha e o quarto de dormir, mas quase tudo numa só parede caindo aos pedaços. Bebe água de moringa, cozinha em panela de barro. Quando tem o de comer. Quando não tem entra na mataria e vai catar fruta silvestre, raiz macia, uma rolinha ou um preá. Não tem exigência, come qualquer coisa, mas gosta mesmo é de farinha seca com rapadura. E também com um gole de café. Já não recorda o tempo que comprou roupa nova, que calçou sapato ou usou lavanda. Depois que enviuvou perdeu o gosto de quase tudo, menos do seu sertão. E é o sertão que não o faz desandar de seu pedaço de chão. Gosto do zunido da mataria, do bicho afoito correndo de canto a outro, do amanhecer e do anoitecer. De toda hora sertaneja. Enxerga a vida através de sua televisão: a paisagem adiante, e apenas isso. Sabe quando vai chover, sabe quando a seca vai chegar derrubando tudo, sabe quando vai apenas serenar. Conhece o seu mundo. E vira profeta, sábio e filósofo após o entardecer. Quando acende o candeeiro, a chama amarelada ilumina uma face plena de sabedoria. Ali o retrato do conhecimento do mundo. Quando sai pra malhada e senta no toco mirando a lua, então aquele clarão contorna as rugas de muitos caminhos, muitas estradas, mapa da existência. E debaixo da lua só sai quando ouve a cantiga tão esperada da ventania. Depois se ajoelha perante a luz do candeeiro e reza uma prece pedindo para amanhecer. Apenas continuar vivendo é o que quer.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 20 de julho de 2015

LAMPIÃO FOI O MELHOR ATOR DE SI MESMO


Rangel Alves da Costa*


O amigo Geraldo Júnior, administrador do grupo “O Cangaço” no Facebook, após mostrar três cartazes de filmes sobre o cangaço, lançou a pergunta: “Em sua opinião, qual desses três filmes sobre a vida de Lampião foi o melhor?”.
Os três cartazes mostrados são dos filmes “Meu nome é Lampião” (1969), com Milton Ribeiro e direção de Mozael Silveira; Lampião, O Rei do Cangaço (1964), com Leonardo Vilar e direção de Carlos Coimbra; e a minissérie “Lampião e Maria Bonita” (1982), com Nélson Xavier e Tânia Alves, com direção de Luiz Antônio Piá e Paulo Afonso Grisoli.
Para além das opiniões pessoais, vez que tanto os filmes como a minissérie possuem méritos que devem ser reconhecidos, prefiro modificar o questionamento feito para propor outro: “Qual ator melhor representou Lampião?”. Pergunta, aliás, que já foi proposta no grupo de estudos cangaceiros.
Como se sabe, a saga de Virgulino e seu bando já foi levada ao cinema e à televisão mais de uma dezena de vezes. Quando não tem Lampião como personagem principal ou mesmo o cangaço como trama de fundo, utiliza-se da ficção para mostrar a valentia de um povo rude frente ao poder opressor. Jagunços, cangaceiros, coronéis, beatos, renegados, bandoleiros, todos fazem parte desse contexto nordestino mitificado na dramaturgia nacional.
Neste sentido, célebre é o filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), com direção de Glaubert Rocha. É uma trama cujo enredo explora o tema cangaço sem se ater à verdade dos fatos, pois fazendo da ficção o espelho do confronto entre o bem e o mal, ou seja, entre os explorados e a implacável perseguição dos exploradores, através de Antônio das Mortes. Do mesmo modo “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro”, também de Glaubert Rocha. No filme, Antônio das Mortes é contratado para dar fim a uma nova liderança cangaceira surgida nos sertões nordestinos.
Além dos clássicos de Glaubert Rocha, o cangaço foi explorado sob diversas vertentes, mas quase sempre através do espectro dualístico do bem e o mal ou do bem contra o mal. Há “O Cangaceiro” (1953), dirigido por Lima Barreto; “Grande Sertão” (1965), dirigido por Geraldo Santos Pereira e Renato Santos Pereira; “Quelé do Pajeú” (1969), dirigido por Anselmo Duarte. E também “Corisco e Dadá” (1996), de Rosemberg Cariry; “Baile Perfumado” (1969), de Lírio Ferreira e Paulo Caldas; “Corisco, o Diabo Louro” (1969), de Carlos Coimbra. Muitos outros títulos possuem o cangaço como trama de fundo, sendo que até mesmo pornochanchadas e filmes eróticos se basearam na vida cangaceira.
A televisão sempre foi buscar nos temas nordestinos a certeza de sucesso. Assim ocorreu com “Mandacaru”, novela exibida pela TV Manchete entre os anos de 1997 e 1998, e reexibida pela TV Bandeirantes em 2006. Faz do mandacaru a simbologia para os conflitos numa região nordestina conflagrada pelo temor dos cangaceiros desgarrados após a morte de Lampião e Maria Bonita. Mais recentemente a TV Globo exibiu “Cordel Encantado” (2011), narrando uma típica saga sertaneja de amores marcados por confrontos familiares, jagunços, coronéis, cangaceiros e fanatismos.
Contudo, o melhor diretor de todos os filmes já produzidos acerca de Lampião, o verdadeiro, chama-se Benjamin Abrahão Botto, um libanês radicado no Brasil, ex-secretário do Padre Cícero, e que após a morte deste se enveredou pelas caatingas acompanhando o bando de Lampião. Abrahão havia se encontrado com Lampião em 1926, quando este chegou a Juazeiro para receber a patente de Capitão. Fotografado e filmado, e vaidoso como era, certamente que Lampião nem pensou duas vezes quando o fotógrafo pediu permissão para registrar o cotidiano do bando.
A partir da lente e da filmadora de Abrahão, não há como não ter a certeza que Lampião foi quem melhor representou a si mesmo. A cada fotografia ou a cada película, o que se observa é um Lampião preocupado com a pose, com a aparência, com o enquadramento, com a imagem para a posteridade. Não há cena em que o Capitão não esteja se mostrando como desejaria ser conhecido no mundo exterior.
Lampião era verdadeiro modelo fotográfico. Mostra-se imponente caminhando pelas veredas sertanejas, quando aponta sua arma para ser filmado e fotografado, quando se coloca perante cartas ou jornais para o flash do libanês. Não só Lampião, mas todo o bando gostava de ser fotografado. Aquela fotografia de Maria Bonita sentada entre os cachorros Ligeiro e Guarany, e Lampião em pé com uma revista à mão, faz recordar um instantâneo da nobreza europeia num belo jardim de inverno.
Mas não, apenas os carrascais nordestinos, a dureza dos tempos permitindo um instante de rara beleza. E mais um exemplo do quanto humano havia também no cangaço. Um rei e uma rainha do nosso mundo. Nosso tão belo mundo nordestino.


Poeta e cronista
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Nuvem (Poesia)


Nuvem

E por que o amor
era sonho mais alto
voei além da nuvem
e não pude voltar

onde será que estou
onde o amor está?

sonhei ser passarinho
com asas de vento
e fui ao firmamento
e não pude voltar

onde será que estou
onde o amor está?

acaso eu retorne
e do sonho acordar
sabendo o teu nome
já não quero voltar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: pelo viés da vida


Rangel Alves da Costa*


A vida tem seu viés. Os caminhos são diferentes, as pessoas desiguais. A pobreza é viés caminhando ao lado da riqueza, a miséria está na mesma estrada que a bonança. Porém, uns com tanto, outros sem nada. No mesmo ser humano o contraste e o absurdo. Uns com ouro nos dedos das mãos e outros com lata velha servindo de panela. Mas há de ser sempre assim. O que não muda é o sentimento. Ou muda, para se ter a certeza de que quanto mais corações enaltecidos de pessoas empobrecidas mais corações insensíveis de pessoas poderosas. Mas há de ser assim, pelo viés da vida há de ser assim. Tão pobre e tão feliz. Tão rico e tão infeliz. Você gostaria de uma xícara de café ao lado da humildade ou um chá na mesa da arrogância? Você gostaria de um proseado ao entardecer ao lado de um singelo sertanejo ou o encontro com aquele que sempre o desconhece? Na mesa do pobre não há sobremesa nem entrada, quando muito pão do dia a dia. E quando muito. Mas é neste viés que a vida se mostra verdadeira. E tão verdadeira que mais humana, mais amigueira, mais cordial. A porta e a janela nunca estão fechadas, basta chegar para encontrar um copo d’água na sede, um naco de qualquer coisa na fome, um alento na alma. Não dá mais porque não tem. Mas nem precisa oferecer tanto. Neste viés da vida, nesta vida enviesada, basta a certeza de que ainda existem pessoas de carne e osso. E também coração.


Poeta e cronista
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domingo, 19 de julho de 2015

UM POEMA E UMA PAISAGEM QUE É POESIA



Paulino, um primo meu que mora em Poço Redondo, colocou um poema de minha lavra numa fotografia de sua autoria. O resultado ficou numa beleza sem igual. Apreciem abaixo:




DUAS CIDADES


Rangel Alves da Costa*


Desde 1974 que me divido entre duas cidades: Aracaju e Poço Redondo. Em Poço Redondo nasci no mês de março de 63 e onze anos após tive de deixar o sertão para estudar na capital sergipana. Desde então fiquei dividido entre as duas localidades tão diferentes e contrastantes.
A bem dizer, fui quase forçado a sair de Poço Redondo. Naquela época, toda família que tivesse condições não pensava duas vezes em enviar os filhos para estudar num centro mais avançado e possibilitar o sonho de uma boa formação. Foi nesta perspectiva de estudo que tive de calçar sapato e abdicar da vida de menino sertanejo sem se preocupar em pisar espinhos.
Ainda hoje não me sai da memória aqueles doces anos da vida, de meninice vivida pelas ruas empoeiradas, de correrias pelos descampados, das brincadeiras pelo mato, no riachinho, debaixo do sol e da lua. Inesquecíveis a festança debaixo das chuvaradas, os amigos pulando cercas em busca de fruta madura, as brincadeiras com ponta de vaca e os jogos de botão pelas calçadas.
Cresci, quase envelheci, mas Poço Redondo não mudou muito. Não que não tenha se desenvolvido em muitos aspectos. Hoje a maior parte das ruas está asfaltada e a cidade cresceu pelos arredores. Naqueles idos se falava em ruas, Rua de Baixo, Rua de Cima, Praça da Matriz, e hoje existem bairros, conjuntos, uma feição totalmente diferente de antigamente.
Quando afirmo que não mudou muito é no sentido de minha visão pessoal sobre a cidade. Não consigo avistar Poço Redondo senão como aquela minha cidadezinha de antigamente, pois sempre procuro reencontrar aquele jeito singelo de viver, aquela feição de humildade entre todos, aquele lugar familiar e onde todos eram amigos, compadres e compartilhando os mesmos sonhos e esperanças.
Por isso mesmo que quando visito o meu berço de nascimento, ainda me vejo diante de uma cidade muito diferente da que se mostra agora. Na verdade, ainda me vejo menino e ainda procuro avistar os amigos conversando às sombras dos pés de pau, ainda quero encontrar o que não existe mais, ainda quero avistar a meninice correndo atrás de uma bola, jogando bola de gude, ainda quero sentir a humildade em cada porta e em cada feição.
Mas os tempos são outros. Poço Redondo foi tomada de forasteiros e mais da metade da população não tem qualquer raiz fincada no lugar. Muitas pessoas desconhecidas, vizinhos que não se conhecem, poucos os cumprimentos afetuosos. Ora, sou de um tempo de comadres e vizinhos pelas calçadas ao entardecer, velhas senhoras fazendo renda, debulhando feijão de corda, conversando sobre as doces amenidades na vida.
Talvez eu consiga viver o novo sem esquecer o passado. Sorte minha. Por mais que Poço Redondo se transforme, cresça e se desenvolva, ainda assim continuarei avistando meu lugar de antigamente, de um passado tão belo como cativante. O asfalto de hoje não me fará esquecido das ruas de paralelepípedo ou pedra bruta, os conjuntos de hoje não me farão esquecidos da cidade pequenina e com aquelas ruas de casas simples e portas sempre abertas.
Mas com Aracaju é diferente. Apenas vivo, apenas moro, mas não sou de Aracaju. Já são cerca de quarenta anos convivendo com seu dia-a-dia, mas ainda assim tão ausente como se jamais tivesse chegado um dia. Inegável sua beleza, suas praias, seu jeito ainda interiorano de ser, mas não consigo me acostumar com o que pouco tem a oferecer a quem se acostumou a amar a vida e o bucolismo sertanejo.
Caminho pelas ruas de Aracaju sem a emoção que desejava sentir. Apenas ando, apenas passo, apenas sigo. Gostaria de ter segurança para passar tardes inteiras na Ponte do Imperador ao redor das águas, avistando a Barra e refletindo sobre a vida. Gostaria que houvesse ao menos um banquinho na praça defronte a Catedral. Gostaria que Aracaju não perdesse sua feição interiorana sem oferecer aos seus o prazer de conviver com sua natureza.
Assim, moro em Aracaju como um bicho forçado a fugir de sua mata. Por isso que me refaço inteiro quando retorno ao sertão. E quem tem o sertão na alma jamais se acostuma com o amanhecer noutro lugar.


Poeta e cronista
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