SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 3 de outubro de 2021

ÚLTIMAS NOTÍCIAS NA TERRA BRASILIS


*Rangel Alves da Costa


Mesmo que poucos percebam, o mundo segue em cega obediência aos preceitos do Eclesiastes, o livro bíblico onde se tem que depois da chuva vem o sol, depois da tristeza vem o sorriso, e por aí vai.

Está claro em Eclesiastes que a inversão das coisas, dos fenômenos e das realidades, é inevitável. Nada permanece da mesma forma além do tempo permitido. Por isso que a noite chega após o dia, a morte chega após a vida.

Ao menos se espera que assim seja. Contudo, inegável que a vida, o mundo, a existência, parece se demorando demais no oposto negativo do livro bíblico referido, vez que entra dia e sai dia e as angústias tomando o lugar das possíveis felicidades.

Como uma estação que inevitavelmente chega, já era tempo de os horizontes da vida humana estarem abertos para a esperança, para o conforto da alma, até para o sorriso. Mas não, pois as notícias que surgem são sempre de desalentos e incertezas.

A realidade brasileira atual é exemplificação maior disso. Parece que a felicidade do povo (ao menos da maior parcela da população) deixou de existir, sumiu de vez. E o mais agravante é que a desesperadora situação, ao invés de se reverter em dias melhores, vai sendo acrescida de mais tormentos.

Fila para implorar ossos, famintos recolhendo restos nos lixos da burguesia, infinitas mãos estendidas pelas calçadas, a miséria absoluta onde antes havia café e pão. Remédio caro, a conta da energia chegando com valores absurdos, gás de cozinha e gasolina com preços difíceis de serem suportados.

Manchetes diárias dando conta das rachadinhas, das corrupções, dos abusos de poder, do balcão de negócios comandados pela primeira-dama, das atitudes tirânicas e animalescas do presidente, das milícias comandadas através do poder político, dos inquéritos enlameados e dos defensores do indefensável.

Desemprego, miséria e fome. Eis a realidade de um país cujo crescimento se resume exatamente em desemprego, miséria e fome. Desenvolveu a carência, o negacionismo da vida humana, a humilhação e a sordidez, mas a esperança não. O amanhã é apenas uma consequência do nada do ontem e do hoje.

Nada de pessimismo. Na verdade não cabe pessimismo, mas apenas refletir a realidade. Alguns certamente dirão que está tudo bem, às mil maravilhas, que nunca se viu tanto crescimento como no momento atual. Um discurso típico de política mentirosa. Somente a beleza do tapete é visível, pois o que se esconde logo abaixo é de enojar.

Em tais aspectos, o Eclesiastes está demorando demais a surtir efeito na terra brasilis. Ora, onde se proclamava o fim da miséria, agora se avista a miséria absoluta, a pobreza desenfreada, as mortes por falta de pão. Fogões de lenha para panelas vazias, mão estendida esperando que outro pobre venha em socorro.

O Brasil nunca passou por situação tão desesperadora. Desse modo, tem-se como ilusório, fantasioso e mentiroso, todo argumento afirmando que o país está em franca recuperação econômica. Onde mesmo? A carestia pontua por todo lugar, a cada novo dia um novo preço para o mesmo produto. Até quando?

Daí que não são nada animadoras as últimas notícias na terra brasilis. Neste desvão de vida, o que restar de vida daqui em diante já se terá como sorte grande. E como dito, o pior é que não se vê nenhuma esperança de melhoria.

Para exemplificar, o presidente exonerou o anterior presidente da Petrobras sob a alegação de que não aceitava as políticas praticadas no aumento dos preços dos combustíveis. Colocou outro, mas tudo continuou do mesmo jeito, com aumentos quase diários.

Então o presidente disse que não pode fazer mais nada quanto a isso, quanto a evitar os aumentos. Quer dizer, deixou a população ao deus dará. Como entregue às baratas, ou à manipulação dos mercados, todos os setores do País. E, conforme o presidente, nada poderá ser feito para mudar tal situação.

Em síntese, que morra o povo! 

Escritor


Lá no meu sertão...


Avistando horizontes sertanejos



Mulher de barro (Poesia)


Mulher de barro

 
Em minha solidão
fui juntando barro
e fiz uma mulher
para ser só minha
 
um amor de visgo
um corpo moreno
um beijo grudento
na mulher de barro
 
na argila do tempo
fui apaixonando
e bebo da moringa
e me sacio do pote
 
da mulher de barro.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – filho das águas


*Rangel Alves da Costa


Há um silêncio estranho nele. Quase sem palavra, seus olhos passeiam desde a curva do rio aos caminhos molhados de mais adiante. Avista os montes e as serras, as casas do outro lado e os bichos que passeiam nas margens. Parece morar ali, no rio, na beira do rio. Sua casa parece ser o seu barco. E é. Sua moradia parece ser também o rio. E é. Do rio-casa tudo conhece. Transborda de contentamento com as águas muitas, com as enchentes. Entristece e quase definha quando sua casa-rio parece também definhar, numa magrez de causar dó e sofrimento. Não usa carranca na sua proa. Não precisa. As estranhezas do rio não assustam mais. Tornou-se amigo do Nego-d’água, da pedra que fala e da correnteza que assovia.  Não é de muita leitura, mas todo dia lê um imenso livro. Quando não tem nenhum visitante que queira fazer um passeio pelos arredores, então abre o seu imenso e vai folheando cada escrito de vida. Seu livro é o rio, o Livro do Rio, sua grande leitura é feita no Livro das Águas, mas estranhamente encontra o mesmo escrito a cada página que vai passando: “Sou o Francisco, sou o Rio. Sou o Velho, o Velho Chico do Rio. Sou aquele que vem e que passa, sou aquele que sofre por não mais poder alimentar o filho do rio como antigamente fazia. Sou o Pai desse povo e dessa ribeira-vida, sou o Pai e filho de um Pai Maior que me acalanta e diz: Seu filho padece, mas não findará. O rio padece, mas não findará...”. Pescador, um pescador do São Francisco. Ou simplesmente canoeiro, vez que as hidrelétricas espantaram os peixes do rio, e agora ele apenas leva um e outro a passeio pelo que resta do leito. Não importa o seu nome. Um filho das águas. Apenas.

Escritor


segunda-feira, 16 de agosto de 2021

OS MAIS VELHOS ME DIZIAM...


*Rangel Alves da Costa

 

Os mais velhos me diziam... Oh quanta coisa maravilhosa os mais velhos me diziam...

E quanta coisa eu ainda quero ouvir antes que me torne apenas um velho esperando que alguém chegue para ouvir minhas memórias distantes.

Eu sempre gostei das palavras antigas, das vozes envelhecidas, dos dizeres de baús e relembranças carcomidas de tempo.

Memórias cheias de teias de aranha, proseados desgastados de estrada, assuntos empoeirados e ditos enferrujados.

Olhares que me miram como se o cansaço das vistas pouco reconhecessem o que sou e o que faço ali.

E descobri que quase nada sou, mas tudo passo a ser quando uma pergunta desponta: Você é filho de Alcino?

Quando respondo que sou, então tudo muda. Então a colcha de retalhos é aberta e os pedaços costurados surgem em cores maravilhosas.

E então os causos e causos retomam seu lugar no mundo para dizer do passado, de um tempo muito diferente daquele vivenciado.

“Já fui vaqueiro, mas de um tempo de cavalo tangendo boiada, e de passar três dias no meio do mato caçando uma rês teimosa...”.

“Já comi olho de macambira e bebi da água juntada em folha grande no meio do mato...”.

“Já fui perguntado por volante se eu ajudava cangaceiro, e então eu tinha que mentir. Dizia que não ajudava, quando ajudava sim...”.

“Já avistei cobra já de bote pronto na beira da estrada, então me lembrei de uma reza forte que minha avó me ensinou e fiz a bicha ficar parada lá feito pedra...”.

“Cavei cacimba e dividi com o bicho a mesma caneca. Sede não se mata com água de cacimba, mas a gente vai enganando a morte pela precisão de beber...”.

“Dizem que café quente com chuvisco num dá certo não, pois estupora. Mas dá certo sim, bastando se benzer depois de abrir a porta pra sair...”.

“É verdade essa história de que caipora castiga quem entra no mato sem levar pedaço de fumo. Eu nunca fui castigado não, pois com essas coisas eu nunca brinquei e em toda caçada que fazia eu levava o desejo da mata. Mas conheço gente que não só tomou relepada sem saber de quem apanhava como ficou sem saber tomar o caminho de casa...”.

“No meio do mato ninguém nunca tá sozinho não. Sempre tem um olho desconhecido vigiando cada passo que dá...”.

“Certa vez, dei uma relepada num lobisomem e no outro avistei a mesma relepada no ombro de Totoinho Torquato. O lobisomem era ele...”.

E assim vou ouvindo histórias, causos e proseados, e assim vou enchendo meu embornal desses frutos cultivados nos doces campos do tempo.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Em Curralinho, Poço Redondo, belo sertão...







A menina afegã (Poesia)


A menina afegã


Havia um espelho
na casa da menina afegã
havia um sorriso
no rosto da menina afegã
havia ruas e praças
nos passos da menina afegã
e ela sorria e brincava
caminhava e sonhava
como toda menina faz
 
e de repente o medo
o espelho foi quebrado
o véu negro cobriu o seu rosto
as portas foram fechadas
e as ruas ficaram desertas
para os seus passos e sonhos
para suas alegrias e esperanças
e já não era mais menina
era apenas a dor e a aflição.

Rangel Alves da Costa



Palavra Solta – velhos quintais


*Rangel Alves da Costa

 

Dona Senhora abria a porta do fundo da casa e apertava os olhos em direção às nuvens. Precisava saber se vinha tempo chuvoso e logo retirar as roupas do varal. Seu Quinzé se apressava pra ajeitar um canto de cerca aberto pela meninada. Quase toda manhã era assim, pois a gurizada sempre encontrava um jeito de ir afanar as frutas maduras caídas, ou mesmo subir nos mamoeiros e goiabeiras. A mocinha Zuzu já não sabia o que fazer com suas calcinhas lavadas. Acaso estendesse no varal, era absoluta certeza de sumirem de repente, como se algum ladrão de calcinhas vivesse de olho no seu quintal. Passou a estender suas roupas íntimas na portada da janela, mas foi pior. Rosaflor, um desmunhecado do lugar, foi pego com a mão na massa enquanto tentava furtar uma vermelha com renda. O Velho Sirineu tinha no seu quintal um verdadeiro amigo. Era nele, sentado num tamborete debaixo da goiabeira, que acendia seu cigarro de palha e se danava a conversar sozinho com suas saudades.  Um dia, a filha Jurema perguntou-lhe com quem tanto conversava, e logo veio a resposta: “Com sua mãe!”. Era viúvo já desde mais de dez anos. Os quintais eram assim, um outro mundo dentro do mundo-cidade. Hoje não, pois atualmente quase não existem mais quintais, apenas muros altos e muros mais baixos. Ao invés da natureza ou dos tufos de mato adiante, os olhos só avistam cimento e pontas de pregos nas suas alturas. Noutros tempos, contudo, os quintais eram como espaços sagrados, mágicos, aconchegantes. Abrir a porta do fundo e vivenciar o mundo do quintal era como se reencontrar abrindo velhos baús. Era como se deparar com as nostálgicas velharias, com pedaços do passado, com a história familiar ali presente. Nos quintais a síntese de tudo. A pequena horta (tomate miúdo, pimenta, coentro), o cantinho de plantas medicinais (boldo, hortelã, mastruço e muito mais), as árvores frutíferas, o velho banco de assentada nas tardes de sombreado e nas noites de lua grande, o tanque cimentado de lavar roupas, jarros e caqueiros com suas flores bebendo água de cuia. Num cantinho, as pontas de vaca para o menino brincar de fazendeiro. Mas talvez sejam os varais que melhor traduzam a singeleza daqueles quintais. As roupas lavadas e estendidas. As mãos catando pregadores ou amarrando anáguas e ceroulas ao varal com pequenos nós no cordame esticado. Depois de secas, as camisas de manga comprida estendendo os braços, querendo voar. Passarinhos que se espalham em cantoria no varal. A mocinha que vai chegando com cesto à cabeça para recolher a roupa limpa. E mais tarde, noutro varal, o dono da casa que chega com faca amolada. Escolhe um pedaço de toucinho e corta. Corta também a tripa gorda de porco. Não demora muito e o fogo de lenha é aceso adiante. Vai ter cuscuz, vai ter toucinho misturado ao ovo de capoeira, vai ter tripa, vai ter café batido em pilão, vai ter Sertão!

Escritor


terça-feira, 10 de agosto de 2021

A DOCE VIDA


*Rangel Alves da Costa

 

Enquanto ensaboa, lava e vai quarando roupas no tanque do quintal, Terezinha vai cantando: “Moço bonito que um dia me fez de consolação, me deu perfume cheiroso e um abraço tão apertoso que amoleceu meu coração...”. Já Geromilda começa a cantarolar quando se põe e estender as roupas lavadas no varal: “Minha boca é um sertão, beiço rachado de chão, na secura dessa vida sem amor e sem paixão. Venha me amar, venha me beijar, não quero sofrer mais não, pois nasci pra ser jardim e não a secura do sertão...”.

Já na boca da noite, depois que o vento enxugou as calçolas e camisolas, a mocinha Clarice se dirige ao varal com doce canção na voz: “Lá vem a lua, já escurece a rua, vou lhe contar um segredo que quero ser toda sua. E quando o sol levantar eu chamo de novo a lua, para lhe contar um segredo que quero ser toda sua...”. Bem assim quando Purezinha coloca brasa no ferro, sopra a poeira das cinzas, passa goma na camisa e depois começa a engomar: “Meu Padim Ciço Romão, o santo do meu sertão, chame Frei Damião e venham pra minha casa pra fazer Santa Missão. Quero a paz, quero alegria, a fé por maior devoção, a semente sobre a terra e o fruto sobre o chão...”. E assim pelos sertões, pelos quintais, pelos varais, num tempo de doce tempo que muita saudade traz!

O sol vai esfriando e a brisa da tarde começa a soprar. Ruas interioranas, calçadas alentadas, portas abertas, árvores farfalhando. E chega Joaninha com sua cadeira, e chega Pureza com seu tamborete, e chega Titoca com sua almofada, e todas se assentam para o proseado do entardecer. Nada de fofoca, nada de falação sobre a vida dos outros, mas das realidades e de um cotidiano que é de sol e de lua, que é de poeira e de chão.

Zezim passa correndo, eita menino danado! Vai correndo atrás da bola chutada pela meninada. Um buraco na terra, uma bola de gude, uma brincadeira. E de repente o maior cavaleiro do mundo: Tiziu em seu cavalo de pau. Vai correndo mundo, vai sendo o mais feliz, vai sendo a doce infância. E mais adiante, na sala da frente, Joaninha brinca com sua boneca de pano. Num cantinho da sala o seu mundo e sua vida. Conversa e briga, afaga e de repente diz que vai dar chineladas, penteia os cabelos, diz que vai dar banho pra boneca dormir.

Em tardes fagueiras, nas canções do vento, a vida se faz em sua singeleza. Apenas o tempo, apenas o vento, nas ruas sublimes, nas doces palavras de um povo feliz. Assim ainda a vida em muitos rincões. Nos sertões mais distantes, nos escondidos do mundo. E que bom que seja assim. Que bom se continuasse sempre assim. Que bom!

Mas o mundo apressado vai correndo demais. O bucólico esvoaça, o singelo se esconde para o novo chegar. E de repente a moda, de repente o estranho, de repente o desconhecido tomando o lugar da paz e da felicidade. Sem amigas nas calçadas, sem palavras boas ao entardecer, sem bola chutada pela meninada, sem bola de gude e cavalo de pau, aquele boneca do canto da sala vai sofrer e chorar.

Uma doce vida, que de tão doce vida, o tempo esmaga e no lugar da doçura vai colocando sal. Ou um fel na vida.

 

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu Sertão...


Nos Sertões, compartilhando vidas...




Meu amor (Poesia)


Meu amor

Meu amor
eu digo
meu amor
repito
meu amor
 
já silenciei
já sofri demais
aprisionei a palavra
deixei de confessar
o amor que sinto
por medo de amar
 
não suporto mais
silenciar o amor
tenho que gritar
a paixão com fervor
meu amor
meu amor!
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – pela estrada


*Rangel Alves da Costa

 

Pela estrada eu vou semeando. A cada passo, pelos caminhos vão ficando minhas marcas, o que fiz, o que eu poderia fazer de outra forma. Talvez poucos deem importância ao avistar as sementes que vou deixando sobre a terra. Assim como o grão que é lançado sobre o chão, e somente mais tarde brotará em flores e frutos, igualmente o que faço pela estrada. Apenas faço, apenas lanço o grão, apenas cumpro o meu dever de semear. Enquanto filho da terra, sinto-me com a obrigação de semear o melhor grão que eu possua, assim como a retribuição de quem jamais se esquece de seu berço de nascimento. A estrada vai ficando para trás e eu seguindo, seguindo, seguindo. Os que mais tarde seguirão pela mesma estrada, ao avistar os frutos do que foi semeando, haverão de dizer: alguém passou por aqui! E colherão o que melhor havia de mim para deixar.






domingo, 30 de maio de 2021

CAFÉ TORRADO E OUTRAS SAUDADES


*Rangel Alves da Costa

 

Tudo lembra sertão. Café torrado, sinos, cuscuz, quintais, varais, rosários e terços, oratórios e imagens santas por cima das banquinhas. Fitas do Padim Ciço, flores de plástico envelhecidas em jarro, retratos antigos nas paredes.

Tudo lembra sertão. Não este sertão de agora, de modismos e negações das raízes e da história, de desvalorização dos bons costumes e dos respeitos que conduziam as vidas em comunidade.

Aquele sertão antigo mesmo, o sertão do carro-de-bois, do autêntico vaqueiro, do roceiro e do mateiro, do caçador e das valorosas mãos das parteiras. Seu João Retratista, chegado diretamente da alagoana Pão de Açúcar para a Festa de Agosto, testemunhava em preto e branco aquelas roupas de chita, as calças boca-de-sino, as camisas finas de volta-ao-mundo.

Pano enfestado não faltava. As irmãs Marques, Izabel, Mãezinha e Conceição de Timbé, todas enfeitando o povo para as festanças, para os forrós com Zé Goiti, Zé Aleixo, Dudu Ribeiro, Agenor da Barra, e tantos outros.

Tinha forró comendo no centro, mas com um medo danado que Zé Valentim aparecesse no meio do salão transformado no rato maior do mundo. Ainda assim Zelito, pandeirista, zabumbeiro e cantador de Zé Aleixo, entoava para o prazer dos corpos suados e cheirando a pinga de balcão: “Ai eu não posso ver ninguém chorar, porque vem logo uma vontade em mim. Quem foi que disse que não chora por amor, pois os meus olhos já chegaram ao fim...”.

A noite virava e os chinelos continuavam chinelando pelos salões forrozeiros. Miltinho ainda nem pensava em abrir um bar e depois transformar no salão forrozeiro mais famoso da cidade, quando o toque das sanfonas já ecoava no Salão da Prefeitura e no Bar de Delino, dentre outros locais.

Se o sapato estava velho, desgastado ou com aparência não muito boa, não havia problema. Era época de Manezinho Tem-Tem aparecer na cidade e passar de porta em porta pergunta quem desejava que ele fizesse milagres com sua caixa de engraxate. Expedito, o doido agalegado, não perdia uma festa. Parecia um tição de fogo quando estava enraivecido com a rapaziada.

Depois, os mais jovens passaram a ter a opção dos bailes dançantes, principalmente no Mercado Municipal. R Som 7, Dissonantes, Impacto Som, Embalo D, dentre outras bandas e conjuntos musicais. Eram noites inesquecíveis, dançando agarradinhos, sob chuva de luzes, ao som de My Mistake e outros sucessos: “There was a place that, i lived and a girl so young and fair, i have seen many things in my life…”.

Como havia escuridão por todos os lados, então a rapaziada sumia pelos cantos e becos e ia namorar e fazer safadeza nos escondidos. Um sertão muito diferente, nostálgico, bucólico, simples, porém grandioso em sua essência. Maria passando com pote na cabeça em direção ao tanquinho.

Ao redor do Tanque Velho, as comadres dando conta da vida dos outros enquanto esfregavam panelas. De repente, o medo que a vaca de careta, correndo desembestada pelo meio da rua, entrasse por qualquer porta. E entrava mesmo. Ao entardecer, o cheiro oloroso, saboroso, forte, gostoso, do café torrado. Filas eram formadas na porta de Dona Lídia em busca de um tiquinho de seu famoso café.

E logo os sinos dobravam na igreja. Hoje não, mas antigamente a noite chegava sempre abençoada pelos sinos. Eram instantes de fé, de devoção sertaneja, de abnegação ao sagrado. A noite ia avançando entre os proseados nas calçadas e os abraços da brisa boa. As mocinhas nas janelas, apenas sonhando com seus príncipes encantados. Pelas ruas nuas, de pouco movimento, a criançada brincando de roda, as mãos em ciranda e a pureza nos corações.

Com a réstia de qualquer luz, as mãos da meninada transformavam as paredes em verdadeiro cinema. Outros preferiam brincar de pega-de-boi em plena escuridão. Um menino era escolhido como boi, e então corria para se esconder. Não demorava muito e o restante saía em disparada atrás do bicho fogoso.

Assim era a vida. Assim nos sertões de antigamente.

 
Escritor
blograngel-sertão.blogspot.com


Lá no meu sertão...


São Francisco do Sertão!






Beije! (Poesia)


Beije!

 
O lábio solitário
ressequido de solidão
ao desvão caminha
em busca de outro lábio
 
outro lábio entristecido
sedento pra ser tocado
ao desalento vai
em busca de outro lábio
 
numa rua chamada destino
os dois lábio se avistam
mas seguem caminhando
mesmo querendo ficar
 
mas os olhos se avistam
e os passos fazem a volta
chegando ao mesmo lugar
onde queriam ficar
 
então os olhos se abraçam
os desejos se enlaçam
os lábios se umedecem
e o destino sorridente
 
diz: beije!
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - quando chove


*Rangel Alves da Costa

  

Quando chove, ah quando chove! Eu sou nuvem prenhe, nuvem cuspindo longe, nuvem em alvoroço, um rio que corre, um mar que transborda. Quando chove eu sinto o livro revirar a página, jogar longe os escritos ressequidos e encharcar de esperanças as suas folhas. Quando chove eu leio na vidraça o que jamais consigo em tempos de sol. E tudo me diz da nostalgia, da saudade, do desejo de ter novamente. Quando chove eu me torno criança novamente, afloram-me os desejos de nudez e de sair correndo por aí por cima das poças d’água. Quando chove eu me deixo molhar por dentro e por fora. As nascentes da alma logo se tornam em leitos correntes, ávidos, impulsivos, em busca de novos destinos. Meu corpo banhado, inteiramente respingando o instante, deixa-se ser apenas ele na fria e gelidez que tanto me faz querer ser abraçado e protegido. Quando chove eu sempre choro e entristeço, eu sempre silencio e esmoreço. Não que a chuva seja ruim ou que causa aflição, mas por que as águas se derramam sobre velhos baús e então tenho que reler as velhas cartas de um passado. Da janela entreaberta eu olho cada pingo que vai caindo. Abro a porta e me deixo levar na correnteza. Não sei se durmo ou se sonho. Só sei que lá fora a chuva cai.

 

Escritor


quarta-feira, 26 de maio de 2021

BALA DE OURO PRA MATAR PREÁ (UMA HISTÓRIA DE CORONÉIS)


*Rangel Alves da Costa

 

Só que “Preá” era o apelido dado ao coronel Tibúrcio. Aí foi que foi a gota serena.

Dentão, o mais feioso e malvado dos jagunços, ao receber a bala de ouro logo pensou que era coisa de engolir.

Só não mastigou porque o coronel Leocádio adentrou na varanda logo dizendo: “Vou cuspir. E antes que o cuspe seque eu quero a orelha do desgraçado jogada no lugar da cusparada. Chispa daqui e vá logo matar Preá”.

Noite de lua cheia, pelas matas os sons de estranhos uivos, o jagunço ficava ainda mais zoiúdo tentando avistar a passagem do coronel Tibúrcio, o famoso Preá.

Era certeza ele passar por ali, pois de volta da casa de Joaninha Boca de Mel, uma rapariga mantida nas redondezas.

Mas naquela noite o coronel não passaria por ali de jeito nenhum. E não faria normalmente aquele caminho porque era exatamente a noite de ele virar lobisomem.

Sim, o coronel virava lobisomem. Dentão, o jagunço, esperou e mais esperou e nada de Preá passar.

E começou a matutar, já pensando na desgraceira que iria acontecer se não levasse a orelha do inimigo maior do patrão.

“Essa hora o cuspe já secou. E se secou o coroné vai querer disforrá em riba deu”. Sentiu a orelha queimando, passou a mão, e era como se a sentisse sendo arrancada a canivete.

“Danou-se. O coroné vai querê cortá minha oreia, mais isso num vai não”. Disse a si mesmo, já revirando de raiva por dentro.

Como o dia já clareava, resolveu voltar e enfrentar o que viesse pela frente. Antes de sair do meio do tufo de mato, apontou a arma a um lugar qualquer e apertou o gatilho, só não pra não perder de vez a viagem.

Mas a bala viajou até acertar bem na testa de um homem que acabava de desvirar lobisomem. Era o coronel Tibúrcio. O jagunço matou Preá sem saber que assim tinha feito.

Sem sequer imaginar que o inimigo do patrão acabava de virar finado, e assim minimizar seu problema com o cuspe já seco, assim que adentrou a porteira logo avistou o coronel Leocádio virado na peste, raivoso que só a moléstia, em tempo de estrebuchar de tanta raivice.

E gritando: “Trouxe a orelha do safado?”. Então o jagunço simplesmente respondeu: “Truxe”.

E apontou outra arma em sua direção e apertou o gatilho. Assim que abriu a boca pelo espanto do tiro recebido, o coronel engoliu o charuto aceso e emborcou pelo chão fumaçando, e bem em cima da marca da cusparada.

Depois disso, o jagunço fez de conta que nada tinha acontecido e saiu assoviando.

Não sabia, contudo, que havia matado dois coronéis numa empreitada só, e terminado, assim, uma das faces mais perversas do coronelismo nordestino.

 

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Sertão de Fé. Fé no Sertão.



Flores de maio (Poesia)


Flores de maio

 
As flores de maio
estão indo embora
 
as flores e suas cores
suas borboletas e colibris
suas canções da manhã
as folhas pelos canteiros
doces versos na ventania
imaginar ser assim
em qualquer jardim
 
mas as flores de maio
em jardim tão triste
em paisagem aflitiva
refletindo as dores
e os espinhos do viver
choram em suas pétalas
as lágrimas de todos nós
 
e assim se vão as flores
as flores de maio e da vida
em estações tão sombrias
como nossas agonias.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - coração sertanejo


*Rangel Alves da Costa

 

Eu bem poderia ser um velho calendário numa parede de barro, uma fita desbotada do Juazeiro do Padim Ciço, um candeeiro enferrujado em cima da banquinha. Eu bem poderia ser um oratório de canto de quarto, um carcomido jarro de flores velhas de plástico, uma imagem santa desbotada pelo tempo. Eu bem poderia ser aquela plaquinha antiga e alquebrada dizendo que aqui mora uma família feliz, um tamborete de pé de porta ou uma trempe sem pote lá no fundo da cozinha. Eu poderia ser a moringa na janela, a panela de barro ou mesmo o velho carro-de-bois esquecido debaixo do umbuzeiro. Eu bem poderia ser tudo isso. E sou tudo isso. Sou o vaga-lume, sou o grilo, sou carcará-gavião. Sou a cruz da desvalia, sou o pedaço de pão. Sou o rosário de contas, sou o silêncio da oração. Sou Sertão.


Escritor


domingo, 9 de maio de 2021

A MENINA FLOR E OS ESPINHOS DA VIDA


*Rangel Alves da Costa

 

Uma bela flor. Uma jovem linda, uma adolescente, uma forma de vida tão cheia de graça e de formosura.

A menina flor ainda não vive os perigos após as portas abertas da adolescência. A tão bela mocinha ainda não conhece as estradas tão atraentes adiante, porém cheias de labirintos e de feras humanas.

A menina ainda é flor. Muito diferente de grande parte das adolescentes, que mesmo ainda não tendo saído completamente da infância e já se procuram se mostrar além do que são e fazer além do que podem.

A menina ainda brinca com sua casinha de boneca, ainda conversa com seus brinquedos, ainda dorme choupando o dedo. Bem poderia pensar somente em se arrumar, usar shortinho ou roupa justa, e abrir a porta pra se danar pelas ruas.

Bem que poderia, mas ela sequer pensa nisso. As coleguinhas da escola a chamam para fugir da aula, para andar por aí, para encontrar amiguinhos, mas ela sempre diz não. Recebe bilhetinhos enamorados, mas sequer responde.

De sua janela, seu olhar inocente vai afastando o mundo, mas sempre prefere enxergar alguma borboleta, algum passarinho, alguma coisa interessante que vá passando. Tem vontade de sair correndo pelos campos para conversar com as flores.

Certo dia, até ficou sem compreender quando avistou uma ex-colega de escola já de barriga grande, em estado de gravidez. Sequer imaginava o que poderia ter acontecido para que a amiga pudesse estar assim.

Ao ser avistada à janela, aqueles conhecidos da escola sempre se aproximavam para um convite. Ouvia suas gírias, suas falas quase incompreensíveis, seus chamados sem pé nem cabeça, mas não se interessava muito em saber em saber o porquê de aquilo tudo estar acontecendo.

Mas não era mais criança. Seu corpo já era de mocinha, sua forma física como a de uma bela e demasiadamente atraente adolescente. Com sua idade e beleza, certamente que outras mocinhas se encheriam de batons, perfumes, enfeites e passariam longos tempos perante o espelho.

Depois do espelho, a rua. O abrir a porta e sair por aí. Mas aquela mocinha era diferente. Não gostava nem de ouvir muito sobre sua beleza. Não dizia nada, mas ficava raivosa toda vez que ouvia que logo estaria com namorado.

Numa feita, perguntou à boneca de pano se ra bom beijar e qual o gosto que teria um beijo. Perguntou se era bom namorar e se não havia perigo algum de ter deixar de ser o que ela era e como gostava de ser. Silenciosa, a boneca parecia entristecida.

Um dia, resolveu se vestir como as outras meninas, pentear os cabelos de uma forma mais solta, encher os lábios de batom e as orelhas de brincos. Depois se mirou no espelho e não se reconheceu. Estava feia, aquela não era ela, nada daquilo queria. Disse a si mesmo.

Ofereceram-lhe um cigarro, um copo de bebida, um pó pra cheirar. Não, não quero, obrigado. Era o que sempre dizia. Mas resolveu não dizer mais. Compreendeu que só estavam oferecendo aquilo porque estava perto de pessoas que não deveria estar. E se afastou de uma vez.

Mas não era fácil viver assim, sempre se afastando das pessoas que não lhe pareciam úteis. Mas tinha de ser assim, sempre repetia. Também sofria por não deixar ser moldada segundo os outros desejavam. E dizia a si mesma que se fosse pelos outros, então deixaria de ser como tanto gostava de viver.

Então pendurou um calendário na parede, mas não que tivesse interessada em datas, meses, anos ou dias passando, mas tão somente para que o calendário simbolizasse a si mesma. Simplesmente deixaria o tempo passar, passar, passar.

E o tempo seria sua lição. Se houvesse que mudar, então mudaria. Se fosse pra namorar, um dia namoraria. Tudo no seu tempo. 

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Pelos Sertões...



Da janela (Poesia)


Da janela

 
A janela está fechada
na manhã despertada
 
o sol entra pela fresta
no dia que já é festa
 
então abro a janela
e a vida vem tão bela
 
um pássaro cantando
uma borboleta voejando
 
uma flor que não vejo
um velho som de realejo
 
a moça bela sorridente
em tudo o fogo tão ardente
 
menino correndo além
a meninada vai também
 
o clarão do dia em mim
doce aroma de um jardim
 
na cozinha a panela
leite despejado em gamela
 
viver na luz o seu lume
é da existência o perfume
 
se em tudo uma aquarela
não fecho mais a janela.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - no banco da praça


*Rangel Alves da Costa

 

Mesmo enevoado e triste, o entardecer na solidão do banco da praça é muito melhor. As folhas da amendoeira são balançadas pelo vento e se lançam em voo para repousar a meus pés. Os pombos já comeram seu grão e já retornaram às suas distâncias. As avoantes já cortaram os céus afogueados pelo lume do último sol, e por isso mesmo o meu olhar já não divisa a passarada do entardecer. Folhas mortas, folhas entristecidas, canteiros ao relento e desalento. E eu sozinho. O vento sopra, vem murmurando segredos, mas nem tenho o cuidado de ouvi-lo. Estou triste. Diviso uma pessoa do outro lado da praça e imagino que esteja com maior satisfação do que eu. Depois percebo que a moça se assentou num banco ao canto, rente à fonte luminosa que não acende mais. Ela permanece lá, sozinha, talvez esperando alguém ou deixando simplesmente o tempo passar. O tempo avança e não vai demorar em a boca da noite chegar. Continuo melancólico e triste, e certamente nada me fará diferente, ao menos por enquanto. E também certamente eu serei o único em tamanha tristeza na praça. Chega a hora de ir embora. Levando já pisando no tapete frio de folhas mortas e vou seguindo. Ao passar pela moça, então percebo o seu rosto encharcado de lágrimas. Não sofro sozinho. Talvez o mundo esteja sofrendo.


Escritor


domingo, 25 de abril de 2021

A CASA DOS SILÊNCIOS


*Rangel Alves da Costa

 

Uma casa. Portas fechadas, janelas encostadas, silêncios. Pelas frestas, uma visão de penumbra, de tristeza e de desalento.

Uma casa. Na paisagem parecendo um mundo esquecido. Cores desfeitas pelo tempo. Endereço sem visitantes. Uma visão de inexistência de tudo.

Uma casa. Sua existência se resume à presença no meio do tempo. Um caminho que chega até seus arredores. Uma estrada que vai seguindo adiante.

Uma casa assim. Ou duas casas assim. Um monte de casas assim aqui tão perto ou nas lonjuras do mundo. Casas assim e que parecem nunca serem avistadas.

Muita casa assim nos beirais das estradas, nos vultos por dentro das matas, no além-porteiras e além quase tudo. Os olhares avistam, porém nunca encontram presenças.

Ao primeiro olhar, parecendo até mesmo uma casa sem ninguém lá dentro ou mesmo abandonada. Logo se imagina que a família partiu, fechou porta para nunca mais voltar.

Em seu interior, contudo, vidas silenciosas gritam seus instantes de distanciamento de quase tudo. Nas suas entranhas, as vidas reclusas nas solidões e ao querer dos velhos calendários na parede.

Geralmente pessoas envelhecidas, mas também vidas ainda jovens em seus melancólicos e aflitivos percursos cotidianos. Não significa a inexistência de parentes, de amigos e conhecidos.

Muitas vezes são muitos, mas só da porta pra fora. Em muitas situações, nem mesmo as famílias se fazem presentes perante aqueles que vivem como em contínuo abandono.

De vez em quando a porta da frente é semiaberta para então surgir uma feição sem sorriso, sem brilho no olhar, sem alegria.

De vez em quando, a janela é aberta para o sol entrar e alimentar as folhas secas da solidão. Como vivem e o que fazem tais pessoas em seu mundo tão recluso e entristecido?

São pessoas comuns, são históricos de vida cabíveis em qualquer livro. Mas também são pessoas que vivem em diferenciado mundo, e muitas vezes imposto pelos demais.

Os demais que fazem de conta que aqueles pessoas não existem, que não precisam ser visitadas, que não precisam de uma fraterna e afetuosa consideração.

No Natal, um prato de solidão sobre a mesa. Na passagem do ano, talvez já em seus repousos noturnos, apenas serem acordadas pelos fogos e algazarras pelas ruas.

Lá fora, a vida é festa, é sempre festa. Lá dentro, entre silêncios e esquecimentos, o suportar apenas que as horas passem e passem. E sejam menos doloridas a cada segundo.

Ou lá fora a vida sempre passa, sempre segue seu rumo, deixando para trás aquela porta fechada, aquelas vidas em cujas mãos há céus de salvação eterna.

As contas do rosário vão passando pelos dedos. A boca sussurra uma oração. Os olhos brilhos ante a luz do candeeiro. A vela chameja mostrando a face de Deus.

Mas nem sempre se pode imaginar que seja assim. Apenas a casa e seu silêncio. Apenas o silêncio de solidão e vidas à margem da vida.

Não se pretende, contudo, outra felicidade. Ali está Deus nas contas do rosário. Ali está a proteção e a felicidade em cada santo, em cada reza, em cada céu debaixo e acima da cumeeira.

 
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


Lá no meu sertão...


Novo Livro



Amor paisagem (Poesia)


Amor paisagem


Minha boca
é um sertão
 
folha ressequida
é o meu coração
 
meu lábio resseca
em sequidão
 
meu desejo tanto
cinzas pelo chão
 
e o amor
a mais bela floração
 
só vem no relâmpago
no trovão
 
mas sem chuva
é tudo desolação
 
sem amar
quanto dói meu sertão.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - da ingratidão


*Rangel Alves da Costa

 

INGRATIDÃO (OU QUANDO A GENTE CANSA DE ESTENDER A MÃO) – Por mais bondoso e generoso que seja o coração, um dia tudo cansa pela ingratidão. Você enxuga a lágrima, você estende a mão, mas depois recebe ingratidão. A mesa está vazia e você faz chegar o pão, as carências somam e você nunca diz não, mas ainda assim só recebe ingratidão. Você sempre é mais que amigo, você é como irmão, ouve, aconselha, dá atenção, mas depois só vem a ingratidão. Nada que se dá é esperando algo em retribuição, pois tudo do mais profundo do coração. Mas dói demais quando da pessoa só vem a ingratidão. O que fazer, então? Quando chegar rastejando, apenas mostrar a imensidão do chão.

 

Escritor


quinta-feira, 1 de abril de 2021

O JAGUNÇO, O CAPANGA


*Rangel Alves da Costa

 

O sangue escorrido na história nordestina e sertaneja tem muito do jagunço e do capanga. Muitas vezes, a confusão se generaliza na explicação dos atos brutais de ambos. Mas a verdade que nem sempre o jagunço foi capanga e nem o capanga foi jagunço, mas aquele tendendo mais a praticar as mesmas ações jaguncistas.

Vamos, contudo, ao que dizem os livros. Os dicionários dizem que jagunço é sujeito criminoso, homem violento contratado como guarda-costas por indivíduo influente. A Wikipédia erra feio ao dizer que “jagunço ou capanga era, no nordeste brasileiro, o indivíduo que se prestava ao trabalho paramilitar de proteção e segurança às lideranças políticas”.

Era feio pelo simples fato da generalização. O modus operandi de um é diferenciado do outro. Até mesmo o tipo de armamento utilizado por um se diferenciava do cano de fogo do outro. Arma na cintura é coisa de capanga. Jagunço que se preze leva seu mosquetão à mão e pelos escondidos do mato vai se entrincheirando até chegar o momento certo de apertar o gatilho.

É no tipo de prestação de serviço que reside a grande diferença. Ora, o jagunço não era, necessariamente, alguém que vivia a serviço de um poderoso. Até que poderia viver aos arredores do coronel dando suporte às suas ordens, mas não na sua rotina diária. Quem sempre estava com o poderoso era o capanga.

O jagunço ganhava para matar, para amedrontar, para aterrorizar a vida dos inimigos e desafetos daquele que o pagasse. Através de suas mãos sempre sujas de sangue, os inimigos tombavam nos beirais das estradas, criações eram sangradas, casas incendiadas, e por aí vai. Já o capanga não se expunha tanto, não fazia o serviço mais sujo.

O capanga tinha a serventia de escudo ao chefe, ao poderoso. Como os coronéis – principalmente aqueles sempre odiados ou contando com inimigos – nunca saíam ou viajavam sozinhos, necessário que tivessem sempre ao lado alguém que os protegessem de ameaças e ataques. Um tiro dado era mais fácil atingir o capanga do que o coronel, pois para tal ele era sustentado.

Imaginem a cena: Numa feira interiorana, um senhor vestido de terno de linho branco, chapéu grande na cabeça, charuto fumaçando na boca, caminhando cercado por homens em vigilância. Cena de um coronel rodeado de capangas. Ora, o capanga estava ao lado para proteger, mas também atacar, revidar agressões, matar. Matava, mas não como o jagunço.

O capanga não saía da presença do coronel para ir fazer tocaia ou emboscada, para ficar escondido nos tufos de matos ou atrás de troncos esperando a passagem do inimigo do coronel ou de quem estivesse com a morte encomendada. Quem fazia isso era o jagunço. Era o jagunço que recebia para dar conta da encomenda. Muitas vezes, o restante do pagamento somente quando levasse a orelha do morto.

Capanga era uma espécie de segurança. Jagunço era uma espécie de frio assassino. Capanga possuía serviço diversificado, pois também ajudante-de-ordem do poderoso. Jagunço sempre agindo na surdina, no escondido, tudo fazendo para não ser descoberto. Capanga matando aquele que atacasse o seu patrão. Jagunço matando qualquer um que desejasse o seu patrão ou outro mandante qualquer.

Não era cena comum a jagunçada se esgueirando pelos centros urbanos à espera da passagem de alguém, e para matar. Mas era cena comum avistar a capangagem armada até os dentes e em companhia de seus patrões. Era uma demonstração de poder pessoal, mas também a força das armas se sobrepondo a tudo e todos.

Outras coisas, contudo, não os distingue muito. Nos dois, a exaltação de desmedida violência. Nos dois, o medo e o terror pelos sertões antigos (e também atuais). Em ambos, a sina da desvalia da vida do próximo, de qualquer um que caísse na desgraça da inimizade com o poder. Em ambos, a escrita sangrenta de uma terra ferida de morte pelo coronel, pelo jagunço, pelo capanga.

Então o coronel mandava o capanga chamar o jagunço e dizia: “Vá matar e mate ligeiro. Vou cuspir. E quero a orelha aqui antes de o cuspe secar!”. E de repente, ali a orelha chegava. O restante era dos urubus, dos gaviões, das aves carnicentas.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Nas ribeiras do Velho Chico






E por falar de amor (Poesia)


E por falar de amor

 
E por falar de amor
eu senti saudade
saudade de você
daquela linda flor
que era seu amor
 
no cálice da palavra
beber do silêncio
apenas no sorriso
e derramar em nós
o vinho da paixão
 
ser do entardecer
o olhar em chamas
e se a noite chegar
ser o fogo ardente
a chama que ama
 
e por falar de amor
eu preciso dizer
a estrada é a mesma
e uma porta aberta
esperando você.
 
 
Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - Sertão


*Rangel Alves da Costa

  

Calango no chão, porteira se abrindo, um luar em clarão. Eu preciso sentir mais meu sertão. Fogo de lenha e tição, caneca no pote, uma história de assombração. Eu preciso ser mais meu sertão. Rosário de fé e de oração, tamborete antigo, na estrada uma procissão. Eu preciso viver mais meu sertão. Mandacaru em floração, um ramo para benzer, quartinha na janela do oitão. Eu preciso caminhar mais pelo meu sertão. Na boca da noite um pedaço de pão, um grilo cricrando, carcará, gavião. Eu preciso amar mais meu sertão. Secura e desolação, de vez em quando um relâmpago, de vez em quando o trovão. Eu num sei onde tô, mas eu queria o sertão!


Escritor
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domingo, 7 de março de 2021

NOITES DO SERTÃO


 *Rangel Alves da Costa


O sertão possui outro retrato do que geralmente se retrato. Quem não conhece o sertão, nele só reconhece a miséria, a pobreza, a desvalia sertaneja. Mas o verdadeiro retrato do sertão é muito diferente.

O sertão é histórica, geográfica e humanamente belo. O sertão é meigo, doce e cativante. O bucolismo sertanejo traduz sempre uma sensação de humanismo, de companheirismo e afeição de um povo.

Suas cores e seus sabores, suas paisagens e seus segredos, tudo se revela em inigualável pujança. Vaqueiros, rendeiras, aboiadores, mateiros, pescadores, cordelistas, cantoras de roda, uma infinidade de belezas e tradições.

Mas nada igual ao luar sertanejo e suas noites de mistérios e encantamentos, de amores e descobertas, de estrelas e vaga-lumes. As noites do sertão sempre chegam como véus iluminados perante as durezas da vida.

As noites do sertão são lindas, grandes, imensas, poéticas, nostálgicas, orantes, pedintes. São portas que se abrem ao alto para, em direção ao luar, buscar os encantamentos da noite e da vida.

Quando as noites chegam e seu manto vai encobrindo a terra com suas cores sombreadas e escurecidas, logo as chamas do candeeiro da lua se acendem para tudo recobrir com seu dourado de paz e encanto.

A muitos, que apenas tratam a noite como parte escurecida do dia e a lua como o oposto do sol, tanto faz que após o entardecer os horizontes se encham de fogo e magia, e que os encantamentos surjam em cada raio de luar e em cada estrela que vagueia brilhosa pelos espaços.

Nada entendem de noite, de lua, e muito menos de luar sertanejo. Certamente não sabem que a lua carrega em si o dom da transformação e em cada dourado que espalha há um descortinar de sentimentos sem fim.

Igualmente não sabem de quanta simbologia há num clarão de luar sertanejo. No sertão, o luar não é de lua qualquer, não é apenas um astro noturno que brilha, não se contenta em ser somente uma luz clareando na noite.

O luar do sertão é sentimento aceso em fogo e brasa, é chama que reacende saudades, reencontros e recordações. O luar sertanejo crepita por dentro como tição e fagulha, como labareda e faísca. E tanto queima que é preciso cuidado ante sua luz.

Somente a luz do luar sertanejo para afastar as medonhices da noite e os medos dos esquecimentos. Impossível não abrir janelas, não reabrir velhos álbuns, não buscar fotografias, não reencontrar imagens de faces e feições, perante a luz que brilha lá em cima.

Nas noites do meu sertão, nada mais preciso que a luz do luar. Nas noites do meu sertão, meu coração só quer luar. E no luar o retrato vivo daquilo que sinto saudade, que amo, que merece ser recordado.

Nas noites do meu sertão, quando a lua se abre em flor, então os jardins da memória começam a brotar suas pétalas. Olhar para o alto e se encantar com o amarelado da lua, avistar a luz imensa perante a escuridão, tudo isso conforta a alma e o espírito.

Nas noites do meu sertão, quando os silêncios chamam à reflexão, nada melhor que compartilhar da voz interior com a auréola iluminada que desce do alto e a tudo envolve. Uma lua tão bela e sertaneja, tão cheia de palavras e vozes, que o silêncio se transforma em poesia e encantamento.

Bem disse o poeta: “Não há, oh gente, oh não, luar como esse do sertão...”. E digo mais: Uma luz que pacifica a alma, uma cor que enobrece o ser, um brilho que envolve todo o coração.

Na noite, nos altos e nas alturas da noite, é como se as recordações chegassem com a luz do luar. Um cheiro de café torrado, um cheiro de fogão de lenha. Vagantes vaga-lumes, réstias de candeeiros, fagulhas ainda vivas das fogueiras do tempo.

E uma canção no vento. Um vento que vem das montanhas, lá detrás dos montes enluarados, trazendo a cor da lua e o brilho das estrelas e para, perante o meu silêncio noturno, ecoar uma linda canção de amor.

De amor ao sertão. De amor à sua lua, ao seu luar.

                     

Escritor
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