SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 30 de setembro de 2011

JÁ HAVIA PENSADO NISSO? (Crônica)

JÁ HAVIA PENSADO NISSO?

                                  Rangel Alves da Costa*


Ora, já está chegando ao final do jogo da vida, até esse instante da rotineira partida todo mundo demonstrou a maior confiança, o maior respeito, a maior consideração e amizade por você. Mas agora, nesse momento, sem esperar e talvez sem estar pronto para tal, colocam uma bola na marca do pênalti. Do chute dependerá a vida. O que fazer?
Sabe que a trave está vazia, não há ninguém debaixo dela, nenhum goleiro pra defender. Aí é que a responsabilidade aumenta ainda mais. Se errar o chute e perder o pênalti naquelas condições será a maior desgraça da vida, a maior desonra, a maior vergonha. Então, o que fazer, chutar onde, em qual lado?
Sabe que a lógica diz que mirar o centro da trave e chutar é o melhor caminho a ser feito. Ocorre que também sabe que ninguém mira para acertar como quer, que ninguém dá um chute certeiro para a bola chegar como pretendeu. Ademais, a necessidade de acertar no meio da trave causa nervosismo demais, provoca medo e temor. Ora o gol se agigante demais, ora some diante do olhar.
E não somente isso, pois mesmo que a bola vá seguindo seu percurso certeiro dependerá da força que deu ao chute para que ela alcance o objetivo. Fazer o que então, colocar meia força no chute, mais ou menos força? E se, sem querer, pegar efeito na bola? E se tanta preocupação ocasionar um grave problema na hora que for chutar?
É preciso pensar em todas essas possibilidades antes de correr para a bola e chutar, a todo custo, pois a própria vida está no pênalti. Sim, mas está tudo mais fácil porque a trave está completamente vazia, não há goleiro, nada conseguirá impedir. Esquece, contudo, que quem poderá impedir que se faça o gol é o próprio, é quem vai chutar a bola.
Para correr para a bola e marcar o gol geralmente se requer um afastamento da esfera para ganhar impulso corporal e chutar com eficiência. Mas qual distância tomar? Não há nenhum buraco na marca da cal que impeça o chute certeiro, acertar a bola no local que se quer? E se a grama estiver remexida ou se a bola escorregou um pouquinho do ponto onde foi colocada? No pique, de lá pra cá, não haverá nenhum perigo de escorregar e cair?
Dizem que a cobrança de pênalti exige mais técnica do que força no chute. E sabe-se também que um chute clássico no meio do gol não exige que o jogador tome muita distância. Alguns passos e pronto e já estará pronto para chutar. Contudo, já houve ocasião que a bola saiu tão lenta que nem ultrapassou a linha do gol. Já o chute forte, desses indefensáveis, requer a tomada de considerável distância. Aí é onde mora o perigo, pois a chance de marcar o gol é maior, porém a de perder muito mais.
Ora, chutar a bola da marca da cal com brutal violência já ocasionou dissabores incontáveis. Muitas vezes o jogador toma uma distância enorme para dar ainda mais força ao chute e quando vem correndo escorrega no instante que bate no couro e sai um peteleco horrível. Outras vezes o arremesso feroz, ao invés do retângulo do gol, vai em direção a bandeirinha, sobe para a arquibancada, chegando mesmo a bola a sair pela lateral do campo. O que fazer então, maior ou menor distância da bola?
Se a distância for grande e no impulso dado o jogador contar com a sorte e acontecer tudo normal, com o toque certo da chuteira na bola, no local exato onde desejava chutar, com ou sem o efeito pretendido, na velocidade imprimida ao chute e na direção que se pretenda que a bola vá, então não haverá chance nenhuma de defesa. E nesse caso não haveria defesa mesmo. E por mais que algo queira interferir, ainda assim a precisão foi tamanha que de uma forma ou outra o gol vais ser marcado.
Contudo, é na distância entre o ponto onde o jogador se posiciona até o local onde está a bola que reside um dos maiores dilemas do jogador da vida: a consciência da responsabilidade. Assim, na terrível solidão que se estende desde o momento que coloca a bola na marca da cal e vai caminhando lentamente até o local de onde partirá para o chute, tudo vem à mente num só instante, as dores, as angústias, as alegrias, os sofrimentos, as realizações...
Dependendo do que fez e do que faz na vida, pode até correr e chutar de olhos fechados. Essa vitória será merecida. Resta erguer as mãos para o céu e comemorar. Alguém lá em cima estará aplaudindo.




Poeta e cronista
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Prova de amor (Poesia)

Prova de amor



Se queres um poema
já tenho e nem faço
se queres um abraço
te enlaço e entrelaço
se queres um beijo
esse batom logo desfaço
se olhas querendo amar
a nudez é um passo
se a fome e sede é tanta
tudo vem no compasso
no desejo cruel incontido
é que mordo e esbagaço
depois ainda querer mais
sem respeitar o cansaço
e ainda dizer que ama
e nisso me satisfaço
pois amar depois do prazer
é do amor maior traço.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 46 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 46

                                         Rangel Alves da Costa*


Já familiarizada com as pessoas do comércio e dos escritórios ao redor, vez que o tempo que passou no escritório Auto Valente lhe abriu essa possibilidade de ampliar o número de conhecidos, chegou ao local e foi precisamente até uma papelaria que havia do outro lado da rua, bem em frente aonde ocorrera o sinistro.
Fez que estava interessada numa agenda, puxou conversa e a vendedora logo lhe perguntou se tinha visto aquelas cenas terríveis do dia anterior. Carmen respondeu que não, pois estava de férias e demonstrou interesse em saber dos detalhes. A mocinha então disse o que tinha visto e o que sabia, em detalhes:
“Doutora Carmen, foi a coisa mais triste, mais feia do mundo. Já tinha visto atropelamento feio, mas igual ao de ontem chega não consigo esquecer. Eu estava aqui em pé e ouvi um barulho, como uns gritos vindo do outro lado da rua. Olhei e avistei uma senhora em pé, parada na calçada em frente ao escritório e gritando pelo doutor Auto, que não sei se ia saindo ou chegando, mas que estava como que fugindo, se esgueirando dela. Não sei bem porque se afastava dela daquele jeito, mas verdade é que atravessou rapidamente pra esse lado, passando em meio aos carros. Talvez pensasse que fugindo dela vindo pra o lado de cá, então tudo tava resolvido, pois dali mesmo ela iria embora. Mas não. E foi aí que o pior aconteceu. A senhora, com um aspecto raivoso, se apressou em seguir o homem e se meteu também no meio desse movimento todo e foi quando um veículo em disparada acertou em cheio e ela foi parar bem ali, já morta, tenho certeza...”.
“Mas o doutor Auto correu para prestar socorro à mulher, não foi?”. Com essa indagação Carmen sabia muito bem aonde queria chegar. E a vendedora respondeu:
“Outras pessoas sim, correram na hora para ver se podiam ajudar, salvar a mulher, mas o doutor Auto não. Telefonaram na hora pra ambulância, pra polícia e até pra o bombeiro. Mas dele não vi nenhuma reação, muito pelo contrário. Lembro bem que avistei ele andando tranquilamente pela calçada, por aquele lado ali e seguindo adiante, como se não tivesse acontecido nada, como se nem tivesse ouvido o barulho da pancada e da miséria toda. Estranhei porque vi a mulher falando e gritando por ele, seguindo ele e, me desculpe dizer, morrer por causa dele...”.
Ouvindo o relato, Carmen amaldiçoava ainda mais o advogado e já não conseguia mais imaginar o que aquela víbora na pele de homem seria capaz de fazer. Qual o real fundamento de estar fazendo aquilo com aquelas duas pobres famílias, praticamente destruindo-as de vez, já que condenando os filhos e matando suas mães? Quanto estaria ganhando para agir daquela forma, de modo tão frio e desumano, tão absurdamente covarde e corrupto? Quem estava bancando isso tudo, quem estava por trás dessa trama toda, envolvendo a compra de sentenças e a condenação de dois inocentes? Quanto estavam pagando, quem estava pagando, a quem estavam pagando, qual a real divisão desse putrefato bolo?
Descobriria, ponto por ponto, linha por linha, desde onde saía o dinheiro até onde entrava. E haveria de ter muito mais coisas por trás do fato envolvendo aqueles dois, ou será que uma maldita honra familiar valeria tanta safadeza e negociata, envolvendo até o judiciário e o parlamento legislativo? Ora, seria afrontoso pensar que aquela tramóia toda havia sido feita apenas para condenar dois inocentes.
Contudo, nesse momento é que se vê o quanto a burguesia, a classe poderosa e influente trata os outros com desdém, como tanto faz, como se nem gente fosse. E por isso mesmo, e só por isso mesmo, buscaram a condenação de Jozué apenas para encobrir o malfeito de um vagabundo ricaço que tinha nome parecido com o do inocente, e procuraram condenar Paulo apenas porque é pobre e uma mocinha de família rica e sobrinha de um juiz gostava dele? Queria acreditar mas não conseguia. Deveria haver muito mais podre nesse reino de esgoto.
E Carmen pensando isso tudo enquanto continuava ouvindo a vendedora com sua indignação com a atitude do advogado diante do acontecido com a pobre mulher. Pelo que já tinha ouvido se dava por satisfeita, fazendo tudo para não alongar a conversa e também esculhambar com aquele safado. E poderia até correr o risco de falar demais e entrar em outros assuntos inconvenientes para serem discutidos ali. Se a mocinha soubesse ao menos da metade teria um chilique, com certeza.
Agradecida com as informações, acabou comprando a agenda. Talvez ela tivesse muita serventia para a anotação de dados importantes. Já perto das seis horas não adiantava mais investigar nada por aquele dia. Havia saído de casa pensando em também conseguir o telefone da mocinha que estava servindo como secretária do advogado diretamente na assembléia, local de trabalho dela. Porém, nem conseguia mais naquele dia nem precisava mais. Verdade é que a vendedora já havia confirmado o bastante.
E assim que saiu da papelaria lhe deu uma vontade imensa de fazer o que já há bastante tempo não fazia, que era entrar numa igreja para refletir sobre sua vida e prestar contas de parte de suas ações. Com esse objetivo seguiu não propriamente para uma igreja, mas para uma capelinha que ficava num canto de uma praça e desde a porta já se sentiu mais confortada.
Ficou ali orando por si mesma, pedindo pelas almas das amigas que haviam partido, implorando a Deus que a livrasse das mãos maldosas do mundo e dos seus desumanos habitantes. Refletiu, pensou na família, no seu futuro profissional, chorou e sorriu, se encheu das graças divinas e se sentiu outra mulher. E só saiu da capelinha porque ouviu as portas sendo trancadas.
Seguiu em direção ao carro e logo avistou um papel no para-brisa. Pensou que seria um desses panfletos de propagando ou até mesmo uma multa, mas quando se aproximou para retirá-lo dali viu que era um recado pessoal:
“Cuidado mocinha. Mexer em casa de maribondo faz mal à saúde. Quem é amigo adverte”.

                                                        continua...






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quinta-feira, 29 de setembro de 2011

A TELA E AS CORES DOS SENTIMENTOS (Crônica)

A TELA E AS CORES DOS SENTIMENTOS

                                              Rangel Alves da Costa*


Difícil imaginar qual seria o resultado se uma tela em branco fosse colocada sobre um cavalete numa praça e quem fosse passando por ali ser chamado a pegar no pincel, utilizar a cor de tinta que quisesse e em poucos traços pudesse expressar seus sentimentos.
A paleta ao lado contendo todas as cores possíveis, pincéis sempre novos para os artistas de momento utilizá-los, bastando que cada um mostrasse na cor escolhida e no traço seu estado de sentimento.
Não haveria de se negar nada, mas exprimir realmente o que o momento deixava aflorar no espírito. Tristeza, angústia, alegria, solidão, fome, felicidade, ódio, frustração, loucura, dor, saudade, paz, contentamento, fúria, rancor, ira, placidez, serenidade, indecisão, placidez....
Um menino sujo, de roupa rasgada, rosto entristecido e sem qualquer brilho no olhar, se aproximou, viu a tinta e o pincel ao lado e num instante, num traço veloz, desenhou uma moeda.
Outro menino, esse acompanhado da mãe e bem nutrido corporalmente, de bochechas rosadas e esbanjando alegria, segurou outro pincel, escolheu a tinta marrom e rabiscou uma mão pegando a moeda desenhada pelo outro menino.
Chegou uma mocinha triste, de flor na mão e talvez o coração apaixonado, dessas que caminham sempre ao entardecer procurando razão para a felicidade e sonhando com o fugitivo príncipe encantado, segurou levemente o pincel e fez surgir uma lágrima.
Não demorou muito e estava ali uma velha senhora, se segurando na sua bengala, fazendo a sua caminhada diária em busca de melhorias para as muitas doenças que lhe acometiam, olhou a tela por um instante e quase chorando pintou um olho de modo que do seu canto descesse aquela lágrima.
Em seguida passou por ali um menino de rua sem camisa, pois a que tinha servia para esconder um frasco com alguma substância tóxica que incessantemente levava ao nariz para cheirar, olhou para um lado e outro e calmamente deitou uma pessoa na tela. Parecia que estava deitado flutuando no espaço.
Atrás vinha um rapaz com um livro grosso na mão, de óculos de muitos graus sobre os olhos, talvez um interessado pelas indagações da filosofia ou pelos pensamentos contrastantes da vida, olhou na direção do menino que se afastava, segurou no pincel e fez aparecer na tela uma cama, bem abaixo onde a pessoa pintada pelo menino estava deitada.
Instante depois passou por ali uma moça vestida de hábito, talvez uma freira pela vestimenta e pelo jeito simples de ser e na calma do andar, ficou olhando o que já estava pintado na tela e se resolveu, timidamente, dar também a sua contribuição. Então pintou um pão.
E veio caminhando naquela direção um mendigo, com ares ainda de mocidade, porém fruto dessas inexplicáveis consequencias da sorte desigual para muitos, carregando nas costa sua bolsa de esmolas e no olhar um interesse danado pelo que a freira havia desenhado. Olhou para o pão na tela, mexeu os lábios como se estivesse com fome, e prontamente desenhou uma boca querendo engolir o pão.
Logo chegou uma madame, toda enfeitada como se estivesse passeando pelos mais chiques salões, tendo ao lado um empregado para carregar seu cachorrinho de estimação nos braços, avistou de longe a tela e se aproximou para senti-la mais de perto. Ora, sabia tudo de arte. Achou interessante, mas mandou que o empregado molhasse uma das patas na tinta e depois firmasse o pezinho do lulu na tela. E lá ficou pintada a pata do cachorro.
Observando ao longe a atitude da madame, assim que esta se retirou com o seu cachorrinho, o mesmo mendigo, parecendo realmente faminto, retornou, viu a pata do cachorro ali na tela e resolveu inovar. Pintou um pão aberto, tendo a pata do animal ao meio. Na sua concepção era um cachorro quente.
Na manhã seguinte a tela ainda continuava no mesmo lugar da praça. O mendigo também, pois ficara a noite inteirinha ali costurando uma ideia interessante. Então, como não aparecia dono, pegou a tela e tomou posse. Sentou num banco e colocou-a ao lado, à venda.
E apareceu a madame correndo, esbaforida, pois não havia dormido à noite lembrando que aquela pintura despretensiosa, mas tão significativamente pintada, certamente valeria milhões de dólares. E deu apenas um dinheiro ao mendigo pela grande obra.
Dinheiro bastante para comprar dois pães: o desenhado pela freira e o do cachorro quente.




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Deus no Sertão (Poesia)

Deus no Sertão



Se o Senhor Deus
criou só por criar
ou escolheu o lugar
para sua força testar
fez tudo certinho
exagerou um tiquinho
deixou faltar um tantinho
pra arrumar esse cantinho
acertou no nome Sertão
ser tão forte e irmão
acertou no povo valente
sofrendo e tão contente
acertou no jeito de ser
humilde por merecer
acertou na sua religião
com tanta fé e devoção
mas me desculpe Senhor
pois vou dizer onde errou
o sol do Sertão é mais quente
queima a planta e a gente
e é um sol sem piedade
e no verão já é maldade
bastaria um sol qualquer
sem esquentar o que tiver
e dando ao astro um compasso
a natureza pega o laço
tem inverno e trovoada
tem o cantar da passarada
tem o plantar e colher
tem pra vender e comer
aquilo que deva ser
sem viver tanto a padecer
e não é não difícil não
mudar um pouco o Sertão
basta que tenha a estação
tenha o inverno e o verão
tenha a chuva e tenha sol
tenha a noite e o arrebol
menos seca e mais trovão
mais esperança no chão
e o resto deixe com a gente
nunca mais povo carente
e a vida seguindo em frente
agradecendo a criação
louvando a terra e o pão.


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 45 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 45

                                         Rangel Alves da Costa*


O advogado não jogou o telefone na parede como da outra vez, espatifando-o completamente. Dessa vez, ainda que mais afetado mentalmente, deixou apenas que o mesmo caísse da mão sobre o vidro da mesa.
Diante dos absurdos cometidos, das mentiras que pareciam não dar em nada, vez que Carmen parecia estar investigando tudo, estava realmente sem saber o que fazer. Não poderia ficar enraivecido, pois ódio de que, se ele mesmo havia dado causa àquilo tudo? Contradizer, brigar, rebater raivosamente por que, se a sua razão não suportava outra palavra da moça? Ameaçar, prometer vingança ou mandar calar de vez sob pena de acontecer o pior por que, se havia autorreconhecimento que era verdadeiramente crápula, safado, corrupto?
Mas não podia ficar assim. O problema é que não podia ficar assim. E um problema talvez ainda maior do que poderia imaginar, pois ninguém sabia até onde ela ia com essa história de investigar a defesa dos dois rapazes feita por ele e os motivos que a levaram a serem tão desastradas, ao ponto de ajudar na condenação.
Claro estava que ela já havia descoberto muita coisa. Já sabia, por exemplo, que ele enganara as duas mães o tempo todo, que ele não havia defendido os dois coisíssima alguma e principalmente que havia uma mancomunação entre ele e o juiz para condenar os dois clientes. Mas aí era somente a ponta do iceberg, vez que desastre mesmo seria se Carmen chegasse aos nomes e as motivações de todos os envolvidos. Os nomes eram influentes demais, tanto no judiciário como no legislativo e no meio empresarial, sem falar na própria classe advocatícia que estava sendo enlameada pelos atos corruptos dele.
Não tinha dúvidas que se ela fosse mais adiante e descobrisse que o líder, o cabeça daquela conspiração mafiosa toda era o Deputado Serapião Procópio, os seus dias estavam contados. E também não sobreviveria se os nomes dos dois juízes, do promotor e dos empresários estampassem as manchetes dos jornais. Mas o que fazer, meu Deus, o que fazer agora? Era a indagação que gritava, surgida com a maior aflição do mundo, chegando a baixar a cabeça sobre a mesa, em total desespero, indo ao extremo de esboçar uma oração.
Mas não lembrava mais de nada, de nenhum salmo e nenhuma prece. Há muito que havia esquecido o conforto das palavras divinas para pensar somente nele, em si próprio, como fosse o deus de si mesmo. E de repente lembrou que num daqueles armários havia uma bíblia. Levantou, procurou, encontrou-a e abriu numa passagem que há muito tempo estava marcada com uma fitinha. Era o Salmo 86, Oração de Davi:
Inclina, Senhor, os teus ouvidos, e ouve-me, porque estou necessitado e aflito.
Guarda a minha alma, pois sou santo: ó Deus meu, salva o teu servo, que em ti confia.
Tem misericórdia de mim, ó Senhor, pois a ti clamo todo o dia.
Alegra a alma do teu servo, pois a ti, Senhor, levanto a minha alma.
Pois tu, Senhor, és bom, e pronto a perdoar, e abundante em benignidade para
todos os que te invocam.
Dá ouvidos, Senhor, à minha oração e atende à voz das minhas súplicas.
No dia da minha angústia clamo a ti, porquanto me respondes.
Entre os deuses não há semelhante a ti, Senhor, nem há obras como as tuas.
Todas as nações que fizeste virão e se prostrarão perante a tua face, Senhor,
e glorificarão o teu nome.
Porque tu és grande e fazes maravilhas; só tu és Deus.
Ensina-me, Senhor, o teu caminho, e andarei na tua verdade;
une o meu coração ao temor do teu nome.
Louvar-te-ei, Senhor Deus meu, com todo o meu coração, e glorificarei
o teu nome para sempre.
Pois grande é a tua misericórdia para comigo; e livraste a minha alma
das profundezas da região dos mortos.
O Deus, os soberbos se levantaram contra mim, e as assembléias dos tiranos
procuraram a minha alma, e não te puseram perante os seus olhos.
Porém tu, Senhor, és um Deus cheio de compaixão, e piedoso, sofredor,
e grande em benignidade e em verdade.
Volta-te para mim, e tem misericórdia de mim; dá a tua fortaleza ao teu servo,
e salva ao filho da tua serva.
Mostra-me um sinal para bem, para que o vejam aqueles que me odeiam,
e se confundam; porque tu, Senhor, me ajudaste e me consolaste”.
Leu com temor e reverência, é verdade, contudo parecia que as palavras bíblicas eram desconhecidas demais, difíceis demais de serem alcançadas e principalmente aquele livro sagrado lhe pesava nas mãos como uma imensa caixa de aço. Por que, se ali nas escrituras estariam os refrigérios da alma, o conforto dos aflitos, o abraço aos desamparados e infortunados? Ora, simplesmente porque a palavra divina não serve como escudo ou cobertura para se fazer o mal e repentinamente buscar nela um abrigo. Muito pelo contrário.
Tanto era assim que não demorou muito para a bíblia ser esquecida, o salmo jogado ao vento e a fé deixada de lado. E passou a delinear um contra-ataque àquela situação. Ou tudo ou nada, disse aos botões. A primeira coisa a fazer era tentar esquecer completamente o amor que sentia por ela.
Depois, numa relação de diferentes, a procuraria para, amigavelmente, buscar um acordo onde ninguém saísse prejudicado. Até pediria perdão se fosse preciso, ficaria de joelhos se fosse conveniente, prometeria até o impossível para que ela não seguisse adiante com sua obsessão investigativa e chegasse a prejudicar sua carreira, o seu futuro profissional. Diria que este estava nas mãos dela. E evidentemente que estava.
Contudo, se nada disso desse certo lavaria suas mãos. Ou melhor, sujaria ainda mais, pois passaria a concordar com o que o deputado fizesse o que há muito pensava fazer com ela. Não sabia até onde a velha onça poderia chegar, ou talvez soubesse. Verdade é que boa coisa não poderia ser, e disso tinha certeza. Sabia que ela não merecia isso, mas na guerra não há lugar para piedades. E aquilo já estava se transformando numa batalha terrível.
Contudo, não sabia o ilustre causídico que Carmen Lúcia, agora mais revoltada e enraivecida ainda, já estava pronta para colocar em ação outras estratégias de guerra. Assim, ainda naquele mesmo dia, já no finalzinho da tarde, se dirigiu até a Rua Outono, o mesmo logradouro onde ficava o escritório do Dr. Auto.

                                                 continua...






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quarta-feira, 28 de setembro de 2011

AH! SE EU FOSSE VOCÊ... (Crônica)

AH! SE EU FOSSE VOCÊ...

                                         Rangel Alves da Costa*


Cláudia Barroso cantou um dia “Ah! Se eu fosse você não tomaria esta decisão...”. Não canto, mas quero dizer, aqui de cima dessa montanha onde guardo minha vida em todo entardecer:
Ah! Se eu fosse você não fecharia a janela quando me avistar ao longe, virando a esquina, cansado, porém cheio de sentimentos e esperanças. Saiba que te levo um ramalhete na mão, um verso no bolso e infinito amor no coração...
Ah! Se eu fosse você não mudaria de caminho, não passava pro outro lado da rua, não corria, não procurava sumir nas sombras, todas as vezes que por acaso me encontra na tua procura de sempre. Mesmo que não fale comigo, não fique diante de mim, queira me negar um sorriso, lembre que a vida marca os encontros mais inesperados nos instantes mais desejados...
Ah! Se eu fosse você não diria às suas amigas que o meu palácio está muito distante do que merece, pois suntuoso apenas no barro e na ripa; que o meu reinado não lhe cabe como princesa, pois trono de tronco e tapete de esteira; que a minha riqueza não poderia comprar todo o luxo e ornamentos que requerem tua beleza, pois o muito que poderia dar era um vestido de renda e um diadema de cipó e conchas...
Ah! Se eu fosse você não esmagaria e jogaria fora as flores que deixo te esperando na janela; não faria bola de papel com os meus versos de amor que insisto em rimar com o teu nome; não mandaria cortar de machado aquela árvore do campo somente porque nela há o teu nome gravado, ao lado de um coração e dizendo te amo; não faria, mesmo tão bonita, uma cara esquisita quando falam que existo. Sem qualquer reverso, tudo em ti é motivo de orgulho para mim, e agradeço sempre aos deuses do amor pela tua presença ainda que com ares de estupidez...
Ah! Se eu fosse você não jogaria no lixo a concha do mar com um segredo que te mandei, não jogaria na areia o pedaço de mar que te mandei, não jogaria no mar a pequenina raiz, de flor brotando, que te presenteie; não jogaria no ar as palavras que eu tenho a dizer, não colheria ao léu aquilo que eu não disse de você, não ouviria senão o silêncio que tem a minha voz, e ei-la na brisa, no vento, na folhagem, no sussurrar da natureza...
Ah! Se eu fosse você seria menos egoísta, arrogante, orgulhosa, vaidosa, petulante, prepotente, egocêntrica, individualista, soberba, insolente, besta; seria apenas o que você realmente é sem jamais querer demonstrar ser, que é apenas mulher cheia de meiguice e doçura...
Ah! Se eu fosse você não deixaria que essa outra que lhe corrói e lhe maltrata fosse mais você do que você mesma; não deixaria que essa outra que se faz em sombras, em penumbras e negrumes de revoltas e descontentamentos queira afastar tanta luz que está ao seu redor, que brilha acima de ti feito auréola, que te chama para a paz e a felicidade...
Ah! Se eu fosse você não me abominaria como um perigoso estranho, um feroz animal que sempre quer lhe atacar; não me pisaria feito o verme kafkaniano que se desfaz na massa branca e putrefata. Não, e simplesmente porque não me conhece completamente para me rejeitar por inteiro, não sabe dos meus reais sentimentos para não me dar sentido, não enxerga em mim o homem que você não encontrou ainda. E tanto deseja...
Ah! Se eu fosse você, mesmo menina nova, mesmo menina flor, ligaria a vitrola escondida e ouviria Cláudia Barroso, ao menos uma vez, e sentiria a força da letra de sua música, e imagine que sou eu cantando:
“Ah! Se eu fosse você.../ Não tomaria esta decisão/ Pra depois ter que sofrer/ Curtir sozinha uma desilusão/ Ah! Se eu fosse você.../ Tudo faria pra não me perder/ Acontece que eu sou eu/ Não sou eu quem vai sofrer/ Foi você quem me perdeu/ Tanto eu falei .../ Abre os olhos meu amor/ Vendo tal situação, juro dói meu coração/ Sinto pena de você/ Riu tanto de mim .../ Conseguiu me derrubar/ Vou vencer se Deus quiser .../ Pois eu sou muito homem/ Pra saber me levantar ...”.





Poeta e cronista
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Eita terra, meu Deus!... (Poesia)

Eita terra, meu Deus!...



Sela de couro, arame farpado de cerca
cuia de tacho rachado, mão feita colher
suor respingando, cansaço da vida
aroeira com cana, aguardente bebida
galinha ciscando, capão de mulher parida
não sabe o que é vida, eita vida sofrida!

capoeira de cobra, lajedo de pedra
cabeça de frade, cansanção agourenta
urtiga cortante, lanho sangrando em rompante
duas ou três mulheres, o amor de uma amante
morrer varado em tocaia, grito se ouviu no instante
não para sertão, teu caminho é mais adiante!

a noite de lua, noite de tanto sol
criança chorando, tanto pão noutra boca
não quero gota de medo, quero pingo de água
a tristeza infinita, coração cheio de mágoa
o mar virou massapê, esperança que deságua
sol vai sumir um tiquinho, vem a nuvem e sua frágua!

João e Maria, Bastião e Zabé
família de cangaceiro, parente de pistoleiro
quem não é vai ter de ser, é a vida ou morrer
padre reza na igreja, sertanejo no padecer
promessa pra sempre ter, oração pra não morrer
ninguém faz a sua sina, destino foge ao querer!

sertão matuto, bicho de valentia e brabeza
moça de laço de fita, linda flor mais bonita
o sulista desconhece, quem tá longe não acredita
do amor tanto amor, a paixão feito vindita
um povo que sabe amar, fuga da sorte maldita
tanto amor e tanta fé, que a vida seja bendita!


Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 44 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 44

                                         Rangel Alves da Costa*


Na concepção de Carmen, ainda bem que naquela fase final do curso não estava mais precisando freqüentar a universidade diariamente. Aulas propriamente ditas, em sala de aula, praticamente não existiam mais. Quando muito se dirigia até lá para entregar relatórios de estágio e prática forense e tomar ciência das novidades junto à comissão de formatura. Somente isso. Ainda bem mesmo, porque não conseguiria acompanhar quase nada diante dos últimos transtornos.
Tinha prometido a si mesma evitar falar com o Dr. Auto o quanto pudesse. Já conhecia o caráter dele e, até evitando falar demais sobre o que já sabia e o que estava procurando saber, quanto mais distanciamento melhor. Ademais, evitaria confundir aquilo que já tinha conhecimento ou certeza, vez que ele sempre negava os fatos e procurava sobrepor suas versões esmeradas demais. Era preciso muito cuidado com a lábia adocicada do homem, sua verve para enganação.
Mas naquela tarde não havia jeito mesmo. Ou telefonava para o cafajeste ou explodia, ou falava com ele ou corria o risco de ter um troço, um problema de saúde qualquer. Ao ouvir o telefone tocar e não reconhecer aquele número certamente que atenderia com a maior destreza e prazer. Era próprio dele tratar os desconhecidos com a maior gentileza do mundo. Depois viria o bote certeiro. Assim, sem saber quem estava do outro lado da linha nem o que tencionava lhe dizer, atendeu com a maior fineza possível:
“Pois não, advogado Auto Valente à sua disposição. Quem fala, por favor?...”. Ao ouvir o nome e reconhecer a voz gelou, degelou, congelou novamente. Suou frio, fez brotar no rosto uma cor de fogo em chamas, viu o sangue correr feito lava e sua língua pesar mil toneladas para continuar falando. O problema é que amava aquela mulher, vivia completamente apaixonado, numa dor incontida que se tornava ainda maior porque não podia revelar a ninguém, e talvez muito menos a ela. Por isso mesmo não desligou o telefone nesse momento. Ah! esperança, o quanto não fazem em teu nome esperança! E quem saberia dizer o que merece ser feito pelo amor!
Contudo, logo diante da primeira pergunta que ouviu a esperança se tornou em desalento e o medo fervilhou com ferocidade. Ora, quem vive no erro sempre espera o pior, não há como não temer quando aquele que conhece suas falhas e deslizes começa a abrir a boca. E o corpo começa a dilacerar temendo o que virá pela frente: Será, será, será?! E Carmen realmente foi logo ao ponto na primeira indagação que fez:
“Pelo que andei sabendo e foi a própria que me falou, estava marcado para Dona Glorita retornar aí ontem pela manhã. Ela esteve aí, Dr. Auto?”. E o outro respondeu, com a voz embargada de nervosismo, acrescendo-se o esforço para mentir convincentemente: “Realmente, estava realmente marcado para a boa mulher comparecer ontem aqui no meu escritório. Mas não sei por que ela não veio. Esperei aqui o tempo todo e ela não veio. Será que aconteceu alguma coisa? Estará doente a mãe de Paulo, a nossa boa amiga?”.
Do outro lado, Carmen ouvia isso porque era o jeito, porque tinha que continuar fustigando para ver se saía alguma verdade de lá. De pronto, já sabia que o advogado estava descaradamente mentindo, pois não tinha mais dúvidas que o acidente, àquela hora acima do meio dia, só podia ter ocorrido quando ela havia saído de lá. Ademais, já passando da hora do escritório fechar para o almoço, logicamente que a mesma não iria fazer mais nada ali. Mas continuou, procurando responder ironicamente:
“Não sei, mas talvez esteja muito doente, muitíssimo doente, correndo até risco de morrer. Não sei, juro que não sei, principalmente porque não sou espírita”. Não o deixou pretender insinuar nada sobre isso e procurou ser rápida, jogando mais um questionamento: “A sua nova secretária não viu Dona Glorita por aí, não a recebeu e nem lhe passou alguma informação?”.
E ouviu outra deslavada resposta: “Lembrou-me bem Carmen, lembrou-me muito bem. Tenho que falar com o deputado para tomar providências. Não é que a moça resolveu faltar ontem pela manhã e nem me telefonou para dizer que não estaria no escritório? Isso não pode acontecer de jeito nenhum. Tive que ficar pregado aqui por causa dela, daquela faltosa...”.
Nessa resposta, ainda que inventiva, restou alguma coisa boa aos seus ouvidos, pois já sabia que deveria procurar a mocinha para obter algumas informações importantes. Do mesmo modo ficou sabendo onde encontrar o número do telefone dela mais facilmente, que era no próprio gabinete do Deputado Serapião Procópio. Contudo, resolveu não dar mais volteios e foi logo perguntando:
“Dr. Auto, já que o senhor estava ontem aí no escritório pela manhã e só deve ter saído na hora do almoço, por acaso não viu e nem soube de algum acidente ocorrido na rua do escritório, bem em frente ao prédio, precisamente logo após o meio dia?”.
O mundo desabou, tudo caiu, ruiu. Diante da pergunta o advogado se procurava e não se encontrava mais, havia sumido, desabado nas profundezas do chão, havia submergido na lama, havia explodido e desaparecido. E talvez fosse melhor assim, para não ter de suportar aquela punhalada cortante na voz. O mais grave é que não sabia fazer mais nada, estava sem ação, sem imaginar o que responder. E eis que o estridente vermelho lhe agulhou e um bafo fétido lhe soprou ao ouvido. E surgiu a resposta:
“Acidente? Houve algum acidente por aqui ontem? Ainda bem que não saí para almoçar e fiquei aqui mesmo até a tarde adiantando umas petições. Mas é verdade é que houve mesmo acidente por aqui? Juro por tudo na vida que estou sabendo disso agora. Quando eu saí não percebi nada de estranho, nada que pudesse ao menos sinalizar ter ocorrido um acidente bem em frente ao escritório. E foi grave, teve vítimas?”.
E Carmen não suportava mais, mas procurou se conter: “Teve sim. Foi violenta e impiedosamente vitimada uma cliente sua. Um veículo quase estraçalha completamente o corpo dela. Dona Glorita morreu bem aí em frente ao prédio, assim que saiu do seu escritório, quando ia atravessando a rua. Está lembrado agora ou você, seu verme asqueroso, seu nojento, safado mentiroso, filho de uma égua, covarde, corrupto e assassino, terá coragem de me dizer que não sabe nada disso?”.
E o outro não falou mais, não respondeu mais nada. Se fez completo silêncio. Em seguida o telefone foi desligado. Ou desligou-se por si mesmo, numa dessas estranhezas da vida.

                                                     continua...





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terça-feira, 27 de setembro de 2011

O POVO DE SOLIDÃO (Crônica)

O POVO DE SOLIDÃO

                                       Rangel Alves da Costa*


Solidão é um lugar onde muita gente mora sem saber. Possui milhares, milhões de habitantes, talvez. É de beleza sem igual, com paisagens encantadoras que vão desde as montanhas dos lobos uivantes aos descampados onde os olhos não avistam mais. Aliás, os olhos nunca enxergam a beleza de Solidão. Pelo contrário.
Dizem que noutros tempos, num passado muito distante, o povo de Solidão era muito diferente dos remanescentes de agora. Era alegre, festeiro, sorridente, compartilhando os bons sentimentos entre todos e muito esperançosos por dias cada vez melhores. E não se sabe bem os motivos, mas depois de uma ventania surgida ao entardecer tudo foi mudando.
Quase tudo foi mudando, tristemente se modificando. Os jardins, as praças, as noites de lua cheia, os dias de sol ardente, as manhãs ensolaradas, os tempos de chuvas para renovar a vida, a natureza com os seus mistérios e magias, os seres míticos povoando os escondidos, os horizontes com seus sinais, os acasos do ocaso, os acasos nos belos e inusitados acontecimentos, tudo continuava assim. Mas o povo não.
O povo de Solidão foi se transformando sem sentir. Diferentemente de outros tempos, de repente as ruas foram ficando esvaziadas, as praças sem os seus visitantes habituais, as crianças desistindo de suas brincadeiras, as amigas sumindo das calçadas e dos seus encontros para a conversa amigueira, os sorrisos, as gargalhadas, os gritos festejantes, tudo isso ia desaparecendo, perdendo sua razão de ser.
As ruas foram ficando desertas, as janelas e portas fechadas, as folhagens tomando conta dos bancos das praças, a brisa e a ventania chegando e fazendo seu percurso sem encantar mais ninguém, pois não havia mais olhar, mais palavra, mais gesto, mais murmúrio, mais sussurro, mais nada. Se o silêncio falasse para ser ouvido gritaria que estava sendo abafado, sufocado, impedindo de se expressar silenciosamente, pois teimavam agora em chorar pelos cantos, às escondidas, dolorosamente com medo da vida.
Por mais estranho que pudesse parecer, mas o povo de Solidão nunca havia procurado saber por que o seu lugar de moradia possuía aquele nome. Sem qualquer interesse etimológico, histórico ou geográfico, apenas alguns insinuavam vagamente o que poderia ter motivado a colocação daquele nome diferente no seu lugar. Quem não procurava saber de nada dizia apenas que Solidão era solidão, e pronto.
Mas um dizia que solidão era um rio caudaloso que um dia secou de tanto chorar; outro argumentava que solidão era o nome de um ser estranho que morava na mata e que ao anoitecer entrava pela janela das pessoas para torná-las entristecidas; já outro assegurava que solidão era o nome de um pássaro renegado de seu bando e que todo entardecer passava por ali fazendo revoada sozinho; e ainda dizia outro que solidão era nome que simplesmente surgiu, sem nascer do nada, apenas foi sendo aceito e continuou assim até hoje.
Quem tinha razão ninguém sabe. Talvez todos ou nenhum, mas a verdade é que as pessoas estavam, nos últimos tempos, vivendo muito mais seu lugar como nunca havia acontecido. Então, era Solidão o lugar e solidão nas pessoas; era Solidão no grande nome esculpido em cima da montanha na entrada da cidade e solidão por dentro das casas, invadindo os quartos, deitando por cima das camas, recostada nas paredes, jogada pelos cantos.
E o pior é que a solidão estava também dentro das pessoas. E que tristeza nos olhares cegos, que monotonia aquele quarto escurecido, aquele ouvir sempre a chuva bater no telhado e na vidraça da janela, que dolorosa aquela sensação de angústia, de desespero, de aflição. E que vontade de encontrar, de chamar pelo nome, de dizer te amo, de abraçar, de se entregar para sempre. E porque se sentia essa impossibilidade, então quanto vazio, quanta desesperança, quanta saudade, quanto lembrar, quanta vontade de sumir.
Um dia um forasteiro chamado amanhã chegou em Solidão e tomou um susto porque não encontrou ninguém. Não sabia que o povo do lugar estava trancado nos esconderijos da alma para a sina da solidão pessoal. Então foi passando pelas ruas e gritando bem alto que o amanhã havia chegado e que trazia uma mala cheia de cartas, de esperanças e de amores.
Então viu quando abriram uma janela, depois mais uma e mais uma...




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Como vai você? (Poesia)

Como vai você?



Desde que não pude mais
chamar o seu nome
gritar o seu nome
viver o seu nome
porque sem você
é tudo profundo abismo
imenso vazio no ser
e a voz me foi roubada
e levada pra estrada
seguindo os seus passos
tentando ao longe avistar
para jogar os seus laços
desse dia em diante
não sei o que faço
a não ser ouvir a música
e procurar sempre saber
“Como vai você?
eu preciso saber de sua vida
peça a alguém pra me contar
sobre o seu dia
anoiteceu e eu preciso só saber
como vai você?...
Eu só preciso saber
como vai você?...”.



Rangel Alves da Costa

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 43 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 43

                                         Rangel Alves da Costa*


Depois de muito argumentar e falar sobre o estado emocional da filha e sua impossibilidade de fazer o reconhecimento do cadáver da mãe, Carmen enfim conseguiu estabelecer as linhas de identidade. E que cena mais terrível, repugnante, afrontosa à memória com a lembrança de uma pessoa como era e como de repente a encontra.
Ainda que tentasse a todo custo ser forte, principalmente para não fraquejar ainda mais a mocinha, saiu lá de dentro chorando de se acabar, com um lenço sobre o rosto, quase sem poder caminhar direito. E nesse momento foi a vez da outra tentar confortar a amiga de sua mãe. Somente depois que saíram para o lado externo do prédio, onde puderam respirar um ar diferenciado, é que as duas ficaram mais calmas.
Carmen disse que tinham de ir providenciar o caixão numa funerária ali próximo e que não se preocupasse pois não lhe custaria nada, que era uma homenagem que prestava a Dona Glorita. Ainda no veículo, perguntou se sabia onde o acidente tinha acontecido e em quais circunstâncias. E a mocinha, de cabeça baixa e constantemente levando lenços de papel ao nariz, falou o que sabia:
“Os policiais que foram lá me avisar disseram que ela foi atropelada no centro da cidade, logo depois da Praça das Flores, numa rua chamada Outono. E disseram ainda que pelos levantamentos preliminares, parece que ela ia atravessando a rua quando foi atropelada por um carro em alta velocidade. Só que o sinal estava aberto para os veículos e ela atravessou, ninguém sabe por quê...”.
Aguçada com essas primeiras informações, Carmen perguntou apressadamente: “Você disse que ela estava atravessando a Rua Outono de um lado para o outro quando houve o acidente, foi isso mesmo?”. A mocinha confirmou e então a futura advogada visualizou bem aquela rua, visualizou tudo. Logo depois da Praça das Flores, na Rua Outono, atravessando de um lado para o outro. E se interrogou: ela ia ou vinha saindo do escritório do Dr. Auto?
Não quis comentar sobre o que estava imaginando com a mocinha para não confundi-la mais ainda. Mas ora, se ela estava na Rua Outono então bem que poderia ter estado no escritório do advogado. Tinha que saber agora se os policiais haviam informado a ela acerca da hora do ocorrido, um momento razoável para se estabelecer um horário. Perguntou e ouviu que o infortúnio tinha acontecido logo depois do meio dia.
E novamente, em silêncio, dialogando e interrogando a si mesma, Carmen achou que tinha chegado a importantes conclusões. Se já havia passado do meio era porque a mulher já havia saído do escritório, não havia dúvidas. Pelo horário que falou com ela ao telefone, logo cedinho, e a mesma disse que já estava saindo da igreja em direção ao centro, então no horário do acidente ela já havia saído de lá.
E se havia saído de lá, tudo aconteceu no momento que ia atravessando a rua. Mas por que ela iria atravessar a rua de modo tão displicente, sem o devido cuidado com o trânsito preocupante dali, sem prestar atenção nos veículos passando em alta velocidade? Será que havia saído do local completamente cega, raivosa demais, com preocupações a tal ponto de praticamente se jogar em meio ao trânsito caótico? Se ela havia saído realmente assim, completamente desesperada, o que teria ouvido de novo do Dr. Auto que a havia transtornado daquele jeito, vez que nada do que poderia ouvir seria mais novidade? E se nada disso aconteceu desse jeito, porém outro fato mais intrigante serviu como motivação para o sinistro acontecimento? Mas o que, meu Deus, o que?...”
Por mais que insinuasse respostas imediatas jamais conseguiria saber a verdade. Precisava ficar mais calma, pensar melhor, procurar uma linha de raciocínio mais apurada e inteligente para saber das reais circunstâncias em que se deu o fatídico episódio. Sabia muito bem quem poderia dar todas as respostas, mas somente se ele quisesse falar a verdade, dizer realmente tudo o que sabia. Contudo, não adiantava esperar nada de veracidade vindo do advogado, nenhuma confissão, nenhum relato consistentemente aceitável. É triste, mas a sina dos mentirosos é nunca ser acreditado pelos outros, ainda que jurando pela mãe de joelhos.
Mas tudo isso se pensaria melhor mais tarde, talvez no dia seguinte, após o sepultamento da amiga. Ademais, como fizera com relação a Dona Leontina, se sentia no dever cristão de ajudar, de estar ao lado da filha naquele momento indescritivelmente difícil. O filho, Paulo, preso, não sabia do ocorrido e era melhor que não soubesse ainda, pois seria muito doloroso querer se despedir da mãe e ser dificultado pela própria justiça que o mantinha prisioneiro sendo inocente. Outros familiares existiam, deveriam estar presentes na despedida, mas ajudaria pensando na filha, na mocinha que visivelmente estava incapacitada para qualquer outra coisa a não ser chorar e lamentar a perda.
O corpo foi velado pela noite inteira e parte da manhã seguinte. Antes do meio dia, o corpo foi sepultado na presença de muitos amigos, principalmente os da vizinhança, e uns poucos familiares. A mocinha não falava noutra coisa que não no irmão, chegava a gritar chamando-o pelo nome, e a cada instante era confortada por Carmen que, colocando a cabeça dela no seu peito, explicava tudo novamente sobre a ausência dele. E sempre prometia que não duraria muito para o seu retorno ao seio familiar e em plena liberdade.
Era sacrifício demais, penoso e trabalhoso demais. Por mais jovem e forte que fosse, Carmen já estava extenuada, extremamente cansada de tanto sofrimento e da tomada das providências cabíveis. Precisava descansar um pouco, mas quase não consegue sair da casa entristecida com a mocinha abraçando-a, agradecendo fervorosamente por tudo que ela havia feito. Segundo a mesma, sem a ajuda de Carmen nada seria conseguido e talvez o corpo de sua mãe ainda não fosse nem sepultado.
Contudo, assim que deu um passo fora da porta parece que as forças voltaram de vez e ali mesmo decidiu que ainda naquela tarde saberia toda a verdade sobre a morte de Dona Glorita. E tinha de ser através do execrável advogado.

                                                   continua...






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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

A MENINA DOENTE (Crônica)

A MENINA DOENTE

                                   Rangel Alves da Costa*


Costumo colocar quadros famosos como planos de fundo do meu computador. Mas nem toda pintura tem espaço ali, pois escolho a dedo as obras que expressam um verdadeiro despertar nos meus sentimentos. Muitas vezes, não pesquiso nem digito nada, apenas fico olhando minutos a fio o significado daquelas criações artísticas. E quanto isso tem me inspirado!
Podem achar muito estranho, mas me encanto com quadros que expressam tristeza, situações dolorosas, cenas onde as névoas se misturam à luz para dizer da solidão. Aprecio muito - e isso me toma um tempo danado em frente à tela - os quadros onde Rembrandt retrata filósofos no seu mundo solitário, nos seus ambientes monásticos, permeados pelo claro-escuro que é o próprio contraste da vida.
Contudo, já faz tempo que me encantei com uma magistral obra do expressionismo alemão, até mesmo despretensiosa para muitos, intitulada A Menina Doente onde o pintor norueguês Edvard Munch, o mesmo autor da famosa O Grito, retrata a angústia, o desespero e a dor de uma parenta, talvez a mãe, ao lado do leito de uma menina doente. E que situação mais triste, meu Deus!
Na obra, toda construída com pinceladas fortes e de cores escurecidas, muitas vezes chegando ao negro para expressar um sentimento doloroso perante a situação retratada, logo se vista um quarto onde repousa uma enferma. Nela vê-se uma jovem de pele clara (ou seria da palidez doentia?), cabelos lisos em tons avermelhados, vestida de negro, com mangas que chegam até os pulsos, com feições ainda de reconhecida beleza, deitada no seu leito, com os braços estendidos sobre uma colcha também escurecida e o rosto levemente voltado para uma mulher que segura na sua mão.
A menina doente não, pois possui no semblante uma aceitação própria do seu estado, que é tão própria dos enfermos que parecem querer confortar os outros com o seu padecimento e até proximidade do fim, mas a mulher é a mais pura demonstração de angústia e aflição. Sentada ao lado do leito, segurando com as duas mãos a mão esquerda da parenta ou filha, na sua cabeça baixa e no seu corpo curvado, residem toda a dramaticidade pretendida pelo artista.
Não precisava que ela levantasse a cabeça para dizer de sua dor lancinante, nem deixasse os olhos à mostra para dizer de suas lágrimas incontidas. Talvez seja uma mãe sim, e talvez ali esteja sua filha, menina muito doente recebendo o aconchego da genitora. Mas que consolo, que lenitivo, que carinho, se a completamente desconsolada é a própria mãe que chora, que grita por dentro, que não sabe mais o que fazer diante daquela situação?    
A pintura, pela sua expressividade e utilização de cores fortes e sombrias para descrever tanto a situação psicológica como o ambiente de convalescença, possui muitos adeptos, ainda que não iniciados na crítica de arte. Raquel Lautenschlager Santana, em texto também intitulado “A Menina Doente”, publicado no site Belas Artes Médicas, (http://belasartesmedicas.blogspot.com/2011/09/menina-doente.html), assim se expressa sobre a pintura de Munch:
“Hoje (...) acabei lembrando-me de um quadro de Edvard Munch, intitulado "A Menina Doente", que representa os últimos dias da irmã do pintor, que acabaria por falecer devido a um quadro de tuberculose. Neste quadro, há um predomínio de tons sóbrios e escuros, como as paredes e as vestimentas cinzentas das personagens, entretanto o fundo sobre o qual a menina repousa (o travesseiro) é luminoso. Tal luminosidade reflete o semblante da menina, que não parece enraivecida com sua condição, muito pelo contrário, parece compreender a transitoriedade da vida”.
É isso mesmo, a transitoriedade da vida. E fico me perguntando e com raiva de mim mesmo: por que aquele copo com remédio colocado num canto da mesinha não curou a menina doente? Tens razão, mãe, com sua dor. É a transitoriedade da vida...



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Um tanto... (Poesia)

Um tanto...



Um tanto de lua
outro tanto de sol
um tanto madrugada
outro tanto arrebol
um tanto de saudade
outro tanto de voar
um tanto de sofrer
outro tanto relembrar
um tanto lágrima
outro tanto sorriso
um tanto nada ter
outro tanto que preciso
um tanto essa mão
outro tanto esse pé
um tanto toda desgraça
outro tanto toda fé
um tanto o seu cabelo
outro tanto a ventania
um tanto soprando tristeza
outro tanto alegria
um tanto o seu anel
outro tanto o noivado
um tanto casar um dia
outro tanto apaixonado
um tanto querer você
outro tanto muito mais
um tanto eterna procura
outro tanto perder jamais.



Rangel Alves da Costa