SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 31 de março de 2013

PIADAS TRISTES PARA VELÓRIO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Em velório acontece de tudo, sabe-se de tudo, a difícil despedida se torna em verdadeiro e disputado evento. Mas tudo surgindo comedidamente, como sopro aos ouvidos, cuidadosos gestos, palavras quase silenciosas. Mas sempre com efeitos espetaculares.
O que não se admite muito, ainda que ouvidas e ecoadas onde haja velório ou sentinela, são as piadas desconcertantes, aquelas que provocam risos largos, galhofadas e estrondosas gargalhadas. Ora, é inadmissível tornar um momento de dor num festim piadista, num banquete de anedotas cabeludas e gracejos desconcertantes.
E tem gente que só fica triste em velório, só se mantém com feição enlutada, porque procura piadas para ouvir e não encontra na proporção e na descontração que gostaria. Daí que um dia alguém, após ter forçado tristeza inexistente num momento desses, resolveu que só iria a velório que existisse contação de piadas.
Mas toda anedota boa causa algazarra, barulho, podendo chamar atenção dos que estão concentrados na despedida, gerando grande desconforto e recriminação da maioria, certamente. Então, a única solução encontrada foi incentivar a criação de piadas tristes para velório. Coisas assim:
 “Um bêbado encontrou com outro ainda mais bêbado. Este, conhecido daquele, logo o convidou para um velório. Imediatamente o amigo perguntou quem havia morrido de cachaça, se era algum conhecido. E ouviu como resposta que era ele mesmo que iria ser morto pela esposa ao chegar em casa. Havia saído há dois dias para fazer a feira e só agora voltava sem um tostão no bolso”. E ninguém achou graça na piada, sinal que era boa pra velório.
“Uma fofoqueira chegou pra vizinha também fofoqueira de mão cheia, e perguntou se sabia o que andavam dizendo dela, da amiga. E esta respondeu que não porque esteve ocupada em ouvir o que estavam falando dela, da outra amiga. Era fofoca? Perguntou. Fofoca não era porque não gosto disso, mas era coisa muito mais cabeluda do que você ouviu falar de mim”. E nem um sorriso após a piada. Mais um sinal de piada apropriada para velório.
“Tá vendo esse defunto aí, esse mesmo com a cara mais séria do mundo? Não valia nada. Metia-se a encanador e a eletricista quando a mulher do amigo estava sozinha em casa; dava uma de bondoso, levava flores e presentinhos para as mulheres dos amigos, mas só quando estes não estavam em casa. Até que ontem chegou na casa de uma com um brinco de ouro. Mas foi o marido dela que abriu a porta e exigiu receber o presente. Agora ele tá aí desse jeito, mortinho da silva, pela bala que o amigo fez questão que aceitasse”.
“Foi assim mesmo?”. Perguntou um. “Foi. Foi minha própria mulher quem me contou, chorosa a coitadinha. Outro dia ele havia aparecido lá em casa para deixar uma lembrancinha. E ela aceitou”. E começou uma gargalhada que espantou todo mundo. E um a um foi chegando para ouvir a piada.
Percebendo a aglomeração, imediatamente a viúva se encaminhou até o local. Queria saber o que se passava ali para estar aquela algazarra toda. Mas quando chegou encontrou apenas rostos cabisbaixos e faces disfarçadas em tristeza. Ainda assim perguntou o que estava acontecendo e ouviu de um que estavam apenas falando da seriedade e honradez daquele grande homem que era o falecido.
Ao ouvir sobre a seriedade e a honradez, então foi a vez da mulher desandar a gargalhar incontidamente, num frenesi que parecia tomada por estranhezas. Das risadas que dava tanto avermelhava como lacrimejava sem querer, e também deixava escorrer um rio de urina pelas pernas.
As pessoas que olhavam a mulher naquele estado, ainda se derramando em gargalhadas e noutros líquidos, queriam também acompanhá-la na euforia, mas temiam que fossem mal interpretadas e escorraçadas. Mas ao perceberem o mijo escorrendo pelo chão não houve jeito mesmo. Todos se danaram a gracejar de tal forma que o velório mais parecia um salão de piadas.
O morto também queria sorrir. Mas, não se sabe lá porque, não conseguia.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

De amor em amor (Poesia)



De amor em amor


De amor em amor
me fiz solidão
de estar em estar
me fiz desilusão
de paixão em paixão
me fiz escuridão

só agora aprendi
que não alimenta
o demasiado querer
ter fartura à mão
e vazio o coração
com fome e sede
no peito decepção

só agora sei
bastaria um amor
único e verdadeiro
e a este me doar
assim como o mar
faz ao doce veleiro
apontando o cais
onde lhe espera
o amar demais.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 211


Rangel Alves da Costa*


“Talvez um dia...”.
“Ofereça um importado...”.
“Uma joia brilhosa...”.
“Um perfume caríssimo...”.
“Mas por enquanto...”.
“Por enquanto só tenho...”.
“Uma flor do jardim...”.
“Uma miçanga matuta...”.
“Uma fruta de pomar...”.
“Uma cuia de araçá...”.
“Um verso sem rima...”.
“Mas aceite...”.
“Por favor, aceite...”.
“É o que tenho...”.
“É o que posso dar...”.
“E é de coração...”.
“Mas não se preocupe...”.
“Talvez um dia...”.
“Um dia, quem sabe...”.
“Ofereça um passeio distante...”.
“Nova York ou Paris...”.
“Ilhas paradisíacas...”.
“Mares do sul...”.
“Mas por enquanto...”.
“Por enquanto só tenho...”.
“A estrada saindo daqui...”.
“A montanha adiante...”.
“Os canteiros do jardim...”.
“A  estrada do rio velho...”.
“Uma vereda de sol...”.
“Vamos comigo...”.
“Vamos passear...”.
“Os caminhos são doces...”.
“E estaremos juntinhos...”.
“Uma mão na sua mão...”.
“Por isso vamos...”.
“Pois quem sabe um dia...”.
“Eu possa oferecer...”.
“O que você me pedir...”.
“O que você quiser...”.
“O que sonhar e desejar...”.
“Assim como um diamante...”.
“Um palacete encantado...”.
“Uma ilha flutuante...”.
“Uma noite com sol...”.
“E um dia enluarado...”.
“Um cavalo aluado...”.
“Para subir ao paraíso...”.
“Mas tudo um dia...”.
“Um dia por que hoje não posso...”.
“Hoje não tenho nem cheque...”.
“Cartão ou dinheiro...”.
“Não tenho nada...”.
“A não ser o amor...”.
“A não ser o afeto e tanto carinho...”.
“E uma palavra dizendo que ama...”.
“E um corpo querendo abraçar...”.
“É tudo que tenho...”.
“E fico sem nada...”.
“E fico feliz e contente...”.
“Se você aceitar...”.
“Aceite menina, aceite...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

sábado, 30 de março de 2013

AS LÁGRIMAS DAS CARPIDEIRAS (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Ao saber da morte do mais conhecido e difamado mulherengo do lugar, o bondoso Padre Inacinho se danou, com passos difíceis e doloridos nos seus quase oitenta anos, pelos becos do lugar. Precisava conversar com a viúva.
Sua intenção era implorar para que a mulher não deixasse de prantear profundamente o esposo falecido, ainda que o mesmo, pelos atos pecaminosos terrenos, não fosse merecedor nem de uma vela acesa nem de uma incelença. Até o velho sacerdote conhecia histórias suas de arrepiar.
Tinha chegado ao conhecimento do bom pastor que era intenção da viúva despachar o defunto pro cemitério sem ao menos lhe oferecer sentinela. E tudo porque o enrabichado adulterino, contumaz e deslavado, havia batido as botas exatamente no quarto de uma quenga, em cima da cama de uma de suas tantas amantes.
Para a viúva, em comparação aos sofrimentos que havia passado por aquele homem e as vergonhas que também já havia experimentado, chegando mesmo a ser chamada de chifruda e mulher de segundo uso, a morte do desgraçado era um verdadeiro alívio. Por isso mesmo quanto mais cedo despachá-lo para a cidade do pé junto melhor. Ao menos não tinha de suportar ficar olhando aquela cara safada parecendo sorrir de sua viuvez.
Já estava certa de fazer isso quando o velho sacerdote bateu à sua porta para as condolências e para implorar que oferecesse àquela pobre alma uma sentinela decente, um instante de despedida e reflexão sobre aquela inesperada partida. Certamente uma ou outra alma bondosa acorreria até ali para o último adeus.
Diante do padre, a mulher - que nem parecia com mostras de qualquer pesar - recolheu as palavras duras presas na garganta e decidiu ouvi-lo cautelosamente. Este, coitado, que se mostrava deveras sentido com o funesto acontecimento, explicou-lhe que permitir a sentinela seria um ato cristão distante de qualquer mágoa que ela pudesse ainda estar nutrindo por ele.
E disse ainda que se ela quisesse se mostrar impassível, não chorar nem uma lágrima, não soluçar nenhum pranto pelo falecido, que fizesse assim mesmo, pois não haveria problema algum diante dos olhos do Senhor. Este compreenderia bem os seus motivos.
E afirmou em seguida que ela não se preocupasse, pois iria enviar até ali algumas mulheres para pranteá-lo efusivamente, como um mar de lágrimas para uma pessoa tão importante na terra e que tão cedo se ia. Ainda que o mesmo não passasse de um desacreditado pecador. Por fim, citou a Bíblia, no Livro de Jeremias, 9:17, confirmando a importância das carpideiras no pranteamento do luto alheio:
 “Apressem-se e levantem sobre nós o seu lamento, para que os nossos olhos se desfaçam em lágrimas, e as nossas pálpebras destilem água”. Eis as palavras bíblicas, afirmando que o sentimento verdadeiro pode ser despertado através da falsa lágrima do outro.
Com efeito, carpideiras são mulheres contratadas especialmente para chorar os defuntos em velórios, sentinelas ou outro nome que se dê à despedida. Em troca de pagamento em dinheiro, as profissionais chegam aos locais e começam a prantear largamente o defunto, como se estivessem realmente chorando um parente morto. Afirmam que tal atitude é capaz de despertar nas pessoas os sentimentos pela perda.
Por outro lado, tais lágrimas artificiais e prantos disfarçados servem também para que familiares do falecido, que verdadeiramente nenhum sentimento guardam pelo acontecido, lavem suas mãos e repassem para outras pessoas uma ideia do quanto era querido. Quer dizer, ao menos para os outros, muitas lágrimas de dor foram derramadas.
Contratadas pelo padre, verdade é que mal o defunto foi colocado na sala e as carpideiras chegaram. Poucas pessoas estavam na casa, mas bastou que as falsas enlutadas chegassem para que um barulho descomunal tomasse conta do quarteirão. Choro alto, choro baixo, choro de todo tipo; lágrimas escorrendo de molhar a sala; gestos de dor que chegavam aos espasmos e aos delírios. Aflição, a maior das aflições!
Mas de repente, ia uma carpideira, afastava o negro véu e tascava um beijo na boca do defunto; depois outra ia e só faltava subir em cima do corpo morto; e mais outra acariciava o homem e soltava palavras de amor, dizendo, dentre outras coisas impublicáveis, que não podia mais viver sem os seus beijos, sem as noites de amor, sem as safadezas que ele era mestre em praticar.
Desconfiada, olhando tudo dum canto, quando o chororô já havia chegado às raias das explícitas declarações de amor, a viúva se dirigiu até junto delas e arrebanhou o véu que cobria o rosto de cada uma. E lá estavam as quengas do falecido, as amantes desavergonhadas do homem. E nesse instante, quando já não podiam esconder mais nada, começaram a implorar para se despedir do gostosinho.
Saíram de lá escorraçadas, debaixo de cabo de vassoura e de taca de couro cru. E o defunto, quase à meia-noite, foi devidamente expulso de casa. E mandado pra onde merecia ir e não sair nunca mais, segundo a viúva, desde então autoproclamada solteira e completamente disponível.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Amor eterno (Poesia)



Amor eterno


Eternidade
a idade
a nostalgia
daquele dia
até o além
do que se tem
da aurora
até agora
até um fim
sem fim
pois amor
abrasador
eterna chama
se tanto ama
se tanto sente
ter a semente
que nasceu
e floresceu
fecundação
no coração.
  

Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 210


Rangel Alves da Costa*


“Se a voz não quer falar...”.
“Deixai o silêncio na voz...”.
“Deixai que a palavra...”.
“Recue ao pensamento...”.
“Este expresse o que desejar...”.
“Ainda em silêncio...”.
“Ou num canto de amor...”.
“Num verso ao coração...”.
“Num grito desesperado...”.
“Ou num sopro de palavra...”.
“Dizendo-te amo...”.
“Ou mirando a imagem...”.
“Desse mesmo bem querer...”.
“Que será também expressão...”.
“Tão viva quanto todo dizer...”.
“Se o passo quer seguir...”.
“Colocai o pé na estrada...”.
“Que abra a porta e o portão...”.
“Que escancare a cancela...”.
“Deixando a vontade de seguir...”.
“Ser a voz da liberdade...”.
“O desejo de seguir, de caminhar...”.
“Pisar na terra adiante...”.
“Vencer curvas e distâncias...”.
“Vencer os espinhos afiados...”.
“Vencer as pedras cortantes...”.
“Para chegar a qualquer lugar...”.
“Pois o partir, o seguir...”.
“Não significa ter um rumo...”.
“Ter no bolso um endereço...”.
“Ter uma porta a bater...”.
“Tantas vezes o destino é incerto...”.
“Com a certeza apenas...”.
“De chegar a qualquer lugar...”.
“E por ser assim...”.
“A viagem se faz mais necessária...”.
“Pois compromissada apenas...”.
“Com um encontro qualquer...”.
“Com uma lição...”.
“Com uma experiência...”.
“Com a coragem de ter seguido...”.
“E tanto aprendido...”.
“Do mesmo modo...”.
“Se o coração quer amar...”.
“Que ouça a voz do coração...”.
“Que respeite o seu coração...”.
“Mas tendo sempre o cuidado...”.
“De tratá-lo como criança...”.
“Como infante num mundo desconhecido...”.
“Que precisa ter cuidado...”.
“Como perigoso desconhecido...”.
“Dizendo que o amor...”.
“Ainda que seja maravilhoso...”.
“Também é um labirinto...”.
“Onde possa estar escondido...”.
“Um perigoso lobo mau...”.
“Ou um bicho-papão...”.
“Que quem o conhece...”.
“O chama de paixão...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

sexta-feira, 29 de março de 2013

SOZINHA (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Levantou cedinho, varreu a casa e o telheiro, passou gadanho na malhada para recolher ao menos metade das folhas mortas do outono. Depois tirou leite das vacas, separando um tanto para fazer um doce, catou no quintal uma galinha gorda para fazer um cozido ao molho pardo e em seguida foi escolhendo na dispensa outros ingredientes.
Colocou o doce no fogo de lenha, sangrou a galinha para o prato especial, juntou todos os temperos e pertences numa panela grande e cuidou de fazer brasa no fogão de barro da cozinha. O passo seguinte foi juntar os ingredientes para o macarrão, o arroz e o feijão, bem como salada de alface com rodelas de ovos.
Descavou dos cantos uma velha garrafa de aguardente e um vinho de jurubeba, coisas que sabia bem guardadas para ocasiões especiais como aquela. Abriu a antiga cristaleira, deixou uns seis copos reluzindo e colocou sobre uma banqueta talhada artesanalmente, dessas que nem os bons carpinteiros fazem mais.
Em seguida forrou a velha mesa de madeira envernizada com uma toalha bordada à mão, ajeitou um jarro com flores vistosas de plástico e enfim sorriu pelo trabalho feito. Realmente, tudo estava na mais perfeita ordem, cuidado e bem cuidado, com o esmero de quem vai receber convidados muitos queridos e importantes.
Mas para quem a mulher tanto cozinhava, fritava, mexia, ajeitava, varria, forrava, lavava, cuidava? Quais as pessoas especiais que chegariam ali para a visita tão esperada e que seria tão festejada? Quem mereceria daquela mulher tanto esforço, verdadeiro sacrifício, para oferecer o que de melhor ali pudesse existir?
Ninguém. Isso mesmo. Ninguém. Absolutamente ninguém. Aquela mulher, uma solteira e solitária senhora na beirada dos cinquenta anos, mas já parecendo de setenta pelo amargor dos dias e das relembranças de tudo não acontecido, trazia para si aquele trabalho todo sem estar esperando visita alguma.
Não esperava, pois nunca chegava ninguém ali naqueles ermos solitários rincões adentro, nenhuma visita batia à sua porta para uma palavra ou proseado qualquer, mas tinha a máxima e absoluta certeza que um dia sua casa seria invadida por pessoas, por palavras, por olhares, por amizades, por ávidos por um prato e um copo acolhedor.
Filha única, desde muito já sem a presença dos pais, morando nas distâncias dos cafundós, sem ter amizades ou relacionamentos com pessoas dos arredores, vivia os seus dias numa indescritível e dolorosa solidão. Conversava apenas com os santos do seu oratório, os anjos voando ao redor, com a ventania do entardecer.
Para se ter uma ideia, raríssimas vezes tinha colocado os pés na cidade. Sorvete era bicho, butique também, e talvez se assustasse com os modismos da juventude e até da velhice querendo ser jovem demais. Assim, era ausente da cidade e dela praticamente nada conhecia. O que chegava ali era por encomenda, pela mão dos outros.
Inigualável trabalhadora, pois cuidando da criação, do plantio e da colheita, além do cuidado na comercialização, ali mesmo, dos queijos, das compotas de doces e dos bolos caseiros que fazia, amanhecia e adormecia nessa lide sem brecha para outro modo de viver. Pensava em homem sim, queria um ali ao seu lado. Mas bastava aquelas marcas no coração deixadas por um para temer os outros, e também outros sofrimentos.
Talvez fosse essa terrível solidão que a tornava com espasmos de verdadeira insanidade. Ora, arrumar a casa, preparar iguarias e deixar  tudo nos conformes para receber convidados inexistentes, que jamais apareceriam ali, certamente que não era coisa normal de se fazer com tanta convicção e prazer. Mas aquela não era a primeira vez não.
Certa feita colheu flores do campo durante três dias seguidos para enfeitar a casa para um grande baile ao som de uma vitrola e vinis empoeirados. Noutra ocasião se colocou diante do espelho por duas horas seguidas para depois abrir a janela e ouvir serenata recebendo perfumosas flores. De ninguém.
Coitada da mulher, da solitária solteirona. De vez em quando ficava sentada no meio do tempo, debaixo do negrume da noite, sob a luz do luar, esperando o cavaleiro amoroso descer numa estrela candente. Mas nada do que sonhava, planejava ou desejava, jamais aconteceu.
E sempre acontecia assim. Tudo pronto, ajeitado, devidamente servido, depois ela seguia para sua velha cadeira de balanço, do lado de fora, rente à porta. E quem chegasse, se acaso chegasse, sempre a encontraria de lenço enxugando lágrimas, chorando. Esperando a solidão do dia seguinte. E do seguinte.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Vela e cais (Poesia)



Vela e cais


Preciso tanto viajar
quero amanhã partir
jogar a vela ao mar
ao coração seguir
singrar assim é sonhar
navegar azul é sentir
outro cais a esperar
um viajante a sorrir
e quando desembarcar
o meu mundo dividir
o que ficou no mar
e o outro a construir
o eterno que é amar

já é entardecer
venha para o cais
meu porto é você
um querer demais.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 209


Rangel Alves da Costa*


“Nessa estrada canto...”.
“Nessa estrada grito...”.
“Nessa estrada asas...”.
“Nessa estrada passo...”.
“Está o meu mundo...”.
“Está o meu sonho...”.
“Está o que desejo...”.
“Porque tenho pés alados...”.
“Tenho asas nos meus braços...”.
“Tenho nuvem no meu olhar...”.
“Por isso posso partir...”.
“Posso viajar...”.
“Ser Ícaro sem medo do sol...”.
“Ser Ícaro de asas de aço...”.
“Ser Ícaro sem medo de cair...”.
“Sou passarinho...”.
“Sou Fernão Capelo...”.
“Sou gaivota...”.
“Sou revoada...”.
“E basta abrir a janela...”.
“Lançar o olhar à distância...”.
“Mirar o horizonte...”.
“E subir bem alto...”.
“Cruzar montanhas...”.
“Ir acima dos arvoredos...”.
“Ir de norte a sul...”.
“E muito mais distante...”.
“Até encontrar a magia...”.
“De um mundo novo mundo...”.
“De um mundo possível...”.
“Onde o ser tenha liberdade...”.
“Tenha liberdade de voar...”.
“De fazer revoada...”.
“De pousar onde quiser...”.
“De construir seu ninho...”.
“E cantar quando quiser...”.
“De onde quiser...”.
“Sem que o sol do progresso...”.
“Sem que o sal da técnica...”.
“Sem que a acidez do desenvolvimento...”.
“Possam derreter as asas do sonho...”.
“Possam fenecer o dom da liberdade...”.
“Em todos que simplesmente desejem...”.
“Ter suas asas...”.
“Ter seu horizonte...”.
“E o seu passo pelo ar...”.
“Abrindo a porta da nuvem...”.
“Abrindo a porta do céu...”.
“Abrindo qualquer janela...”.
“Pois o homem precisa dessa chave...”.
“Ter às mãos essa chave...”.
“Do voo...”.
“Do sonho...”.
“Da liberdade...”.
“De chegar e partir...”.
“De ficar e partir...”.
“Porque é dádiva divina...”.
“Ele voar bem alto...”.
“Para saber pisar no seu chão”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 28 de março de 2013

OS DOIDOS DO FIM DO MUNDO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Inquestionavelmente, a insanidade é o estado psicológico mais oportunista que há. Mesmo não se comprovando a loucura, a demência, a doidice, a maluquice ou coisa que o valha, ainda assim a insanidade será utilizada como justificativa para quase tudo. Que seja doidice mesmo ou gesto de esperteza.
Os sintomas e as atitudes próprias dos insanos são mais que conhecidos. Atirar pedras é apenas um gesto. E dos mais sublimes. Fazer careta e dar a língua são quase como cordiais cumprimentos. Ademais, o ser humano dito normal vive fazendo tantas maluquices que é até difícil discernir as atitudes de um doido varrido de um estouvado social.
Contudo, pautar-se pelos delírios, ir de encontro à lógica do mundo e daí em diante passar a viver praticamente fora da realidade – por causa da outra imaginária realidade -, já pode ser visto como sintomas de outro tipo de insanidade. E esta pode ser descrita como maluquice intencionalmente provocada. Ou doidice premeditada.
Contudo, o problema é que este tipo de insanidade, onde o indivíduo parece agir para ser reconhecido como louco, acaba realmente provocando alienação. Quer dizer, de tanto provocar situações insanas, o sujeito acaba tendo a insanidade como normalidade. Tudo continua normal para o mesmo, age como estivesse com juízo perfeito. Mas outras pessoas já não o veem assim.
Nos Estados Unidos existem muitos malucos assim. De vez em quando os canais pagos mostram reportagens com pessoas que outra coisa não fazem senão se preparar para o fim do mundo. Então se danam a estocar alimentos liofilizados, enchem a casa de armas e medicamentos, constroem abrigos subterrâneos, armazenam tudo que supostamente possa deixá-los em segurança assim que desponte a catástrofe.
E cada maluco desses se prepara de um jeito diferente para o fim do mundo. E isto porque o tal fim, segundo imagina, não virá, por exemplo, como uma catástrofe apocalíptica, mas sim pela ação humana. Então afirma que o mundo certamente acabará, e dentro de pouco tempo, por uma guerra nuclear, pela escassez de alimentação ou de água no planeta ou pelo colapso total das economias mundiais, dentre outros palpites sinistros.
Como afirmado, o problema é que uma suposição de fim do mundo acaba tomando totalmente a vida dessas pessoas, ou desses malucos. De repente começam a acreditar que o fim está próximo mesmo, que uma guerra nuclear ou uma epidemia incontrolável vai devastar tudo. E para se salvar somente preparando antecipadamente seu refúgio. Nada mais fazem do que deixar tudo preparado para o inevitável momento.
Verdade é que mentalizam tanta certeza que o mundo está chegando ao fim que vão realmente enlouquecendo. E morrem loucos e sem o mundo acabar. Muitos acabam praticando suicídio - até mesmo coletivo, incentivados que são por alguns líderes espirituais megalomaníacos - diante da impossibilidade de se confirmar o tão realisticamente anunciado.
O que surge como pensamento, medo ou mera sugestão, de repente vai se firmando de tal modo na mente dessas pessoas que não há mais como voltar atrás, desacreditar. E uma vez a crença se tornando verdade absoluta, então nada mais conseguirá demover das mentes as situação que chamaram para si como verdadeira. Já estarão completamente loucos.
E por louco será tido todo aquele que ousar dizer que a história de fim do mundo não passa de maluquice. Para se ter uma ideia, em dezembro do ano passado, quando corria solta a história de que o mundo acabaria no dia 21, milhares de pessoas tidas como absolutamente normais procuraram abrigos, centros espirituais, locais em meio à natureza, com a certeza de que a profecia maia realmente aconteceria.
Mas o mundo não acabou. Ao menos ainda, ao menos para os que continuam vivos. E o que dizem a respeito as pessoas que se desfizeram de todos os bens, que doaram seus pertences ou simplesmente renegaram todos as suas conquistas para alcançarem a passagem de modo puro e liberto?
Afirmam simplesmente que o fim do mundo apenas foi adiado, mas que a mesma profecia logo acontecerá. E fazem isto porque internalizaram de tal modo a ideia de fim, de destruição, de ruína, que outra coisa já não fazem na vida senão desejar que algo catastrófico realmente aconteça.
Se tais doidos tivessem o dom da profecia logo perceberiam que o mundo não precisa de um evento extraordinário e repentino para chegar ao fim. Todo bom profeta sabe que o mundo já está acabando aos poucos. Primeiro morreram as boas virtudes humanas, depois sucumbiram as esperanças de fraternidade. E assim, passo a passo, o mundo se finda.

  
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Muito além do azul (Poesia)



Muito além do azul


Ah, tão vasto mundo
tão longe e tão profundo
faz o meu pássaro voar
para enfim te alcançar

quero asas de puro metal
força igual a uma revoada
voar além da estrela matinal
o céu como a bela estrada

e além muito além do azul
ir além de qualquer estrada
seguir o norte e alcançar o sul
e abraçar minha doce amada.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 208


Rangel Alves da Costa*


“Nascer...”.
“Para viver...”.
“Amar...”.
“Para sentir...”.
“Crer...”.
“Para temer...”.
“Perdoar...”.
“Para humanizar...”.
“Plantar...”.
“Para colher...”.
“Pedir...”.
“Para obter...”.
“Entregar...”.
“Para receber...”.
“Pensar...”.
“Para comedir...”.
“Gritar...”.
“Para ecoar...”.
“Viajar...”.
“Para conhecer...”.
“Lançar...”.
“Para alcançar...”.
“Sorrir...”.
“Para alegrar...”.
“Procurar...”.
“Para encontrar...”.
“Doar...”.
“Para compartilhar...”.
“Acolher...”.
“Para ajudar...”.
“Lutar...”.
“Para conquistar...”.
“Caminhar...”.
“Para chegar...”.
“Abrir...”.
“Para passar...”.
“Sonhar...”.
“Para transcender...”.
“Acordar...”.
“Para realizar...”.
“Falar...”.
“Para dialogar...”.
“Silenciar...”.
“Para refletir...”.
“Cultivar...”.
“Para ter...”.
“Respeitar...”.
“Para valorizar...”.
“Deitar...”.
“Para adormecer...”.
“Despir...”.
“Para reconhecer...”.
“Orar...”.
“Para redimir...”.
“Brincar...”.
“Para confortar...”.
“Aceitar...”.
“Para pactuar...”.
“Chorar...”.
“Para sentir...”.
“Acenar...”.
“Para retornar...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 27 de março de 2013

AS PROFECIAS DE NOSTROPOVO (Crônica)


Rangel Alves da Costa*


Será que povo tem a capacidade de vidência, pode adivinhar o futuro, possui o dom profético de predizer vindouros acontecimentos? Ao se admitir, não será exagero afirmar que as profecias do povo possuem mais força que todas as Centúrias nascidas de Nostradamus.
Do contrário, ao não se confirmar, será forçoso dizer que estes adivinhos do mundo novo dependem da sorte e do acaso nas suas ações para almejar alguma significativa ocorrência futura. E por isso mesmo continuam sempre tentando que algo realmente proveitoso possa acontecer nas trilhas dos seus destinos.
Contudo, não seria errôneo asseverar que o povo está mais para aprendiz de adivinho, mero iniciante nos meandros da profecia, do que mesmo possuidor da capacidade de antever acontecimentos. E olhe que tem poderes suficientes para, sobre determinados aspectos da vida, até impor o que possa acontecer.
Na política, na vida em sociedade, nos relacionamentos pessoais e com os poderes, dentre outros aspectos, certamente que pode, a qualquer tempo, profetizar como tudo será no futuro. Basta que a ação de agora tenha a força suficiente para interferir nos destinos e proporcionar a feição desejada de amanhã. E não é um bicho de sete cabeças.
A força e o poder do voto, com suas escolhas e consequências, servem muito bem como demonstração preliminar dessa força profetizadora existente no povo. Não precisa ser bruxo, mago, vidente, profeta ou adivinho para saber que nada de bom poderá se esperar após uma má escolha. As pedras jogadas não apontarão melhor sorte futura se as mesmas já estiverem maculadas pela imprestabilidade.
Ponderar na hora da escolha, colocar na balança as virtudes dos candidatos, não fazer da paixão partidária a única opção ou não cegar diante dos favorecimentos escusos que vão surgindo, já servirá como um grande passo para não sofrer grandes arrependimentos posteriores. Dessa forma, ainda que o amanhã não possa ser moldado agora, ao menos não surgirá tão distorcido e aterrador diante da omissão.
Como afirmado, há, pois, como predizer o futuro político a partir da escolha de candidatos. Aquele cujo histórico depõe contra toda sorte, dificilmente agirá diferente. É aquela história do pau que nasce torto. Assim, não se deve esperar nenhuma mudança ou transformação naquele costumeiramente atrelado a práticas escusas, a envolvimento em esquemas de corrupção, a ter o seu nome envolvido em escândalos de toda ordem.
Contudo, não precisa ser ficha-suja para ser imprestável enquanto possível candidato (acaso as liminares e decisões esdrúxulas permitam) ou que seu currículo seja reconhecidamente enlameado. Outros fatores devem ser considerados. Aquele que nada faz também nada produz, não progride, não inova, não transforma. Não serve nem à política nem como político. A inoperância é inimiga da transformação; o inerte não justifica a confiança do povo.
Desse modo, ao não dar oportunidade a candidato com tais características, o povo já estará prevendo o que deseja futuramente. Por outro lado, dono do voto, da própria sorte e do destino político, tendo às mãos o poder de escolha, estará maldizendo o próprio futuro acaso insista no erro, ou desacerto perante a realidade tão conhecida. E em situações assim não precisa nem fajuta adivinhação. Será de pior a pior.
Assim, na política, as previsões não dependem do futuro em si, mas do momento, da hora de escolher aqueles que mais tarde possam trazer benefícios ou simplesmente tomar assento na cadeira da corrupção ou da apatia. Ainda que a luta seja titânica para fugir das influências e das ofertas, o que se vislumbra é a capacidade que cada um possui de escolher o melhor para o seu amanhã.
Mas não só na política o ser humano poderá fazer previsões. Em quase todos os quadrantes da vida existe tal possibilidade. Optar pelo caminho das drogas é certeza de encontrar labirintos tenebrosos; acostumar a ilicitudes é semear condenações; fazer da existência um palco de experiências ilimitadas é ter convicção que um dia a corda arrebentará.
Por outro lado, em cada um também poder estar o grande e verdadeiro profeta. E o que realmente profetiza tem o dom de ver o futuro na semente, no grão, naquilo que planta hoje. Ainda que no seu campo nasça joio em meio ao trigal, a certeza que isto poderia acontecer já o encontrará prevenido para ceifar a erva daninha.
E assim deve ser em todas as dimensões da vida. Sempre será preciso destruir o nocivo para que o útil e proveitoso floresça cada vez mais. E apenas com a profecia nascida da realidade presente.
  

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Perfume de lua, batom de estrela... (Poesia)



Perfume de lua, batom de estrela...


Acordo sempre mais apaixonado
trazendo as marcas da noite passada
feito anjo avesso ainda embriagado
que bebeu o mel da colmeia amada

no corpo ainda as marcas do amor
perfume de lua, batom de estrela
pela boca e lábio mais de um sabor
ceia dadivosa dessa noite ao tê-la

que presente divino acordar assim
esperançoso seja o dia um açoite
debaixo da lua ela esperar por mim
jardim perfumado no leito da noite.

  
Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 207


Rangel Alves da Costa*


“A vida não exige tanto...”.
“O viver não impõe demasiado sacrifício...”.
“Requer apenas que o ser humano...”.
“Siga a normalidade do seu percurso...”.
“Sem ir de encontro às forças da natureza...”.
“Sem desafiar o poder criador...”.
“Sem querer ser divindade...”.
“Sem pensar que é um deus...”.
“As lições já foram escritas...”.
“Os ensinamentos ensinam a viver...”.
“E nada que exija sacrifício humano...”.
“Nada que descaracterize o homem...”.
“Coisas simples, talvez...”.
“Mas que insistem em desobedecer...”.
“Não matar...”.
“Não ferir...”.
“Não pecar...”.
“Não violar a honra alheia...”.
“Não furtar nem roubar...”.
“Não atentar contra a dignidade de outrem...”.
“Não escravizar o irmão...”.
“Não semear a discórdia...”.
“Não fazer da guerra uma simples opção...”.
“Não devastar a natureza...”.
“Não destruir a vida existente...”.
“Não violar o jardim inocente...”.
“Não ver sempre o próximo como inimigo...”.
“Não omitir-se diante da necessidade...”.
“Não semear palavras de tempestade...”.
“Não ser falso, injusto e ignorante...”.
“Porque a vida observa tudo...”.
“Porque a vida não esquece nada...”.
“Porque o bem terá o bem como troco...”.
“Porque o mal será o mal em quem o pratica...”.
“Porque a paz não chega em curvas...”.
“Porque a felicidade não vem em rodeios...”.
“Porque o amor não tardará a chegar...”.
“Perante aqueles que não se omitem...”.
“A ler e praticar no Livro da Vida...”.
“Saber que o próximo é um igual...”.
“Saber respeitar o que é diferente...”.
“Compreender todas as diferenças...”.
“Ser outro continuando o mesmo...”.
“Porque a porta fechada...”.
“Não precisa de chaves aos que precisam abri-la...”.
“E levam consigo a certeza de encontrar...”.
“Porque o momento difícil...”.
“Será vencido sem dificuldade...”.
“Pela perseverança existente no bom coração...”.
“Porque o desânimo e a aflição...”.
“Não têm o dom de sucumbir...”.
“Aqueles que fazem da dor um caminho de renascimento...”.
“Portanto apenas a vida...”.
“E nada difícil de ser vivida...”.
“Apenas seguir as lições...”.
“E ter o que merecer...”.
“Pois a dádiva de cada um...”.
“Será na medida de sua ação...”.
“Um gesto simples...”.
“Como um perdão...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com