SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 31 de agosto de 2012

NOSSOS ALIENÍGENAS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Quando se fala em alienígena, logo a maioria das pessoas pensa se tratar de extraterrestre, de ser de outro planeta. Tal concepção poderia ser bem diferente se observassem que, ao pé da letra, alienígena pode ser qualquer coisa estranha, alheia.
Conceitualmente, alienígena é aquilo de origem estrangeira, algo estranho ou forasteiro. O termo pode ser usado ao se referir a algo que se mostra desconhecido. Do mesmo modo, serve para caracterizar aquilo que está ou vive completamente fora da realidade, seja porque desconhece o que o rodeia ou porque se permite não ser visto dentro da normalidade.
Neste aspecto, o conceito seria expandido para abranger o termo alienado. E este indicando o indivíduo que vive afastado, desviado ou separado de determinada realidade. Ou ainda a pessoa que não se interessa pelos acontecimentos do país ou do mundo, ou que não tem conhecimento da realidade social.
Relaciona-se também a quem está apartado, afastado, desinformado; sem vínculos, envolvimento ou interesse; que se isolou, tornou-se alienado de tudo e de todos E, ainda, aquele que não tem consciência da verdadeira natureza dos processos sociais e sua inserção nestes, ou dos conflitos entre classes e da exploração de certas classes por outras. Por fim, chamam alienado ao que está enlouquecido, cujas faculdades mentais o distanciam da realidade.
Mas não cessa por aí, pois é principalmente utilizado para designar o ser de outro planeta ou local fora do sistema solar, quando é comumente chamado extraterrestre. É neste sentido que se generalizou a concepção de alienígena como extraterrestre, ou seja, designando todo e qualquer habitante fora ou extra da órbita terrestre. E enquanto visitante chega em disco voador, em objeto aéreo não-identificado, em aeronave de outro planeta ou galáxia.
Mas nem precisa sair de nossa órbita nem ficar mirando os horizontes celestiais para encontrar esses seres de outro planeta. Ao nosso redor vive uma legião de extraterrestres, de alienígenas. Jamais saíram do solo terreno, mas possuem hábitos, maneiras e costumes que logo os identificam como seres completamente estranhos à realidade de nosso planeta. São, pois, verdadeiros alienígenas.
Não podem ser normais, e sim verdadeiros alienígenas, as pessoas cuja cegueira social impede de enfrentar a realidade da vida e enxergar seus problemas. Não possuem qualquer problema de visão, mas não vislumbram um passo adiante perante os absurdos surgidos, às condições desumanas a que são submetidos, aos abusos e arbitrariedades de toda ordem. Tudo acontecendo, maltratando, denegrindo, ferindo, e a pessoa sofrendo passivamente sem esboçar qualquer gesto de indignação.
Não podem ser considerados desse planeta aqueles que vivem no mundo da lua, demasiadamente sonhando, fantasiando em tudo, no mundo de inalcançáveis quimeras. Para estes, a novela televisiva é mais importante que a vida, que a realidade, que a conta pra pagar no dia seguinte, que a criança que queima em febre, que os barracos desabando nos morros. E como não bastasse essa fuga, planejam o impossível, querem o irrealizável, ficam à janela esperando o príncipe encantado despontar da nuvem no seu cavalo alado.
São verdadeiros alienígenas essas estranhíssimas pessoas com seus hábitos desavergonhadamente incomuns: vivem em função da vida do outro, sentem prazer pela derrota ou deslize do próximo, vigiam dia e noite a porta e o passo da pessoa que procura apenas viver sua própria vida e fazendo o que deseja dela, são daqueles que tanto pior melhor, se esforçam para colocar pedras no caminho de quem vai passar.
Não há dúvida de que são alienígenas por excelência aqueles para os quais tanto faz que aja corrupção na política, roubalheira nos poderes governantes, candidatos e eleitos com mais ficha suja do que muitos encarcerados. E podem ser reconhecidos quando as provas criminosas são contundentes e ainda assim erguem a bandeira, trabalham para elegê-los, partem pra cima de quem ouse abrir a boca para dizer a verdade.
Uma coisa que alienígenas não gostam é da verdade terrena. Somente a deles, a sua realidade e os seus estranhos e nefastos jeitos de conviver neste mundo.



Poeta e cronista
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Palavras que bastam (Poesia)



Palavras que bastam


Rasguei meus discursos
os versos shakespearianos
os verbetes amorosos
a lírica de todo mundo
me desfiz do bardo elã
porque não preciso mais
declamar o que sinto
nos pedestais olimpos
nem nas brumas medievais
porque o que tenho a dizer
não passa de grão do grão
mas ouvido e tão aceito
pela sabedoria do coração

não, não direi excelsa flor
não, não direi oh! deusa
apenas te amo
não cantarei a doce musa
senão a mulher humana
não irei com mil floreios
se tenho calo na mão
veia humana no coração
se conheço o espinho
e minha boca de lábio
só sabe e só quer
dizer te amo...


  
Rangel Alves da Costa

Corpo (Poesia)



Corpo


Corpo nu
vestido de sexo
suor perfumado
caminho selvagem
onde está o prazer
tenho procurado
tão doce viagem
destino encontrado
ter sede e fome
me sinto cansado
quero repousar
num colo enfeitado
beijar uma flor
querer do amor
sentir o prazer
aroma e odor
ter paz nessa guerra
sair vencedor
mas sem ser inimigo
você me derrotou
um ser tão valente
tão preso ao amor.


  
Rangel Alves da Costa

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

PARÁBOLAS DE GRATIDÃO (Crônica)


                                         Rangel Alves da Costa*


Nunca vi ninguém reclamar – mas também é difícil encontrar pessoas que demonstrem contentamento - porque a vida lhe traz inusitadas surpresas.
As borboletas são mais amigas de umas pessoas do que de outras. Até jardineiro sabe disso. E muitas vezes não saem das janelas daqueles que gostam, entram pelos quartos, pousam e repousam nas camas, se tornam enfeites para suas cabeças diante dos espelhos.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
Os passarinhos também fazem o mesmo. Não é difícil que deixem sua árvore frondosa e venham fazer seus ninhos num cantinho qualquer do quarto amigo. E procurando causar contentamento, cantarolam cantigas passarinheiras, fazem do umbral da janela um galho seguro e ali gorjeiam felizes.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
Ora o vento, ora a brisa, e até a ventania em sua leveza, tratam determinadas pessoas de modo totalmente diferente. Não assanham, não levantam as saias, não causam arrepios, não levam pra longe as roupas estendidas no varal, não provocam transtornos. Pelo contrário, pois chegam mansinhos, afagam, acariciam, contam segredos bons de além, muito além das montanhas distantes.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
Para alguns, o tempo, os dias, as horas, e tudo que seja percurso de vida, passam de forma muito diferente, sem causar as dolorosas consequências tão conhecidas. Pessoas que a idade não deixa estampado o envelhecimento, mas um aspecto meigo de sabedoria; que os dias não trazem as enfermidades crescentes, mas apenas sinais e avisos para se cuidar melhor; que as horas não são inimigas, estressantes, apavorantes, mas apenas momentos que sutil e levemente vão passando.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
É até difícil saber o porquê, mas muitas coisas da vida acontecem de modo diferenciado perante determinadas pessoas. Passam os dias e os anos com saúde e louvável forma física; as angústias, depressões e patologias comportamentais parecem nem existir; os sonhos são sempre bons; os maus augúrios passam distante; o galo canta para o seu despertar, o sino toca na sua Ave-Maria; abrem a janela ao amanhecer e parece que a vida é que vem para o abraço.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
E na primavera o mais belo ramalhete; da estação, a fruta mais colorida e gostosa, disposta num cesto de vime trazendo arremate de flor do campo; na viagem, a recordação em forma de artesanato; no aniversário, a casa cheia de amigos, os presentes e os festejos; na falta de qualquer coisa, sempre alguém para ajudar, para erguer a mão, para não deixar nada faltar. Sempre tem de tudo e conta com tudo, e no momento que precisar.
E nunca vi ninguém alegre porque acontece assim...
Agora acredite no que vou dizer. Nos lares, recantos e caminhos desta vida são incontáveis as pessoas que vivem recolhidas na suas dores, sofrimentos, angústias, carentes de tudo, principalmente de apoio, de auxílio, de mãos amigas, de carinho, de afeto, de aceitação, de compartilhamento, dos gestos humanos mais simples. E nunca vi nenhuma dessas pessoas entristecidas porque acontece assim.
A menina descalça, a menina buchuda, a menina faminta, a menina linda e tão feia; o menino desnudo, o menino lanhado, o menino marcado, o menino que já nem é mais porque a vida antecipa o seu tempo; a mulher, o homem, o velho, o doente, o abandonado, o carente, o pobre, o miserável, tudo relegado ao mundo do esquecimento, e esquecidos continuam sem maldizer a vida.  E nunca vi nenhuma dessas pessoas entristecidas porque acontece assim.
Não sei a sorte é dádiva ou construção, não sei do acaso ou da predestinação, não sei dizer se o merecimento é justo a quem não tem o devido agradecimento. Só sei dizer que muitos não se alegram com nada do que de melhor lhes acontece; enquanto que outros, os tantos outros que não conhecem de presentes nem de cortesias da vida, continuam divinamente gratos por persistirem apenas com a vida.
E nunca vi pessoas tão alegres porque acontece assim...



Poeta e cronista
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O amor existe! (Poesia)



O amor existe!


A filosofia jamais duvidou
eis que o sentimento amoroso
apenas se põe em repouso
para emergir e alçar alto voo

a eterna sabedoria da vida
própria do sábio comum
diz não haver ao menos um
que no amor não busque guarida

sei tanto que o amor existe
que faço da minha existência
a procura de sua maior essência
caminhada que sempre persiste

e não duvido onde esteja o amor
avisto seu rosto na recordação
imensamente belo na sua feição
e mora no teu doce aroma de flor .


  
Rangel Alves da Costa

A CONVERSA DOS SANTOS (Crônica)


                                                Rangel Alves da Costa*


Eu mesmo não acredito, mas como ouvi vou contar. Se não quiser acreditar faz mal não, mas depois não vá dizer que nessa vida tudo é capaz de acontecer. Mas se quiser acreditar e depois repassar como verdade, aí já é problema seu. Deixe-me fora disso, ademais quando a mentira envolve estória com nome de santo.
E é a estória de uma mocinha que sempre frequentava a igreja, indo ali rotineiramente para tentar se livrar de alguns pecados, confessar parte de seus tantos erros de mulher demasiadamente afoita, mas também ouvir a conversa de dois santos colocados num pedestal de parede.
Somente quando a oração maior terminava é que começava a ouvir os santos conversando entre si, a murmurejar, a dizer coisas numa língua muitas vezes incompreensível. E porque não entendia e queria saber o que eles tantos falavam, então ela pedia que gentilmente esclarecessem os termos utilizados, falassem numa linguagem que pudesse entender.
E ouvia de um que conversavam sobre os falsos sentimentos religiosos, as beatices forjadas, a fé sem compromisso algum com a religiosidade e a utilização da igreja para fins outros que não a busca dos ensinamentos divinos. Mas de antemão antecipava que não era nada com ela, pois já estava mais do que provado que o que vinha fazer ali se qualificava como um grande mérito cristão, que é abraçar a igreja como um lar espiritual.
E não acontecia o mesmo com muitas outras pessoas que acorriam até ali com seus terços, rosários, xales sobre a cabeça, livros católicos nas mãos, Bíblias desgastadas pelo tempo, mas não porque eram lidas e estudadas. Ao chegar em casa outra coisa não faziam que não jogar o livro sagrado em qualquer canto. Eram conhecidas as histórias de livros santos usados como travesseiros, como suporte de pé, e até como arma para ser arremessada na cabeça de desafeto.
E um dos santos revelou um fato até engraçado, e este dizendo respeito ao costume que muitas senhoritas tinham de chegar ali e simplesmente fazer que estavam lendo atenciosamente um salmo ou evangelho. Só que com o livro santo de cabeça pra baixo. Sem falar da vez que o livro escorregou da mão de uma e o que se viu depois foi que apenas a capa com letras douradas era verdadeira. Por dentro escondia um romance erótico.
E outro santo logo perguntou como ele sabia que era erótico, de safadeza. Insinuando ainda que talvez contivesse alguma imagem e ele tivesse cometido um indefinível e imperdoável pecado. E não havia pecado maior do que um santificado lançar o olhar ao pecado visível, à fornicação, ao engalfinhamento libertino.
Para aliviar a tensão, o outro santo respondeu que de dentro caiu apenas uma fotografia da falsa beata, a própria dona do livro, e que o pecado maior foi mesmo ter avistado aquele retrato tão horroroso. Verdade que ela estava com pouca roupa, mas também verdade que não dava pra distinguir onde se limitava qualquer parte do corpo, de tão balofa que era a metida a esbelta.
E alargando o proseado, diziam que muitas daquelas faziam do templo um centro de fofocas, um local para falar mal da vida dos outros; outras procuravam na beatice, na freqüência assídua, apenas um meio para aliviar seus tantos pecados ou simplesmente fingir que não faziam aquilo que costumavam às escondidas. E o pior é que muitas vezes não respeitavam nem um lugar sagrado como a igreja. A afirmativa de um fez o outro pedir que dissesse por que estavam desrespeitando até a casa maior.
Pareciam duas vizinhas fofoqueiras, dois santos mexeriqueiros que não tinham nada mais importante a fazer. E logo se ouviu que o desrespeito não era só de algumas que frequentavam ali, mas, e principalmente, do senhor reverendo. Eis que o safado do padre era useiro e vezeiro de receber beata na sacristia para dar as bençãos da safadeza. Não uma nem duas, mas diversas vezes já tinha visto ele aos abraços com uma e outra. E o que acontecia lá dentro...
O outro santo exigiu que o par parasse imediatamente com aquela conversa, principalmente porque deveriam respeitar a mocinha que ainda prestava atenção no que diziam. Mas depois de sorrir, a jovem simplesmente disse: “Na minha próxima conversa com Deus não me esquecerei de dizer como certos santos passam o tempo na igreja. Mas não esquecerei de jeito nenhum!”.
E nunca mais se ouviu conversa de santo por ali. Quando a mocinha chegava e olhava naquela direção, as imagens petrificavam de tal forma que pareciam esculpidas no granito. Então ela começava a sorrir, levantando a saia até mostrar o alto das coxas. E um dia o pior aconteceu.
Ao sentar e cruzar as pernas, ouviu as duas imagens desabando, caindo num baque só.



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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

PALAVRAS (Crônica)

                         
                                                          Rangel Alves da Costa*


O que são palavras, para que servem, por que somente os seres humanos as utilizam para se expressar?
Ora, as palavras nada mais são do que a voz do olhar. Os olhos vêem, dão um significado, buscam um nome. E dizem suas impressões. Eis a palavra.
Servem para nomear os seres e as coisas. E jamais deveriam servir além disso. O homem bem que poderia viver sem falar tanto e dizer quase nada.
Amor é palavra bonita, desejo também; e tão gracioso é ouvir o nome pronunciado pela boca de alguém que tanto se gosta. Mas a boca bem que poderia calar, vez que o olhar expressa muito mais.
Por que as palavras são tão diferentes, sendo que algumas nem deveriam ser ditas?
As palavras são realmente diferentes, contraditórias, num misto de pureza e de maldição. Por isso mesmo que há dois tipos de vozes segundo as palavras.
A primeira voz é a do olhar. Dificilmente o olhar pronuncia palavra que não seja bondosa, carinhosa, graciosa. E o olhar não mente, não inventa, não modifica a palavra. O que o coração manda é o que será expressado.
A outra voz, tão abominável voz, é a que sai, que parte, que é pronunciada através da boca. E quantas fortalezas seguras já foram destruídas pelas mentiras, aleivosias, fofocas, falsidades, palavras vis e interesseiras.
Maldita a boca que se abre para pronunciar o pior, o terror, o horror, a violência. E amaldiçoada a boca que se abre no intuito apenas de ferir, de magoar, de reduzir o próximo a uma condição de verme.
A voz através da boca não deveria existir. Nenhuma palavra deveria ser pronunciada pela boca. Se uma de suas funções é ser caminho de alimento, de água e de outras substâncias, que somente a isto fique reduzida.
Que deixe para o olhar toda a palavra, toda a expressão, todo o dizer. Duvido que o olhar de pessoa honesta, honrada, temente a Deus, expresse a voz da iniqüidade, do pecado, da podridão, da miséria humana.
Duvido que o olhar, aquele olhar puro e verdadeiro de pessoa sincera e de bom coração, ecoe palavra para maldizer o homem, para ferir a natureza, para macular os seres da criação, para denegrir tudo de bom que sobre a terra repousa.
O olhar que avança pela montanha, que alcança a nuvem, que voa com a revoada, que balança na onda do mar, certamente que não tem tempo de pensar em pronunciar senão palavras doces, amorosas, repletas de felicidade e contentamento.
O que a boca pronuncia corte, derrube, destrua, extinga, ameace, avance, mate, amedronte, dizime, acabe com tudo de vez; o olhar certamente pronunciará conserve, preserve, cuide, proteja, alimente, semeie, produza, sobreviva.
Eis a grande diferença entre a voz que sai da boca e do olhar. Daquela a mácula, o impensado, a ferida já aberta, a chaga incurável, o pior que possa existir; desta, a compreensão, o sentimento, a conscientização, o desejo que tudo seja sempre melhor para todos e cada um.
Mas somente a palavra vinda da boca é ouvida, entendida, ecoada, possui reflexos imediatos no ouvinte; enquanto que a voz do olhar, a sua palavra, que por mais que seja grito, nunca é escutada na medida que deveria ser, nunca é entendida por quase ninguém, pouco reflexo teria diante do homem. Tudo isso alguém poderia argumentar. E com razão.
Mas sua razão perderia sentido no instante em que soubesse que nem todas as pessoas querem ouvir palavras vindas da boca, principalmente de uma boca qualquer. Conhecedoras que são do que as bocas são capazes de pronunciar, muitas vezes preferem o silêncio a qualquer palavra.
E tais pessoas não só se admiram com as palavras do olhar, mas também aumentam o diálogo com a vida através da voz do coração. E que voz maravilhosa de se ouvir, que palavra mais verdadeira de se transmitir.

  

Poeta e cronista
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Talvez um dia (Poesia)



Talvez um dia


Longo é o tempo
duradouros os anos
eternas as esperanças
diante da certeza
de que o amanhã
seja no dia que for
chegará com a resposta
tão longamente esperada

na terra e no coração
a semente e o grão
foram plantados
para um dia frutificar
aquilo que a esperança
jamais deixou perecer
e assim é em tudo
no desejo e no amor
eternamente semeados
nos dias esquecidos
e numa manhã qualquer
brota feito bela flor
doce fruto da estação
uma dádiva ao coração.


  
Rangel Alves da Costa

Nada de novo sob o sol (Poesia)



Nada de novo sob o sol


Hoje ainda é ontem
ontem igual ao passado
o passado todo o presente
que se terá no futuro
porque nada mudou
porque nada jamais mudará
tudo que pensa que sabe
já pensava saber antigamente
tudo que quer aprender
será o mesmo já aprendido
nas tantas lições do passado
que se tornaram hoje
verdadeiro passo de filosofia
para quem nunca aprendeu
que a grande verdade
é reconhecer em tudo
uma grande mentira
e somente nessa certeza
procurar algum valor
no que lhe resta de existência.



Rangel Alves da Costa

terça-feira, 28 de agosto de 2012

O INTERESSANTE CASO DO HOMEM DAS CITAÇÕES BÍBLICAS (Crônica)


                                             Rangel Alves da Costa*


Numa distante povoação interiorana, lá muito além de todas as curvas do mundo, morava um homem com um modo bastante peculiar de se dirigir às pessoas.
Qualquer pessoa que lhe cumprimentasse, desse um bom dia ou boa noite, dissesse alguma coisa em sua direção, logo em seguida, ao invés de ouvir resposta normal, tinha de ouvir uma referência bíblica, e que tanto podia ser a indicação do número de um salmo, de um livro, de um capítulo ou versículo.
Por exemplo, ao invés de dizer “que a paz do senhor esteja convosco”, dizia apenas João, capítulo 20, versículo 21. Com efeito, no livro bíblico está escrito: “Disse-lhes outra vez: A paz esteja convosco! Como o Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós”.
Até o reverendo paroquial ficava de queixo caído sem saber como um analfabeto de pai e mãe sabia de cor e salteado todas aquelas passagens bíblicas, sem errar uma vez sequer nas suas afirmações. E o pior que muitas vezes sentia-se até constrangido em rezar missa tendo o homem na igreja, vez que em qualquer deslize ele gritava e dizia do erro cometido. E imediatamente corrigia. Que vexame para um sacerdote!
O homem pouco saía de casa, mas quando botava os pés adiante da porta citava a Bíblia de passo em passo. Caminhando com um velho amigo, ao avistarem duas mocinhas entretidas em falar da vida dos outros, o acompanhante foi logo dizendo que coisa mais feia duas fofoqueiras naquela idade. Mas o homem apenas disse: Livro I de Timóteo, capítulo 5, versículo 13. Contudo, nunca dizia do que se tratava.
Porque não dizia, não demorou muito e aquele que o acompanhava entrou na igreja correndo para perguntar ao sacerdote o que estava escrito na passagem bíblica citada pelo estranho amigo. E o velho religioso, para ter segurança na resposta, recorreu ao livro sagrado e afirmou:
“Ouça o que diz a Bíblia: ‘Além disso, aprendem também a viver ociosas, andando de casa em casa; e não somente ociosas, mas ainda tagarelas e intrigantes, falando o que não devem’. Acaso vocês se depararam com o festim das fofoqueiras?”.
Certa feita, estando à noite sentado num banco da praça, eis que passa bem ao lado o carrancudo mais temido do lugar, com fama de larápio, perigoso esbulhador e até apontado como assassino de mando. Passou com faíscas nos olhos, mas ao avistá-lo sentado deu-lhe um bom dia acompanhado de cusparada. E seguiu adiante, mas não sem antes ouvir: Jó, capítulo 24, versículo 14.
E lá se foi o perigoso malfeitor em busca da decifração do sacerdote. Ao avistar o visitante, o da igreja só não desmaiou por medo de acontecer o pior, ser forçadamente adormecido de vez. E com a boca trêmula, sem quase poder segurar a Bíblia, respondeu ao carrancudo.
“Em Jó, capítulo 24, versículo 14, consta o seguinte: ‘O homicida levanta-se quando cai o dia, para matar o pobre e o indigente; o ladrão vagueia durante a noite’. Mas você não é nem um nem outro, não é mesmo meu filho?”. E o indivíduo lançou-lhe uma resposta que o fez tremer: “Quanto cobra pra tirar os dois pecados?”.
No outro dia, enquanto se preparava para bebericar uma dose dupla de aguardente na sacristia, eis que chega um jovem e apressado casal. Um tanto desconfiada, ela disse que estava ali para saber o que significava Ezequiel, capítulo 16, versículo 33. E ele, mais desconfiado ainda, precisava urgentemente conhecer o que queria dizer Eclesiástico, capítulo 19, versículo 3. Os dois, quase ao mesmo tempo, ouviram essas coisas estranhas daquele homem que falava pra ninguém entender.
O velho sacerdote, já conhecendo em profundidade o sentido das duas passagens bíblicas, quis levar o assunto pra outro lado, disfarçar, por achar melhor nem chegar aos pormenores. Porém os dois insistiram e o religioso não teve saída:
“Diz em Ezequiel: A todas as prostitutas se dão presentes, mas tu fizeste brindes a todos os teus amantes, procedeste com largueza para que de todos os lados viessem prostituir-se contigo”.
“E diz Eclesiástico: Aquele que se une às prostitutas é um homem de nenhuma valia; tornar-se-á pasto da podridão e dos vermes; ficará sendo um grande exemplo, e sua alma será suprimida do número dos vivos”.
E o casamento acabou ali mesmo, com o homem tomando da garrafa de aguardente do sacerdote e depois chamando a mulher de puta rampeira e outras coisas impronunciáveis. Foi preciso o da igreja dizer que não admitia na sua sacristia nem corno bêbado nem adúltera desavergonhada. E expulsou-os debaixo de vara.
Mas no instante seguinte correu em direção à moradia do homem das citações para dar um basta de vez naquilo tudo, pois já não tinha mais sossego com tanta gente ido até a igreja para saber disso ou daquilo, e tudo por causa dele que não deixava dessa mania de falar por códigos.
Mas calmamente o homem disse: “Malaquias, capítulo 2, versículos 1 a 3”. E o velho sacerdote bramiu: “Pelo amor de Deus, esqueça isso!”. Mas enfim o homem falou:
“A vós, ó sacerdotes, dou esta ordem: Se não me ouvirdes, se não tomardes a peito a glória de meu nome – diz o Senhor dos exércitos -, lançarei contra vós a maldição, trocarei em maldições as vossas bênçãos; aliás, já o fiz, porque não tomastes a peito as minhas ordens. Eis que vou abater vosso braço, espalhar-vos esterco no rosto - o esterco de vossas festas - e sereis lançados fora com ele”.



Poeta e cronista
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Baião de dois (Poesia)



Baião de dois


Feijão com arroz
fervura depois
é baião de dois
tudo na panela
no mesmo cozido
os grãos se amando
os corpos juntando
se unindo gostoso
prato saboroso
os dois abraçados
até a fome separar

feijão com arroz
é amor de dois
homem e mulher
grãos separados
no solo da vida
colhidos ao acaso
para satisfazer
o destino da mesa
cujo prato servido
é o amor de dois
feijão com arroz
saciado depois.


  
Rangel Alves da Costa

ALGUMAS VERDADES SOBRE PAIS E FILHOS (Crônica)

                                   
                                               Rangel Alves da Costa*


Certamente fruto da tradição religiosa cristã, somando-se aos antigos cultos parentais e à justificação da infalibilidade do berço de nascimento, verdade é que a família sempre foi considerada a base e alicerce de toda formação do indivíduo.
Daí o primeiro erro, pois se fosse assim certos indivíduos ainda vivendo com os seus não incorreriam em tantos desacertos lá fora. Também não haveria como aceitar a desculpa de que os pais fazem tudo para colocar o filho no caminho da retidão e se este erra é por fraqueza individual e não por falta de lições.
Mas ora, será que os pais não precisam saber que filhos não devem ser educados, trabalhados, manejados psicologicamente, para o mundo, para dar satisfação à sociedade, e sim a eles próprios? E quem já viu ou ouviu dizer que a sociedade, esta mesma onde o homem é o lobo do próprio homem, quer que o indivíduo seja virtuoso e bom, honesto e moralmente íntegro? Ela sobrevive exatamente do erro dos outros, sob pena de não ter como fazer aquilo que ela mais gosta, que é discriminar e incriminar.
Se é verdade que a boa ou má formação do indivíduo depende da criação, da forma como os seus pais o preparou para enfrentar o mundo, então logo se depreende que a instituição familiar faliu em muitos aspectos. E faliu porque não consegue ou não se preocupa em estender a formação do filho além dos cuidados básicos que lhe parece ser o bastante.
Verdade é que filho não é apenas uma coisa que se faz embaixo dos lençóis, em seguida enche de fraldas, bicos e papinhas, ensina a andar e a falar, se preocupa em alimentar e depois mostra à sociedade que agiu com responsabilidade e cuidado, pois o seu está se desenvolvendo com saúde e disposição. Também não é só proporcionar educação escolar, dar conselhos e depois pegar o cabo de vassoura para dar no lombo quando surgirem os primeiros erros.
Ocorre que a família só faz isso para os outros, para mostrar aos vizinhos e conhecidos que a sua cria é a coisa mais linda e sapeca do mundo, que permanecerá para sempre um anjinho de candura. Mas dentro das quatro paredes a situação é totalmente outra, vez que os problemas existenciais e as intrigas familiares sempre são mais importantes do que o filho e este muitas vezes terá de pagar na pele pela culpa dos outros.
Ora, não pode ser pai nem mãe se não pode dar bons exemplos ao filho; não pode ter filho um casal que se engalfinha e faz das quatro paredes um antro de violência; não pode ter filho uma mãe que se preocupa mais com a vida dos outros do que com sua própria casa; não pode ser pai aquele que faz do alimento que coloca na mesa o bastante. Não pode criar um filho uma família que só existe para os olhos dos outros.
Mãe degenerada e pai desnaturado fazem crescer animais arredios. Depois que o filho começa a saber o que é uma porta de casa e gosta do que existe lá fora, ou os pais o trazem de volta para primeiro conhecer o que é uma janela ou não haverá mais retorno. Uma vez na rua, ao surgir o primeiro erro o pai será o primeiro a dizer que o ser humano de vez em quando erra ou tem de errar para aprender. Na segunda falha vai dizer que não foi por falta de conselhos. Mas que conselhos?
Pais não precisam dar conselhos infalíveis, ensinar lições acabadas ou dizer o que está certo ou errado na vida. Não adianta querer ser sábio agindo na ignorância. Seria o mesmo que dizer que faça o que digo, mas não faça o que faço. Se pretenderem que o seu filho cresça com sabedoria, obediência e educação pessoal, têm de se comportar como o grande livro silencioso da vida e deixar que suas ações sejam o reflexo de como deve ser o comportamento perante a vida.
Se o pai e a mãe forem pessoas psicologicamente equilibradas, preservem em si e nas suas ações o senso de responsabilidade e saibam os limites do acatar e agir, certamente que a qualquer momento poderão impor aquilo que for o melhor e até afirmar quais os resultados que pretendem ver obtidos nas ações do filho. E isto não somente na adolescência, mas por toda vida, vez que todo pai, a qualquer tempo, poderá pedir ao seu o respeito que a família requer.
Depois certamente será demasiadamente tarde para perguntar onde foi que errou.


  
Poeta e cronista
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segunda-feira, 27 de agosto de 2012

RECEITA DO DIA (Crônica)


                                           Rangel Alves da Costa*


A cada dia uma nova receita, um sabor diferente. Na cozinha está difícil, pois tudo muito caro, difícil de aquisição, mas imprescindível que se procure ter um alimento, uma porção de afazer, sempre diferenciado a cada novo dia da vida.
Contudo, não trato aqui sobre fórmulas culinárias de preparação de pratos e guloseimas. Não. Cuido da receita como procedimento para se obter o melhor resultado em relação a algo: a utilização de coisas simples para o alcance de grandes objetivos.
Recolha os ingredientes de dentro de si, disponha-os perante os seus objetivos e vá cumprindo cuidadosamente cada etapa daquilo que a receita do dia pede. Escolha o que vai fazer hoje, amanhã, depois... Dentre tantas, você poderá escolher:
Sonhos recheados com realidade: os sonhos bons são os melhores ingredientes para buscar torná-los realidade. Assim, recolha cada sonho, coloque-o na pauta do seu dia, se esforce ao máximo para que tudo aconteça.
Café sem açúcar para molhar pão dormido e sem manteiga: porque na vida nem tudo é doçura, alegria, festa, comemoração, delicioso sabor. De vez em quando será preciso começar o dia experimentando uma realidade mais difícil, mais dura. Ao tomar o café sem açúcar, logo lembrará que muitos não possuem nem café nem mesa, muito menos o pão sem manteiga que acompanhará a primeira refeição do dia.
Bolinhos de chuva com pitadas de solidão e saudade: se a vidraça estiver fechada na manhã ou tarde chuvosa, se aproxime dela e veja o vidro turvado e sinta o barulho dos pingos batendo e descendo até o umbral. Se não estiver forte, será até bom abrir um pouquinho para mirar o tempo chuvoso por instantes. Numa situação ou noutra, certamente se sentirá solitário e saudoso. E não haverá momento melhor para transformar a solidão em viagem de relembranças daquilo que sente tanta saudade.
Janela aos quatro olhares, recheada com contentamento e satisfação: logo ao alvorecer, assim que levantar corra para a janela, escancare-a, comece a mirar e admirar tudo ao redor. Nesse momento do dia as flores já estão viçosas, bonitas, os passarinhos cantam alegremente, as borboletas voejam seus coloridos, a natureza sussurra, o sol leve aquece o corpo, conforta a alma e engrandece o espírito. Não há receita melhor para começar o dia com alegria no coração e disposição para a vida, alicerçando o espírito para que dali em diante tudo seja de contentamento e satisfação.
Prato vazio e sem qualquer certeza do alimento que ele receberá mais tarde: é de suma importância que o indivíduo sempre considere a existência de um prato vazio ao seu lado e que ele poderá receber um alimento delicioso ou algo realmente imprestável. Numa metáfora, o prato vazio é o desconhecimento do que poderá acontecer no percurso do dia, e o alimento é o esforço que a pessoa terá para que nele não seja colocado o que não quer experimentar. Daí lutar para conseguir o melhor alimento, que nada mais do que ter um dia com paz e produtividade.
Sal do suor antes do doce da realização: para experimentar o apetitoso e agradável sabor da realização, com o doce na medida do conquistado, será preciso trabalhar, suar, se esforçar ao máximo. Do sol que escorre do rosto é que o homem se alimenta, do seu sacrifício cotidiano é que tira sua sobrevivência. Pode ser tudo muito difícil, muito salgado, até difícil de aceitação. Mas quando o trabalho é feito e o resultado é colocado à mesa, logo se verá que não há alimento mais doce e saboroso.
Lua na tigela com faíscas de estrelas para enfeitar: depois que a noite cai e chega a hora do recolhimento, o trabalho realizado é colocado no armário e passa-se então a aproveitar de cada momento daquele restante do dia. Nada melhor do que apreciar a beleza da noite, a luz do luar e tentar enxergar os segredos das estrelas. Instante de paz e de recordação, será também o momento de se viver a dois, chamando a lua do quintal para iluminar o amor que é tudo.
Sobremesa surpresa: prepare com sua receita própria.



Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com   

Porto (Cantiga de Gabriela) (Poesia)



Porto (Cantiga de Gabriela)


A saudade dedilha
a viola dolente
chamando a flauta
ouvindo o apito
do barco que vem
na distância azul
das águas do mar
vidas de preamar
rumo ao porto...

nas ladeiras negras
sobem as pretas
com seus caçuás
seus cestos de frutas
de peixes do mar
coisas de preamar
vieram da margem
das águas da vida
dos limites do porto...

os ternos dos coronéis
sujos de batom dos cabarés
os moços entristecidos
os moços afogueados
brindam a sorte da morte
tragam o sul e o norte
ao pé do balcão antigo
e arriscam lançar o olhar
à moça bonita que chega
morena faceira que só ela
pele jambo de Gabriela

grita o menino grapiúna
Dori Caymmi mulato
a mando de Jorge Amado
calando a reza da beata
e os sussurros amantes
solta vozerio dizendo
que o cacau é tudo
que a vida é quase nada
e que só há uma estrada
para chegar ou partir
para chorar ou sorrir
ali no cais do porto...

e depois cantarola
ao som da flauta de vento
num acorde de brisa
“iá iê, iá iê, oní onã
iá iê, oní onã, nê onã
iá iê, lê lê ô, iê oní onã
iá lê onâ, ê ô, oní onã
onã nã nã naiê, ê ô...”


   
Rangel Alves da Costa