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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 24 de julho de 2010

FILHOS DA FÉ E CRENÇA (Crônica)

FILHOS DA FÉ E CRENÇA

Rangel Alves da Costa*


Nêgo véio, minha vela é maior, é de sete dias, nesse arribar de tempo nada mais me desolha nem impede seguir adiante, pois o anjo da guarda fica todo encantado e feliz quando lembro assim dele, por tanto tempo iluminado, e luz que também haverá de clarear meus caminhos.
O Maior nem se fala, vez que todas as luzes do meu templo vivem acesas para Ele. Esse Deus danado de bom e simples, que se contenta com tudo que a gente oferece, mas tendo a certeza que ele gosta mais é que a gente ande direito e não rasgue os cadernos nem da família nem do que o padre disse na igreja. Esse amigo pouco se importa que eu lembre do seu filho com uma cruz bem bonita, toda trabalhada nos dedos, nem que no seu altar eu coloque o brilho que não possuo. Não, tanto ele como o seu filho ficam felizes e silenciosamente reconhecem isso bastando que eu seja eu. E sendo eu sou filho de Deus, e como filho de Deus nem venha com suas estórias esquisitas que não tem valia por onde eu passo nem desajeita meu juízo nem o meu coração.
Mas isso é de berço, reconheço e sei. Minha avó, Dona Marieta, não deitava sem antes se ajoelhar diante do seu oratório no quarto e se entregar totalmente aos santos em orações, contando as contas do rosário, se benzendo de palmo em palmo; ao seu modo pedindo proteção e graça para todos.
Como seu neto, fiquei muito amigo das orações, de muitos mistérios da fé, conheci Santo Antonio Pequenino, meu zeloso guardador, São Cosme e São Damião, Nossa Senhora da Conceição. E sobre essa nem se fala, vez que parecia que era da família só de tá na boca de todo mundo o tempo todo. Um dia, ainda menino, eu disse que estavam pedindo demais a ela e não via ninguém oferecer nada de presente, pois só era valei-me pra cá e valei-me pra lá. E na sua religiosidade sertaneja, minha avó disse que ela já estava agradecida por ser reconhecida como protetora daquela casa.
Seu Joaquim só andava com um raminho de planta embaixo do chapéu de couro. Quando aparecia suado da caçada ou da vaqueirama e tirava o chapéu, a plantinha ficava lá grudada e ele não tirava de jeito nenhum. Um dia perguntei sobre aquilo e ele me respondeu que era pra cobra não morder ele nem seu cavalo, pra que o gado não se escondesse muito de suas vistas, pra que a caça perdesse a força quando chegasse perto e até pra que Mariazinha não ficasse zangada quando chegasse em casa com um cheiro mais avançado de casca de pau.
Já Zefa da Feira parecia que tinha uma igreja na sua casa. Casa pobre, pequena, toda no barro segurado por ribas e tudo um mais, mas quem botasse o pé da porta pra dentro tinha logo que se benzer e fazer reverências aos santos, às imagens, aos símbolos religiosos ali presentes. Tinha que tirar que se curvar para o Nosso Senhor Jesus Cristo bem grande na parede quase caindo, para o Padre Cícero de quase um metro e Frei Damião quase do mesmo tamanho.
Um dia perguntei porque o frei Damião que estava ali parecia menor que o Santo Padim Ciço. E ela respondeu com a maior simplicidade do mundo: "É não meu fio, é tudo igualzinho, só que o Frei Damião foi ficando encarcadozinho assim, do mesmo jeito que ele era, e aí ficou assim um tantinho pareceno menor, com as costinhas um pouquinho derreada".
Tá certa, Dona Zefa, a senhora sempre estava certa. A gente é que não sabe é de nada. Somente a senhora sabia da importância daquelas velas acesas; daquelas fitinhas do Juazeiro do Padre Cícero e do Nosso Senhor do Bonfim espalhadas por todos os lados; daquelas palmas de São Jorge espalhadas pelo canto da casa; daquela comigo-ninguém-pode ao lado do banquinho de madeira. Na semana santa jejuava de verdade, se vestia de preto de cima abaixo, na sexta-feira só comia uma vez ao dia, não tomava banho, não varria a casa, se entregava às orações, indo passar a noite na igreja velando o Senhor morto, ao lado de tantas e tantas beatas que exemplificam bem o poder da fé de um povo.
Com as graças de Deus, a força dos santos, e todas as crenças e crendices, tudo dava sempre certo. Dava sempre certo porque onde a fé está presente o homem nada mais é do que um obediente servo ao que ela diz que é certo ou errado. Tenho fé em Deus que vou sair dessa lama e construir um barraco. Quando trabalhava não pensava nele, mas apenas no que a sua fé determinava. E quando estava com o corpo meio mole pedia que Sinhá Inácia, fazendo as preces dos escravos, passasse três folhinhas sobre sua cabeça, e assim que elas murchavam a doença também já tinha ido embora.
Mas não pode jogar as folhinhas murchas em qualquer lugar não, mas sim nas águas correntes, que é para o mal ir para bem longe e os encantamentos de beira de rio se alegrar. Êta fé meu Deus, êta fé meus santos, êta fé meu pai, êta fé minha mãe!





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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