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domingo, 25 de setembro de 2011

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 41 (Conto)

NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 41

                                         Rangel Alves da Costa*


Um corpo estirado, jogado, estendido, esparramado no chão. Rente ao meio feio, próximo ao canteiro, por cima da terra, perto do asfalto, no cimento da calçada, ali e acolá, ora isso ora aquilo. E ali a mulher, a vítima, a acidentada, Dona Glorita já sem vida.
Profundos ferimentos, dilaceramentos, machucados, parecia um objeto caído do alto e desfeito no chão. A alta velocidade do carro aliada à imprudência da pedestre, da mulher que às cegas quis romper a passagem dos veículos sem se dar conta do perigo, não poderia produzir outra coisa senão aquela realidade fatal. A morte.
Contudo, do jeito que estava, ofendida demais com a atitude do advogado, com o seu desrespeito e covardia, indignada com aquele gesto, fugindo da cliente quando já estava em frente a ela, foi sendo criada uma cegueira raivosa tão grande que não enxergaria um trem que estivesse chegando, uma arma que estivesse sendo apontada, um furação que estivesse já próximo. E o carro então, este nem pensou que existia quando começou a dar passos velozes para atravessar a pista e perseguir Dr. Auto.
O resultado estava ali agora. Do carro atropelador nem sombras, da vida de Dona Glorita também. E também do advogado, que seguiu seu caminho de fuga como se nada tivesse acontecido, como se não conhecesse aquela mulher, como se não tivesse culpa também por aquele funesto acontecimento. Quer dizer, pra ela, pra acidentada e morta, porque mais adiante, noutra rua, longe do aglomerado de pessoas que se formou ao redor, ele se posicionava tranquilamente ao lado de uma mureta, e de telefone celular em punho, discava com ar satisfeito para alguém.
“Nobre deputado, como vai esse grande benfeitor da humanidade, continua roubando muito dos ricos para dar aos pobres?...”. E do outro lado o larápio do parlamentar respondeu: “E me sinto cada vez mais pobre, mais precisado, mais necessitado, por isso tenho de afanar os ricos para dar a esse pobre coitado que sou eu mesmo...”. E gargalhou com enorme e desfraldada satisfação. Mas o advogado continuou.
“Não esqueça dos amigos carentes, seu Robin Hood de araque, não esqueça. Mas telefonei dessa vez por causa de um assunto muito importante, de um acontecimento inesperado ocorrido agorinha mesmo. Parece que ainda estou ouvindo os gritos da mulher se espatifando todinha no chão e o carro riscando o asfalto em alta velocidade. Eis que ficamos livres daquelas duas. A Leontina, mãe do presidiário Jozué morreu ontem, como é do seu conhecimento, e hoje outra bateu as botas. Dessa vez foi a Glorita, mão do também presidiário Paulo. A primeira morreu de ataque do coração e essa porque quis me atacar...”.
“Que conversa é essa doutor Auto?”, indagou o deputado Serapião, intrigado com essa nova informação. E ouviu:
“Pois é, a mulher saiu do escritório e quando me avistou do lado de fora veio pra cima de mim talvez querendo explicação sobre a sentença ou uma satisfação qualquer, mas como não sou besta dei a volta e voltei pro outro lado da rua, então a idiota veio atrás com tudo e não deu outra. Os carros passando em alta velocidade e ela deu as caras e então pimba. Só vi o corpo voando pra bem longe e caindo estrondosamente no chão. Acho que não sobrou nem a alma. O corpo ainda está lá todo esparramado no lugar que caiu, desfeito em sangue e nada mais. Dessa também ficamos livres...”.
“E por que dessa também ficamos livres, previdente causídico?”. O advogado não duvidava que o espertalhão já soubesse do porque, mas ainda assim relembrou:
“Ora, meu caro deputado, é tudo muito simples. Com o sumiço das provas vivas do que fizemos com aqueles dois rapazes, logicamente que mais tarde ninguém vai mais reclamar do errado nem do malfeito, não vai querer saber os motivos de tê-los enganados o tempo todo e muito menos de quem está por trás dessa safadeza toda. Já pensou se uma dessas finadas, atiçadas pela perigosa da Carmen, denunciasse a gente seja lá onde fosse, espalhasse pela imprensa o que fizemos e por que fizemos e dissesse o seu nome, o meu nome e os nomes do juiz, do promotor, do outro juiz tio da mocinha, do pai dela e também o nome do pai do verdadeiro bandido Josué, o Alfredinho Trinta Por Cento? Já pensou que sarapatel de coruja seria pra gente engolir deputado?”.
“Tem razão Dr. Auto, tem razão, mas tem aí um porém que parece que você esqueceu. Duvido que essas pobres mortas fossem abrir a boca para dizer um tantinho assim. Se fossem fazer então seria através daquela Carmen, essa mesma que me causa pesadelos. Daí, Dr. Auto, que pelo andar da carruagem pouco há que se comemorar, pois quem morreu era peixe muito miúdo, quase nada, apenas duas pobres coitadas que mal sabiam se virar na vida. As duas morreram, e daí? Agora me responda uma coisa: você já pensou em quem continua viva?”.
“Mas deputado, será que o senhor quer chegar novamente àquela história de matar a moça. Certamente que isso nos livraria de quaisquer preocupações futuras. Contudo, ela não é só uma pessoa que pode ser morta a qualquer momento. Ela não é apenas uma pessoa, tente entender isso muito bem. É pessoa sim, mas inteligente demais, perspicaz, audaz, estrategista. Ademais, tem costas largas, proteção familiar, é rica. E o senhor acha que matando ela no momento seguinte as provas contra o nosso grupo já não estariam na imprensa? Duvido que ela não guarde um testamento incriminador, um relatório contando tudo o que fizemos, uma agenda cheia de acusações e de provas. Por isso mesmo deixe a moça pra lá por enquanto, até a gente se assegurar que ela não representa perigo...”.
O deputado, pensativo do outro lado, ficou silencioso por alguns instantes. Em seguida saiu com essa: “Você não é solteiro, boa pinta, então por que não faz tudo pra conquistar o coração da moça? As mulheres apaixonadas são dominadas facilmente, emudecem, acatam tudo que o homem quiser impor. Faça isso e até poderá trazê-la para o nosso grupo...”.
E o advogado um tanto surpreendido com tais palavras, procurou dizer qualquer coisa, mas acabou falando a verdade:
“Deputado, não subestime a inteligência de uma mulher. E até hoje, no mundo real, nunca vi uma mulher inteligente que de repente passe a amar aquele que está vendo com nojo e repugnância, até mesmo porque sabe que ele não passa de um verme, de um larápio safado, de um corrupto escolado”.
“Mas pense nisso, pense nisso, senão haveremos de tomar outras providências”, afirmou o parlamentar já se despedindo. Enquanto guardava o telefone no bolso o advogado baixou a cabeça entristecido, não pelo ocorrido com Dona Glorita, mas lembrando do amor impossível que sentia por Carmen.
E mais adiante as sirenes da ambulância e do carro da polícia deixavam tudo em polvorosa. Multidões se formavam adiante. Mas era tarde, tudo tarde demais.

                                                 continua...





Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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