SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 30 de outubro de 2015

AFETOS


Rangel Alves da Costa*


O que é afeto? Eis a pergunta da menina. Então a mãe respondeu: Carinho. Mas a menina voltou a perguntar: Posso ter afeto sem precisar de carinho? E logo a mãe respondeu: Se tiver amor. A menina voltou a perguntar: E sem carinho ou amor posso ter afeto? E novamente a mãe respondeu: Sim, muito no seu íntimo ainda não foi revelado, mas ainda assim já a faz sentir afeição por coisas que ainda chegarão com carinho e amor.
Após o diálogo a menina saiu pensativa, imaginando mil coisas a respeito do afeto. Entrou no seu quarto e se rodeou daquilo que mais gostava. Espalhou na cama a velha boneca de pano, brinquedos antigos e já com algum tempo sem uso, retratos da família, uma caixinha de música com uma bailarina sempre pronta a levemente girar com o som surgido. Depois disse a si mesma que jamais se separaria daqueles objetos. Acho que sinto afeto por tudo isso, conclui sorridente.
Mas depois olhou para o alto, em seguida para a vidraça da janela embaçada de chuva, e se pôs a viajar em pensamentos. Imaginou-se tomando banho debaixo daqueles pingos, correndo e se jogando na lama, abrindo os braços como se quisesse toda á água do mundo. E em seguida disse: Acho que também sinto afeição pela chuva. Assim também quando se imaginou brincando com um monte de crianças desconhecidas, com línguas e feições diferentes, mas num compartilhamento das velhas amizades. E rematou: Acho que também sinto afeto pelas pessoas.
Isso talvez tenha já com alguns anos, pois ainda hoje a mocinha de repente se vê confrontando os seus afetos. Aqueles afetos presenciais ou que fazem parte de sua história de vida e também aqueles afetos sentimentais ou que causam contentamento à alma, ainda que jamais presenciados ou mesmo surgidos como fantasias da imaginação. Então trazia aos olhos o afeto que sentia pelas flores do jardim e suas brincadeiras ao redor. Mas sentia o coração partir quando recordava do pé de laranja lima do menino Zezé.
Agora, já moça, sabia que tudo não passava de ficção, que aquela árvore frutífera no quintal da família do menino não passava de uma criação literária. Sim, sabia, mas não aceitava que fosse assim. Mesmo adulta, se negava a aceitar aquela história como mera ficção. Por isso mesmo trazia vivos no coração não só o menino como o seu pé de laranja lima. Era um afeto imaginário, porém tão verdadeiro como a própria existência.
Ainda hoje chora ao recordar as palavras do menino quando seu pai tentou lhe enganar acerca do destino de sua árvore amiga: “- Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de Laranja Lima. Quando o cortarem você estará longe e nem sentirá. Agarrei-me soluçando aos seus joelhos. - Não adianta, Papai. Não adianta... E olhando o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas murmurei como um morto: - Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima”.
Jamais esquecia tal passagem já no finalzinho do livro de José Mauro de Vasconcelos, e que foi se transformando em imagens e vozes reais, como se tivesse presenciado a tristeza, o soluço do menino e suas palavras aflitas: “Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima”. Tudo lhe parecia tão real que ela um dia desejou procurar o menino Zezé para saber como se sentia depois daquele triste episódio. Queria ter um pé de laranja no seu quintal para o amigo ali deleitar-se às sombras do entardecer.
Não era outro sentimento senão afeto o que sentia por Zezé e seu pé de laranja lima. Eis que os afetos surgem assim, dos desejos do coração e da importância que se dá às grandes e pequenas coisas. O afeto familiar, o afeto pelo pássaro que costuma pousar ao umbral da janela, pela borboleta arco-íris que se acha dona do quarto. Um afeto assim como aquele do jardineiro que se viu sem flores e por isso mesmo chorou ante o jardim destroçado. Ou como aquele afeto pela velha fotografia na parede. Feições distantes que se aproximam nas lágrimas e permanecem afetos pelo amor sentido.
Assim os afetos. E não precisa nem afirmar que os sente. Tantas vezes basta um afago, um cafuné, um olhar carinhoso. Outras vezes apenas a recordação para se confirmar o quanto os sentimentos sabem escolher o que desejam afetuosamente eternizar. E é fácil reconhecê-los, pois cada conhece bem o que ama, ao que se dedica, ao que sente ternura.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Laços e nós (Poesia)


Laços e nós


Sem outra liberdade
uma prisão sem fim
eu preso em você
e você em mim

laço e nó apertados
se penso em partir
não posso ir além
sem você seguir

quanto mais distante
mais o laço aperta
se desfaço o nó
nossa vida é incerta

assim o laço em nós
e de tanto apertar
nada resta a fazer
a não ser mais amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: perguntas


Rangel Alves da Costa*


Sabe, às vezes a gente se vê perguntado por que isso ou aquilo, o por que disso ou daquilo, e acaba concluindo que muito ainda existe sem resposta. Nada de saber por que a lua daqui é a mesma de lá ou por que dizem que a cegonha é que traz as criancinhas. Mas perguntas bem mais profundas e consistentes. Eu mesmo, por exemplo, sempre quis saber a verdade acerca daqueles imensos megalíticos presentes nas obras das antigas civilizações. Não quero aceitar as teorias alienígenas, mas não posso deixar de afirmar o grande mistério que ronda aquilo tudo. Eu também quis saber por que a lua provoca tantas alterações sobre as águas e sobre as mentes, por que as noites chamam as enfermidades, por que antes de a morte chegar o doente sempre se mostra com mais disposição. Será que é o ânimo da despedida? E tantas e tantas outras perguntas que nem sei se no mundo há mais respostas ou mais indagações. Por que a toalha fica suja ainda que enxugue mãos sempre limpas, por que o girassol sempre se volta ao sol, por que as pessoas já conhecem demasiadamente um ao outro e somente após o casamento começam a fazer cobranças, por que após a alegria sempre vem a tristeza, por que só reconhecemos o verdadeiro amor depois que perdemos a pessoa amada, por que de vez em quando reconhecemos alguém que jamais o encontramos. Por que não se vive completamente a única vida que se tem?
                                      

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

AIÓ, FARINHA SECA E RAPADURA


Rangel Alves da Costa*


Noutros tempos, nos idos de um sertão de bicho reinando por todo lugar e mato fechado começando logo após o quintal, bastava que o caçador lançasse mão da velha espingarda, do aió e de um tiquinho de farinha seca com pedaço de rapadura. Estava equipado e preparado para ir atrás do alimento que a família tanto necessitava.
E assim, pelas veredas sertanejas, mesmo na sequidão do tempo e as incertezas da estrada, seguia o humilde caboclo em busca do sustento dos seus. Pai de família, com filhos pequenos para alimentar, não via outra saída senão lançar mão da esperança em mais uma caçada. Intimamente sofria ao ver um bicho sangrado e sem vida, mas a questão da sobrevivência chegava como um perdão ante a sina da existência.
Se hoje continuasse assim, nunca haveria a certeza de retornar sequer carregando uma caça pequena. Os bichos sumiram, desapareceram de vez. Noutros tempos, quando a mataria se espalhava por todo lugar, e entre catingueiras e umburanas eram muitos os tufos de mato, havia fartura de bicho esperando a desdita da sorte. Preá, nambu, codorna, caititu, veado, rolinha fogo-pagô, cágado, teiú, tudo zanzando pelos escondidos, ao redor das locas das pedras, ao redor de macambiras ou mesmo pelos descampados.
Uma prática costumeira e que sempre dava bons resultados era esperar a bicharada ao entardecer, nas beiradas das fontes, quando se dirigiam para matar a sede. O caçador se amoitava ao redor e ficava à espreita da chegada de um e de outro. E de repente a espingarda soltando fogo e a ave caindo após curto voo. Sofria agindo assim, entristecia-se demais em ter de matar para sobreviver. Mas havia Joaninha, Pedro e Maria que tanto necessitavam daquele pedaço miúdo e assado na brasa.
Mas isto noutros idos, pois com o passar do tempo tudo foi ficando cada vez mais difícil. Sem bicho no mato não há caçada que seja proveitosa. Não é raro o retorno desolado do caçador, entrando na porta de casa sem nada poder dizer. Justificar o que se os olhos já se mostraram tristes ante o vazio do aió? Ora, o aió está vazio, a espingarda sem uso, naquele dia sequer um preá pôde ser avistado. Mas também quase não há mais preá. Nem codorna nem nambu, muito menos bicho maior.
Quase não há mais bicho no mato não por culpa do caçador. Acaso existissem somente os sertanejos enveredando nas matas em busca de seu alimento, certamente que continuaria fartura de toda espécie da fauna típica da região. Não foi o caçador que espantou os bichos para distâncias sem fim, não foi o caçador que promoveu a extinção, não foi o caçador que desmatou e tudo destruiu, deixando em deserto onde havia pujante vegetação.
Certamente que não foi o caçador que transformou a natureza sertaneja num lugar feio e desolado. A vegetação foi sendo derrubada e com ela toda a vida. E sem planta, sem árvore, sem pé de pau, sem tufo de mato, não há lugar para os bichos. Que se imagine uma nambu sem galho de árvore ou uma rolinha sem poder voar de canto a outro por falta de lugar de pouso e repouso. E os ninhos, as moradias dos bichos, as flores e os frutos como alimento?
Hoje em dia o sertão é uma tristeza só. Riachos sem matas ciliares e leitos escavados pela ambição, e por isso mesmo semimortos e renegados ao empoçamento de doenças e infestações. Vastidões inteiras como um campo aberto, nu, tomado de aridez e desolação, e por isso mesmo sem qualquer vida ou utilidade. Por consequência, o aumento dos períodos de secas, a demasia do calor e da pobreza além de todo quintal. Que fez isto? O homem, mas outro homem, e não o caçador.
O caçador vive da caça e não da mera destruição. Precisa daquele habitat nativo para que seu alimento não possa faltar. Precisa da catingueira, do angico, da umburana, da quixabeira. Precisa de qualquer pé de pau, de qualquer loca de pedra que sirva de moradia ao bicho. O caçador precisa entrar na mata e encontrar o bicho. Ou assim faz ou fará do retorno uma desesperança ainda maior. Colocar o aió vazio num canto e dizer que não haverá preá torrado com farinha seca causa a mesma dor que ouvir um pedido de um pedaço de pão e nada ter para dar.
E assim a vida vai. A pobreza continua a mesma e maior ainda. A caça era o suporte ante a necessidade, era a sobrevida na difícil sobrevivência. Quando a parca feira acaba e não há alimento, quando a esmola lhe desvanece a alma e prefere sofrer, então somente a prece para o alimento sagrado. E eis o verdadeiro milagre da sobrevivência sertaneja: o choro da fome quase não é ouvido. Deus sempre mostra um pão, seja na força invisível ou no amparo do irmão.
Mas o velho aió continua num canto. E quem dera poder ir buscar no mato a comida da mesa. Era só colocar num saquinho um pouco de farinha seca e um pedaço de rapadura e seguir adiante. Era só encontrar o sertão como antes, e não este deserto assim transformado pelos forasteiros.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

A fé (Poesia)


A fé


Após o entardecer
quando a brasa do sol
em sombras se tornar
e a boca da noite se abrir
para a lua chamar
é neste meigo instante
que ouço o dobrar
de um sino ao longe
como a me convidar
ao silêncio e à prece
e a meu Deus implorar
pela paz pela vida
em todo o caminhar

e ante a vela acesa
ante o brilho da chama
sou aquele humilde
sou aquele que clama
pela paz do Senhor
e o amor que proclama.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: motivos para chorar


Rangel Alves da Costa*


A maioria das pessoas chora por tudo. Qualquer coisa e já está se se derramando em lágrimas, se martirizando. Tem gente até que chora por chorar, sem motivo alguma. Apenas resolve chorar e chora. Que bom acontecesse assim também com a alegria. De repente, a pessoa resolve que está alegre e começa a cantar e a sorrir para o mundo. Mas tudo tem o tempo e as motivações certas. Não há como fugir da verdadeira alegria nem verdadeira lágrima. Em momentos tais, não precisa nenhum esforço ou ajuda interior para que tudo aconteça, eis que simplesmente brotam como as flores primaveris ou a tristeza ante a partida de um ser amado. O choro, por agir dentro do ser como a água que vai corroendo a pedra, necessita ser suficientemente justificado para se expressar. Quais as razões para chorar ou não chorar? Fácil demais responder. Há lágrimas desnecessárias quando são derramadas por briguinhas amorosas casuais, por meras insatisfações pessoais, por saudade de quem não merece a presença, por que alguma coisa não aconteceu do modo que se esperava. Mas pode chorar pela morte de uma pessoa querida, pela saudade verdadeira, pela distância daquelas pessoas que tanto bem fazem ao coração. Pode chorar também pelas vítimas das crueldades do mundo, pelos desvalidos de toda sorte humana e pelo entardecer tão poético e belo. Sim. Chore também pelo entardecer tão poético e belo. Não precisa dizer os motivos. Mas pode chorar.
                                      

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 28 de outubro de 2015

O CASARÃO


Rangel Alves da Costa*


Sobressaindo a tudo na imponência, na feição fortificada, na grandeza e na simbologia do poder e do mando, lá estava o casarão do senhor, do dono de engenho, do coronel, do político poderoso, do potentado em meio a um mundo tão diferente. Diverso porque residência senhorial fincada num local cujos arredores geralmente representavam a submissão, a vassalagem, a escravidão negra ou branca de mesmo açoite, suor e sangue.
Na região nordestina, desde os tempos coloniais, os casarões dos poderosos senhores se assemelhavam a castelos erguidos em meio aos campos sem fim aonde a servidão se espalhava ora no trabalho difícil na terra ora na dependência das ordens do soberano. Também nos moldes do feudalismo, tantas vezes um povo submetido ao desejo impositivo do senhor ou simplesmente alimentando ainda mais seu poder.
Os retratos não deixam negar. E muito ainda há desse fausto petrificado, das paredes largas, janelas grandes de madeira de lei, portas que mais parecem guaritas. Construções suntuosas, imensas, da mistura da pedra e da cal, do óleo de peixe para junção dos blocos, na madeira que cupim não rói, telhados que descem pelas varandas e coberturas feitas para vencer o tempo. Varandas, salas, salões, porões, sótãos, calabouços, esconderijos, janelas altas e tantas dependências bastem para o conforto e segurança do poder.
Avistados ao longe, mais parecem rochas esbranquiçadas em meio a casebres, currais, cercados e animais. Como parte desse mundo, porém no contexto da manutenção do poder, as famílias da terra, os empregados do senhor dono do mundo, os trabalhadores escravizados, uma classe de pessoas sempre no suor da luta e da miséria, cada vez mais submetida cada vez ao patrão. Sertanejos no seu ganha-pão, na vida na enxada, na foice, no facão, na vaqueirama, num faz-de-tudo por quase nada. E também os jagunços pelos arredores, em constante sentinela, e ainda outros na função da tocaia, da emboscada, na espreita aos desafetos do patrão. Sempre ávidos para entregar os restos inimigos aos urubus e outros bichos carnicentos.
Mas nem sempre assim, nem sempre o casarão como local de onde partiam as ordens de sangue. Em muitos deles apenas o exercício do mando político, do ofício do poder, do nascedouro de todas as decisões que influenciariam na vida local e até regional. Contudo, mesmo que a serventia do casarão não fosse para a proclamação do medo e do terror, ainda assim todos eles possuíam a função de exteriorizar o poder de seu dono. E ali o senhor tecendo alianças políticas, firmando acordos com outros de igual patente, recebendo governantes, providenciando assistencialismos, mandando fortalecer seu curral para as eleições. E o seu bicho-gente sempre chiqueirado com um quilo de alimento, com um remédio, com uma esmola qualquer.
Dos engenhos de cana-de açúcar nasceram muitos coronéis, dos latifúndios surgiram outras tantas levas de coronéis, do poder político brotaram os mais renomados coronéis, da força capitalista muitos outros coronéis se impuseram. Quer dizer, o coronelismo nordestino sempre teve o poder na sua raiz: econômico, político, agrário. Como eram senhores que necessitavam mostrar prestígio e se manter protegidos contra os muitos inimigos de igual poder, então faziam dos casarões a exemplificação maior de seu potentado. Dali saía o próprio destino, mas ali só entrava quem estivesse disposto a se ajoelhar aos pés do senhor.
Quando os afazeres políticos ou comerciais exigiam, os coronéis se deslocavam dos seus latifúndios interioranos para os centros urbanos. Daí que muitos casarões ainda existem como relíquias daqueles idos de poderes tantos nas mãos de tão poucos. Hoje servem basicamente como atrativos turísticos, mas nos seus cômodos fortificados ainda ressoam as vozes tantas vezes deturpadas pelos detratores da história. A verdade é que não se pode negar a importância do coronel no contexto da formação econômica brasileira, ainda que se contradiga sua forma de atuação política e social.
A história continua preservando nomes de senhores como Horácio de Matos (Lavras Diamantinas), Douca Medrado (Santa Izabel do Paraguaçu), João Gonçalves de Sá  (Jeromoabo), Chico Romão (Serrinha), Zé Abílio (Bom Conselho), Petro (Santo Antônio da Glória) Chico Heráclio (Limoeiro), Veremundo Soares (Salgueiro), Quelé (Petrolina), Chico Porfírio (Canindé do São Francisco), João Maria de Carvalho (Serra Negra) e Elísio Maia (Pão de Açúcar), dentre tantos outros. E todos estes emanavam ordens de seus casarões, de suas fortalezas fincadas nos alicerces do poder, do mando e da valentia.
Nas distâncias da história o casarão. Um mítico Coronel Segismundo Ventura abre as portas do grande salão e com passos lentos segue até a varanda da opulência senhorial. Chapéu largo à cabeça, terno de linho branco, bota de couro cru, uma arma descendo pelos lados do corpanzil. Tira o charuto da boca para chamar Biribeira, o jagunço. Diz alguma coisa ao seu ouvido e depois cospe no chão. O jagunço sabe que deve cumprir a ordem antes de o cuspe secar. Então sobe num cavalo e arriba em disparada.
Mas não chegaria a tempo de dar a resposta ao patrão. A história seria o anjo da morte do coronelismo. E aquele era o último autêntico coronel nordestino.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Cantiga matuta (Poesia)


Cantiga matuta


Fui sol e queimei
como seca medonha

fui lua e brilhei
como noite matuta

fui ligeiro e voei
como pássaro da manhã

fui semente e brotei
como esperança da vida

fui noite e despertei
como a luz após o medo

fui humilde e esperei
como o homem da terra

fui pra longe e voltei
como sertanejo que sou.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: o pássaro, a gaiola, o mato


Rangel Alves da Costa*


Todas as vezes que estou no sertão e logo cedinho desperto para caminhar pelos arredores, um fato me chama a atenção. Encontro muitos jovens andando de lado a outro com gaiolas com passarinhos e todos em direção aos arvoredos logo adiante. Certa feita a alguns perguntei por que assim faziam, então como resposta ouvi que era para que os pássaros engaiolados avistassem outros pássaros em liberdade e assim não permanecessem tristes e sem cantar quando retornassem à cidade. Mas que miséria humana, logo disse a mim mesmo. Como pode ter cabimento colocar uma gaiola num galho de árvore somente para que o passarinho se torne animado com a chegada de pássaros livres. Seria o mesmo que trazer um cidadão preso numa jaula e todo dia colocá-lo por alguns instantes diante da porta de sua casa. Qual o contentamento e alegria que poderá ter com tal situação? Bem assim ocorre com o passarinho. Nada justifica que um pássaro engaiolado seja colocado perante outro em liberdade e assim retome seu ânimo para cantar. Não passa de uma desumanidade agir assim. Desumanidade em manter um pássaro aprisionado, em colocá-lo numa situação de sofrimento ainda maior e também por negar-lhe o direito à liberdade no seu ambiente de vida. Por isso mesmo que pássaros definham, silenciam e morrem. Não por doença, mas pela dor causada pela situação que têm de suportar a cada amanhecer.
                                      

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

terça-feira, 27 de outubro de 2015

O DILEMA DA FICÇÃO NA HISTÓRIA


Rangel Alves da Costa*


Não são poucos os autores que colhem de fatos históricos os enredos necessários aos seus romances. Mario Vargas Llosa, por exemplo, foi buscar em Canudos e na saga de Antônio Conselheiro a porção ideal para o seu magistral A Guerra do Fim do Mundo. Assim também com Rachel de Queirós na sua narrativa acerca da longa estiagem que se abateu nos sertões cearenses nos anos 15. Da releitura do fato real surgiu o romance O Quinze.
Alguns críticos literários aceitam bem que a história ganhe contornos de ficção. Afirmam da nova perspectiva literária que pincela com outras cores fatos obscuros demais no seu contexto real. Outros, contudo, veem um desnorteamento da realidade através da criação literária. Pregam que se corre o risco de, não compreendendo o pano de fundo do fato histórico, o leitor acabe abraçando uma ficção como realidade.
Não comungo da crítica que tenta preservar a história da ficção. Ora, até mesmo os livros de história, através de pesquisadores e estudiosos, dão versões muito diferentes ao mesmo fato. Muitas vezes, de um livro para outro há um fosso incompreensível. Um autor relata um fato de um modo e outro o expõe de modo totalmente diverso. Qual a opção do estudante ou do leitor perante fatos assim? Confrontar visões diferentes nem sempre consensualizam o entendimento. E tudo continua em interrogação.
Para se ter um exemplo, há autores de livros de história que são chamados de porta-vozes oficiais das versões difundidas pelo poder. Estes descrevem os fatos elegendo personagens, situações e contextos. E assim para que os estudantes concebam os fatos e os personagens pela ótica oficial. Já outros, geralmente lastreados por ideologias, escrevem a mesma história desmistificando tudo. Quer dizer, contam a mesma história de uma forma totalmente diferente. E de repente uma figura histórica famosa pelos grandes feitos passa a ser vista como traidora ou charlatã.
Desse modo, creio que o fato histórico pode muito bem sofrer abordagem na ficção. O fato em si continuará o mesmo, a realidade não será deturpada pelo simples fato de ganhar uma trama diferenciada. Nos meus escritos, geralmente nas minhas crônicas, gosto de buscar na história o pano de fundo para o relato. Não digo que determinado fato aconteceu de outro modo nem desminto o que já foi escrito, apenas apimento o contexto, crio realidades dentro da realidade, faço nascer possibilidades, brinco com contextos inexistentes. Quer dizer, faço ficção a partir da história.
Acabei descobrindo, contudo, que estou criando um problema danado. Alguns, por se aterem somente ao que se difundiu como realidade histórica e não compreenderem minha incursão fictícia perante os mesmos fatos, eis que acabam desacreditando ou denegrindo minha escrita. Na verdade, só faltam mesmo me chamar de mentiroso porque escrevo sobre fatos inexistentes numa história demais conhecida. Quer dizer, não aceitam que o seu fato ou a sua razão de repente seja afrontada por alguém que parece brincar ou proporcionar outro contexto àquela realidade.
Nesta vertente, misturando ficção à história, tomo a história do cangaço como principal pano de fundo, comumente a saga de Lampião e seu bando. Não mudo nada da história, deixo tudo como ela contada e repetida, o que faço é tão somente criar situações realmente inexistentes. Por exemplo, escrevo sobre coiteiros que jamais existiram, escrevo sobre fatos inexistentes no contexto histórico, crio situações dentro do bando que nunca existiram de fato. Mas não minto, apenas crio tramas possíveis dentro daquela realidade.
Outro dia, um leitor comentando um texto meu numa rede social, disse que como ficção a escrita tinha validade, mas muitas das situações descritas não eram verdadeiras. Já outro me perguntava como aquilo poderia ter acontecido se nenhum livro já havia falado sobre tal assunto. Não respondi. Não adianta responder, pois meu intuito é tão somente criar uma situação literária que esteja acima de qualquer confirmação. Sei muito bem que serei incompreendido, chamado até de mentiroso, mas faço somente acrescentar ingredientes aos fatos da mesmice histórica.
Estou juntando meus textos para publicação. O título não será outro senão “Entre a Ficção e a História: o cangaço imaginário”. Não sei se além da explicação dada no título, ainda terei que fazer uma introdução dizendo que nem tudo que ali será encontrado pode ser visto como realidade histórica. Ou mesmo colocar na capa: Cuidado. Este não é um livro sobre a história do cangaço, mas de situações imaginadas no contexto do cangaço.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Espinhos e flores (Poesia)


Espinhos e flores


Da cabeça de frade
se faz doce e cocada
e os espinhos da seca
somem ante a doçura

do miolo da urtiga
se mata fome e sede
e o queimor da folha
apenas o sol sertanejo

do espinho de quipá
se faz ponta de agulha
e na palma nasce flor
parecendo outro jardim

da espiga desolada
louro cabelo de boneca
o milho verde e ralado
e aroma no cuscuzeiro

tudo é transformação
nas distâncias do sertão
um dia a chuva e trovão
e logo a seca e desolação.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: a vida do vento


Rangel Alves da Costa*


Sei que muita gente não entende nada sobre a vida do vento. Muitos sequer se dão conta que o vento existe. Só quando ele se torna ventania ou vendaval. Ainda assim, nestes momentos, geralmente se escondem por medo de sua face. Mas como temê-lo se não o conhece? Também muito pouco sei sobre vida, sua linhagem, sua existência, mas o pouco que sei não o faz distanciado de mim. E tudo o que sei sobre ele me habilita a imaginar sua doce feição, ainda que venha voraz e engolindo tudo. Ora, o vento é poético, é nostálgico, é saudoso, é mensageiro, é amigo, é presença constante, é sinal primeiro de tudo que acontece ao redor e além. O vento é força, é destemor, é ferocidade, mas também a suavidade da brisa, o passeio da aragem, a mansidão da calmaria. O vento gosta do ser humano de tal forma que ele mesmo vai seguindo a procura de cada um. Entra pelas janelas, pelas frestas, pelas aberturas. E entrando vai como em reconhecimento do ontem e do passado. Açula a cortina, balança a folhagem, levanta a saia, desforra a mesa, leva adiante os restos, sempre remexe por onde passa. E de repente aquele frescor no rosto, os cabelos esvoaçando, as folhas mortas passando adiante. E de repente a chegada apressada, em verdadeira correria, para anunciar a chuvarada que se forma adiante. Faz assim, mas sabe que as portas e janelas serão fechadas à sua presença. Insistente, vai açoitando, batendo à madeira, chamando até se cansar. E depois, entristecido, vai seguindo adiante num murmúrio de tristeza e sofrimento.
                                      

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

RETRATOS DE FAMÍLIA, MOLDURAS DE SAUDADE


Rangel Alves da Costa*


Casa que se preze guarda em cima de qualquer móvel o retrato da família. Quando não cabe tudo num só porta-retratos, as fotografias vão sendo espalhadas em molduras próprias, numa o casal, noutra os filhos ou com outras arrumações. Contudo, comumente as paredes servem como repositório de gerações. Então as molduras vão se enfileirando como em varais de memórias e saudades.
Os retratos de família, contudo, não servem como meros enfeites de móveis ou de paredes. As pessoas que estão retratadas já preexistem nos álbuns do coração. O que ali se expõe é apenas uma cópia do que permanece tão vivo nos sentimentos. E com letras douradas alguém escreve: meu avô, minha avó, minha mãe, meu pai, meu irmão... E talvez ainda: Por que eterna é a vida do amor. E imortal é o sentimento de quem ama os seus...
O tempo vai passando e aqueles rostos com a jovialidade de um dia, simplesmente vão deixando aos espelhos que os recobre a dolorosa tarefa de mostrar o envelhecimento nos tons amarelecidos que vão surgindo. As cores turvas e os embaçamentos são as rugas que vão se formando lá dentro, ainda que a feição seja a mesma na fotografia. Mas o amor sentido, a saudade que permanece, nada disso consegue envelhecer naquele sentimento que faz do passado um reencontro com os seus.
Mas inegável que as molduras antigas, envernizadas, parecendo trabalhadas à mão, guardam uma indescritível e pesarosa solidão. O ontem ali, na quietude silenciosa dos dias, se falasse, se avistasse o hoje, e como espelho refletisse o instante, certamente romperia a sofrida mudez para dizer tudo aquilo que a despedida impediu de expressar. E assim porque todo adeus leva consigo palavras, gestos, ações e atitudes, que a existência terrena não deu tempo suficiente de concretizar.
Não são raros os familiares que após o adeus final continuam se lamentando pelo que deixarem de expressar quando na presença dos seus. Como aquela canção, repetem que eu deveria de ter amado mais, conversado mais, vivenciado mais, acarinhado mais. Eu deveria ter demonstrado todo o meu amor, todo o meu afeto. Assim repetem porque somente depois reconhecem quanto tempo foi perdido imaginando que a vida é uma eternidade.
Ante as fotografias, de repente a pessoa imagina como aquela casa continua cheia de gente. Os avôs, os pais, os irmãos, todos ali na continuidade dos dias, na passagem do tempo. Talvez muitos anos já tenham se passado desde a despedida ou a distância tenha mantido alguns afastados, mas todos ali presentes pelas salas, varandas e quartos. E os olhos que passeiam pelas paredes fazem do reencontro singelas palavras: quanta saudade, quanto desejo de tê-lo aqui ao meu lado para um abraço apertado! E então se pergunta: Por que somos ainda e não somos mais?
Outras vezes, os retratos da parede são da própria pessoa em idades diferentes. Naquele álbum estendido a criança de chupeta, o menino de cabelo encaracolado, o jovem penteado a brilhantina, o adulto fingindo uma feição mais austera. E ainda assim quanta saudade. E saudade porque aquelas feições sempre despertam nostalgia, uma vontade danada de reviver aqueles idos. Mas também, quando comparado ao instante presente, sempre uma angústia pelas marcas refletidas no espelho.
Contam que um dia alguém partiu sem destino e deixou em casa apenas um retrato emoldurado na parede. Desde que o irmão viajou, assim que sentia saudade sua única irmã corria até o quarto para afastar a tristeza diante daquela feição tão amada. Mas a mocinha tinha muitos afazeres e de vez quando passava dias sem avistar aquele retrato. Apenas pensamentos passageiros a colocava diante do irmão distante.
Mas um dia que a saudade bateu mais forte, a mocinha correu até lá e ao afastar a cortina para olhar o retrato sentiu algo diferente. Não sabia explicar porque, mas tinha certeza que o sorriso estava estranho e o olhar parecia um pouco mais distante. Pensou que talvez a poeira estivesse turvando o espelho e modificando aquele jeito de ser no retrato. Limpou tudo com cuidado e o colocou num local mais visível.
Ela viajou com os pais e por quase um ano ficou sem ver o retrato. Assim que retornou e abriu a porta do quarto logo sentiu a falta de qualquer sorriso dentro da moldura. Ficou pensativa, imaginando o que poderia estar acontecendo. No dia seguinte, ao retornar ao local se tomou de espanto ao perceber uma tristeza imensa na fotografia. No outro dia, algo ainda mais estarrecedor: a imagem de seu irmão estava sumindo, simplesmente desaparecendo.
 Não teve mais dúvidas do que poderia ter acontecido. E então começou a chorar. Percebeu que a fotografia do irmão estava substituindo a presença dele e que se a imagem estava sumindo era porque ele também estava partindo. A cada vez que retornava mais em névoa encontrava naquela face. Um rosto sumindo, a feição desaparecendo de vez.
Um dia o rosto sumiu da fotografia. Então, sem poder fazer outra coisa, foi até a moldura e colocou flores ao lado. Depois acendeu uma vela e continuou a chorar.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um + um (Poesia)


Um + um


Um
e um
e logo
dois
depois

dois
e um
amor
que se
somou

nós
a soma
agora
a flor
aflora

assim
o amor
tanto
e tudo
canto

viver
o amor
somar
e mais
amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: uma pessoa


Rangel Alves da Costa*


Uma pessoa talvez seja apenas uma pessoa. Ou uma pessoa talvez seja apenas mais uma pessoa dentre as tantas pessoas do mundo. Ou uma pessoa seja apenas a pessoa desconhecida ou que vem e que passa ou que some na estrada e nunca se avista. Ou uma pessoa seja apenas um nome: João, John, Johnny, Johan, Maria, Mary, Mari, Pedro, Peter, Pier... Ou uma pessoa seja apenas uma face, um rosto apenas, apenas um olhar e uma feição. Ou uma pessoa talvez seja apenas mais um, mais dois e tantos, dentre tantos existentes que não se conhece ninguém. Ou uma pessoa seja apenas eu, seja apenas você, ou seu pai ou sua mãe, ou seu irmão ou sua irmã, ou seu ex-amor. Ou uma pessoa seja apenas um epitáfio, uma saudade, uma distância ou uma oração. Ou uma pessoa talvez seja apenas aquilo que dizem, que falam, que pensam, que creditam, que caracterizam. Ou uma pessoa seja apenas um ser envolto em segredo e mistério, alguém cuja existência apenas se conhece. Ou talvez uma pessoa seja o seu sobrenome, sua raiz familiar, seu potentado de sangue, sua identidade, sua conta bancária ou sua riqueza. Tanto faz. Tanto faz que a pessoa seja assim ou de outro modo, que esteja aqui ou ali, que seja do que jeito que for. Ora, é pessoa, sempre será pessoa e jamais apenas uma pessoa. Pessoa e tudo, pois gente, ser humano, com raça, sexo, cor, vida, identidade. E uma pessoa assim, seja quem for, sempre será tudo para mim.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

domingo, 25 de outubro de 2015

JOÃO MARIA E ELÍSIO MAIA: O MANDO CORONELISTA ALÉM-FRONTEIRAS


Rangel Alves da Costa*


Nos sertões de antigamente, de um povo mais oprimido, depauperado e dependente do que agora, estendeu-se um manto coronelista que chamava para si não só o poder e o mando como a proteção às desvalias e injustiçamentos. Nas mãos do coronel estavam a chibata e o açoite, mas também a esmola e o abrigo contra difíceis situações. Era algoz e benfeitor, carrasco e protetor. Como a maioria dos sertanejos necessitava do amparo para sobreviver, a opressão quase sempre silenciava.
Era um poder desmedido dos coronéis, e não apenas nas circunscrições de mando, nos latifúndios e povoações, mas também além-fronteiras, muito além dos limites do alcance de suas ordens, avançando até mesmo em estados vizinhos. É neste sentido que o coronelismo baiano e alagoano ultrapassou as fronteiras estaduais para influenciar fortemente nos sertões sergipanos, sem que houvesse a mesma correspondência de alastramento de mando. Verdade é que os coronéis sergipanos já não existiam quando aqueles das vizinhanças continuavam em plena atuação.
Dois coronéis se sobressaíram na atuação além-fronteiras. O primeiro foi João Maria de Carvalho, a partir do sertão baiano de Serra Negra (atual Pedro Alexandre), e o segundo foi Elísio Maia, a partir do município alagoano de Pão de Açúcar. Estes dois senhores não só simbolizavam o coronelismo regional, comandando a vida local e influenciando em municípios circunvizinhos, como agiam muito além de seus feudos de mando. Suas vozes, desejos e intenções eram respeitados em toda a região sertaneja de Sergipe, principalmente nas confluências dos carrascais do Velho Chico.
João Maria de Carvalho, o famoso e até hoje prestigiado Coronel da Serra Negra, atuou fortemente na política, no latifúndio e principalmente através de uma rede de proteção que o tornava conhecido como refúgio de cangaceiros, bandidos comuns e de linhagem familiar, perseguidos políticos e injustiçados, todo tipo de gente que chegava aos seus domínios em busca de uma salvaguarda. Fato de relevância é que mesmo encastelado no sertão baiano da Serra Negra seus protegidos eram comumente de outros estados, principalmente de Sergipe.
Elísio Maia
João Maria de Carvalho
Nascido em 24 de janeiro de 1890 e falecido a 09 de agosto de 1963, aos 73 anos, João Maria de Carvalho possuía dupla patente de coronel, a da legalidade e a de mando. De raiz familiar das mais afamadas da região, era irmão do Coronel Liberato de Carvalho, um dos principais chefes da polícia baiana no encalço de Lampião. Como verdadeira contradição familiar, enquanto o Coronel João Maria protegia Lampião e seus cabras, suprindo-os de abrigo e do que mais necessitassem, o seu irmão Liberato vivia como fera no rastro do predador dos sertões.
O poder e a influência do Coronel João Maria iam muito além da Serra Negra e região. Todo o sertão sergipano respeitava o seu nome e suas ordens interferiam não só nas políticas locais como estadual, pois era sempre ouvido pelas principais lideranças políticas do estado. Como Serra Negra faz divisa com Poço Redondo, foi neste município sergipano onde mais atuou. Possuía não menos que onze propriedades, verdadeiros latifúndios, na localidade (Fazendas Santo Antônio, Poço do Mulungu, Riacho Largo, Jurema, Recurso, Propriá, Exu, Pia da Barriguda, São Clemente, Paraíso e Cacimba Dantas).
Além disso, mantinha uma rede de poderosos compadres que acabava decidindo todo o destino daquele sertão sergipano. Mantinha constantes contatos com lideranças locais e por muito tempo foi protetor de Zé de Julião (José Francisco do Nascimento), após este deixar o cangaço com a alcunha de Cajazeira e quando se lançou candidato a prefeito de Poço Redondo. A preocupação do governo estadual era tanta com a possibilidade de eleição do ex-cangaceiro, que as forças de Leandro Maciel tudo fizeram para afastar o apoio do Coronel da Serra Negra. Mas, homem de palavra, prosseguiu apoiando, ainda que o seu protegido jamais pudesse vencer os canhões da velha política sergipana.
João Maria de Carvalho
Em moldes diferenciados foi a atuação do poderoso alagoano Elísio Maia, senhor e mandatário de Pão de Açúcar e região. Diferente de João Maria, que tanto possuía latifúndios como influenciava pessoalmente no sertão sergipano, o coronel das Alagoas agia através da palavra. E nunca deixava de ter uma palavra ao compadre sergipano que o procurasse. E na voz a ordem, a tomada de providências imediatas, a senha de consequências apavorantes. Ademais, tanto acolhia a gente malfeitora enviada pelos compadres sergipanos como enviava seus cabras tanto para proteger como para atuar firmeza.
Elísio da Silva Maia, ou simplesmente Coronel Elísio Maia, ou ainda “Seu Elísio”, como carinhosamente chamado pelos conterrâneos, foi senhor absoluto de Pão de Açúcar e região por mais de quarenta anos. Temido, acusado das maiores atrocidades contra desafetos, homem de jagunço e paletó, foi delegado, prefeito, deputado, mas também tido com verdadeiro guardião dos necessitados. Negava a pecha de coronel e se intitulava “o Elísio Maia do povo”. Sua história se assemelha a de uma verdadeira lenda ora amada ora odiada. Mas o ódio político já não mais subsiste, pois a fama do homem reescreveu sua história.
Assim, João Maria de Carvalho e Elísio Maia representaram a força coronelista alastrando suas forças além-fronteiras. Por isso mesmo havia um ditado popular dizendo que depois do São Francisco quem manda é Seu Elísio e depois da Serra Negra quem manda é João Maria. Mas os dois atravessam o rio e vão muito além da serra.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

A palavra (Poesia)


A palavra


Quando menino
pensei que para namorar
bastaria dar maçã do amor
ou flor roubada em jardim
e assim fiz tantas vezes
não sabendo que a menina
queria um verso rimado
falando de beijo e desejo

depois que cresci
e me fiz poeta para namorar
pensei que ao amor bastaria
um verso de lustre e métrica
com brilho e rima perfeitas
para encantar minha musa
e assim fiz tantas vezes
e por isso minha solidão

nunca imaginei que a palavra
a simples palavra seria tudo.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: lixo e vidas


Rangel Alves da Costa*


No lixo a vida. No lixo os restos putrefatos, os molambos sebosos, a podridão das carniças, os azedumes ensanguentados, os vermes e as imundícies. Mas pessoas existem que catam o lixo, que busca o lixo, que recolhem o lixo, que avançam sobre o lixo, que brigam pelo lixo, que precisam do lixo. No lixo a deterioração do mundo, da exacerbação da vida, do imprestável excesso, do luxo acumulado, do requinte apodrecido, da ostentação que se transforma em impureza. Mas certas pessoas nem pensam assim, pois avistam as imundícies como preciosidades e as bagaceiras como possíveis alimentos. No lixo o velho colar, o relógio sem ponteiro, o sapato sem sola, a calça rasgada, a camisa sem botões, o lenço sujo, as roupas íntimas rasgadas. Mas certas pessoas se embelezam com tudo isso. Mas somente quando podem remendar, pregar, ajeitar para dar uso ou consumo. No lixo o capitalismo transformado em restos, a burguesia transformada em entulho, o poder transformado em nada. Por que no lixo o espelho de tudo. E tanto a burguesia como o capitalismo se consome a si mesmo, tornando-se num lixo qualquer. No lixo a doença, os refugos de enfermidades, os fiapos adoecidos. Mas eis a força de tal destino. No lixo a vida de tanta gente. Os males da fome são curados com a comida encontrada, a feiura da nudez é combatida pela roupa achada, muita da carência do barraco é no lixo seu comércio. E sem moeda de troca, apenas pelo todo de si que se deixa pelas calçadas, esquinas e lixões: a miserável condição humana de ser tratado, olhado e reconhecido como o próprio lixo.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

sábado, 24 de outubro de 2015

CORSÁRIO TRISTE EM MAR SOMBRIO


Rangel Alves da Costa*


Sob as ordens do rei, eis que se lançou ao mar para atacar as embarcações inimigas. Não era pirata nem ladrão das águas, mas tinha carta para pilhar qualquer navio que fosse de bandeira desafeta à coroa real. Mas como levar a empreitada adiante e vencer potentes canhões, marinheiros astutos e valentes capitães, se dispunha somente de um pequenino barco a vela? Seriam as sombras de um pequenino veleiro perante costados gigantes e ferozes.
Lançou-se ao mar sob uma salva de tiros dos canhões reais. O próprio rei no porto estivera para presenciar a partida do senhor dos mares. O grande corsário do rei, conforme anunciado em pompa. O mar agitado logo levou o veleiro às distâncias e o arremessou nos primeiros rochedos. A maestria do marinheiro salvou a embarcação e fez aprumar as velas rumo aos horizontes desconhecidos. Levava cartas náuticas, mapas e bússolas, mas sabia que seriam de pouca serventia naquele mar de gigantes.
Já era ao pôr do sol quando olhou ao redor e não avistou nada além de água. Nenhuma gaivota dava rasante pelo agitado pela ventania, apenas as águas vorazes, agitadas e que pareciam querer destroçar a embarcação a qualquer instante. Distante da costa, sem nenhum rei para avistar ou temer, sozinho e entristecido – e muito mais amedrontado do que imaginara ficar -, baixou as velas e se deixou levar, mesmo com todos os perigos das águas revoltas. Agora era um barco ao seu deus-dará.
Sabia que não demoraria muito e seria lançado às águas, o barco tornado em pedaços e afundados seus mantimentos. Era exímio nadador, mas também sabia que não seria fácil encontrar sequer uma pedra que lhe garantisse a salvação ou a sobrevivência por uns poucos dias. Acaso encontrasse uma ilha, ou acaso fosse encontrado por outra embarcação, certamente que sobreviveria daquele destino a que fora lançado. Porém sem jamais colocar os pés naquele porto do rei que esperava notícias suas. Tinha que informá-lo quantos navios já havia afundado, quantos barris de ouro já havia pilhado, quantas riquezas já havia encontrado. Triste sina. Pensou.
Num repente, antes de tomar uma urgente decisão, recordou das desventuras de Pi e seu barco à deriva. Avistava o rapazinho indiano tentando domar não só o tigre Richard Parker como as forças da natureza. Avistava o tigre de bengala ameaçando o garoto e este colocando a própria vida em perigo para salvar a do que desejava ser seu algoz. O tigre na segurança do barco e o menino sobre as águas ao redor. Ai como gostaria de encontrar uma ilha igual aquela que Pi encontrou. Mas reconhecia-se num mundo e numa situação totalmente diferentes. O seu tigre seriam tubarões famintos e seu barco apenas um monte de restos boiando. E a ilha? Alguém já disse que a morte também se assemelha a uma ilha: é desconhecida por todos os lados. Seria este o seu destino?
Amarrou ao seu corpo o máximo que pôde de mantimentos e se deitou num canto, desejoso de adormecer para acordar com a surpresa que o mar imenso lhe reservava. Fechou os olhos e começou a ouvir a cantiga das águas, a força das ondas batendo no barco, gritos no sopro do vento, a dança das velas em redemoinho. Com olhos fechados, aqueles sons como noites de furiosas tempestades. Mas também como sinos roucos dobrando uma despedida qualquer. Seria a dele? E num repente já estava dormindo. E dormia tão profundamente que os olhos do mar certamente imaginavam estar deitado numa confortável cama. Um corpo estendido sobre panos confortáveis e uma janela aberta quando despertasse. Ilusões.
Assim, conflagrado pelas desditas da sina, adormeceu e sonhou. Quanto mais tentava fugir mais Moby Dick surgia com dentes imensos à beira da proa. Aportava numa ilha e era recebido por canibais famintos. Descansava numa pedra grande e começava o ouvir o canto da sereia se aproximando cada vez mais. Imaginou ser Ulisses, imaginou ser o Capitão Jack Sparrow, imaginou ser o destemido Barba-Negra e até o famigerado Barbarossa. Viu-se colocado num baú e lançado ao mar. Sacolejado pelos seres tenebrosos das águas, já estava para ser destroçado quando acordou num pulo, suado, assustado. Olhou para cima e avistou apenas o seu mar de madeira. Um mar no telhado da casa.
Costumava deitar e esperar o sono chegar enquanto mirava o telhado e lá em cima, entre caibros, ripas e telhas, um mar imenso. Aportava numa das frestas de raio de lua e viajava pelos continentes. Mas nunca havia adormecido e sonhado assim. Pela primeira vez na vida foi corsário de barco à vela em mar tenebroso. Depois levantou e foi até a janela. Ao abri-la avistou uma lua imensa e um navio pirata roubando estrelas.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Cartas (Poesia)


Cartas


Pelas águas e silêncios do mar
escritos de um amor muito antigo
numa garrafa que agora jaz sobre a areia
alguém que tanto se entregou por amor
e lançou nas ondas o que se fez clamor

o carteiro vem chegando
com envelope de letras miúdas
e lá dentro papel cheirando a perfume
mil letras revelando tristeza e alegria
dizendo da saudade e do retorno um dia

deixada no umbral da janela
a carta se abre sozinha para o entardecer
declarações apaixonadas de querer demais
promessas de eternidade no primeiro beijo
e assim a poesia de todo amoroso desejo

cartas e bilhetes que chegam e partem
escritos de um amor gritando as palavras
entre beijos dados e perfumes derramados
a singela voz de quem está bem distante
e voa em papéis para chegar num instante.

Rangel Alves da Costa



Palavra Solta: a vela, a chama, a fé


Rangel Alves da Costa*


Apenas uma vela, apenas uma chama, mas de incontida fé. A força do sagrado sob tênue luz, o milagre maior no clarão do olhar. Em meio às sombras da noite, debaixo do bradar dos sinos na igrejinha ao longe, os passos seguem lentamente, a mão segura a vela e logo a chama ilumina ao redor. Mas não pela luz da vela, que não vai além do altar da feição, mas pelo imenso sol que desce dos céus. Uma luz tão forte que nela se torna impossível avistar a face de Deus. Os olhos fechados não avistam o sol, nem a chama se faz mais que uma leve e suave valsa amarelada. Apenas o silêncio da oração e o grito de fé por dentro. O rosário vai se alongando na boca, o terço se torna igreja entre os dedos. Ninguém ouviria uma só palavra, mas a boca grita sua palavra de fé. Tudo ao redor como um céu amarelado de pouca luz e no oratório a festa dos santos e anjos a cada toque de sino ouvido. Os joelhos se dobram e descem ao chão, as mãos se curvam ainda mais acompanhando a cabeça que se prostrai frente a luz. E assim o sagrado tem o seu instante, a fé tem a sua voz. Em tudo um silêncio e tão pouca luz, apenas a chama de uma vela frágil. Mas não há mais claridade que a transbordante ao dobrar o sino, no instante da prece no altar de seu Deus.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

NO MEIO E DEPOIS DA TROVOADA


Rangel Alves da Costa*


Durante a estiagem, depois de muitos meses sem cair pingo d’água, as mãos se elevam aos céus, as bocas se lábios se desandam em oração, todos os santos e anjos são chamados à intervenção. Assim acontece no sertão. Joelhos envelhecidos se curvam aos oratórios, dedos calejados contam as contas dos rosários, imagens sacras são cada vez mais devocionadas. Além das rezas, das ladainhas, as missas de intenções, também as procissões pelas estradas matutas e empoeiradas. São Pedro, Santo Antônio, Divino Maior Pai Eterno. E lá vai o andor de um povo aflito. Mas tudo muda quando o céu escurece e as nuvens prenhes se aproximam. Agora o temor é outro, não da seca, mas da tempestade que possa cair. Quando os trovões ribombam e os relâmpagos estilhaçam os céus, então é um deus nos acuda. E quando a chuvarada relampejante, sob os acordes aterradores dos trovões, começa a cair, começa a se despejar com força, então os casebres se fecham, se amiúdam, se recolhem em medo. As rezas agora são outras, voltam-se para os santos protetores contra o desandar da natureza. Vidraças são cobertas, panos são colocados nas frestas, nenhum alumínio pode estar descoberto, ninguém pode mostrar alegria ou contentamento. Muita gente corre pra debaixo da cama, se entoca nos armários, começa a chorar desbragadamente. A cada trovão maior e mais preces são elevadas, a cada estrondo no alto mais o medo se entrega ao que Deus quiser. Valei-me Deus, nos acuda! Valei-me Deus, salvai-nos desse fim de mundo. A voracidade do vento ecoa os rogos do povo. As nuvens são amainadas. Os estrondos vão sumindo aos poucos. Apenas chuva de molhar a terra. Então as portas começam a se abrir. E tudo parece a Arca de Noé depois daqueles dias e quarenta noites. E tudo mundo sorrindo, contente, elevando outras preces. Pela vida e pelo renascimento da terra molhada.
Logo alguém se encaminha em direção ao tanque. Precisa saber se tanta água rompeu as bordas. Mal consegue caminhar com o lamaçal pegajoso, com os troncos caídos, com as galhagens que se estendem por todo lugar. Não há mais estrada, vereda ou caminho. Uma cobra boia sem vida. Assim também com um calango e um preá. A lama é tanta que mal dá pra caminhar. As botinas se enchem de água e de barro. Só mesmo um facão para afastar os galhos que se deitam sobre a acabação. Cinco minutos pra vencer coisa pouca de chão, mas não dura muito e avista o tanque transbordante inteiro. Nem parece aquele poço fundo, de barro e tristeza, com animais à beirada morrendo de sede. Agora outra visão, mas também entristecedora. Foi água demais caída em pouco tempo. O sertão não suporta tanta água em tão pouco tempo. Chuva boa é aquela que cai forte, mas logo se transmuda em chuvarada leve e compassada. Chuva muita prejudica tudo. A terra parece não gostar de beber água demais, pois logo rejeita e se transforma em enxurrada. E a enxurrada, ao invés de descer cada vez mais ao fundo da terra, lá embaixo onde as raízes aguardam uma molhação, simplesmente vai correndo por cima do chão, do barro, dos caminhos. Chuva boa é aquela que tanto molha como junta água e é absorvido nas profundezas. É esta que alimenta a terra, que enche tanques, fontes e barreiros, que faz o sertanejo se preparar para semear. Igualmente acontece se a semente é jogada depois da terra molhada, no ponto de vingar, mas depois cai uma trovoada de uma hora pra outra. Então estará tudo perdido. A terra será removida, a enxurrada cuidará de levar a semente, e nada daquilo que o homem fez trará qualquer resultado.
O sertanejo olha em direção ao tanque cheio, transbordante, mas não sente a alegria esperada. As bordas foram rompidas e as águas logo terão outro rumo. O tanque precisa de borda para acumular muita água e não ter de secar uns dois ou três dias depois. O fundo seco, sedento, vai chupando tudo que houver por cima. Mas seja a vontade de Deus, diz o homem num misto de contentamento e desolação. Alegra-se quando ouve um passarinho e mais ainda quando ele faz pouso numa catingueira adiante. Desde muito que não via nem ouvia passarinho por ali. Bastou chover que a vida parece ter sido refeita. E mais um, mais outro passarinho. Encontra um cágado no caminho de volta e passa a ter a certeza que mais trovoada não demorará a cair. Apressa o passo. Precisa reforçar o casebre, precisa se preparar para a força das águas muitas. Por enquanto é só esperar. Depois de que o sol novamente surgir há de se pensar no melhor a ser feito. Mas tudo tão molhado, tão cheio d’água que nem parece sertão. Mas é sertão. Irreconhecível por tanta água, mas é sertão. E tudo na lição do Eclesiastes: há um tempo pra tudo...


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Lalonge... (Poesia)


Lalonge...


Lalonge...
nome de paraíso
e de encantamento

Lalonge...
uma estrada de flores
e uma porta aberta

Lalonge...
um encontro de abraço
um carinhoso afeto

Lalonge...
uma rede e um cafuné
um dengo de amor e paz

Lalonge...
uma moringa com água
e um bule cheirando a café

Lalonge...
por que lá longe
é longe daqui.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: o filme sobre Joãosinho Trinta


Rangel Alves da Costa*


Não acompanhei o filme desde o início, mas o que vi me deixou desalentado pela pobreza das cenas. Ora, como se sabe, o carnavalesco Joãosinho Trinta era grandioso, de um fazer imenso, de uma exuberância original e indiscutível criatividade. Desse modo, um filme pra relatar um período de sua vida – e neste caso quando entrou no Salgueiro substituindo o carnavalesco Fernando Pamplona – deveria ser muito mais alentado que o realizado por Paulo Machline. Conta com atores excelentes, principalmente Matheus Nachtergaele no papel do carnavalesco maranhense, mas fica por aí. Praticamente não há uma trama que contagie, pois se volta apenas para a sua luta mostrando ser capaz de fazer um carnaval à altura do mestre Pamplona, e tentando vencer as críticas internas pela inovação no enredo, nas alegorias e adereços. No demais, sequer mostra um barracão inteiro, alegre, esfuziante, tomado de pessoas trabalhando incessantemente. Um evento para escolha do samba enredo estava com não mais que trinta pessoas. E isto era impossível de acontecer, pois mesmo naquele tempo o barracão se enchia por amor à escola e para torcer. Logicamente que o filme relata uma época onde o carnaval era muito menos luxuoso, mas não da forma empobrecida como foi mostrado. Seja sobre qualquer época, creio que o filme sobre Joãosinho Trinta deveria ser igualmente rico, imenso, luxuoso, com todo o esplendor que era peculiar. Neste sentido, o filme é de caricata pobreza. E o mundo carnavalesco sempre gostou do luxo. Afinal de contas, pobre gosta de luxo. Quem gosta de pobreza é a intelectualidade.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

DOS VELHOS CADERNOS


Rangel Alves da Costa*


Após a derrubada dos animais no curral do açougue, ainda na madrugada do domingo, o couro era estendido em estacas nos arredores à espera de outros donos. Seu destino não era outro senão ser transformado em selas, chapéus, botas, alpercatas, alforjes e todo um aparato de couro tão próprio no cotidiano sertanejo. Mas do couro fresco ao couro curtido um longo e cuidadoso processo devia ser observado.
O couro não podia ficar muito tempo exposto sob pena de apodrecer e por isso mesmo acabava sendo levado para cacimbas fundas nas lonjuras do riacho. E lá, sob a vigilância do tempo, permanecia alguns dias até que o coureiro fosse retirar sua preciosa matéria-prima. A fedentina pelos arredores era insuportável, pois o couro mesmo tratado continua com cheiro ruim, apodrecido. Mas foi com esse aroma indesejável que o sertão se preparou para vencer as dificuldades dos dias.
Brasilino, um dos maiores artesões do couro da região sertaneja, dizia que nada ou ninguém apanha mais que o couro até chegar ao ponto de ser trabalhado. Apanha de um lado e depois do outro, é prensado e revirado, até ficar na consistência requerida para o trabalho. Então o artesão cortava, media, batia, costurava, pregava, tudo cuidadosamente juntado, até surgir uma sela tão bonita quanto o próprio alazão, um chapéu tão sertanejo quanto o homem que o carregava debaixo do sol e da lua.
Desde muito tempo que uma verdadeira grife do couro foi reconhecida perante alguns dos mais diligentes artistas do couro. Não era qualquer um que recebia encomenda para dar vida àquelas suntuosas indumentárias cangaceiras, sempre cheias de adornos e costuras diferenciadas. Deveras a grande responsabilidade em trabalhar chapéus com formatos diferentes, ornados de estrelas e moedas de cobre e ouro, com desenhos e riscados que não podiam contrariar seus usuários. E também cartucheiras e embornais luxuosos. O couro certamente que era o mesmo, mas os enfeites eram entregues pelos emissários da cangaceirama: o coiteiro.
O coiteiro, quando não servindo ao conforto e estadia do bando, e também quando não enviado para missões junto aos poderosos da região, era pessoa comum como qualquer sertanejo. Dono de uma terrinha de casebre e malhada, ele assegurava a sobrevivência no ofício de lavrador, vaqueiro, coureiro ou qualquer coisa que lhe garantisse o sustento. Geralmente morando nos afastados das povoações, vivia em contato direto com a mataria e por isso mesmo conhecendo cada palmo de chão como as linhas da própria mão, e por isso mesmo tão importante à sobrevivência do cangaço. Sem ser cangaceiro, ainda assim primava pelo respeito e obediência a Virgulino Lampião.
Zé Caçuá era sertanejo de ofício mais que inusitado. Num tempo onde as estradas eram verdadeiras veredas e os carros eram raridades amedrontadoras sertões adentro, com viagens mais longas feitas nos lombos dos animais, carroças e carros de bois, ele costumava levar na cabeça, por cerca de quinze quilômetros, caixões vazios de defuntos. Morria um na beira do rio e então a ele era dada a incumbência de ir até a sede do município atrás da estranha encomenda. Dizem que mesmo durante a noite ele cortava estrada com aquela incumbência. E certamente não seria nada agradável de repente virar uma curva e encontrar Zé Caçuá com um caixão de defunto na cabeça.
Mas o danado do homem não fazia somente esse tipo de transporte. Qualquer coisa que precisassem na povoação e logo ele era enviado às pressas. Jamais montou num cavalo, burro ou jegue, pois tudo fazia andando apressadamente e carregando num canto da boca um cigarro de palha. Sua demora era pouca, pois chegava, procurava o encomendado, colocava na cabeça ou nas costas e retornava. Dependendo da necessidade, fazia o mesmo percurso duas ou três vezes ao dia. Mas certa feita não voltou. Foi encontrado morto no meio da estrada. E ao lado um caixão de defunto aberto. Mas pobre demais, sozinho na vida e na morte, acabou sendo enterrado envolto numa rede velha.
Numa casinha de beira de estrada morava Sinhá Zulmira. Caminhando meio encurvada pela idade, pois com mais de oitenta anos, morava sozinha desde que seu esposo morreu enlouquecido depois de uma seca de muitos anos. Após isso passou a sobreviver dos trocados que recebia com a venda de cocada branca, feita no tacho do quintal e oferecida numa banquinha colocada do lado de fora do casebre, debaixo de um umbuzeiro. Contudo, muitos ainda relatam que o sucesso da cocada de Sinhá Zulmira não estava na gostosura do doce, mas pelo que vinha acompanhada.
O acompanhamento era uma caneca d’água, apenas isso. Mas aí o grande segredo. Água coada, adormecida em moringa no sereno da noite, parecia gelada diante do calorão sertanejo. E também a limpeza da caneca de alumínio. Constantemente lavada com folha de juá e esfregada com areia, reluzia no brilho do sol. Depois de se fartar da cocada, o viajante se enchia de contentamento diante da quartinha e da caneca. E muitos aproveitavam a ocasião e ali mesmo tiravam um cochilo no sombreado do umbuzeiro.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com