NAS MÃOS DE DEUS: UMA HISTÓRIA DE INJUSTIÇA - 30
Rangel Alves da Costa*
No longo retorno à residência, num pular de transporte ali e acolá, Dona Glorita comentava com a filha que achava que poderia ter encontrado Dona Leontina por lá. Mulher já idosa pelos desgastes antecipados da vida, sofredora demais e com o mesmo problema que o seu: a cegueira, a maldade e a injustiça dos homens. Nem imaginava o que tinha acontecido com a pobre mulher.
Verdade é que uns cinco minutos após o Dr. Auto ardilosa e mentirosamente ter liberado mãe e filha, fazendo-as retornar sem tomar conhecimento da condenação de Paulo ali disposta sobre a mesa de seu gabinete, o pessoal do serviço funerário municipal chegou para fazer o recolhimento da indigente. Essa desumana qualificação arrastaria até o dissabor da imundície da terra, tantas vezes putrefata pelos mortos que ali iam sendo praticamente jogados. Todos pobres, indigentes, nada.
Ora, se fosse um desvalido morto nas brenhas do mundo chegaria até a se decompor antes da chegada do pessoal da prefeitura, mas como havia a indicação do nobre parlamentar, então que se avexasse, se cuidasse, chegasse voando. Mas chegasse logo. E assim foi feito, numa ligeireza impressionante.
Procedimento muito rápido e sempre desumano, jogaram a falecida Leontina numa espécie de saco com zíper, depositaram seus desgastados pertences em outro saco menor, e nem tiveram o cuidado de conduzirem a grande mochila com o corpo segurando-a com as mãos, mas simplesmente arrastaram pelo chão como um fardo ruim, uma coisa imprestável, qualquer coisa.
Mas ali dentro, morta pela dor do filho, jazendo por todas as dores de tantos e tantos e sofrimentos, estava o corpo, embora envelhecido e maltratado, de uma mulher de luta, de fibra, de coragem, uma sertaneja que fez sempre o que pôde para justificar sua presença na terra. E agora simplesmente arrastada, simplesmente fardo, simplesmente nada. Ninguém a pranteá-la, nenhuma oração encomendando a alma, nenhuma vela acesa, nenhuma noite a esperar o dia para ser enterrada com dignidade. E havia qualquer resquício de dignidade no modo como fora tratada, ainda que morta?
Como sempre ocorre em casos tais, o corpo ensacado foi logo conduzido ao necrotério municipal e lá começou a passar pelos procedimentos previstos. Com relação a ela absolutamente nada, pois continuou no saco, e este dentro de um imenso congelador até o momento que iria ser colocada dentro de um caixão produzido em série no aguardo de defuntos como tais. Mas sim para dar apenas ao trabalho de pessoas anotarem dados que seriam esquecidos nos arquivos. A partir dali seria apenas um dado estatístico, e nada mais que isso.
Nem dando mais importância ao incidente com a pobre mulher, o advogado estava apenas preocupado em retornar ao escritório e encontrá-lo totalmente limpo e perfumado. Constataria isso à tarde, quando fosse colocar umas petições em dia e talvez atender clientes. Por diversas vezes pensou em telefonar para Carmen para avisá-la do pequeno sobressalto, mas resolveu que não. A moça também não precisava saber nada disso, segundo imaginava. Ademais, se tomasse conhecimento procuraria descobrir outras coisas certamente inconvenientes.
Mesmo não sabendo do ocorrido, Carmen Lúcia não estava nem um pouco esquecida das duas, nem de Dona Leontina nem de Dona Glorita. Sabia que naquela amanhã elas se encaminhariam até o escritório com a esperança divina de tudo ser diferente daquilo que já havia sido anunciado: a implacável condenação e mais tarde, pouco tempo depois porque não haveria recurso, o encaminhamento para o cumprimento definitivo da pena em regime fechado. E o destino deles seria aquela penitenciária mais conhecida como “já morreu”.
“Já morreu” era famosa porque dela não saía nenhum ser humano normal. Os egressos jamais se recuperavam dos traumas sofridos, das dores, dos sofrimentos, da perda total da integridade física e mental. Além disso, nem de longe pareciam mais com seres humanos, ainda que no estado mais lastimável que pudesse existir, senão sombras no couro e osso, nas feições horrendas, no olhar sempre amedrontado, nas sombras que pareciam ser e nas sombras onde procuravam se esconder.
Ora, eram vistos como verdadeiros bichos, perigosos estranhos que a qualquer momento poderiam dar o bote, matar, roubar, praticar qualquer mal. Aos olhos da sociedade, puritana e apenas aparentemente humanitária, era mais confortável se deparar com um rato de esgoto, com um verme asqueroso, do que encontrar no seu caminho com uma coisa grotesca daquelas. E se de antecedência soubesse que por ali estava um ex-presidiário nem passava por perto.
Na mente social falsa e corrompida pelos próprios vícios mentirosos de pureza e inocência, verdadeiramente não haveria mais espaço para o egresso, este simplesmente não tinha mais como conviver junto aos homens de bem. Por isso mesmo é que o sistema prisional, já conhecendo esse pensamento social, essa ojerizava, aversão, enojamento coletivo, fazia tudo para que todo aquele que entrasse pelos portões da penitenciária “já morreu” ali mesmo acabasse seus miseráveis dias de vida.
Como doía em Carmen saber disso, ter a certeza disso. Entristecida demais com tais pensamentos e conclusões, decidiu que naquela tarde iria visitar Dona Leontina e saber quais os verdadeiros termos da sentença, vez que o advogado certamente havia dado a ela uma cópia como gracioso presente. E que presente! E também saber como estava se comportando depois da confirmação daquela verdadeira tragédia.
Nessa segunda vez encontrou mais facilmente o Cafundó do Judas, bem como a ruazinha e a casa. Desceu do carro e bateu à porta por diversas e nada de ninguém responder. Ainda estava de pé no mesmo local quando um morador se aproximou afirmando que ela havia saído logo cedinho dizendo que iria até o centro da cidade. Contudo, pelo que sabia ainda não tinha sido vista retornando.
Se ela foi à cidade, então certamente foi até o escritório, onde realmente deveria ter ido, mas até aquele momento não ter retornado, mesmo já passando das duas, chegando já próximo às três horas da tarde, era muito estranho. Foi o que Carmen disse a si mesma, um pouco confusa e já preocupada. Então lembrou que Dona Glorita também tinha um encontro marcado no escritório e talvez soubesse informar qualquer coisa.
Assim, procurou o número do telefone da mulher e discou.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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