SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 31 de julho de 2010

ESPERANÇA (Poesia)

Esperança


Nada tenho perdido
por esse caminho
nada tenho esquecido
caminhando sozinho
e nada tenho encontrado
que mereça o sorriso
o alento, a força
que tanto preciso

Tudo o que encontro
soma-se ao nada ter
mas guardo esse espinho
que feriu o meu andar
pra cimentar a esperança
que não me falta
e não se cansa
de voltar um dia
abrir a porta de casa
beber da água do pote
comer do nada da mesa
e deitar na rede ao luar

E amar
ao menos a vida
amar...


Rangel Alves da Costa

SINTOMAS E DIAGNÓSTICO (Crônica)

SINTOMAS E DIAGNÓSTICO

Rangel Aves da Costa*


A chuva, inquestionavelmente, é uma das coisas mais lindas e maravilhosas que a natureza pode oferecer ao mundo e à vida. Contudo, falo de chuva enquanto precipitação pluviométrica, que cai em determinado período e faz festa na terra, nas raízes e nos brotos, que verdejam as plantações, permite a acumulação de água nos tanques e barragens e chega em forma de alimento e sobremesa para bichos e homens. Essa chuva sim, será sempre desejada e esperada, mas não essa que vem caindo nos últimos dias e só serve para adoecer as pessoas.
A bem dizer, essa coisa molhada que cai não é nem chuva, chuvisco nem tempestade. Parece que o que se derrama de uma hora pra outra, acompanhada de um vento frio e de um tempo meio afrescalhado – não se assume nem como sol nem como nublagem, ficando meio lá meio cá -, é muito mais um respingar de doenças do que outra coisa.
Tudo, menos chuva, pois esta não jorra sobre as pessoas tantas dores pelo corpo inteiro, tanta febre, tanto frio que não há cobertor que acuda, tanta tosse, tanto espirrar, tanto enjoo na cabeça, tanta moleza no corpo, tanto fastio, tanto remédio, tanta receita, tanta chá, tanto xarope, tanto lambedor, tanto médico, tanto enfermeiro, tanto hospital, tanta reclamação, tanto lenço de papel, tanto papel higiênico, tanto pedaço de pano, tanto comprimido, tanta injeção, tanto vidro, tanta bula, tanta promessa, tanta falta de efeito, tanta batatinha enrolada na cabeça, tanto pano quente no juízo, tanta reclamação da vida, tanta vontade de matar não sei quem, tanta vontade de esculhambar com todo mundo tanta farmácia, tanta falta de dinheiro, tanto posto de saúde, tanta erva, tanta planta, tanta raiz, tanto lenço de pano, tanta mão pelo nariz, tanta mão pela cabeça, tanta dor de cabeça, tanta vontade de deitar sem poder dormir, tanto barulho no ouvido, tanta vontade de arrancar o nariz, tanto nome de remédio, tanto chá diferente, tanto médico em todo lugar, tanta sabedoria que cura tudo, tanta gente que nunca adoece, tanta gente milagreira, tanto ai, tanto ui, tanto olho ardendo, tanto nariz ferido, tanto resto de água no copo, tanto comprimido entupindo a garganta, tanta garganta inflamada, tanta coriza, tanto rosto envelhecido, tanto contágio, tanta xícara com pires por cima, tanto termômetro, tanto grau, tanta andar a pulso, tanto vômito, tanta promessa, tanta cabeça quente, tanto corpo molhado, tanta gripe, tanta virose, tanto resfriado, tanta constipação, tanto defluxo, tanto castigo num só filho de Deus. É demais. Já mais de seis dias e essa droga parece que não vai embora.
O bom é que esse problema todo se resolve facilmente, vez que sempre chega um receitando a fórmula milagrosa e infalível. Todo mundo é médico nessa hora. O médico é médico, o vizinho é médico, o conhecido é médico e o desconhecido também. Já tomou Gripetex? Se ainda não tomou basta dois comprimidos que daqui a duas horas você tá bonzinho. Pegue folha de Aribalda, faça um chá e você fica bom na mesma hora. Eu só tomo Antitossil, pois antes de dissolver o comprimido a tosse já foi embora. Raspe um pé de Crumada Roxa e dois pés de Crumada Roxinha, bote no fogo e quando a água tiver roxeada é só esfriar, tomar e ir pra festa. Minha avó ensinava que junta isso e aquilo, faz uma infusão e pronto.
Outro dia, antes de ficar arrebentado pela malvada, encontrei um dessas médicas de meio de rua toda mole, arriada de gripe, chega não podia nem falar direito de tanta rouquidão. Então perguntei por que não tinha tomado aquele remédio que ela mesma diz ser tão eficaz. E a quase defunta respondeu: "Já tomei o que sabia e o que os outros ensinaram. Agora estou indo comprar três litros de conhaque, um de mel e um pacote de limão. Depois, de cinco em cinco minutos é só virar um copo bem cheio e fica tudo resolvido. Dizem que é tão bom que depois do terceiro copo a pessoa já sente até vontade de cantar, dançar, voar...".





Poeta e cronista
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EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 62

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 62

Rangel Alves da Costa*


Seguindo em direção à igreja, sua cabeça martelava diante de tantas dúvidas, interrogações e conclusões. Estava totalmente indignado diante da possibilidade de que a droga, seja ela de qual tipo fosse, conseguisse dominar e submeter governos, sociedade, famílias e indivíduos. Estes já vitimados há muito tempo. O que já estava ocorrendo era o prenúncio disso tudo, pois não haveria de se admitir que essa maldição não fosse combatida com muito mais violência do que ela age.
Ora, pensava Lucas, porque o álcool é chamado de droga social, permitida, pode se alastrar como quiser e produzir os seus resultados como quiser. Atuando dubiamente, o governo abraça os impostos oriundos das bebidas e depois diz que o alcoolismo é um grave problema de saúde e que deve ser combatido por isso e aquilo e tudo o mais.
Mas não passa disso, pois o álcool continua alcoolizando, destruindo famílias e pessoas, produzindo consequencias nefastas cotidianamente noticiadas, e é como se não tivesse ocorrendo nada. Não poderia ser diferente, pois para o governo tanto faz que o povo morra ou não, bastando somente que muito mais de 50% de impostos cobrados em cada dose, em cada garrafa, vá para os cofres públicos, que de tão públicos às vezes têm donos.
Assim, o álcool que inegavelmente é uma droga incentivada pelo governo, e precisamente porque sua venda gera os famigerados impostos, passa a se tornar o patamar, a base ou alicerce de onde frutificarão e crescerão o uso de outras drogas. Da mesa da bebida ou do balcão da cachaça vai surgindo o vício do cigarro, amizades duvidosas vão aparecendo, os sorrisos largos e os tapinhas nas costas são frequentes, consumos de outras drogas vão sendo incentivados.
E de repente, aquele que se apresentou como amigo no balcão vai oferecer um traguinho de maconha, vai oferecer um baseado de graça, por amizade, vai levar o indivíduo para conhecer outros ambientes, vai tentar mostrar que a vida com droga é uma beleza, é uma maravilha, e se mais tarde tiver a sorte de se tornar traficante será a plena realização. No mundo da droga, o traficante é o verdadeiro dono de pessoas e de vidas.
A mente de Lucas parecia vibrar enquanto imaginava sobre tais fatos. Era como se estivesse vendo tudo isso à sua frente: jovens sendo conduzidos com o maior cuidado do mundo para os caminhos da perdição. E via crianças de sete, oito, nove anos, já experimentando, já servindo de entregadores de drogas, militando nos exércitos do submundo.
E via garotos esconderem suas mochilas de livros e cadernos e seguirem pelos becos, fazendo curvas, subindo morros, voltando eufóricos e com olhos brilhantes. Ali mesmo acendia mais um ou cheirava alguma coisa, que era para continuar acelerados. E via esses mesmos garotos, pouco tempo depois, já sem mochilas, sem livros, sem nada, agora malcheirosos e com roupas estragadas, subindo pelas vielas e se demorando por lá.
E via que tudo aquilo não se resumia a três ou quatro pessoas, mas chegavam cada vez mais e com perfis diferentes, o que demonstrava que as drogas estavam enfim socializando a comunidade: gente de todas as classes sociais, indistintamente, caminhando em união para a morte a cada dia. No vício, todos são verdadeiramente iguais em tudo e verdadeiramente nada.
E a mente de Lucas começava a mostrar cenas dantescas, dramáticas. As drogas descendo os morros e se instalando por todos os lugares da cidade, derrubando as fronteiras da periferia e alcançando o edifício gigantesco e o condomínio de luxo; carros possantes parando nas esquinas a qualquer hora do dia e motoristas recebendo a encomenda das mãos de garotos, ali mesmo, a quantidade de drogas que quisessem; moças, jovens, pessoas de peito nu e engravatadas, condutores de bicicletas, pessoas caminhando, magnatas por trás dos vidros fumê, madames de lulu no colo, todos procurando os pontos de comercialização da maldita.
Mas não precisavam caminhar ou procurar muito não, pois os pontos de venda estavam em cada esquina, na porta das escolas, no carro de pipoca ou no vendedor de cachorro quente, nas lojas comerciais, nas entranhas das repartições públicas, nas igrejas, nos confessionários, dentro dos hospitais e nos centros de reabilitação de drogados. Onde a pessoa pudesse imaginar, a droga podia ser encontrada.
Quando chegou diante da igreja, Lucas parou um instante e se perguntou se não estava enlouquecendo. Chegar a todas aquelas conclusões sobra as drogas só poderia ter enlouquecido. Mas não, pois tinha certeza que não tinha pensado nada além do que realmente ocorre na realidade. Contudo, chegou a outra conclusão sinistra, e esta de enlouquecer qualquer um: tudo aquilo que havia imaginado era apenas a ponta visível do iceberg!...


continua...






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sexta-feira, 30 de julho de 2010

ROSTOS QUE PASSAM (Crônica)

ROSTOS QUE PASSAM

Rangel Alves da Costa*


Ontem pela manhã, caminhando pelo centro da cidade, num redemoinho de pessoas e faces, percebi à minha frente um garotinho, lá pelos seus seis ou sete anos, que era uma alegria só, dançando e pulando enquanto segurava na mão da mãe. Ouvia o som da música vindo da loja e fazia sua festinha seguindo em frente. Que coisa mais pura e doce, pensei. Somente a infância para proporcionar momentos assim.
Achei tão bonita aquela cena que apressei um pouco o passo para olhar se no rosto do menino estava refletida aquela mesma alegria dançante do seu corpo. E o rosto iluminava-se, totalmente feliz, cheio de coisas bonitas, numa alegria indescritível. Meu Deus, enfim a vida, disse a mim mesmo. Mas tudo muito rápido, em coisa de segundos, pois num instante eu já estava mais à frente e pessoas em correria não deixavam mais que eu enxergasse o menino.
Segui em frente todo pensativo, porém alegre e extremamente contente por haver presenciando tamanha felicidade em meio àquela multidão. Mas depois me veio à mente uma constatação que continuo tentando compreender sem entristecer: Certos rostos, faces, feições, passam um dia diante de nós e ficamos com a certeza de que talvez nunca mais os veremos. Fico triste só em pensar: será que jamais encontrarei aquele rosto pelo caminho?
Em meio ao mundo tomado de pessoas desconhecidas, de pessoas que fingem desconhecer, de pessoas que não querem ser reconhecidas, de pessoas sumidas, de pessoas reencontradas, até parece que todos que passam diante de nós são estranhos, porque muitas vezes são e outras vezes se tornam.
Nesse mundo sem faces, ou de rostos demais que confundem, sempre é muito difícil encontrar alguém que nos passe felicidade pela feição bonita e feliz que possui. É muito difícil mesmo, pois o vizinho lhe olha com cara de pittbull e a mocinha de bunda empinada que mora em frente se acha importante demais para dar bom dia ou boa tarde. Você vai caminhando pela rua e fala com todo mundo, mas somente um ou outro, principalmente os mais idosos, respondem seu cumprimento.
Se com pessoas já conhecidas é assim, imagine em meio à multidão das ruas, ao vai e vem desenfreado, com truculentos e deseducados querendo lhe derrubar, passar por cima de você. Se alguém trombar propositalmente e o atingido ao menos olhar no rosto do outro corre o risco de apanhar ali mesmo. É melhor sentir o machucão calado do que ser totalmente destroçado. E não é só isso, pois olhar para o rosto de qualquer pessoa que passa por você é correr sério perigo de ser xingado, desmoralizado, aviltado: "Me conhece por acaso, pra tá olhando?"; "Viu o que, você me conhece?"; "Tá achando bonito, seu viado safado?". Se responder apanha na hora, e apanha feio, sem que ninguém venha em seu socorro. Afinal, ninguém conhece ninguém.
Contudo, por mais que caminhemos em meio a esses animais ferozes que se vestem de gente e porque temos que olhar porque temos olhos e temos que ver, enxergar, para seguir adiante, ainda assim não somos tomados completamente pela brutalidade e ignorância das pessoas. O que se vê, de repente, é humanização incrível em meio ao caos, mas que infelizmente somente os olhos podem constatar isso.
Quem nunca olhou para uma pessoa qualquer e sentiu profundamente que já a conhece de algum lugar? Quem nunca chamou pelo nome porque tinha a certeza que conhecia aquela pessoa? Mas que feição meiga, bonita, de uma doçura incalculável, parecendo ser uma pessoa muito boa e agradável! Que rosto encantador, cheio de pureza e meiguice, e que meus olhos não erram em afirmar ser alguém diferente! Parece um anjo, na meiguice, no olhar, no jeito de ser? Quem nunca passou por uma situação dessas?
Naquele menino vi a alegria e plenitude de vida em pessoa. E ficou a certeza que entre os espinhos que se espalham pelas calçadas floresce também coisas boas. É uma pena que os rostos passam e a gente fica imaginando se terá a sorte de vê-los outro dia. Um só instante é pouco demais para quem a gente desejaria ver sempre. E o pior é que só por aquele instante mesmo, num segundo, e nunca mais.





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A rosa (Poesia)

A rosa


A rosa
não era rosa
a rosa
não era flor
a rosa
sem cor de rosa
a rosa
sem ter aroma
a rosa
sem ter amor
a rosa
não tinha espinho
a rosa
não tinha folha
a rosa
não tinha nada
a rosa
abandonada
a rosa
sem jardineiro
a rosa
sem companheiro
a rosa
da solidão
a rosa
que só tinha coração
mas o coração da rosa
ninguém queria mais não
onde estará a rosa
de haste sangrando
no vermelho coração
rosa de pétala ferida
rosa estendida no chão.


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 61

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 61

Rangel Alves da Costa*


Tomar conhecimento sobre a morte de Faísca foi um duro golpe para Lucas. Procurou não demonstrar aos meninos, mas estava totalmente entristecido com o sinistro acontecimento. A notícia só viria provar que o menino, mesmo que houvesse lutado para sair daqueles perigosos caminhos, não havia conseguido superar a força maléfica da droga, do crack. Depois, com outras pessoas, procuraria saber das circunstâncias do fato, porém no momento pouparia Paulinho daquele relato.
Enquanto os meninos e parentes se dirigiam para limpar o barracão e arredores, ficou imaginando sobre a fragilidade das pessoas, sobre o quanto estas são dominadas facilmente e levadas para os lados negros da vida. Contudo, se perguntava se com relação especificamente ao Faísca este processo destrutivo tivesse ocorrido.
Ora, não via aquele fato como processo de destruição, pois o rapazinho não havia tido nem tempo de crescer mais, de desenvolver mais suas potencialidades. Não tinha ainda um poder de discernimento e de consciência crítica formados, daí que não poderia ter sido manipulado, reorientado negativamente, mas apenas conduzido para o precipício sem reação alguma, com um pequeno animal que vai ser sacrificado em nome do mal.
Estava disposto a ajudar o rapazinho. Sabia que havia furtado aqueles objetos de sua casa, o que comprovou que continuava com problemas, ainda estava se drogando e precisando de dinheiro para comprar mais uma pedra. Furta alguns objetos, vende por ninharia ou até mesmo entrega ao traficante, e satisfaz a sua sede por um instante. Mais tarde, a vontade bate às portas do inconsciente de novo. E mais um roubo ou furto para adquirir mais uma pedra. E assim em diante, até que um dia passa a ter todas as características de um marginal. É ladrão, viciado, abandonado pela família, procurado pela polícia, a qualquer instante, na sua ânsia de alimentar o vício, pode se tornar homicida, e assim num itinerário de marginalização e destruição. E bem à frente a morte certa, num percurso que não dura nem cinco anos. Não há dependente de crack e que viva para o seu consumo que viva muito tempo. Primeiro muda a personalidade, depois a feição, depois vai mudando tudo até se tornar praticamente irreconhecível.
Lucas deixou os meninos ali e resolveu ir até à cidade. Arrumou uma desculpa qualquer, mas a intenção mesmo era procurar o pai de Faísca para ver se estava precisando de alguma coisa. Até mesmo um simples gesto de solidariedade nesses momentos tem o dom de diminuir muitas dores. Assim que encontrou o senhor, que parecia um fardo jogado num canto, de tão absorvido nas suas tristezas íntimas, sentou ao lado e ficou em silêncio por uns dois minutos. Depois esboçou as primeiras palavras:
- Infelizmente, quando a gente pensava que o menino estava do nosso lado, o mesmo corria para o abismo. Agora é vida que segue, meu amigo, e temos que procurar evitar que o mesmo que ocorreu com Faísca aconteça com outras crianças. Mas sabe quem foi o autor do crime? – Perguntou Lucas.
- Ah!, meu rapaz, foi ele mermo. Ninguém matou ele não, foi ele mermo que se matou. Todo mundo que entra nessa vida sabe qui mai cedo ou mai tarde vai se matar...
Lucas se viu sem reação diante das palavras desse pai. Realmente, é praticamente um suicídio praticado por outras mãos. São fantasmas destruindo fantasmas, num cemitério aberto e aos olhos nem sempre vigilantes da sociedade. Após as palavras, resolveu que se demoraria pouco ali. Tirou do bolso algum dinheiro, disse que era para ajudar no funeral e depois seguiu em direção à igreja.



continua...





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quinta-feira, 29 de julho de 2010

AS COISAS E SUAS REALIDADES (Crônica)

AS COISAS E SUAS REALIDADES

Rangel Alves da Costa*


A sabedoria popular já disse que aquilo que a gente vê nem sempre é aquilo que é; na aparência há um conhecimento, dentro há a certeza; as coisas que aparentam ser de uma forma, se tornam de outra forma quando as conhecemos; quem vê cara não vê coração; a face nem sempre é a mesma feição. Seja de qual modo for, tudo para significar que a realidade das coisas está muito além daquilo primariamente visível.
Sem dúvidas, ninguém pode dizer que conhece alguma coisa somente pela aparência. Como verdadeiro trabalho sociológico, antropológico, de cunho etnocêntrico, o conhecimento mais aprofundado das realidades existentes exige exploração de campo, um caminhar na perspectiva de que as impressões vão se configurando numa identidade maior, e desta para a certeza. Contudo, certeza também aparente, pois nada no mundo é definitivamente verdadeiro.
Contudo, a busca do conhecimento das coisas e suas realidades só se torna possível exatamente porque houve um conhecimento anterior, e deste nasceu a dúvida e a curiosidade. Exatamente assim porque não se pode tirar conclusões por antecipação nem confirmar como verdadeiro aquilo que não passa de mera especulação, de suposições que precisam ser confirmadas. É também nesse passo que surge a necessidade de que não se pretenda conhecer levando-se para o encontro um ponto de vista já firmado ou um posicionamento positivo ou negativo.
Tudo o que foi dito até agora serve de base para qualquer investigação, para qualquer pesquisa, para qualquer conhecimento que se queira sobre o até então pouco conhecido. Contudo, é importante que tais premissas sejam aplicadas também nas relações entre os seres humanos, principalmente nos aspectos referentes aos conceitos antecipados, prejulgamentos e exposição perante os outros dos indivíduos que nem conhecem. E o que mais se vê é isso: as pessoas não conhecem outros nem as suas realidades e já começam a soprar pelos quatro cantos que ali há um verdadeiro deus ou uma coisa abjeta.
Muitas vezes, aquele que caminha lentamente está com muito mais pressa de chegar do que o que poderia estar correndo. Não se apressa porque o que tem de fazer é tão importante que tem medo de cair e não poder seguir adiante. Aquele que se mostra com um sorriso largo e gargalhando de palmo em palmo, talvez não esteja internamente com aquela mesma força festiva. Alegra-se por que não tem o que fazer por enquanto, e é melhor sorrir do que chorar. Aquela menina que passa todas as noites arrumadinha e volta já muito tarde não vai fazer o que os da esquina pensam e falam não, pois ela faz um sacrifício danado para ir estudar depois que sai da casa da patroa. Aquela senhora que está sempre sentada na varanda toda séria e carrancuda não possui um pingo de maldade nem na face nem no espírito. Alguém já pensou o quanto dói ter saudades de toda uma vida?
Tais exemplos servem apenas para confirmar que as coisas nem sempre são como os outros imaginam nas pessoas. Quem olhou viu um homem andando lentamente, quando este estava apressado; o todo contente estava infeliz por dentro; a menina não era nenhuma prostituta, mas sim uma estudante esforçada; a senhora é um doce de pessoa naquela feição tristonha. Daí que é preciso muito cuidado para não criar uma falsa realidade naquilo que se conhece. Ademais, ninguém gosta ser chamado de feio e arrogante, quando o próprio indivíduo e o seu espelho acham que é bonito e educado.
Se tudo fosse como vemos apenas à primeira vista, aquela pessoa não passaria apenas de mais uma pessoa, e não meu amor, meu viver.




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Julgamento (Poesia)

Julgamento


Vistos, etc.
Relatam que o amor
subiu, sumiu e desabou

Decido
diante das provas
quando a lei divina
no amor
é submetida à lei humana
na dor
somente os dois
podem julgar
e se penalizar

Condeno
aos que não sabem amar
e absolvo todos aqueles
que sabem se perdoar.



Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 60

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 60

Rangel Alves da Costa*


Padre Josefo sabia, e nem precisou explicar detalhadamente a Lucas, que cruz sangrando significa o sofrimento do bem diante das injustiças, das perseguições e da maldade cega dos homens. Contudo, até mesmo para que o restante do dia não ficasse com um aspecto mais pesado ainda, resolveram que só voltariam a falar sobre os incidentes em outra ocasião.
Ester ficou ao lado dos meninos, brincando, pulando e sorrindo, até o entardecer; os jovens pareciam não ter ficado abalados com os eventos, pois colocaram em dia seus olhares, suas paqueras e seus cochichos; os meninos brincaram, comeram e se danaram à vontade; enquanto que os adultos e de mais idade não falaram noutra senão sobre a presença do prefeito, as palavras do padre afirmando que tentaram impedir que ele estivesse ali para celebrar missa e o ataque inesperado dos desconhecidos às panelas das comidas.
"Tanta gente safada qui tinha por aí e foram escoier logo umas panelas inocente pra dar paulada. Adespoi, se forem descoberto, tarvez inté qui num seje preso. Isso prumode vão dizer que prederam os homi pruque deram uns safanão nuns pé de porco e numas lingüiça e derramaro o feijão. Se ao meno o cabrito tivesse berrado quano eles deram a porrada ainda ia, mais não, tava tudo mortim da silva". Disse uma, enquanto a outra respondeu: "Mai dexe de falar bestera muié. O poblema vai ser cum quem mandou fazer isso, poi tá cara qui aquele homi fou tudim mandado de argúem. E Deus me perdoe, mai sei direitim quem deve ter sido, pois tava aqui e saiu cum raiva do pade, e só pruque ele falou a verdade. Esse sim, é qui deveria pagar. Mai já viu né, grande fais e disfais e fica purisso mermo".
Uma das coisas mais incríveis aconteceu com a distribuição dos pães com mortadela. Assim que o pedido chegou da cidade na sua inteireza, Padre Josefo e Lucas mandaram preparar os sanduiches na casa deste, de modo que não ficasse um tumulto ainda maior nem dentro nem nos fundos do barracão. Resolveram ainda que somente fariam a distribuição um pouco mais tarde, quando a fome realmente tivesse chegado e a barriga não pudesse rejeitar aquela "comida de pobre", como disseram as outras.
Quando passou das duas horas e mandaram que os sanduiches fossem trazidos ao barracão, começou o maior empurra-empurra, a maior correria, a maior confusão. "Eu quero", "me dê, "esse é meu", "você já pegou dois e escondeu", "parece que tá morreno de fome", "só mais um", me dê um copo de kisuqui", "traga kisuqui qui a muié tá engasgano". No afã de chegar na frente para pegar o lanche, teve gente que começou a brigar, cair, rolar pelo chão. Aquelas três importantes, de tanto esforço para garantir os seus, caíram de uma vez só. E no chão, uma olhava para a outra e dizia: "Mais num era pra mim não".
Verdade é que não sobrou um só pão, uma gota de refresco nem uma fatia de mortadela. Porém, por incrível que pareça, ninguém comentava se havia gostado ou não, até evitando falar se havia se esbaldado ou não. O padre e Lucas sorriram pra não acabar mais, e este dizendo ao outro que já sabia como fazer para matar a fome do povo nas futuras reuniões.
Os meninos resolveram que deixariam para limpar aquela sujeira toda no dia seguinte, quando trariam também suas mães para ajudar. E assim, quando todos se despediram e foram embora, Lucas, cansado que só ele, resolveu deitar mais cedo e se alguém rondou por ali na madrugada não pôde nem perceber. Dormiu a sono solto, não sonhou, nem se mexeu na cama até o galo cantar.
Assim que preparou um café, caminhou um pouco pelos arredores e mais tarde já começou a avistar os meninos que vinham pela estrada. Assim que Paulinho chegou a primeira coisa que disse ao amigo foi que tinham matado um rapazinho nessa noite, lá na cidade. Quando Lucas perguntou quem teria sido a vítima e porque mataram o rapaz, o outro respondeu:
- O nome mesmo não sei não, mas dizem que é um tal de Faísca, e também não ouvi dizer porque mataram ele não.


continua...






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quarta-feira, 28 de julho de 2010

O VERDADEIRO INIMIGO (Crônica)

O VERDADEIRO INIMIGO

Rangel Alves da Costa*


As pessoas viajando, as pessoas passeando, as pessoas caminhando, as pessoas namorando nos jardins, as pessoas sentadas nos bancos das praças, as pessoas perdidas pela rua, as pessoas vivendo o seu dia-a-dia, e de repente avisos bem altos e por todos os lugares, vindos de alto-falantes potentes, através do rádio, através do ar:
"Atenção, atenção, prestem bem atenção: seres estranhos foram detectados por nossos radares e se aproximam em nossa direção. Não sabemos ainda a potencialidade desses inimigos e o que pretendem fazer contra as pessoas que vivem pacificamente na terra, por isso mesmo deixem cuidadosamente o local onde estão e procurem abrigo em local seguro".
"Os desconhecidos estão cada vez mais próximos. Nossos serviços de inteligência ainda não sabem, mas podem ser altamente perigosos, destruidores e que não respeitam nada do que encontrem pela frente, mesmo que sejam velhos, doentes, crianças, aleijados, nada, não respeitam nada. Por isso tomem cuidado. Para não despertar nenhum tipo de furor no desconhecido, saiam de onde estão cautelosamente e vão para um lugar seguro, onde possam ficar bem protegidos".
Os avisos emitidos eram cada vez mais altos e mais contundentes, como se quisessem dizer que a situação era de perigo extremo e a qualquer instante todos poderiam se tornar vítimas fatais. Contudo, mesmo com as ordens proferidas e as palavras ameaçadoras usadas, as pessoas pareciam não estar nem aí. Paravam por um instante, ouviam e prosseguiam nos seus afazeres, nos seus passeios e nas suas mesmices. Era como se os alertas não fossem nem ouvido por estes.
E as sirenes começaram a tocar mais alto e com mais insistência. Nesse passo, também aumentou o tom impositivo nos comunicados, agora mais altos e parecendo definitivos:
"Não subestimem os inimigos. Eles são perigosos, maus, covardes; são uns verdadeiros assassinos e já estão cada vez mais próximo de vocês. Não sabemos ainda quais armas poderão utilizar no ataque morticida, mas pode ser armamento de tecnologia ainda desconhecida por nós, tais como aviões invisíveis carregando gases letais, nuvens teleguiadas com chuva de napalm, ventos corrosivos, espumas asfixiantes, enfim, a morte certa. Por isso mesmo não continuem como estão nem mais um segundo. Fujam, se protejam como puderem, procurem sobreviver. E este é o último aviso: fujam, saiam daí rapidamente, pois eles já estão chegando".
As pessoas continuavam despreocupadas, felizes. Não davam a mínima importância para tais avisos desesperados, para as ordens superiores. Se estavam beijando, se lambiam ainda mais; se estavam correndo, pulavam ainda mais; se estavam gritando, gargalhavam ainda mais; se estavam tristes pelas praças, choravam ainda mais. Na verdade, ignoravam totalmente a preocupação do sistema de alerta contra os inimigos invasores. Mas num determinado momento, quando as sirenes baixaram seus sons e uma voz nos alto-falantes e nos rádios começou a falar, então tudo deu uma reviravolta, tudo mudou.
Bastou que a voz dissesse: "Já que vocês não querem sair, então a polícia vai até aí para protegê-los". Bastou ouvirem o nome polícia e foi um deus-nos-acuda, com pessoas aos gritos, aos prantos, correndo desesperadas, uns pisoteando os outros, e todos gritando: "Corram, salvem-se quem puder que a polícia vem aí".
Os desconhecidos invasores não chegaram, mas todos ficaram sabendo de quem o povo tem realmente medo, da presença de quem querem fugir a qualquer custo, das garras de quem procuram desesperadamente se afastar, para não serem vítimas dos abusos, da covardia, da violência gratuita. Ao menos serviu para que tivessem a certeza de que o povo procura se proteger é da polícia, e jamais esperando qualquer proteção vinda desta. Ademais, em muitos casos, polícia significa diminuição da dignidade e da integridade física do inocente.





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Tudo e nada (Poesia)

Tudo e nada



Nesse imenso
e grandioso tudo
nunca basta
tudo e nada

por isso
não quero somente
grão e semente
desejo e beijo
laço no abraço
vontade metade
ser um prazer
espasmo orgasmo
dar e doar
nexo no sexo
buscar achar
querer e ter
paixão coração
posse pessoa

Imenso e tudo
vazio e nada
em tudo que há
sem amor amar.


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 59

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 59

Rangel Alves da Costa*


Será? Pensou o Padre Josefo. Não, as flores não seriam para Ester, ainda que esta merecesse uma primavera inteira, mas para serem colocadas próximo à réplica da cruz artesanal que havia chegado.
Ao ficar sabendo da presença do precioso objeto, o sacerdote convidou Lucas para ir até lá, pois queria estar mais uma vez próximo da cruz original e apreciar como havia ficado a cópia, se o artesão trabalhou com cuidado e apuro e se a réplica também tinha o poder de passar uma percepção diferente de mundo a todos aqueles que a admirasse por ao menos dois minutos seguidos. Teriam de ser assim, pois os escritos antigos falavam sobre esse dom mágico, essa força superior invadindo os espíritos.
Padre Josefo pediu a Lucas que colocasse a réplica no seu devido lugar e depois dariam uma voltinha pelo barracão e arredores na presença da cruz original. Enquanto caminhavam por entre as pessoas que continuavam no local, e eram muitas, percebiam seus rostos tristes pelo ocorrido. Conversando entre si, gesticulando e apontando, talvez estivessem falando sobre quem poderia ter provocado aquela desagradável situação.
"Que não nos aflijamos. Coisas acontecem ora para nos testar, ora para nos promover. Se o que contra nós é manejado venha para nos ameaçar e ferir, e nos deixamos levar e enganar por tudo de ruim que aquilo objetiva, então seremos vítimas do nosso próprio despreparo. Mas o contrário, quando temos a força de entender e combater esse mal pela raiz, então seremos promovidos. Nesse contexto, ao sairmos incólumes dessa situação toda e mais fortalecidos porque sabemos que os nossos inimigos não nos deterão, então nada será vão na nossa luta". Falando enquanto caminhavam, tais palavras proferidas pelo sacerdote pareciam ecoadas do alto de uma montanha.
"E tem mais, amigo Lucas, as Escrituras não mentem quando falam que por mais força que o bem possa ter, não pode se descuidar um segundo, pois o inimigo está escondido esperando somente o instante certo para tentar subjugar e submeter o bem. E este só não é vencido porque não se cansa em ser cada vez mais fortalecido pelas ações boas que reiteradamente faz. E o mal não prospera precisamente porque é de cega ambição, querendo destruir tudo e não conseguindo nada". Parecia um sermão o que o padre dizia.
"A partir de hoje, principalmente após eu ter afirmado que alguém havia procurado o bispo para tentar impedir que eu celebrasse missa aqui, e essa pessoa certamente que é o prefeito, talvez nós dois nos tornemos ainda mais alvos potenciais desse canalha, dessa vil figura humana. E isto comprova, amigo Lucas, que o inimigo citado nas Escrituras age através de seus tentáculos, através de outras pessoas, de situações ou daquilo que é quase imperceptível. Desse modo, se utiliza do prefeito e dos seus comandados para espalhar o mal. Mas lembre bem que não estou isentando ninguém ao afirmar que agem porque ativadas por uma força maléfica superior, muito pelo contrário, vez que essas pessoas só se tornam propiciais a serem mensageiras do mal e da desventura quando já possuem uma índole ruim por formação, o que não resta dúvidas quando falamos do prefeito. O pior é que ele está sentindo que as perseguições que está fazendo não estão surtindo o efeito desejado, pois não consegue seus intentos de submeter você aos objetivos eleitoreiros dele. Esse ódio cada vez maior que ele vai guardando em si o torna muito perigoso, pois vai continuar agindo e através de métodos cada vez mais aprimorados, vai agora buscar outros mecanismos mais eficazes. E de repente, e Deus sempre nos proteja e guarde disso, o homem pode desandar de vez e mandar fazer o pior. E pode fazer isso porque já estará completamente cego, já estará totalmente domado pelas forças do mal. Mandar acabar com tudo de vez seria, então, como tomar um copo de água".
Tudo isso o padre falava enquanto caminhavam por entre as pessoas, pelos arredores do barracão. E o sacerdote continuou: "Contudo, de agora em diante parece que ele abriu outra frente para agir. Primeiro ele quis calar a voz da igreja aqui, e não será absurdo se começar também a agir contra a voz da igreja, que sou eu neste lugar. Então, meu amigo, somos dois a lutar contra essa coisa vil. E a prova de tudo o que falei está aqui, veja".
Levantou a cruz na altura dos olhos e viram que nela estava uma pequena manchava parecendo avermelhada. A cruz sangrava.



continua...







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terça-feira, 27 de julho de 2010

EU E LAMPIÃO (Crônica)

EU E LAMPIÃO

Rangel Alves da Costa*


Calma, não é bem o que estão pensando não. Não vivi nos bravios tempos do autêntico cangaço sertanejo e nem de longe sou parente do Capitão. Quem dera ser, honra maior não haveria no meu ressequido e árido sangue nordestino. Quando Virgulino morreu meu pai ainda não era nem nascido. O filho de Dona Emeliana veio ao mundo dois anos depois, em 40. E dentre o ano que ele foi emboscado, em 1938, até o meu nascimento, em 1963, lá se foram vinte e cinco anos. Contudo, posso dizer que convivi e ainda convivo com Lampião.
Como já devem ter percebido, sou sertanejo de raiz e caule, broto e praga de chão, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município de Poço Redondo. E foi naquelas redondezas, beirando as brenhas e se entrincheirando pelas caatingas, que o Capitão e o seu bando praticamente fixaram moradia durante os últimos anos de sua vida. Mesmo antes disso, andando pelas distâncias nordestinas, não demorava muito e o homem chegava por ali, onde mantinha vínculos de amizade muito fortes com poderosos da região.
Quando estava nos arredores do lugarejo mandava logo um coiteiro avisar ao meu avô materno Teotônio Alves China, o China, um respeitado comerciante do lugarejo, que providenciasse comida que em tal dia e tal hora ele chegaria por lá. Se não confiasse, se não fosse realmente amigo, jamais mandaria avisar ode estava e quando faria uma visita.
E Dona Marieta, coitada, minha avó, colocava as mãos na cabeça e ficava em tempo de endoidar. "Mai o que foi Marieta, só pruque o cumpade Lampião vem aqui você fica assim, e ói qui aqui ele nunca foi um estranho pra nóis não, pelo cuntraro. É nosso amigo e bom amigo. Entonce deixe de avexamento e vá arrumar os cabrito". Então minha avó respondia: "Mai num é isso não China, o poblema é qui o Pade Artur vai tá aqui na merma data qui o Capitão chegar. E cuma vai ser, Deus e o diabo numa casa só?".
Esse fato realmente aconteceu. Os livros relatam, mas nada se compara em ter ouvido essa passagem da boca dos meus avós. E contavam causos e causos, muitas coisas que na minha idade eu nem atinava sobre sua importância. E realmente o que não faltava era assunto sobre Lampião, pois o homem parece ter escolhido Poço Redondo como uma segunda casa sua. A primeira era a caatinga, com varanda de xiquexique e assento de mandacaru. Mas a família era grande, era muita, espalhada por todos os sertões nordestinos.
Desse misto de temor e reverência, aliado ao fato de que o homem sempre estava por ali desafiando as volantes, verdade é que mais de trinta filhos de Poço Redondo seguiram a trilha do bando de Lampião. Mocinhas muitas novinhas, ainda na adolescência, e se encantavam com os rapazes do bando e seguiam sertão adentro na vida de amor cangaceiro. Assim foi com Adília, Sila, Enedina, Rosinha e outras. Dentre os meninos de Poço Redondo estavam, por exemplo, Cajazeira, Canário, Elétrico, Mergulho, Novo Tempo e Zabelê.
Zabelê era meu tio. Quer dizer, tio de meu pai e irmão de minha avó Emeliana Marques Costa. Nascido Manoel Marques da Silva, ainda menino entrou pro bando do Capitão. Quando este morreu, junto com sua amada Maria Bonita e mais nove cangaceiros, na madrugada nordestina e triste de 28 de julho de 1938, na Gruta do Angico, ali mesmo em Poço Redondo, nas beiradas do Velho Chico, o meu tio Zabelê desabou no mundo, que até hoje ninguém da família tem notícia onde foi parar. Antigamente, as irmãs – era filho único – faziam longas viagens por outros estados distantes na esperança de reencontrar o irmão, coisa que nunca foi possível. Zabelê é nome de passarinho e talvez tivesse voado.
Não cheguei a conhecer o filho Cajazeira, o Zé de Julião que morreu emboscado quando já havia deixado a vida e cangaceira e era político influente em Poço Redondo, mas conheci muito sua mãe, Sinhá Constança, numa amizade de avó e neto e cujas circunstâncias já relatei aqui numa crônica denominada "Essas coisas da vida". Só pra citar, a coisa que ela mais me pedia é que não a deixasse sem caixão quando morresse. Palavra de sertanejo como foi cumprida a promessa.
Mas não é só isso não, pois quando morava em Poço Redondo e todas as vezes que chegava por lá encontrava Lampião, Zé Rufino, cangaceiros, volantes, coiteiros e jagunços num proseado só. Dentro de casa, pelas salas e quartos. É que meu pai, Alcino Alves Costa, um dia ainda moço se interessou pela vida desse povo e nunca mais teve sossego nem deu sossego a eles, pois vive nas mesmas trilhas catingueiras recolhendo causos e estórias, depoimentos verídicos e de "vi dizer" para povoar o seu mundo de apaixonado escritor das coisas matutas e cheias de valentia e bravura.
Nesse trotar de trote já escreveu mais de seis livros sobre a saga cangaceira e o sertão. É autodidata, mas hoje é escritor de fama, requisitado por universidades, simpósios, palestrando na Academia Sergipana de Letras, no estranho mundo de Brasília e participando de muitos outros eventos. Lá em casa todo dia é um pesquisador diferente, desconhecido ou amigo, do quilate de Federico Pernambucano, Antonio Amaury, Paulo Gastão, Oleone Coelho Fontes, Antônio Kydelmir, Manoel Severo, João de Sousa Lima, Antonio Porfírio, Juarez Conrado e tantos outros.
Conheço alguns e por outros sou conhecido. Mas é assim mesmo. O que realmente importa é que sou amigo de Lampião. É como se eu tivesse seu sangue correndo pelas veias, com prazer, com um orgulho danado.





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Paixão (Poesia)

Paixão


Eis-me aqui
ó triste palavra ecoada
pelos cumes das montanhas
transgredindo as nuvens
e chegando agora
numa rajada de vento
para dizer-me
que salte das estrelas
abandone o véu do luar
e vá...

Para onde seguir
ó voz que se esconde
e faz-me incerto
entre tantas faces
entre tantas foices
caminhos de espinhos
a esconder a morte
jogado à sorte
impondo que vá...

Eis-me aqui
ou eis aqui
o que de mim restou
um quase nada
o quase que sou
só pra te olhar
implorar amar
e de novo não
e de novo vá...


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 58

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 58

Rangel Alves da Costa*


Uns três ou quatro indivíduos saíram de repente de uma parte de mataria por trás do barracão, bem perto de onde as mulheres cantavam e tagarelavam preparando a feijoada, cozinhando o arroz e mais uma panelada de carne de bode, e foram com paus nas mãos bem em cima dos caldeirões e das panelas, dando porradas que só se via feijão escorrer e pé de porco e linguiça voando pelos ares.
As cozinheiras que estavam ali nem se fala. Tomaram um susto tão grande que duas delas desmaiaram na hora, mais duas desandaram mata adentro sem direção e todas as outras se puseram a gritar e a chorar. Quando as pessoas correram para acudir, só avistaram os indivíduos com máscaras pelo rosto sumindo pelas redondezas.
Algumas das pessoas que acorreram até ali, ao se depararem com a cena, com as mulheres aflitas, a comida fervente pelo chão e panelas quase todas emborcadas, colocaram as mãos na cabeça e parecia que haviam perdido uma pessoa muito querida, um ente familiar. "E agora, meu Deus, o que fazer sem minha feijoada e sem minha carne de bode?"; "Valei-me, arriscado eu ter perdido o menino só por causa do pé de porco que num tem mais"; "Misera das misera, Cuma é que vou dizer as tripa por dentro qui já tava tudo de galfo e faca?". Era o que se ouvia num lamentar infinito.
Outras pessoas disputavam pelo chão a comida que estava espalhada. "Num precisa nem de farinha, vai com areia mermo". Felizmente algumas panelas que foram atingidas não chegaram a derramar por completo, restando ainda pelos fundos um resto disso ou daquilo. Foi quando Padre Josefo bateu palmas e chamou a atenção:
- Vocês não são e nunca foram bichos. Levantem já do chão e deixem essa comida aí. Lembrem que têm pessoas que precisam ser ajudadas, pois ainda estão desacordadas do susto que passaram, coitadas. Cheguem, levem as duas para um lugar mais fresco dentro do barracão ou mesmo embaixo da umburana. Tenham cuidado pois estão muito fragilizadas. Vocês três venham – E chamou três mulheres que há pouco estavam catando resto de comida pelo chão -, peguem umas vassouras e uma pá e limpem isso aqui urgentemente. Vocês duas venham aqui – E chamou mais duas -, peguem esses caldeirões e essas panelas que ainda têm comida dentro e levem para a casa de Lucas. Tomem conta da cozinha e terminem de preparar o que restou. Só tem uma coisa: a comida que ainda resta vai ser servida somente aos meninos que estão aqui, às crianças que estão aqui desde cedo e precisam se alimentar. Nós que somos adultos temos que dar um jeito... – Foi interrompido por uma senhora que parecia estar vestida para uma festa:
- Mas a gente tá com fome seu pade...
- Está bem, está bem. Se estão com fome de verdade então eu vou dar um jeito nisso agora. Sizenando e Lucrécio venham cá, por favor. Peguem o meu carro e vão até a cidade comprar agora mesmo o que eu vou mandar, escutem bem. Tragam quatro cestos de pães, bem cheios, vinte pacotes de ki-suco, três quilos de açúcar e cinco mortadelas. Tomem aqui o dinheiro – E puxou do bolso uma única nota graúda – e tomem cuidado com o troco. Ah!, já ia esquecendo comprem também dois pacotes de copos plásticos – E olhando pra Lucas, perguntou – Está precisando de alguma coisa Lucas?
- Sim – E chamou Sizenando e falou ao ouvido.
Assim que o padre mandou comprar a mortadela com pão, de repente, coisa de dois minutos, algumas pessoas saíram dali com a cara emburrada, como quem não tinham gostado do que tinham ouvido. "Euzinha comer pão com mortadela, nem morta"; "Só me faltava ser pobre agora pra me submeter a comer essa nojeira"; "Ia fazer um favor deixando os meus bifes e assados para comer dessa feijoada, mas comer essa pobreza aí já é demais". E saíram cochichando uma com a outra. Quase esbarram em Ester que ia chegando.
Quando o padre avistou Ester chamou-a pra perto e disse baixinho: "Me perdoe, doce menina, mas se ainda fosse naqueles tempos eu ia pedir um favorzinho a você. Era coisa besta, coisa pouca, somente pedir que não deixasse Lucas fazer besteira, pois sinto que esse jeito calmo que ele demonstra estar não passa de um disfarce, pois o mesmo está em tempo de explodir, já não agüenta mais ver tantos absurdos acontecendo perante uma só pessoa. Pois saiba, minha menina, que tudo isso que fizeram e fazem é unicamente para atingir o Lucas, para ver se fraqueja e se corrompe de corpo e alma perante o inimigo. Mas Deus é mais e o protegerá. Mas não custa nada pedir, como amiga, que ele se acalme que tudo será resolvido. Está bem?".
Lucas ia chegando no mesmo instante e perguntou:
- O que é que vocês tanto cochicham?
E o sacerdote se adiantou:
- Só diremos quando você contar o que estava dizendo no ouvido do Sizenando.
- Ah!, sim. Mandei que ele trouxesse umas flores.



continua...






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segunda-feira, 26 de julho de 2010

O ÚLTIMO DISCURSO DA RIQUEZA (Crônica)

O ÚLTIMO DISCURSO DA RIQUEZA

Rangel Alves da Costa*


Os três filhos do patriarca, dois homens e uma mulher, já haviam convidado os amigos, namorados, ex-namorados e amantes para mais uma festa na mansão. Ao menos duas vezes ao mês os filhos faziam festanças de virar a noite, com tudo importado, comidas e bebidas do bom e do melhor. Sempre terminavam na piscina, em cuja pérgula o champanhe francês era derramado à vontade na cabeça e pelos corpos desnudos de cada um.
Não se sabe o porquê, mas aquela festa não havia sido iniciativa dos futuros herdeiros, mas sim do próprio patriarca, que já com idade avançada talvez quisesse se animar um pouco mais ao lado dos filhos e seus amigos. Já conhecia boa parte daquelas pessoas que estariam ali, pois muitos deles entravam na mansão como se fossem da própria casa, da família, numa facilidade que nunca lhe agradou. Fartavam-se do que queriam e ainda saíam com algum no bolso. Na verdade, não iam fazer outra coisa, a não ser tirar dinheiro fácil dos filhos do patriarca e até mesmo deste. No final de tudo, as contas sempre recaíam sobre o velho.
Assim, no horário determinado, e até bem antes disso, os convidados já se espalhavam pelos suntuosos salões da mansão. Muitos se escondiam pelos quartos com suas amantes e vice-versa, numa luxúria costumeira e dolorosa para o patriarca. "Papai, é a juventude que é assim mesmo, ávida pelo brincar e namorar, curtir a vida adoidado e comer do bom e do melhor, sem ter medida para nada. Afinal, somos ricos demais, bilionários, e uma festinha dessa é como uma esmola que se dá a um playboyzinho faminto para saber o que é a verdadeira riqueza".
As luzes brilhavam e as comidas e as bebidas amontoavam-se por todos os lugares, ao lado dos castiçais, porcelanas e toda uma prataria importada. Algumas das bebidas mais caras do mundo estavam servidas ali: Vinho Romanée-Conti, Chateau Lafite, Tequila Pasion Azteca, Conhaque Henri IV Dudognon Heritage, Champanhe Heidsieck & Co. Monopole, Uísque Macallan Fine and Rare 1926, Saquê Watari Bune e Vodka Diva, dentre outras selecionadas pelo preço caríssimo. Os petiscos também eram de primeira linha, todos feitos com produtos importados e por chefs franceses exclusivamente contratados para cada festa. Era um vislumbre, o máximo de luxo e de esbanjamento.
No auge da festança, com todos os convidados já sob os primeiros efeitos do álcool, o velho mandou que baixassem a música, se postou no alto da escadaria e pediu licença para falar rapidamente alguma coisa. Os filhos quase enlouquecem: "Mas papai, venha pra cá se divertir com a gente, isso não é hora de discursos. Venha, venha aqui tomar um pouco de champanhe e esquecer por instantes dos seus milhões, bilhões, trilhões...".
O patriarca nem deixou o filho encerrar e se apressou em falar:
"É mesmo sobre os milhões, os bilhões, os trilhões que quero falar. Não existe mais nada disso, nem um milhão, um bilhão e muito menos um trilhão. Não existe mais nada disso. Todo o restante do nosso dinheiro, os últimos centavos de toda a riqueza da família vocês estão aí agora bebendo e comendo, como sempre fizeram, destruindo em luxo, farras e festanças toda uma vida dedicada aos maiores esforços para formar um patrimônio. Vocês, meus três filhos, conseguiram destruir tudo, e não só o meu patrimônio como aquilo que lhes pertenceria um dia por herança. Hoje vocês não herdarão mais nada, a não ser dívidas e o desprazer de não terem mais amigos e serem olhados com sarcasmo e apontados com deboche como aqueles que um dia se acharam milionários, bilionários, trilionários...".
A filha desmaiou, enquanto os outros dois filhos se olhavam e um deles dizia com as mãos na cabeça: "Mas o que está dizendo seu velho ensandecido, desça já daí!". Os convidados baixavam a cabeça e cochichavam entre si. E o patriarca continuou, apontando para os convidados:
"Não estão vendo estes que estão aí, que sempre levaram uma vida burguesa a custa dos outros, nenhum deles vale nada. Amanhã nenhum reconhecerá vocês nem ajudará a pagar suas dívidas. E não farão isto porque não prestam, são uns velhacos, pois chegavam todos os dias aqui, sempre às escondidas, pra tomar empréstimos e mais empréstimos. Sei muito bem quanto cada um me deve...".
E de repente, quase que imperceptivelmente, os convidados foram saindo um a um, desconfiados, apressados, sem se despedir e sem olhar pra ninguém. Os que ficaram, doidos para encontrarem uma oportunidade para saírem furtivamente, tiveram que continuar ouvindo:
- Vocês e seus amigos, meus filhos, com essas luxúrias e esses desregramentos, conseguiram transformar um rico patrimônio numa dívida hoje já imensa. Hoje não temos mais nada a não ser dívidas. Estão vendo isso tudo aqui, esses móveis, esse brilho todo, essas bebidas e essas comidas, nada disso nos pertence mais... – e fez um aceno.
Com o gesto do patriarca, pessoas foram entrando nos salões e recolhendo tudo: móveis, pratarias, copos, uísques, champanhes, tudo, deixando a mansão praticamente vazia. E o velho continuou:
"Estão vendo, não temos mais nada, mas o pior é que as dívidas ainda chegarão até vocês. Chegarão até vocês porque os meus dias de vida estão curtos, estão contados, e sei bem disso. Agora cuidem de desocupar a mansão e ir procurar moradia na casa dos seus amigos. Por falar em amigos, onde estão seus amigos que há pouco estavam aqui?".
De repente, o velho colocou a mão no peito, mostrou a face retorcida de dor e foi ajoelhando até cair. Os filhos nem se importaram com isso, pois estavam brigando, trocando sopapos, um culpando o outro.
A filha única ainda continuava desmaiada, estendida sem que ninguém se importasse com o seu estado. Seu rosto parecia com o mesmo semblante da família, pálido, sem brilho nem cor, parecendo ter morrido.





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Fiel coração (Poesia)

Fiel coração


Ainda que de ti
não venha a resposta
e eu jamais saiba
se amarei na vida
serei fiel ao coração
que mesmo solitário
sabe o que é perdão

E ainda que em ti
se faça o silêncio
e as palavras sigam
em outra direção
serei fiel ao coração
que vive do sim
mas suporta o não

E ainda que a ti
caiba um dia dizer
que a felicidade
vai afastar o sofrer
serei fiel ao coração
e direi que basta
que a ti nada cabe mais não...


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 57

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 57

Rangel Alves da Costa*


Logo na manhãzinha do sábado as mães dos meninos chegaram com as panelas, caldeirões e os pertences para fazerem os preparativos da feijoada. Teriam que acender fogos nos fundos do barracão e providenciar uma série de coisas para que tudo desse certo, vez que a comida seria para muito mais gente do que o inicialmente planejado.
Sabiam que em se falando de feijoada o correto mesmo é que ela seja feita no dia anterior a ser servida, de modo que fique bem apurada e mais saborosa. Mas de qualquer forma, com a ajuda das pessoas da comunidade que chegavam a todo instante, tudo teria que ficar da melhor maneira possível. Afinal, era uma feijoada para pessoas simples e sem exigências maiores no paladar, como os meninos e os moradores das proximidades.
Os meninos chegaram pouco tempo depois e se juntaram a Lucas nos preparativos das atividades do dia. Guiomar pediu por tudo na vida que não esquecessem de incluir as brincadeiras de roda e suas cantigas bonitas; Paulinho avisou que o poeta Hermenegildo do Lácio havia pedido permissão para declamar alguns poemas de sua própria lavra de solidão e desamor; não esqueceram também de incluir Chiquinho Voz de Sabiá na programação, pois estaria ali com o seu violão para encantar os presentes. Enfim, a programação ficou mais extensa do que o esperado por todos, mas mesmo assim não haveria problema algum.
Nem bem chegou nove horas e o barracão já estava tomado de crianças e adolescentes. Em frente e nos arredores famílias conversavam entre si, mocinhas e rapazes trocavam olhares, tendas eram estendidas para espantar o sol, sombrinhas, cadeiras, esteiras e guarda-sóis estavam por todos os lados. Até vendedores de picolés e de lanches resolveram tentar a sorte por ali.
Quando o Padre Josefo chegou, chamou Lucas e os meninos num canto e anunciou que iria celebrar missa. Disse que viera ali como enviado de Deus para fazer celebração de qualquer jeito, mesmo que as pessoas não estivessem avisadas. E num instante, os meninos trouxeram a mesinha para frente do barracão, forraram com uma toalha branquinha e avisaram a todos que dali há instantes viessem mais pra perto e prestassem atenção que o sacerdote iria celebrar missa.
Ante de dar início aos ofícios, o padre cochichou no ouvido de Lucas e pediu para que olhasse para determinado local. Era o prefeito que havia chegado com uma comitiva de puxa-sacos e já estava acenando e pegando na mão de todo mundo. "Mas que safado. Se aproveitando do momento para fazer política e logo num instante que não poderei expulsá-lo daqui, vez que não seria conveniente tomar tal atitude diante de tantas pessoas que nada têm a ver com as desavenças entre nós dois. Mas deixe estar que o tempo dele chegará", disse Lucas baixinho ao amigo.
Enquanto pedia silêncio a todos para que o padre iniciasse a missa, Lucas avistou uma mãozinha acenando para ele e quando deteve o olhar pôde ver Ester toda bonita no meio da multidão. Fez um aceno de volta e apontou para onde estavam os meninos. Num instante ela já havia se juntado toda sorridente a eles.
E o padre começou o ofício:
- Meus irmãos, como é certa a presença de Deus entre nós e nos nossos corações neste momento, certa também é a minha vontade de celebrar sua palavra para todos. Mas antes de dar início ao sermão propriamente dito, tenho que dizer algumas palavras sob pena de jamais viver feliz enquanto cristão. Saibam, queridos irmãos, que neste momento era para que eu estivesse impedido de celebrar missa neste local para vocês, pois uma pessoa muito influente no município, talvez o político mais poderoso no momento, pois está com as rédeas de todos os munícipes nas mãos, procurou instâncias superiores da igreja para o que o nosso querido bispo intercedesse para impedir que eu celebrasse a palavra do Senhor neste barracão. Imagine vocês, uma pessoa que diz querer o bem de todos e por detrás, na maior falsidade do mundo, como é próprio dele e dos demais políticos, fazer o jogo do inimigo e mostrar suas garras. Diferentemente do que ele imaginou, jamais conseguirá me afastar do meu rebanho e impedir de semear as boas novas perante o povo de Deus. Mas não é contra a minha pessoa que ele se revolta, mas sim contra todos vocês e até contra Deus, contra estes meninos que tanto lutam para manter este local e contra os sonhos bons que todos possuem...
Não é nem preciso relatar as reações do prefeito ao ouvir tais palavras do Padre Josefo. Para se ter uma ideia, encobriu o rosto com um chapéu e pediu que os seus puxa-sacos o tirassem urgentemente dali, pois estava prestes a ter um piripaqui e morrer ali mesmo. Tremia de raiva feito vara verde, soltaria fumaça pelo nariz a qualquer instante. Mas não esqueceu de chamar um dos homens que estava ao seu lado e dar algumas ordens no ouvido.
Cerca de uma hora depois e era caldeirão de feijoada voando por todos os lados. Homens encapuzados chegaram de repente ali para destruir tudo.


continua...





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domingo, 25 de julho de 2010

TEMPOS E QUINTAIS (Crônica)

TEMPOS E QUINTAIS

Rangel Alves da Costa*


Não precisa ter passado dos cinqüenta para reviver com saudades o tempo dos quintais. Quintais abertos, grandes, correndo até onde começam as pastagens e as plantações, ou mesmo quintais curtinhos e acanhados, mal cabendo os apetrechos do menino brincar e a velha caixa d'água colocada no chão para receber, através do cano que pendia diretamente do telhado, as águas de chuva que um dia caíssem.
Quintais são lugares sagrados na vida interiorana, são como templos de terra e gravetos onde são feitas as oferendas da sobrevivência. Por ali ciscam as galinhas, os patos e os perus; o cágado se esconde num canto, onde fica cavando areia para depositar seus ovos; o porco passa destruindo tudo. Também como é que se faz um chiqueiro tão baixinho e tão perto da fazendinha onde Joãozinho brinca com seus amigos?
Muitas vezes, o danado do porco deixa sua lama e sua lavagem por lá e vem fuçar bem onde os meninos guardam suas riquezas, seus animais, suas máquinas, seus carros. Cada ponta de vaca é um boi, vasilhame seco de óleo de comida com quatro rodinhas por baixo é um carro-pipa, pedaços de madeira se transformam em casas e carros-de-boi. Basta cavar um pouquinho a terra, colocar um plástico azulado por baixo e derramar água por cima e já se tem um tanque cheinho para dar de beber aos animais. Gado de ponta também se mistura aos animais de barro, e se pode ver cada touro bonito, cada alazão destemido, cada coisa e cada mundo.
Nos quintais interioranos há sempre o varal e o sol e lua e estrala passeando por cima; tem o galinheiro quando se tem galinha; o poleiro que é para as aves se apresentarem ao entardecer e logo cedinho cantar a aurora; tem plantas nativas, flores sertanejas, poesia em cada objeto espalhado refletindo a vida jogada à sorte; tem bicho que morde e mata; tem arame e tem cercado; tem um pequeno pomar com goiabeira, mangueira e mamoeiro; tem passarinho cantando e uma velha bacia cheia de roupa para coarar.
E tem um banquinho onde Tião vai desfiando o fumo com canivete para fazer o cigarro de palha. De palha de milho mesmo, pois de papel amanteigado não presta não, acaba de vez, não tem gosto, não tem fumaça cheirosa, não traz a saudade que o pitar verdadeiro traz. Mas tem que ser assim: desfia parte do rolo de fumo, espalha a quantidade na mão, remói mais uma vez com os dedos, depois pega o papel de trás da orelha, coloca o fumo e enrola e depois passa a língua pela ponta da palha que é pra saliva colar a palha. Depois é só pegar o tição e pronto.
Mariazinha também gosta de sentar no banquinho do quintal. No entardecer, de vez em quando ao lado do marido, toma uma talagada de casca de pau e senta para lembrar da família, muitas vezes chora, outras vezes cantarola cantigas bonitas de ontem e revive mundo e história. E toma mais uma talagada e diz na voz afinada que "Essa ciranda quem me deu foi Lia que mora na ilha de Itamaracá...", "De que me adianta viver na cidade se a felicidade não me acompanhar...", "Aquela colcha de retalhos que tu fizeste, juntando pedaço em pedaço foi costurada...". E a saudade bate, e não há como a saudade não doer, mas não pela vida que tem, pois é feliz, mas pelos tempos idos que não pode mais viver...
Outro dia, Joãozinho caiu no quintal e machucou o joelho. Mariazinha pediu a ele que trouxesse dali mesmo o remédio pra ficar bom em dois tempos. E o menino pegou um pouco de mastruz pelos cantos e então a mãe separou dois tantos e fez o milagroso remédio. Machucou uma parte do mastruz até ficar uma pasta esverdeada e colocou por cima de onde doía, e com a outras fez um chá bem forte e mandou que ele tomasse. E não deu outra, pois não durou muito e o danado já estava chupando umbu trepado lé em cima do umbuzeiro. Mas não era só isso não, pois Mariazinha tinha ali no quintal uma verdadeira farmácia, e das mais sortidas, como ela mesma dizia: samba-caitá, capim santo, canudinho, malva, boldo, cidreira, erva doce e muitas outras que, na infusão ou no chá, garantiam a saúde de toda a família.
Mas o tempo passou e Tião teve que reduzir seu quintal, derrubar a cerca e levantar um muro. Compraram o terreno de trás e construíram um armazém bem alto. Do outro lado, o vizinho fez um muro mais alto ainda. Onde era o pequeno pomar há agora uma pequena cobertura de lona com uma mesinha embaixo. Comem ali todos os dias. E mordem a fruta da feira e tomam o remédio da farmácia. Joãozinho empobreceu. Perdeu sua fazendinha e seu gado. Não há mais criação de nada. E quando o sol bate ou a lua sai é como se tudo fosse tão artificial. Como a vida que era de sentimentos e agora é de plástico.





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Ninho cantinho (Poesia)

Ninho cantinho


De tudo
que o vento traz
em tudo
que colhemos ao redor
desse tudo
embaixo de lua e sol
nas folhagens
que secam macias
nos grãos
amolecidos que chegam
e nos restos macios
dos fios e algodões
os sonhos são construídos
na árvore gigante
do nosso amor
e nos galhos
do nosso destino
berço do passarinho menino
que vai chegar
e dizer que é nosso filho
no nosso ninho
no nosso cantinho.


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 56

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 56

Rangel Alves da Costa*


Mesmo com o padre tendo advertido sobre o perigo de continuar dormindo sozinho ali, Lucas se sentia com coragem suficiente para dizer que não temia nada que viesse através da covardia humana, e por isso mesmo não via necessidade alguma de dormir em outro lugar ou contratar alguém para fazer vigilância.
Em primeiro lugar porque realmente não sentia medo nenhum; em segundo lugar porque não tinha como pagar uma pessoa para fazer guarda; e por último porque temia que sem sua presença fosse pior, destruíssem de vez a casa, o barracão e o resto das coisas que tinha. Ademais, ali era sua casa e o seu lugar e não daria a ninguém o prazer de saber que estava temendo alguma coisa.
Quase não dormiu a noite inteira, sempre com os olhos no sono e os ouvidos em qualquer barulho que ouvisse. Foi acordado por alguém batendo na porta. Levantou, olhou no relógio e viu que já deveria ter acordado há muito tempo. Justificou-se pela noite mal dormida. Foi atender o chamado e quando abriu a porta encontrou Faísca, o rapazinho que estava envolvido com drogas. Este estava com a cara boa, com a feição alegre e parecendo disposto.
Lucas sentiu-se contente por vê-lo nesse estado de espírito. Pediu que sentasse num banquinho na varanda enquanto iria preparar um cafezinho e não demorou muito. Contudo, achou estranho que ao retornar da cozinha Faísca estava dentro da sala, olhando para a estante de livros. Entregou-lhe uma xícara de café e começou a conversar mais demoradamente com o menino:
- Gosta de ler? Aí tem bons livros, desde livros infantis a romances, se houver interesse por algum é só dizer. Mas me fale sobre você. Como tem andado, tem conseguido fugir daquele problema ou continua insistindo com essa bala no coração chamada crack? Você ainda é um menino e tem uma vida inteira pela frente para ser bem aproveitada. Se começar a destruí-la agora nem vai ter mais ter para se arrepender. Nem vou falar mais porque já expliquei isso tudo a você. Mas me diga, o que te traz aqui a uma hora dessa?
E sempre em pé, Faísca começou a falar:
- Só ia passando por perto e resolvi vim até aqui. Desculpe se acordei você. Uma hora dessa pensei até tivesse saído, e então bati na porta que era só pra saber, mas nada não...
- E sobre você, o que é que tem a dizer sobre você? – Perguntou Lucas.
- Eu nem quero saber mais daquele povo. Quando vejo eles de longe procuro seguir por outro lugar. E nem nunca mais usei droga não, se é isso que o senhor quer saber. Mas agora eu já tô indo, que minha mãe pediu pra tirar uns matos do quintal lá de casa. Até mais ver seu Lucas... – E foi saindo rapidamente.
Lucas até que gostaria de conversar um pouco mais com Faísca, mas diante de suas explicações se deu por contente e ficou na varanda olhando enquanto ele se distanciava na estrada. Somente umas duas horas depois, quando estava remexendo em suas coisas, percebeu que o seu relógio e um pequeno rádio de pilha haviam sumido de cima da estante. Mas será que foi Faísca? Não poderia ter sido outra pessoa, constatou com tristeza. Havia furtado aqueles objetos para vender por uma ninharia e comprar a maldita da droga. Esse maldito do crack atentando de novo o menino.
Situação triste e difícil a desse menino, e de tantos outros, reconhecia. Réu perante a sociedade e vítima de si mesmo, de sua fraqueza e do infortúnio de ter aceito experimentar a primeira vez. Bala engorda, doce engorda, comida engorda, água demais incha, mas o crack mata, menino Faísca. E o pior que vai matando aos poucos, e antes de levar você por completo ainda faz com que você espalhe o terror, roube, furte, destrua os bens de família para que alimente a própria morte. Quase tudo engorda e incha, menino Faísca, mas a droga destrói e o crack mata, menino Faísca!
Já depois das três horas chegou a meninada sorridente e barulhenta, prontas para fazer uma faxina geral no barracão e arredores, vez que haviam programado muitas atividades para o dia seguinte. Segundo Paulinho e Guiomar, logo cedinho estariam ali com suas mães para acenderem um fogo nos fundos do barracão e aprontar uma feijoada, dessa bem grande, feita em caldeirão e tudo. A turma já havia conseguido todos os ingredientes pedindo a um e a outro. Quando soube, o Padre Josefo tratou de providenciar três quilos de carne seca e dois de lingüiça. E avisou que ia se arriscar a comer mais de um prato.
Lucas ficava sem saber nem o que fazer nem o que dizer diante daquela meninada alegre, festiva e sadia. Ainda bem que as coisas eram assim, pois suportar aquelas últimas ocorrências só mesmo a alegria da meninada. Todos ali reunidos, limpando uma coisa e outra, remexendo isso e revirando aquilo, de repente foram chegando pessoas para ajudar. Pessoas pobres, gente simples ali mesmo da comunidade e arredores, mas o inacreditável é que estas pessoas traziam consigo, além da disposição de querer ajudar.
Cada um trazia um pouco de feijão, ou um pedaço de carne salgada, um pé de porco ou uma costela, ou ainda uma lingüiça ou um quilo de farinha. Teve um que levou mais de quilo e meio de toucinho salgado. Diante disso tudo Lucas pensou que estava ficando louco. Não era possível aquilo, de jeito nenhum. Essas pessoas é que precisam e não a gente, ficava imaginando. Mas quando iria agradecer e dizer que sentiam muito mas não iriam aceitar, vinha logo uma resposta: "É de bom coração, aceite que é para os meninos comerem a feijoadinha deles aqui amanhã".
Teve uma hora que Lucas se virou para os meninos e perguntou: "Vocês poderiam me dizer quem espalhou mundo afora que vocês inventaram de cozinhar uma feijoada aqui amanhã?". E todos apontavam em direção a todos. E foi então que Lucas acrescentou: "Então, amanhã logo cedinho vocês voltem até a casa dessas pessoas e convidem para comerem a feijoada. Ou convidam ou não tem feijoada. Estamos certos?".


continua...





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sábado, 24 de julho de 2010

FILHOS DA FÉ E CRENÇA (Crônica)

FILHOS DA FÉ E CRENÇA

Rangel Alves da Costa*


Nêgo véio, minha vela é maior, é de sete dias, nesse arribar de tempo nada mais me desolha nem impede seguir adiante, pois o anjo da guarda fica todo encantado e feliz quando lembro assim dele, por tanto tempo iluminado, e luz que também haverá de clarear meus caminhos.
O Maior nem se fala, vez que todas as luzes do meu templo vivem acesas para Ele. Esse Deus danado de bom e simples, que se contenta com tudo que a gente oferece, mas tendo a certeza que ele gosta mais é que a gente ande direito e não rasgue os cadernos nem da família nem do que o padre disse na igreja. Esse amigo pouco se importa que eu lembre do seu filho com uma cruz bem bonita, toda trabalhada nos dedos, nem que no seu altar eu coloque o brilho que não possuo. Não, tanto ele como o seu filho ficam felizes e silenciosamente reconhecem isso bastando que eu seja eu. E sendo eu sou filho de Deus, e como filho de Deus nem venha com suas estórias esquisitas que não tem valia por onde eu passo nem desajeita meu juízo nem o meu coração.
Mas isso é de berço, reconheço e sei. Minha avó, Dona Marieta, não deitava sem antes se ajoelhar diante do seu oratório no quarto e se entregar totalmente aos santos em orações, contando as contas do rosário, se benzendo de palmo em palmo; ao seu modo pedindo proteção e graça para todos.
Como seu neto, fiquei muito amigo das orações, de muitos mistérios da fé, conheci Santo Antonio Pequenino, meu zeloso guardador, São Cosme e São Damião, Nossa Senhora da Conceição. E sobre essa nem se fala, vez que parecia que era da família só de tá na boca de todo mundo o tempo todo. Um dia, ainda menino, eu disse que estavam pedindo demais a ela e não via ninguém oferecer nada de presente, pois só era valei-me pra cá e valei-me pra lá. E na sua religiosidade sertaneja, minha avó disse que ela já estava agradecida por ser reconhecida como protetora daquela casa.
Seu Joaquim só andava com um raminho de planta embaixo do chapéu de couro. Quando aparecia suado da caçada ou da vaqueirama e tirava o chapéu, a plantinha ficava lá grudada e ele não tirava de jeito nenhum. Um dia perguntei sobre aquilo e ele me respondeu que era pra cobra não morder ele nem seu cavalo, pra que o gado não se escondesse muito de suas vistas, pra que a caça perdesse a força quando chegasse perto e até pra que Mariazinha não ficasse zangada quando chegasse em casa com um cheiro mais avançado de casca de pau.
Já Zefa da Feira parecia que tinha uma igreja na sua casa. Casa pobre, pequena, toda no barro segurado por ribas e tudo um mais, mas quem botasse o pé da porta pra dentro tinha logo que se benzer e fazer reverências aos santos, às imagens, aos símbolos religiosos ali presentes. Tinha que tirar que se curvar para o Nosso Senhor Jesus Cristo bem grande na parede quase caindo, para o Padre Cícero de quase um metro e Frei Damião quase do mesmo tamanho.
Um dia perguntei porque o frei Damião que estava ali parecia menor que o Santo Padim Ciço. E ela respondeu com a maior simplicidade do mundo: "É não meu fio, é tudo igualzinho, só que o Frei Damião foi ficando encarcadozinho assim, do mesmo jeito que ele era, e aí ficou assim um tantinho pareceno menor, com as costinhas um pouquinho derreada".
Tá certa, Dona Zefa, a senhora sempre estava certa. A gente é que não sabe é de nada. Somente a senhora sabia da importância daquelas velas acesas; daquelas fitinhas do Juazeiro do Padre Cícero e do Nosso Senhor do Bonfim espalhadas por todos os lados; daquelas palmas de São Jorge espalhadas pelo canto da casa; daquela comigo-ninguém-pode ao lado do banquinho de madeira. Na semana santa jejuava de verdade, se vestia de preto de cima abaixo, na sexta-feira só comia uma vez ao dia, não tomava banho, não varria a casa, se entregava às orações, indo passar a noite na igreja velando o Senhor morto, ao lado de tantas e tantas beatas que exemplificam bem o poder da fé de um povo.
Com as graças de Deus, a força dos santos, e todas as crenças e crendices, tudo dava sempre certo. Dava sempre certo porque onde a fé está presente o homem nada mais é do que um obediente servo ao que ela diz que é certo ou errado. Tenho fé em Deus que vou sair dessa lama e construir um barraco. Quando trabalhava não pensava nele, mas apenas no que a sua fé determinava. E quando estava com o corpo meio mole pedia que Sinhá Inácia, fazendo as preces dos escravos, passasse três folhinhas sobre sua cabeça, e assim que elas murchavam a doença também já tinha ido embora.
Mas não pode jogar as folhinhas murchas em qualquer lugar não, mas sim nas águas correntes, que é para o mal ir para bem longe e os encantamentos de beira de rio se alegrar. Êta fé meu Deus, êta fé meus santos, êta fé meu pai, êta fé minha mãe!





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Poema depois do beijo (Poesia)

Poema depois do beijo


Rasantes de passaredos voejando
ou escuna mar adentro singrando
ventania e brisa nos cabelos teus
ou mãos de fé implorando a Deus
a saudade no peito que inflama
ou o triste abandono de quem ama
tudo isso foi poema de um dia
quando escrevia para ter alegria
quando nem sonhava com tanto lampejo
nesse poema que chega depois do beijo

Depois de ontem
depois do primeiro beijo
não procuro mais o caderno
do voo, da tristeza e da saudade
nem sei mais escrever
nada que seja vermelho ou negro
não sou mais poeta
sou amante
não sou amante
sou feliz
feliz
porque te beijei
e senti na boca um poema
não vou mais escrever
só beijar poesia
somente ter poesia
no beijo
no beijo
em você.



Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 55

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 55

Rangel Alves da Costa*


A partir das palavras do rapaz, que felizmente conseguiu assegurar um quilo de carne para sua família, Lucas pôde constatar que as mãos do prefeito podiam ser vistas em quase tudo aquilo que estava ocorrendo nos últimos dias. Quem usa do poder para ameaçar verbalmente bem poderia mandar fazer muito pior por detrás. Seria a lenta consumação de suas pretensões. Mas que o dito administrador municipal continuasse agindo assim, porém ele próprio, Lucas, não se curvaria nem um centímetro às propostas indecentes que lhe foram dirigidas.
Os últimos fatos chegaram aos ouvidos do Padre Josefo e este decidiu fazer uma visita ao amigo quando o sol estivesse menos cheio de vida, sapequento e calorento demais. Pessoa naquela idade não podia se submeter aos rigores do ambiente. E assim, lá pelas quatro horas da tarde chegou caminhando calma e pacientemente ao local, recebido por Lucas que já havia se adiantado ao encontro do religioso.
Por mais de vinte minutos o sacerdote se pôs a ouvir o amigo relatar suas desventuras. Daí em diante começou a fazer suas considerações:
- Com a licença divina, em verdade em verdade vos digo que o homem está sendo tentado como Cristo o foi no deserto da Judéia. Primeiro o inimigo procura oferecer demais para ver até onde vai a fraqueza do outro, depois começa a usar de todas as artimanhas e artifícios, agindo pontualmente no espírito, que é para ver se o outro cede diante da carência e da necessidade. Por fim, quando sabe que não será fácil e até impossível ludibriar, passa a utilizar de armas mais perigosas. Neste aspecto é onde mora o perigo, como dizem comumente. Cristo foi tentado e não prostrou nem se submeteu porque alçado à condição de um ser superior, hábil a combater o mal e expulsá-lo, destruí-lo, porém com a certeza de que o mal nunca é destruído completamente. Mas ali, amigo Lucas, era outra situação. Estamos no mundo dos frágeis onde o mal disputa lado a lado com o bem, onde o mal age assustadoramente e o bem se defende pacífica e silenciosamente. Daí esse poder tão grande que o mal possui em assustar, em querer dobrar à força o outro, precisamente porque o bem não tem cara nem usa armas, não chega derrubando nem destruindo, matando e seguindo adiante para praticar outras maldades. E chega um momento, amigo Lucas, porque o mal está se prevalecendo demais de determinadas situações, raivoso porque o bem não chama para o combate em campo aberto, que intercessão superior se torna necessária. E foi isto que ocorreu com você, pois os mensageiros divinos somente se mostram, mesmo que quase invisivelmente, à luz do dia, quando vem para mostrar à pessoa que combate em nome do bem, que é o seu caso, que não está sozinho, mas sim protegido por forças superiores...
- Mas então, tudo o que está ocorrendo não é uma junção de situações seqüenciadas para tentar me fragilizar, mas uma conspiração maior para me destruir? – Perguntou o apreensivo Lucas.
- Exatamente. Nada disso é acaso, uma situação solta, ora aqui ora ali, mas sim um todo agindo em junção. O que fizeram há alguns dias atrás está no mesmo passo do que fizeram ontem e poderão fazer amanhã. Na minha humilde opinião você deveria contra-atacar, pois este é o momento do contra-ataque. E como você poderá fazer isto? Simplesmente fazendo o que está protelando fazer, que é dizer ao seu coração que foi escolhido para ser, como tantos outros, semeador dos grãos da bondade divina sobre a terra. Como eu já havia dito, não significa com isto que você se torne padre, se entregue à vida religiosa, se enclausure para aprender sempre mais as lições divinas. Nada disso. Você continuará sendo o Lucas que é neste momento, sem mudança alguma. O que vai mudar em sua vida, isto sim, é a consciência de que tem um compromisso divino aqui na terra. Quando você assina esse contrato com Deus no seu coração irá se confirmar ainda mais o que já vem ocorrendo, que são os anjos para proteger e guiar ainda mais e as boas armas divinas para continuar cortando as raízes do inimigo. Apenas diga sim ao seu coração e será ouvido, e será reconhecido como um dos que carregam a cruz, e será ainda mais grato aos olhos desse nosso bom Deus que já te olha com tanta gratidão.
Após o verdadeiro sermão do Padre Josefo, Lucas olhou nos olhos do amigo e disse:
- Ora, não vou dizer nada ao coração, pois já falo com o espírito e o corpo inteiro, reconheço na mente e nas minhas ações. Por isso o coração já ouviu e já sabe como sou...
E o sacerdote imediatamente interrompeu:
- Sei disso também. Contudo, por mais que aja na maior justeza e benignidade do homem, o coração sempre sorri quando você abre os braços para ele e diz: Há em ti coração, o pulsar de um homem que não se pertence senão a Deus!






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sexta-feira, 23 de julho de 2010

SILÊNCIO COVARDE E PERIGOSO (Crônica)

SILÊNCIO COVARDE E PERIGOSO

Rangel Alves da Costa*


Mesmo estando próximo ou até ao lado, nem sempre o outro ouve os sons emitidos por alguém que sofre. As manifestações sensoriais que vão se transformando em sons até o alcançar o ápice no grito desesperado, sempre nasce do silêncio. É no silêncio, pois, que está a raiz de todo sofrimento.
O silêncio nunca foi tão inocente como sempre pretendeu demonstrar. Muito menos ele é a mudez absoluta, é a total ou relativa ausência de sons, é a palavra muda, a expressão labial que não deixa falar, a boca fechada ou a voz que preferiu se esconder para não dizer verdades. Que imparcialidade que nada, pois o silêncio é muito mais perigoso do que se imagina!
O silêncio é estrategista,vai calma e pausadamente planejando ações que mais tarde nem mesmo o silencioso, o que por enquanto não diz nada, poderá conter, vez que não sinaliza o que tenciona fazer nem diz quais as armas que utilizará para conseguir seus sinistros e abomináveis intentos.
Não é à toa que quem cala consente; que o silêncio é vulcão prestes a explodir; depõe ao seu modo covarde e frio contra todos aqueles que precisam que negue uma acusação. E por que o marginal tem o direito constitucional de ficar em silêncio? Porque nele estão adormecidas e bem guardadas as bestialidades e as desumanidades da vida. E por que a pessoa diz que vai falar senão vai explodir? Ora, porque o silêncio está enlouquecido para agir e dizer todos os absurdos a um só tempo.
É, pois, do silêncio que nasce o sofrimento. Ele escolhe o terreno, revira a terra, afofa o chão, espalha a semente e o adubo, revolve novamente a terra e rega, irriga ou faz chover, traz o sol no tempo e na quantidade certa, espanta os bichos e os insetos, arranca com os dentes as ervas daninhas, faz o vento soprar mais leve e faz surgir nas noites as temperaturas adequadas, e tudo para que o sofrimento vá tendo o seu ciclo de nascimento e crescimento na maior perfeição.
Assim, o silêncio planta e colhe o sofrimento para depois se manifestar na palavra, no gemido, nas dores expressadas e finalmente no grito. O grito é o êxtase, o orgasmo, a realização do silêncio. O grito é o contentamento maior e toda a finalidade do silêncio. Como a água que silenciosamente vai destruindo o rochedo, assim são as asas do silêncio até que alce o voo e o mundo inteiro e os céus ouçam que um lancinante grito de dor está presente em alguém.
O grito, essa coisa medonha, terrível e assustadora que todos temem, não é quase nada em comparação com o silêncio. Este sim, é perigoso e verdadeiramente cruel. Frases existem que dizem muito bem sobre isso: "Silencioso e quieto daquele jeito deve estar aprontado alguma"; "Está muito silêncio para estar tudo bem"; "Não confie no silêncio da noite"; "O furação permaneceu em silêncio por vinte anos, e de repente..."; "Chegou ao tribunal inocente, mas assim que saiu do silêncio se condenou"; "Todo mundo ouve quando o silêncio está gritando". E muitas outras situações serviriam para ilustrar essa coisa falsa e friamente abjeta que é o silêncio.
Como já foi dito, perto do silêncio o grito é criança, um pobre coitado, um penalizado sem culpa nenhuma, uma coisa que não faz mal a ninguém a não ser pelo barulho que faz. Para se ter uma ideia, basta um grito e tudo se cala e morre. Mas quando tempo dura o silêncio até se transformar em palavra e chegar ao grito propriamente dito? Isso pode levar uma eternidade, mas sempre com a expectativa de sofrimento e dor.
Numa síntese, o grito sempre foi e continua sendo vítima do silêncio, que arma todas as armadilhas e arapucas na vida para depois posar de bom moço nos gestos labiais de alguém que nem sabe com quem está lidando. O pior é que o grito é vítima que morre sem poder se defender, pois nem tem tempo para pensar naquele que vem tramando contra ele durante a vida inteira.
E então, o silêncio covarde vem, silenciosamente ataca e de repente só se ouve um grito. E tudo acabou. Morreu o grito e da morte renasce o silêncio para matar novamente.





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Chore não lua minha... (Poesia)

Chore não lua minha...


Mentira do tempo
essas horas inventam
que beijei a manhã
que abracei a tarde
que amei a nuvem
chore não lua minha...

É intriga do sol
manda a mentira dizer
que me escondi na sombra
que deitei ao lado da relva
que dei uma flor ao jardim
que faço você chorar
chore não lua minha...

Você é minha mulher
minha namorada e amante
e mesmo que fosse lágrima
diria chore não lua minha
pois não é só lua bonita
clareando o meu viver
mas é lua que é lua minha...


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 54

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 54

Rangel Alves da Costa*


Todas as vezes que os mistérios surgem diante do meu olhar, não mais indago sobre a verdade de suas existências, apenas acredito no bem que trazem consigo. Tal era o pensamento de Lucas.
Mas a verdade é que um anjo surgiu em plena luz do dia, e até perguntaria ao Padre Josefo se isto é normal ou se por trás da aparição está algo sendo dito. Não restava nenhuma dúvida que eles estão por todos os lugares a todo instante, ao lado das pessoas protegidas e pairando no ar, em festas ou zelando cuidadosamente quando as coisas que têm de proteger estão ameaçadas. Contudo, a manifestação de um anjo embaixo do sol era coisa estranha.
Mas um anjo apareceu em plena luz do dia e Lucas viu e logo recordou das palavras bíblicas: "O anjo do Senhor apareceu-lhe numa chama (que saía) do meio a uma sarça. Moisés olhava: a sarça ardia, mas não se consumia";“Vou enviar um anjo adiante de ti para te proteger no caminho e para te conduzir ao lugar que te preparei"; "Meu Deus enviou seu anjo e fechou a boca dos leões; eles não me fizeram mal algum, porque a seus olhos eu era inocente e porque contra ti também, ó rei, não cometi falta alguma"; "O anjo do Senhor acampa em redor dos que o temem, e os salva."; "o anjo que me guardou de todo o mal, abençoe estes meninos! Seja perpetuado neles o meu nome"; "O anjo do Senhor apareceu-lhe e disse-lhe: O Senhor está contigo, valente guerreiro!"; "Veio o anjo do Senhor uma segunda vez, tocou-o e disse: Levanta-te e come, porque tens um longo caminho a percorrer"; "em todas as suas aflições. Não era um mensageiro nem um anjo, mas sua própria Face que os salvava. No seu amor e na sua ternura ele mesmo os livrava do perigo"; "Mas o anjo disse-lhes: A paz seja convosco: não temais"; "Sejam como a palha levada pelo vento, quando o anjo do Senhor vier acossá-los".
Protegido estava, mas até quando? Depois sentiu quanto desnecessária foi fazer tal indagação para si mesmo, pois tinha plena consciência que os anjos sempre estão ao lado e protegendo o homem, restando somente que este seja o anjo maior de si mesmo e saiba que não há armadura ou fortaleza que possa guardar aquele que se desnorteia dos seus caminhos porque assim deseja e deixa de cumprir o seu pacto com Deus sobre a terra, com base nos seus ensinamentos.
Estava ainda fazendo festa no pensamento quando um carro da prefeitura parou bem ao seu lado.
- Bom dia, o senhor chama-se Lucas não é mesmo? Somos da prefeitura e foram até lá dizer que aqui está havendo abate e comércio ilegal de carne de gado, é verdade? O senhor tem autorização da prefeitura? O local onde faz o abate é adequado, possui higiene, está livre de moscas e outros insetos? Está pagando as taxas de comercialização à prefeitura? Onde está o alvará ou a licença para abater e comercializar animais? Vamos até o abatedouro, onde fica?" – Lia o rapaz num questionário.
Perguntas e mais perguntas sem pé nem cabeça, pensava Lucas, com vontade de gargalhar daquela cena toda. O pior é que conhecia o dito fiscal desde criança, agora parecendo totalmente esquecido do passado por causa do cargo na prefeitura. Lembrava até o nome dele, e assim o tratou, para seu espanto e olhar envergonhado.
- Que bom revê-lo amigo Daniel, seja bem vindo ao nosso lugar. Mas não sei se poderei ajudar muito no que veio fazer aqui não, pois nada disso do que acabou de falar pode ser encontrado aqui. Em primeiro lugar porque aqui não há abatedouro clandestino nenhum e nem venda de carne de qualquer espécie. As duas reses que foram mortas aqui, ontem e hoje, não foram para o comércio, mas para o medo, pois alguém que está querendo me amedrontar simplesmente procurou atingir aquilo que era de mais inocente e sagrado, que eram os animais. Como os dois animais foram mortos de arma branca como vocês mesmo chamam, achei por bem perguntar se os moradores aqui da região queriam aproveitar a carne. E foi só isso – Relatou rapidamente.
Ainda de cabeça baixa, o fiscal tocou no ombro de Lucas e o arrastou para um local mais afastado, onde o motorista do carro não pudesse ouvir.
- Meu amigo, ganho uma miséria e sou forçado a fazer isso, tudo a mando daquele infame do prefeito, que sei muito bem que vem lhe perseguindo mas ninguém sabe bem os motivos. Tenho de me submeter a destratar até quem conheço há anos. Sei bem de quem se trata, mas tenho de fazer assim só porque ele manda o motorista vigiar se faço tudo certinho. Sei que não existe nada disso aqui, mas vou lhe pedir um favor e se puder pelo amor de Deus me ajude...
- Pode dizer rapaz, o que está precisando? – Lucas perguntou com viva curiosidade.
E de cabeça baixa, olhos lacrimejantes e com a voz já tremulando, o rapaz disse:
- Se sobrou algum pedacinho de carne, pelo amor do Senhor me ajude, guarde aí que depois venho buscar pra levar pra casa. Há dois dias prometi à mulher e o menino que levaria um pedacinho de carne pra casa e até hoje não pude...


continua...





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quinta-feira, 22 de julho de 2010

SONHOS QUE VIVEM E QUE MORREM (Crônica)

SONHOS QUE VIVEM E QUE MORREM

Rangel Alves da Costa*


Buscando sempre viver melhor, o ser humano alicerça sua vida em imaginários que se existissem na realidade visível seriam como seguranças, redomas, braços que abraçam e enlaçam para livrar as pessoas das situações de perigo e conduzi-las para lugares seguros. E não somente isto, pois existem ainda planos e as possibilidades existentes somente na mente de cada um, mas se tornadas também visíveis não faltaria o melhor a ninguém e todo mundo alcançarei o desejado em segundos.
Falo de coisas inexistentes para alguns, mas que para muitos são como a própria extensão da pessoa, possuem infinito significado, são os próprios indivíduos em outras dimensões. Falo da fé, da crença, dos anjos da guarda, dos seres de luz, da devoção ao santo, da certeza protetora da existência de Deus e do seu filho, da luta motivada por forças superiores, das fantasias que se arraigam feito verdades e dos sonhos. Sonhos sim, pois o homem que vive sem sonhos não poderá jamais acordar para o melhor.
Nesse contexto da necessidade do ser humano em buscar sempre algo superior e até desconhecido para se proteger e realizar seus planos, os sonhos não surgem como entes que auxiliam o homem, mas o próprio homem procurando realizar-se naquilo que por vias terrenas se torna difícil, quase irrealizável. E daí surgirem as possibilidades de se ter tudo, fazer de tudo, mesmo que somente em pensamentos que se apiedam da luta vã e seguem por aí construindo perspectivas e criando realidades passageiras
Geralmente definem o sonho, enquanto ato pós adormecer, como a representação mental de coisas ou fatos enquanto a pessoa dorme; é uma visão ou imaginação surgida durante o sono; é a sequência de ideias vãs e incoerentes às quais o espírito se entrega; é o efeito da emancipação da alma durante o sono. Para a ciência, é uma experiência de imaginação do inconsciente durante nosso período de sono; é o conjunto de imagens, lembranças ou impulsos inconscientes, geralmente distorcidos, que se experimenta durante o sono e que pode ser parcialmente memorizada.
Por outro lado, enquanto ato de sonhar de olhos abertos, o sonho é comumente visto como a utopia, imaginação sem fundamento; ideia ou ideal defendidos com paixão; visão do irrealizável; desejo que acompanha a pessoa precisamente naquilo que tem dificuldade de alcançar; ficção comparável a um sonho e a que muitas pessoas se entrega mesmo acordadas; coisa vã, fútil, transitória, sem consistência, sem alcance, sem duração; coisa vaporosa e inconsistente; visão de desejos reprimidos; recordação de coisa efêmera e que pouca impressão deixou na alma; ideia com a qual nos orgulhamos; idéia que alimentamos; pensamento dominante que seguimos com interesse ou paixão.
Os sonhos sonhados após o adormecer são sonhos eternos, pois se realizam dentro daqueles objetivos do momento, do enredo mentalizado e do seu alcance, mesmo que distorcidos e incompreendidos ou recortados pelo acordar repentino. Estes sonhos não morrem, pois podem voltar sempre com novas nuances, novas roupagens. Diferentemente dos sonhos sonhados acordados, que são desacreditados todas as vezes que as pessoas veem cada vez mais distante aquilo que queria ao seu lado. Estes são os sonhos que morrem, e são velados pela descrença, pelo desencorajamento, pela sensação de impotência e pela perda de vontade de lutar.
Assim, os sonhos acordados são imaginários que morrem porque o homem, não podendo contradizer e confrontar os sonhos surgidos no adormecer, simplesmente não se contenta com a realidade nem quer transformá-la em algo próximo de um sonho. E porque esse desejo infinito e que não se contenta com nada é um desejo inalcançável por querer demais, é que o sonho morre, se desfaz. E depois, quando ali o sonho jaz, vem a necessidade de querer viver renascendo sonhos que não voltam mais.





Advogado e poeta
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Amor e flor (Poesia)

Amor e flor


Ao entardecer
a flor era flor
ao anoitecer
a flor ainda era flor
noite fechada
ninguém via a flor

Assim é o amor
que nasce flor
e com o tempo
é quase flor
para ao anoitecer
chegar a dor
e nunca mais a flor
nunca mais amor
e nunca mais
a flor do amor.


Rangel Alves da Costa

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 53

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 53

Rangel Alves da Costa*


Quando se mata um animal de quem tem pouco bicho no criatório, e ainda apaga no ato uma lembrança familiar, não se diminui a riqueza já inexistente de quem não tem, mas afeta profundamente os seus valores íntimos e tende a neutralizar suas forças de reação.
O inimigo esperto e astucioso começa agindo assim, buscando diminuir as forças do outro a partir da desvalorização ou destruição do que este mais preza. Como se diz, vai chegando e se apossando e depois quer ser dono da vida e de tudo, vez que o indivíduo afetado pela perda daquilo que gosta é pessoa de corpo aberto e desarmado, fragilizado e agora refém do uso das armas que o outro queira usar. O inimigo sempre começa agindo assim, porém Lucas já sabia disso e conhecia nome e sobrenome dos inimigos. Ao menos isto, por enquanto, eles não conseguiriam, dizia firmemente a si mesmo.
Na tristeza de um a alegria de outros, pois foi como objeto de salvação que algumas famílias das mais empobrecidas dos arredores receberam seus dois quilinhos de carne do animal morto por arma branca pelo invasor. Lucas primeiro explicou a situação e as circunstâncias da morte do animal para ter a certeza se aceitariam ou não tirar o couro, fazê-lo em cortes e reparti-lo. Nenhuma objeção, nada; pelo contrário, não deu pra quem queria. E ao menos durante dois dias, quem sabe, o feijão com farinha, se houvesse, seria saboreado com um tiquinho de carne. Tiquinho de carne é luxo, é festa no olhar e na barriga desacostumada.
Estas mesmas pessoas voltariam no dia seguinte ao terreno de Lucas para tentar conseguir mais um pedaço de carne, pois quem derrubou violentamente as portas e matou o animal, resolveu voltar na madrugada e matar o segundo bicho, desta vez dentro do pequeno cercado que chamava de curral. Não se dirigiram até a casa nem a ao barracão para destruir qualquer coisa, mas foram diretamente esfaquear uma vaquinha.
Ao amanhecer bem cedinho, ouvindo incessantemente o mugir da vaquinha que ainda restava com vida, ele foi ver o que era e avistou o sangue misturado ao estrumo e o outro animal morto mais num canto. Haviam estado ali novamente, haviam destruído novamente, já estavam testando demais, já estavam dizendo o que verdadeiramente queriam, era o que podia concluir no embaralhar das ideias raivosas. Em tudo há um limite; ah! isso há, pois a frase que se quer dizer não acaba com o ponto final, mas antes disso quando a tinta acaba primeiro.
Assim que as pessoas iam saindo do local onde a vaca havia sido cuidada para ser repartida, Sr. Genésio, um velho que morava próximo e era muito amigo de seus pais, se aproximou, perguntou se podia falar um proseado de minuto e começou a dizer:
- Conhecia muito seus pais e conheço também você, menino Luca, poi vi se mijando pela casa, acumpanhei seu crescer e vejo agora um homi feito, desse que a gente pobre tem o prazer de ver, poi vingou do nosso lado e hoje é menino de estudo, sério e honrado. Purisso memo, menino Luca é qui num consigo atiná pruque tão fezeno isso, distruino o que já tem pouco. Ontem foi uma e agora outra e desse jeito num tem quem aguente. E quando os bicho acabá, menino Luca, o que quererão de fazer? Num sei quem faz isso não, mai já tem dia que venho vendo umas coisa estranha aconteceno por aqui. É gente que finge que passa e fica oiando demai pa sua casa e po barracão, é gente que vai ver se as porta tá trancada e fica forçando cuma se pá ver se tá faci de entrá. E tem outos que se escondem pelas moita e ficam zanzando de um lado a outro isperano num sei o que. E eu só veno de lá longe, poi o que num me fartou foi as vista, poi vejo tudim e bem longe. Só num sei dizê cuma é a cara de cada um, já qui num é nem doi nem treis, mai muito mai. É tudo um povo estranho, novo, rapazote, mai muito isquisito, dá pá se notar. Mai num sei pruque, mai na maioria das veiz que aparece e quere fazê argum marfeito aparece uma coisa bonita em frente da casa e do barracão e eles deixam de fazer e vão indo imbora...
- Como é essa coisa bonita que aparece seu Genésio? Por favor, me explique – Perguntou um Lucas bastante interessado na narrativa do velho amigo.
- Num sei dizer direito não, mai é mai ou meno assim: memo durante o dia, com o sol clariando e doeno nas vista, memo assim aparece uma luz e sai de dentro dela uma coisa qui a gente num sabe nem dizer o que é, poi nem é gente nem é luz, mai cuma um facho um bonito qui cumeça a soltar uns raios e adespoi vai sumino enquanto sobe pra riba. Dá inté medo, mai é a coisa mai bonita de se ver. E depoi que essa coisa vai imbora vem um vento bom e chega os bicho e as pranta parece que tão brincano. Poi é assim menino Luca...
E o Sr. Genésio seguiu com seus dois quilinhos de carne enquanto Lucas olhava para o local indicado pelo amigo e via a mesma luz há pouco descrita.


continua...





Advogado e poeta
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