SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

NÃO ME ESCONDA NADA



*Rangel Alves da Costa


Eu nem precisava dizer isso, mas eu sei que você sabe que eu sei. Você nunca me escondeu nada, é verdade. Contudo, coisas existem que nem você diz a si mesma. E sobre tudo isso eu sei.
De sua boca nada ouvi. Muito você já me falou sobre sonhos, desejos, aspirações, porém nem tudo. Ninguém diz tudo o que sabe ou o que sente. Como dito, nem você mesma sabe tudo sobre tudo o que desejou. Mas eu sei.
E sei por que leio no seu silêncio, leio no seu semblante, leio no seu olhar, leio no seu passo, em tudo que há em você. Observo o seu jeito de sentar, de andar, de mirar o horizonte, de olhar para o vazio, de olhar pra mim.
Sei de sua mudez na palavra e no grito de seu silêncio. Sei das linhas e entrelinhas de tudo o que diz e até daquilo que tem vontade de dizer e não dizer. Por que sei? Não significa que você seja previsível, mas é que aprendi a ler seu livro: a sua vida.
Não precisava ter me dito nada, como de fato não disse. Mas basta chover e você se torna em verdadeira tempestade, em terrível tormenta. Sei bem que se revira por dentro, que faz tudo para não chorar. E acaba provocando um efeito contrário, pois mostra tudo o que sente.
Nada lhe entristece mais que dia chuvoso. Seus olhos, mesmo sem uma lágrima sequer, choram muito mais que a água escorrendo pela vidraça. E nem precisa se aproximar da janela para eu saber que você queria mesmo era estar nua e de braços abertos do lado de fora, encharcada, entregue ao tempo.
Menina, menina, eu sei o quanto representa cada pedacinho que ainda guarda da infância e da meninice. Sei onde sua boneca de pano fica guardada e que também ainda brinca e conversa com ela. Sendo sua amiga e confidente, também sei que chega a chorar com ela deitada no colo.
Mas também seu sorriso grande tendo ela enlaçada aos seus braços. Talvez recordando as traquinagens da meninice, as vezes que deixou a coitada da boneca completamente encharcada de banho da biqueira. Colocava no canto da casinha uma vassoura e depois pedia para que ela varresse a sala inteira.
Contudo, o mais importante é o que leio sempre nos seus olhos. Por isso mesmo que desde muito já não pergunta se ama, se me quer, se me deseja. Tudo está escrito no seu olhar. E por isso mesmo tanto amo você. Tudo na certeza infinita de um imenso amor revelado e guardado dentro do seu coração.
Leio sua tristeza na sua letra trêmula. Leio sua alegria na forma como limpa a casa e ajeita os livros da estante. Sei que não está bem se não cuida de cada cantinho e de cada coisa que tanto gosta. Não precisa me dizer nada quando eu a encontro debruçada no umbral da janela e mais adiante um por do sol.
Também leio o doce poema que de repente avisto nas páginas do seu silêncio. Estrofe a estrofe, na verdade tudo eu sinto do seu sentimento. Uma vontade imensa de ser cais, de ser onda de mar, de ser escrito na areia, de ser brisa que sopra ao entardecer.
Por tudo isso eu digo e sinto o que em você não consegue se esconder. Mas o que eu mais gosto é que você sabe que eu sei tudo de você, mas ainda assim nunca reclamou. E talvez também saiba de mim tudo daquilo que jamais revelei. Somos iguais, então. Um no outro na compreensão.
Mas somente sei por que você me deixou ler o seu livro. E por isso mesmo cuido dele como obra rara em minha vida.


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Lá no meu sertão...


Bonsucesso, caminho do rio...





Minha menininha (Poesia)



Minha menininha


Imensa mulher
e tão pequenininha

assim tão minha
minha menininha

parece uma flor
uma bonequinha

pequeno bibelô
não deixo sozinha

vem brincar comigo
minha menininha

não és de mais ninguém
tão minha e minha.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – da solidão



*Rangel Alves da Costa


Gosto de solidão. Juro, gosto mesmo de solidão. Ora, somente a solidão para me fazer reencontrar comigo mesmo. Ademais, através dela, da solidão, tenho mais tempo pra tudo e tudo contemplo sem correria ou pressa. Ora, a solidão é meditativa, é reflexiva, é filosófica e verdadeira. É espelho e revelação, é certeza sem ilusão. Na solidão, ou através dela, trago a saudade sem ligeireza ou medo, trago o irrealizado como possibilidade de ter. Na solidão eu abro e reabro os cadernos, folheio as páginas, risco e rabisco, deixo passado e presente como realmente desejo ter. Na solidão contemplo meus erros, meus deslizes, minhas besteiras. Pergunto-me por que fiz isso ou aquilo e passo a ter certeza se vale a pena fazer novamente. tenho mais tempo pra chorar, se quero chorar. Tomo mais vinho, se quero beber. Morro e velo a mim mesmo, se quero morrer. Sei tudo o que faço, passo a passo. E se fecho a janela então. Então me entrego de vez à solidão.


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quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

ANTÔNIO CONSELHEIRO EM SERGIPE



*Rangel Alves da Costa


Já estava na altura de seus 44 anos e 23 anos antes de sua morte no Arraial de Canudos, quando Antônio Vicente Mendes Maciel, o emblemático Antônio Conselheiro, passou pelas terras sergipanas, cruzando das Alagoas ao território baiano. Segundo Euclides da Cunha em seu “Os Sertões”, de Pernambuco ele passou ao sertão sergipano, mas certamente passando por território alagoano.
Ora, quando pisou em solo sergipano, lá pelos idos de 1874, foi exatamente às margens do São Francisco, em Curralinho, povoação ribeirinha em Poço Redondo, sertão sergipano. E no outro lado do rio está Alagoas. Acaso tivesse chegado pela região interior sergipana, atravessado os carrascais como depois fariam Lampião e seu bando, certamente que outras localidades teriam sido visitadas nos seus ofícios de pregação, de construção e reconstrução, de deixar marcos com feição religiosa na sua passagem.
O revoltado peregrino nasceu em 13 de março de 1830, na vila de Campo Maior, no município cearense de Quixeramobim, vindo a falecer a 22 de setembro de 1897. Inteligente, profundo conhecedor dos ensinamentos bíblicos, porém infortunado no amor, vez que sua jovem esposa o abandonou num gesto de traição, daí em diante procurou curar seus males interior e suas revoltas através de peregrinações, chegando a formar um séquito numeroso e de abnegada crença em seus poderes místicos e sagrados. Em Canudos, um arraial que chegou a ter mais de dez mil habitantes (falam em muito mais), e onde se findou sua  rebelde luta, restou plenamente demonstrada sua grandeza de líder.
Mas foi, pois, no ano de 1874, que o Conselheiro e seus fiéis seguidores marcaram passagem e presença no estado de Sergipe. Vindo de Pernambuco e passando pelas Alagoas, atravessou o Rio São Francisco, na divisa com Sergipe, e a partir do solo sergipano abriu caminho até a Bahia, onde passaria a atuar com mais veemência. Nas terras baianas, primeiro se fixam no norte, no Arraial do Bom Jesus (Vila de Itapicuru-de-Cima), em 1874, e depois no Arraial do Belo Monte, em Canudos. Também é dessa data, mais precisamente no mês de novembro, que o Jornal “O Rabudo”, editado em Estância, noticia a respeito do missionário nas terras sergipanas. Por aqui, sua alcunha era Antônio dos Mares. Diz o jornal:
“Há seis meses que por todo o centro desta Província e da Província da Bahia, chegado (diz ele) do Ceará, infesta um aventureiro santarrão que se apelida por Antonio dos Mares. O que, a vista dos aparentes e mentirosos milagres que dizem ter ele feito, tem dado lugar a que o povo o trate por S. Antônio dos Mares. Esse misterioso personagem, trajando uma enorme camisa azul que lhe serve de hábito a forma do de sacerdote, pessimamente suja, cabelos mui espessos e sebosos entre os quais se vê claramente uma espantosa multidão de bichos (piolhos). Distingue-se pelo ar misterioso, olhos baços, tez desbotada e de pés nus; o que tudo concorre para o tornar a figura mais degradante do mundo”.
No seu percurso, já acompanhado de fiéis, procurava estabelecer as diretrizes de um mundo nascido de sua imaginação, mas também reflexo da realidade encontrada na pobreza, nas injustiças e nas opressões nordestinas. Tendo como grande inspiração os feitos peregrinos do Padre Ibiapina, que realizava obras de caridade por onde passava, o Conselheiro se armou dessa força perante os humildes, sofridos e injustiçados sertanejos, para prosperar e cruzar caminhos com seu exército de fanáticos seguidores. Tarefa nem sempre fácil, pois perseguido, tratado pelas autoridades como um louco e até prometido para ser levado a hospício. Mas ele tinha um sonho, que era fundar uma comunidade solidária. Conseguiu, mas caro pagou pela sua afronta ao poder.
Nas suas andanças por Sergipe, o Conselheiro passou por Poço Redondo, Itabaiana, Riacho do Dantas e Cristinápolis, dentre outras localidades. Em artigo esclarecedor (“A Passagem de Antônio Conselheiro por Itabaiana”), o médico e escritor Antônio Samarone referencia Euclides da Cunha para dizer: “Dos sertões de Pernambuco passou aos de Sergipe, aparecendo na cidade de Itabaiana em 1874. Ali chegou, como em toda a parte, desconhecido e suspeito, impressionando pelos trajes esquisitos — camisolão azul, sem cintura; chapéu de abas largas derrubadas, e sandálias. Às costas um surrão de couro em que trazia papel, pena e tinta, a Missão Abreviada e as Horas Marianas”.
Noutras localidades sergipanas, também conhecida a passagem do revoltado cearense. Neste sentido a afirmação de José Calazans (“O Séquito de Antônio Conselheiro”, Revista FAEEBA, nº especial (Canudos), 2ª. ed.,jan / jun, 1995) de que em Sergipe o Conselheiro e seus fanáticos seguidores realizaram muitas obras, levantando muros de cemitérios, bem como construindo e levantando capelas. “Não foi bem sucedido em Simão Dias e Lagarto, onde os respectivos vigários José Joaquim Luduvice e João Batista de Carvalho Daltro (padre Data) proibiram suas prédicas”. Foi bem recebido, entretanto, na vila de Riachão do Dantas, onde pregou para uma multidão na Praça da Matriz. “Da Vila, seguiu para o povoado Samba, hoje Bonfim, também em Riachão, onde construiu a capelinha e o cemitério da localidade”. Diz ainda Calazans que foi de Riachão do Dantas que saiu o maior número de sergipanos que seguiram o Conselheiro.
Ainda que não tivesse se alongado por mais localidades, vilas e povoações de Sergipe, destas acorreram inúmeros seguidores às hostes conselheiristas. Conforme ainda afirma José Calazans, após a guerra de Canudos constataram que muitos enfermos eram oriundos de Itaporanga, Itabaianinha, Tobias Barreto (Campos), Geru, Cristinápolis (Vila Cristina). Somente os baianos superaram os sergipanos em número de seguidores. E tudo pela atração mítica, profética e até endeusada daquele Santo Imundo. Talvez um lunático, mas certamente um visionário.


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Lá no meu sertão...


Dona Cenira e Dona Domingas: 
a beleza das rendeiras de Poço Redondo, no sertão sergipano



Num só (Poesia)



Num só


Juntados assim
vivemos nós
nenhum sozinho
nada a sós
palavras ecoadas
em nossa voz
pois já não sou eu
assim atroz
já não é só você
triste albatroz
agora somos dois
nós dois em nós
e cada um do outro
um porta-voz
para dizer ao mundo
que não somos sós
pois enlaçados
nós em nós.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a arte de meu povo



*Rangel Alves da Costa


A ARTE DE MEU POVO - Renda rendeira em Cenira, arte da renda de bilros que se admira. Mãos que tracejam a almofada, seguindo o desenho como estrada, nos dedos os espinhos fazem sua jornada e logo vai nascendo a florada. Dona Domingas também faz assim, como jardineira ao labor do jardim, na maestria e cuidado sem fim, para gestar o adorno do tecido em cetim. Na renda de bilros e no povo a arte, raiz de um saber que o tempo não fez descarte e que continua no sertão como baluarte. Então viva a rendeira e a renda, a tão nobre arte que no coração se faz prenda!


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terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

“O BICHO” DE MANOEL BANDEIRA E A DITADURA DE MADURO



*Rangel Alves da Costa


Se vivo estivesse, certamente o poeta Manoel Bandeira teria sua obra escorraçada e proibida na Venezuela. Seu poema “O bicho” passaria a ser inimigo do regime bolivariano e a sua declamação seria motivo de pena de morte, de fuzilamento em paredão.
Ora, nada diferente do que ocorreu com o jornalista Jorge Ramos, da Univision. O jornalista foi mostrar ao ditador um vídeo onde a população estava comendo lixo e prontamente teve seu material confiscado e hoje o próprio foi deportado.
Quer dizer, o ditador se sentiu afrontado pelo fato de o jornalista mostrar que o seu povo estava passando fome e comendo lixo, nos mesmos moldes de bichos vasculhando lixões para se alimentar. E o poema de Bandeira trata exatamente disso:
“Vi ontem um bicho na imundície do pátio, catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa não examinava nem cheirava: engolia com voracidade. O bicho não era um cão, não era um gato, não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem”.
Na Venezuela, o bicho forçadamente gestado pelo desumano e insensível Maduro é também humano e tem que vasculhar restos, lixões e porcarias, para se alimentar. E sem a certeza de que conseguirá sobreviver em meio às atrocidades de uma tirania tão perversa quanto assassina.
Com efeito, o regime bolivariano imposto na Venezuela, aliado ao ditatorialismo tirânico de seu ainda mandatário maior, afeiçoa-se muito mais a um governo de extermínio populacional do que qualquer outra coisa.
Não seria errôneo dizer que só não está passando pelas agruras da fome, da falta de medicamentos e por todo tipo de sofrimento e aflição, aqueles que continuam sustentando o regime em troca de benesses.
A cúpula militar certamente se farta de carne de primeira e do bom e do melhor. A cúpula do judiciário se refestela com mesa farta e contas polpudas. A cúpula administrativa e da bajulação também não deixam de ser guarnecidos com o que há de melhor. O Palácio Miraflores continua esbanjando luxo, fartura e egocentrismos.
E o povo, o povo lá fora, desde o profissional liberal ao homem comum? Este está marcado para morrer. E morrer de fome, morrer por falta de mínima assistência, por falta de remédios, pela punhalada da desesperança e do medo. Crianças espalhadas em lixões, jovens e adultos brigando por sacolões de lixo, todos ávidos por algum alimento. E o que mais dói: sofrer calado e morrer calado!
Não há como fugir, não há como sair de debaixo das botas da tirania. Qualquer tentativa de salvação da própria vida, através de uma fuga desesperada, será motivo para a prisão e o esquecimento. Quer dizer, na Venezuela atual não há salvação. Para se manter no poder, o sofrimento do povo não tem qualquer importância. E o povo deve ser mantido prisioneiro no seu próprio país para que o tirano se regozije de continuar mantendo o poder e a ordem sobre tudo.
Daí que, se vivo estivesse e avistando as infames imagens da Venezuela e seus seres famintos e desesperados em meios aos restos e aos lixões, o poeta Manoel Bandeira certamente diria: “Meu Deus, aqueles bichos são homens!”.


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Lá no meu sertão...


No velho Chico...





Ela é minha (Poesia)



Ela é minha


Ela é minha
sei que ela sai
sei que se esconde
sei que custa a voltar
mas sempre volta
então ela é minha

ela me ama
e também me desama
a gente se inflama
e de tudo reclama
mas acalma na cama
para depois sumir
e depois voltar

deixo a porta aberta
ela sempre volta
ela não vive sozinha
ela é minha.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - soluços noturnos, travesseiros encharcados



*Rangel Alves da Costa


Soluços noturnos, travesseiros encharcados. Parece coisa de novela, mas não. É tudo verdade. Comprovar é difícil, pois lágrimas nos escondidos, nos noturnos adormecidos, nos quartos fechados, entre cobertas e fronhas, debaixo e por cima de travesseiros. As dores e os soluços das saudades. As aflições e os prantos dos desamores. As angústias e os lutos pelas ausências. As tristezas pelo silêncio gritante, pela chuva melodiosa que cai, pela música ao longe, pela poesia inacabada no caderno ao lado da cama. Que não se busque outras explicações. Cada íntimo encontra sua própria razão. E somente a noite para decifrar a extensão de cada dor e a infinitude de cada soluçar e de cada lágrima escorrida.


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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

OS MENINOS DO RIO



*Rangel Alves da Costa


As águas são franciscanas, são ribeirinhas, nos espelhos molhados e resplandecentes do Velho Chico em Bonsucesso. Bom sucesso, Bonsucesso!
Que tenha bom sucesso no viver às margens deste rio que se alonga como veia de vida! Assim se dizia nos velhos tempos e quando nem as carrancas apareciam nas proas para amedrontar e dar sumiço aos espíritos ruins das águas.
Os tempos eram de nascedouros das aldeias ribeirinhas, das vilas de pescadores, das comunidades aos pés das correntezas. O rio correndo e escorrendo ainda virgem de leito, de pujança de vida, de caudal grandioso.
Pelas ribeiras acima, aqueles antigos habitantes no convívio com as águas, com os seres do rio, com dias de fartura e de simplicidade. Barco pequeno tinha medo de tanta água ao redor. Canoa pequena logo cuidava de respeitar cada curva adiante.
Em tudo uma imensidão remansosa, parecendo mansamente suave por cima e de segredos e desconhecidos por baixo. Os peixes chuviscavam, dançavam, pulavam. As redes lançadas sempre voltavam em cardume.
O ribeirinho feliz imaginava que teria o rio assim para a vida inteira. Muita gente pensou ser assim também. Pensou até que começou a perceber estranhezas naquela fartura de águas.
Aos poucos, toda aquela imensidão começou a estreitar. Num passo e noutro, de repente o rio parecia emagrecido, mais fraquejado, doente. Então os olhos já não podiam negar: o Velho Chico já ossudo, raquítico, ele mesmo faminto e sedento.
Perante as situações de esvaimento e tristeza nas águas rasas, e acaso as lágrimas ribeirinhas derramadas pudessem, certamente as gotas de aflição escorreriam e lá embaixo e se juntariam às outras águas.
Outro dia, a ribeirinha Erionésia Correia postou uma fotografia de seu filho caminhando pelo leito seco em direção a uma ilha mais adiante. O menino, como se não estivesse acreditando naquilo que via e pisava, então lançava um olhar desalentado e entristecido.
Os tempos passaram e o menino continua convivendo com o rio e de vez em quando muito mais feliz quando as águas vão chegando muitas e o leito novamente se enche de vida. Quando isso acontece, então o filho de Erionésia chama os seus amiguinhos e juntos brincam nos beirais com seus barquinhos.
Ao redor, outros barcos maiores aportados. Um retrato da infância e da meninice ribeirinha ensaiando a vida no seu próprio mundo, e na esperança que as águas fartas passando mais adiante ainda possam ser avistadas mais tarde.
Quando aqueles barquinhos se transformarem em barcos grandes e canoas potentes e os meninos se tornarem em ribeirinhos felizes, então terá valido a pena esperar pela salvação. Talvez assim aconteça.
Quem sabe as forças da natureza salvando o rio e também o futuro de muitos que ainda estejam vivendo e convivendo com suas ribeiras. Que o rio seja salvo, que tenha bom sucesso, ou Bonsucesso!


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Lá no meu sertão...


Belezas do São Francisco em Bonsucesso, 
povoação ribeirinha em Poço Redondo, sertão sergipano





Poema para o meu amor (Poesia)



Poema para o meu amor


Fiz poema para o meu amor
sem versos escritos em papel
sem rimas ou estrofes bonitas
apenas poesia achada em mim

a saudade que sinto é poema
o desejo que sinto é poema
a recordação do beijo é poema
o peito pulsando é poema
seu nome ecoando é poema
a vontade de voar é poema
é poema querer tanto abraçar

nada disso cabe em palavras
pois o amor é poema na alma.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - noutros tempos... e agora



*Rangel Alves da Costa


Noutros tempos... e agora. Dava a benção e era abençoado. Temia e acatava avô, avó, pai e mãe. Hoje não respeita a si mesmo nem a ninguém. Hoje sofre sem saber por quê. Sentava no colo da avó e pedia cafuné. Corria aos braços do avô e lhe pedia histórias. Ao pai e mãe prestava atenção. Hoje faz de conta que não tem família, renega a si mesmo e a toda pessoa. E agora sofre sem saber por quê. Mesmo distante, sempre encontrava um tempinho de ao lar familiar retornar. Queria do bolo da avó, queria do pão de forno a lenha da avó, desejava o doce de tacho da avó. Proseava largamente com o seu avô e tudo da vida queria saber. A comidinha de casa era a mais desejada, o café da mãe bebia com ternura. Hoje não quer saber sequer do passado, tanto faz a família como o que restou. Vive num mundo aos tropeços, e quando cai não sabe o porquê.


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domingo, 24 de fevereiro de 2019

O RIO, O MENINO E O BARQUINHO



*Rangel Alves da Costa


Avistei no facebook, em postagem de um amigo ribeirinho do Velho Chico, uma bela e significativa, senão simbólica e poética, fotografia: uma criança brincando com um barquinho na beirada do Rio São Francisco. O cenário é Curralinho, povoação beiradeira no município sergipano de Poço Redondo.
Ao fundo da fotografia, após a curva das águas, as silhuetas dos bares e casarios, as margens arenosas que vão se estendendo até com as serras e montes se encontrarem. Um rio que corre e escorre entre serras e alturas nos carrascais sertanejos. Mais de perto, bem no rasinho do beiral das águas, o menino olha admirado para um barquinho. Um cenário primoroso e deslumbrante.
Nas cores predominantemente verde, vermelha e branca, o barquinho possui até nome de batismo na lateral de sua proa. Embarcação são-franciscana tem de receber nome, identidade, como que para ganhar vida própria: Tubarana, Piaba, Ribeirinha, Senhora das Águas, e muito mais. No barquinho perante o menino, não há como distinguir o nome, mas algo assim como Esperança do Rio.
Sim, Esperança do Rio, e esperança tanto no menino como na sobrevida das águas que ainda vão se tornando muitas mais adiante, após apenas encobrir parte daquelas pequeninas pernas. Percebe-se a ausência de outros barcos pelos arredores. Talvez um ou outro aportado ao longe. Não são avistados os barcos e as canoas de pescadores. Não são avistadas aquelas embarcações que sempre estão sonolentas ao remanso das margens. Apenas o menino, o barquinho e o início das águas.
Mais além, o leito espelhado pelo sol e contando suas histórias ao longo de seu caminho, pois seguindo adiante entre curvas e curveados, simplesmente seguindo e deixando para trás tantas histórias do mundo ribeirinho. E mundo ribeirinho não é propriamente um mundo, mas uma existência entranhada no corpo e na alma. Pulsa a seiva da vida na alma de sua gente. Há no mundo ribeirinho uma veia alongada onde escorre o mesmo pulsar de vida do rio e do homem. São inseparáveis. O rio é o homem, e o homem é o rio.
Mas as águas ainda existentes vão contando suas histórias, seus antepassados, suas raízes. Histórias de um imenso livro relatando pujanças e farturas, grandezas e alegrias, mas também tristezas e sofrimentos, dores e aflições. Na fotografia, ali mesmo onde o menino volta seu olhar ao seu brinquedo, uma história que só pode ser contada com lágrimas nos olhos. Não é fácil ao ribeirinho de hoje recordar aquelas margens repletas de embarcações e os seus moradores acorrendo com redes e tarrafas à mão, ou levando malas e encomendas para o transporte. Logicamente que não naquele mesmo local, pois as águas muitas puxavam as margens já para a proximidade das calçadas altas, mas as mesmas margens de onde saíram e chegaram os vapores, as chatas, os barcos e as canoas. As mesmas margens que avistavam, ao mesmo tempo espantadas e agradecidas, o surgir das carrancas ao frontal das embarcações. Os irmãos Ciano e Valter com sua canoa ancorada nas proximidades da grande árvore, da figueira secular que contava toda a história do lugar. Seu Aloísio cuidando para que o seu barco não se desprendesse e navegasse sozinha. Diziam que o Nego-d’água cuidava de desprender as amarras para que os barcos sumissem. Ribeirinhos e mais ribeirinhos, pescadores e mais pescadores. Fernando com sua majestosa embarcação e seguindo ora pelos lados de Entremontes e mais adiante ora pelos lados de Bonsucesso e Pão de Açúcar e mais além. Hoje Danúbio faz longa caminhada até chegar a seu barco nos arredores de onde o menino observa o seu brinquedo. Hoje, para o encontro com as águas será preciso caminhar até mais abaixo, aonde o leito vai passando magro e entristecido. Noutros idos, ali das calçadas altas, os olhares logo divisavam todo o volumoso espelho d’água que corria em festa grande. Mas assim mesmo a vida: vida e morte, chegadas e partidas. Resta-nos a esperança na fotografia do menino. Que amanhã, quando adulto já estiver, quem sabe se o seu passo não vai chegar às mesmas margens do Velho Chico e os seus olhos novamente se encantarem com a pujança de vida e de água que suportou as agruras do tempo e se impôs com permanente beleza. Ou, como num dizer de São Francisco: Senhor, fazei destas águas um instrumento de vossa grandeza, velando sempre por sua existência e alimentando a vida de seu povo, o povo do rio!


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Lá no meu sertão...



Valente eu sei que ela é. Mas não por ser filha de Adília, a ex-cangaceira, e sim pela minha insistência de não deixá-la em paz, pois sempre indo lá, sempre perguntando, sempre arrastando pra uma coisa e outra. Diz que não vai, que não responde, que não sai do seu canto. Até penso que está com raiva mesmo. Pra depois me tratar como irmão e filho, não é Nicinha?




Eu e o pássaro (Poesia)



Eu e o pássaro


Vindo de longe
um pássaro pousa
e na minha mão
deixa um bilhete
que dizia assim:

nada é tão longe
que não possa
ser alcançado
num voo
e se deseja ir
então voe

pedi ao pássaro
suas asas
e os seus céus
mas ele apenas
mostro-me o alto
e foi quando voei
pela primeira vez.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - carnaval é nada



*Rangel Alves da Costa


Outro dia, passando por postagens numa rede social, li que o carnaval é nada, não possui importância alguma, é algo totalmente desnecessário. Refleti um pouco sobre a afirmação e acabei dando razão ao escrito. E indaguei: qual a real importância do carnaval, o que a festa momesca possui de utilidade, o que a brincadeira provoca de positivo a não ser o descanso mais prolongado por causa do feriado? Ademais, a festa em si sempre provoca consequências mais negativas que positivas. Os exageros são muitos, os excessos sempre vão além da conta. Ademais, impossível que não seja uma alegria forjada, na ilusão da felicidade. Ninguém em sã consciência pode dizer que está encontrando motivos para comemorações. E depois da folia o reencontro com a realidade e, talvez logo depois ou mais tarde, ter de suportar as consequências daqueles excessos e exageros. E tudo numa festa sem razão alguma de existir e a tudo transformar, como de fato transforma.


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sábado, 23 de fevereiro de 2019

POÇO REDONDO, O DESEMPREGO E A DESESPERANÇA DE UM POVO



*Rangel Alves da Costa


A cada final de semana que estou a Poço Redondo, eis que me chegam notícias de amigos que se bandearam para as distâncias em busca de dias melhores, de um emprego qualquer que lhes garanta algum sustento.
Verdade, assim que chego vou perguntando por um e outro e as respostas são as mais desalentadoras possíveis. Um foi tentar a sorte na construção de uma barragem, outro foi trabalhar numa rodovia lá pelos fins do mundo, outro foi para São Paulo respirar cimento e pó, outro foi para o Rio de Janeiro na ilusão de algum ganho.
E assim os jovens poço-redondenses vão deixando sua terra em busca de sonhos arriscados demais. Mas não são sonhos, são necessidades, são extremas necessidades. Não é fácil para um jovem subsistir e se manter onde não há qualquer tipo de emprego. E principalmente quando o jovem é casado e tem uma casa e família para sustentar.
Fazer o que, viver de que? Pedir, esmolar? A verdade é que Poço Redondo não tem garantido a seus filhos sequer o mínimo de esperança. Não há indústrias no município, não há empresas de grande porte que garanta emprego, não há movimentação alguma na construção civil, não há vagas no comércio, não há emprego público, não há nada que possa sustentar o sertanejo no seu lugar.
O município empobrecido, sem geração de renda nem suficiente circulação de moeda, não possibilita sequer o surgimento de empregos temporários. O pequeno comércio informal também é afetado pela falta de dinheiro no bolso da população. Por todo o município, conta-se nos dedos o número de empresas e de comércios que aproveitam a força de trabalho local. E é gente demais para tão pouca vaga, para tão pouco emprego.
Muitos dos que possuem empregos na prefeitura, por exemplo, não revertem seus ganhos dentro do próprio município, e sim nas suas localidades de origem. Os contratados locais, além do pouco ganho, sofrem atrasos e mais atrasos no seu recebimento, forçando a geração de uma pobreza empregada.
Tudo isso esvazia o comércio local, fecha portas, diminui as chances de surgirem novas vagas. E tudo num círculo tão danoso que outra coisa não se vislumbra senão a desesperança total e absoluta na maioria da população.
Também desalentador o fato de que não se tem notícias que a administração municipal faça algum esforço para mudar tal situação através da exploração das riquezas históricas, geográficas e culturais, possibilitando o fluxo turístico, e garantido emprego e renda para muitos sertanejos.
Ora, Piranhas vive e sobrevive do turismo, e até das riquezas de Poço Redondo, e com isso garante sua sobrevivência econômica. E por que Poço Redondo não age no mesmo sentido? Canindé, bem ali ao lado, faz do turismo uma importante fonte de renda e de garantia de emprego. E por que Poço Redondo não o faz? E dos municípios citados, Poço Redondo se sobressai a todos, pois possuidor de muito mais potenciais turísticos.
Através do turismo, o ganho do artesão, do guia, do estradeiro, da doceira, do cozinheiro, do ribeirinho, do dono do barco, do comércio em geral. Contudo, parece até política de governo o desprezo total de um município e seu povo. Por consequência, temos um Poço Redondo que só faz regredir no tempo, empobrecer cada vez mais e deixar seu povo ao desalento, sem esperança alguma de dias melhores.
E enquanto isso, os jovens continuam indo embora, em sonhos cegos, em vãs esperanças. Os sonhos continuam indo embora. Tudo vai sumindo, indo ao perigoso desconhecido. Mas ficar seria ainda mais sofrimento. O autêntico poço-redondense nunca pediu esmola a ninguém, ainda que a cuia já possa ser avistada em muita mão e em muito olhar de tristeza. A verdade é que, infelizmente, no fundo do poço estamos.


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Lá no meu sertão...


Seu Alcino e Dona Peta, meus saudosos pais...



Não me chame não (Poesia)



Não me chame não


Não me chamo não
pra sair daqui
não me leve não
pra outro lugar
saio daqui não
aqui o meu viver
não me chame não

aonde você tá
não tem lua assim
não tem passarinho
não tem rede boa
nem água de moringa
não tem janela aberta
nem belo alvorecer
café torrado em pilão
nem fruta do mato

então me chame não
viva no seu mundo
que vivo no sertão.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – choramos por dentro também



*Rangel Alves da Costa


Lágrimas que escorrem internamente, que vão jorrando nas entranhas da alma, que vão se encharcando o âmago. Sim, pois choramos por dentro também. E choramos muito mais por dentro do que através nas lágrimas que brotam do olhar. E o choro íntimo, interno, aflorado em raiz, é sempre muito mais verdadeiro e doloroso que qualquer outro tipo de choro, de grito ou de agonia. Dores que somente sentem aqueles de tristezas aprisionadas, terríveis sofrimentos somente suportados pelos silêncios da alma. Nos olhos, as lágrimas brotam e de repente somente. Os lenços enxugam as desventuras e as desilusões. Mas qual lenço para enxugar o mar imenso que vai escorrendo dentro do ser? Só quem chora por dentro sabe a tempestade que é. Só que lacrimeja internamente sabe o quanto dói avolumar em si tanto sofrimento. E ainda que um pouco transborde no olhar, a infinitude da angústia permanece represada. E somente o sol da esperança para secar esse temporal.


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sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

FIM DE FEIRA, UM EXEMPLO



*Rangel Alves da Costa


Hoje, aqui no sertão sergipano, em Poço Redondo, meu berço de nascimento e onde sou fiel visitante, presenciei duas situações diferentes num mesmo contexto. E após isso, pensando e pensando, cheguei à conclusão que aquelas situações poderiam simbolizar muito mais. Então vamos às explicações. Logo cedinho, nas proximidades de casa, a feira semanal se abria em mil cores, sabores, sortimentos e tentações. Uma profusão de frutas, verduras, carnes, doces, bolos, roupas, panos, remédios milagreiros, ervas medicinais e plantas, produtos de despensa e cozinha, fumo de rolo, feijão de corda, tudo o que se imaginasse. E um monte de gente passeando pelas barracas, caminhando de lado a outro, escolhendo os seus produtos. Andei por lá e depois retornei. Já passava das três da tarde quando novamente me bandeei por aqueles lados. A feira já tinha acabado e somente os seus restos por todo lugar, espalhados pelo chão, pelas bancas, numa sujeira danada. Perguntei-me: logo cedo tudo tão belo e atraente, e por que agora apenas essa imundície toda? Tirei algumas fotografias e depois fiz uma pequena postagem, dizendo assim: Fim de feira. Assim também em muita da ilusão da vida!
Repito: Fim de feira. Assim também em muita da ilusão da vida! Creio que nem necessitaria explicar muito sobre isso. Mas creio também que nem todo mundo possa compreender a analogia expressa nas palavras. Ora, a feira em si, aquela do alvorecer e tão cheia de flores, de frutos e de tudo o que se desejar, pode ser vista como a própria vida em seu alvorecer, em seu resplendor, em sua seiva maior. A feira, aquela que encanta o olhar e faz a boca se encher de água, pode ser vista também como os melhores anos da vida, com a existência em seu fulgor, com o viver na plenitude da caminhada. A feira, aquela onde a melancia bonita está diante do olhar e a cocada branca só falta pedir que a leve, pode ser vista também como um tempo de poder quase tudo, como uma fase onde quase tudo pode ser adquirido, como um período onde o ser humano pode lançar sua mão e alcançar o desejado. Sim pois a feira é assim, é a possibilidade de se ter o almejado, pois perante tudo aquilo que se deseja. Da feira a pessoa retorna com suas compras, com seus anseios realizados, com aquilo desejado para o momento. Da feira a pessoa retorna trazendo consigo o útil, o que vai de grande importância no seu viver. Depois das compras, de encher os carrinhos e retornar, nem sempre a pessoa olha pra trás para se perguntar como aquela mesma feira estará mais tarde. E muito menos se perguntar: e depois do fim da feira?
Depois do fim da feira outra realidade, e muito diferente da feira em si. Os viços, os gostos, os sabores, as cores, os aromas, os perfumes, os desejos, nada disso existe mais. Depois da feira somente os restos, as cascas, os bagos sujos, as folhas lançadas ao chão, as xepas apodrecidas e os visgos malcheirosos. Depois da feira somente o que já não se deseja, pois dificilmente a pessoa vai se abaixar para uma jaca podre e cheia de sujeira lançada ao chão. Alguns empobrecidos ainda passam a catar bananas podres, laranjas moles, restos deixados por imprestáveis, mas a maioria das pessoas não. Muitos sequer desejam ser avistados em meios aos corredores putrefatos e imundos do fim da feira. Na verdade, quando a feira chega ao fim, quando o bom e o útil já não pode mais ser adquirido, então surge a revelação de que toda bonança se transforma em restos indesejados. Tudo que estava sobre a banca era bom, era bonito, era almejado, mas o que de repente restou sobre a mesma banca é simplesmente negado.
E a vida, e a vida? Sim, na vida também um fim de feira. A pessoa não quer assim, ou sequer se imagina assim, mas a verdade é que é vista, olhada e amada até quando sua feira está sortida. Depois, depois da chegada da velhice, do empobrecimento ou da enfermidade, tudo passa a ser negado como um fim de feira.


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Lá no meu sertão...


Igrejas de Poço Redondo, sertão sergipano



Um novo tempo (Poesia)



Um novo tempo


Entristecido
em mim havia um outono
choroso
em mim havia um temporal
solitário
em mim havia um deserto
angustiado
em mim havia um vendaval

eis que do nada
avistei um jardim
no jardim uma flor
na flor o amor
e no amor a alegria
de um novo tempo
sem outonos
sem tempestades,

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – aquelas pessoas



*Rangel Alves da Costa


Maria passa por mim e nem tem tempo de falar. Corre tanto pra viver que se parar a panela fica fazia. Totonho só fala sozinho e nem adianta chegar perto dele para prosear, pois fica numa mudez de pedra. Cremilda chega logo abraçando, perguntando como vai, dizendo que pode pedir que ela faz. Uma pessoa encantadora. Jeorina só anda chorosa, a bichinha. Dizem que foi um amor desfeito lá no passado, deixando marcas tão profundas que até hoje só vive a lacrimejar. Betônio até mudo de nome. Agora é Betânia, e segundo ele (ela, agora), já estava cansado (cansada, agora) de fingir a si mesmo (a si mesma, agora) e ao mundo. Segundo diz, desde cedo passou a sentir que nem gente era, pois uma flor, um jardim, um perfume inebriante. E deu até pra se vestir florido e rebolar feito flor ao entardecer em ventania. Pedro gosta mesmo é de um balcão e de uma boa relepada de pinga. Cidreira, quixabeira, boldo, tudo de cachaça é com ele mesmo. E gosta tanto da casca de pau que veemente se nega a pingar uma gotinha na boca do santo que vive aos pés de todo balcão. Segundo ele, santo não bebe, e ele sim. Conheço essas pessoas. Todas fazem parte do meu mundo e do meu viver. Retratos de cotidianos e da vida tão comum dos dias.


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quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

NO SERTÃO, TODA CHUVA É DE BENÇÃO



*Rangel Alves da Costa


Perante o povo sertanejo, não há momento mais maravilhosamente encantador que ver e sentir a chuva caindo.
Só Deus para saber o que se passa pela cabeça do velho sertanejo de casinha de beiral de estrada quando abre a porta e estende as mãos magras e secas para deixar que os pingos caiam em profusão.
Só Deus sabe o que se passa no imaginário do homem do campo ao sentir o barrufo forte subindo, a goteira na nuvem se abrindo e o chão ficando encharcado de alegria. Uma festa aos olhos, aos sentimentos, ao coração.
Nas noites e dias anteriores, no compasso da espera tanta, quantas mãos não procuraram os terços de fé, quantos dedos não seguiram em procissão pelas contas do rosário, quantos santos não foram invocados em nome da chuva?
Não poderia ser diferente. Sem chuva não há vida, não há esperança, não há nada. O que há é num sofrimento sem fim com o tanque seco, o barreiro de lama dura, a passagem esturricada de sol, o bicho sofrendo sedento e faminto, o pote vazio e a moringa rachada.
Quanto sofrimento, meu Deus! Por isso mesmo que a chuva se torna no sonho maior e na esperança de toda hora. A sabedoria matuta vai catando nos sinais da natureza a aproximação daquilo tão esperado.
A ventania nas folhagens e o modo como elas farfalham falam de uma esperança. Os ninhos sendo feitos no rente do chão, dentro dos tocos ou nas beiradas das locas, também dizem das nuvens prenhes que se aproximam.
Mas é a barra da primeira luz do dia que mais diz da concretização do sonho. Os olhos sertanejos reconhecem na cor da barra, lá nas distâncias do horizonte, quando a chuvarada pode cair. Barra avermelhada é bom sinal, sim sinhô.
Quando a pedra parece molhada por cima, então a chuvarada já vem. Mas nem sempre os sinais são bons. Quando o sol se levanta brilhoso, afogueado, então a tristeza novamente recai no semblante esperançoso de água.
Mas nada que afaste a fé sertaneja. Tanto assim que mantem a semente guardada, que deixa o tonel tampado bem debaixo da goteira, que continua fazendo planos para o plantio e colheita. E também pelos esforços que faz para manter na malhada seca seu rebanho de couro e osso.
Ora, se não tivesse esperança de nada valeria tanto gasto e tanto sacrifício. E todo o sacrifício e sofrimento passam a ser recompensados de hora pra outra. Quanto o calor afogueia demais e o tempo começa a nublar, então coisa boa vai acontecer.
E se surgem trovões e relâmpagos, se de repente as nuvens escurecidas parecem descendo sobre a terra, então já pode colocar vasilha debaixo da goteira. E o que acontece daí em diante é festa no mundo-sertão.
Os sons da chuva parecem coro de anjos. Os sons dos pingos caindo parecem melodia na alma. Um coro angelical, uma orquestra de magistral melodia caindo do alto, ecos das mais belas canções molhando a terra.
E olhar pela janela ou pela fresta da porta e perceber que não está sonhando, e sentir o barulhar molhado no telhado, e perceber que a molhação vai tomando conta de tudo, e ter vontade de abrira porta e sair com roupa pra debaixo da chuvarada, a certeza que as preces foram ouvidas, os rogos foram compreendidos pelas forças sagradas, e a chuvarada que cai é a benção maior da vida e da esperança.
Na chuva, a vida. O sertão em benção e abençoado.


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Lá no meu sertão...


Pra todo mal...



Vivendo na roça (Poesia)



Vivendo na roça


Quero viver na roça
lá nas distâncias do mundo
no meio do mato e da vida
onde o amor mais fecundo
possui na felicidade guarida

a lua e o sol no umbral da janela
fogo de lenha ao chão estendido
café torrado fervendo em chaleira
um pássaro de repente aparecido
para cantar no alto da quixabeira

e o meu passo assim sem pressa
pela malhada catando alvorecer
conversando com a pedra e a flor
na moringa a água doce de beber
no cuscuzeiro o amarelado sabor

é no viver assim tão roceiro
com a porteira fechada à tristeza
que o meu sorriso será de canção
como rede balançando em leveza
na varanda de um mundo sertão.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - governar não é fácil



*Rangel Alves da Costa


As oposições, as críticas vorazes e as hostilidades são muitas, e todas tentando desestabilizar o governante de plantão. As disputas de poder, os desalinhos entre os seus integrantes, as ambições e as falsidades, tudo isso fragiliza qualquer governo. E de repente, um governante eleito como salvação vai esfacelando dentro de si mesmo. Ora, governar nunca foi fácil. Por mais que se diga que na pessoa do governante esteja a caneta que controla tudo e este, num só ato, pode tudo modificar, nada ou quase nada acaba acontecendo desse jeito. O governo é uma máquina, é um agrupamento de pessoas com interesses comuns e conflitantes, é uma colcha por uns rasgada e por outros refeita. O governante em si, ainda que com as melhores intenções possíveis, nunca consegue fazer tudo do seu jeito. Surgem as influências, as interferências e os interesses. Também surgem as disputas internas que provocam prejuízos de monta. E basta que algum desacerto se transforme em crise para todo o governo ser levado junto ao fundo do poço. E até que saia, até que resolva tudo, muito já deixou de ser feito. Com as não realizações, a ingovernabilidade, e, com a proliferação de lixos acumulados, as tão conhecidas crises que afundam governos e governantes.


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