SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 21 de março de 2010

O EVANGELHO DO DIA SEGUINTE (Crônica)

O EVANGELHO DO DIA SEGUINTE

Rangel Alves da Costa*


São palavras cravadas na pedra, não se pode negar: As ações de hoje refletirão amanhã, no dia seguinte. O lavrador sulca a terra, espalha a semente e dorme tranqüilo deixando a natureza acontecer; o jardineiro rega a flor que vai brotando porque amanhã será primavera; o homem cansado de lutar dignamente no cotidiano, adormece para acordar com alegria e mais disposição; a mão que foi erguida para doar jamais estará vazia; o bem que foi semeado retornará sem ninguém pedir fartura; o mal praticado não espera nem o amanhã acontecer. Assim, tudo o que se faz hoje será refletido no espelho do amanhã, com suas feições de alegria ou de dor.
Como se pode observar, a vida é feita de conseqüências: do ato virá o reflexo, da ação surgirá a reação. Não é admitido a ninguém – ninguém mesmo – ignorar que suas ações, práticas, atitudes e condutas são realizações passageiras e que serão apagadas da memória dos instantes seguintes. Inadmissível porque, mesmo que o indivíduo não queira exteriorizar sentimentos pelo que fez, ainda assim a sua mente reterá tudo como num baú que será preservado para a posteridade. Contudo, existirá sempre a tentativa de fugir dessa realidade. Daí se voltarem somente sobre as boas lembranças, sobre os momentos de felicidade, sobre as ações heróicas de um ser invencível.
Pelo que relatam, ninguém jamais pecou, errou, fez o mal ao próximo. Que mentiroso é esse heroísmo que padece, sangra por dentro, simplesmente por não querer reconhecer a imensa fragilidade do homem. Quantos reconhecem a insustentável leveza do ser e fazem disso uma escada para o arrependimento, para a humildade, para subir aos céus procurando forças para transgredir menos sobre a terra e, lá no alto, tocar o dedo de Deus. Vai filho, reconhece os erros e procure caminhar pelas difíceis veredas do bem. E espinhosos são os caminhos do bem, pois do contrário a felicidade não seria buscada a duras penas. É por isso mesmo que muitos fogem da estrada e se perdem tentando colher as flores do mal que estão ao alcance.
Quem dera se no dia seguinte, assim como pregam os evangelhos, somente boas novas fossem anunciadas. Quem dera se igual aos apóstolos Mateus, Marcos, Lucas e João, o homem atual pudesse revelar para o mundo que os atos de ontem dignificaram sua condição de semeador de grãos produtivos sobre a terra. Tudo que fecunda da terra alimentará o indivíduo segundo aquilo que ele semeou. Não há que se esperar colheitas de paz, alegria, bem-estar, sossego, felicidade e amizade se a semente jogada na terra árida da perdição já estava também apodrecida.
Mateus ensinou o quanto é árdua a luta para se alcançar o reconhecimento pelas boas ações, tendo que vencer as mais terríveis tentações que se apresentam, pois mais tarde virá a boa nova como profecia concretizada na crença da valorização do homem. Valorização "Porque é do coração que provêm os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as impurezas, os furtos, os falsos testemunhos, as calúnias" (Mt, 15,19).
Marcos nos legou a lição de que não há poder maior que possa superar o desejo do homem de vencer os desafios que lhes são impostos, muitas vezes tendo que padecer terrivelmente para depois ressuscitar com inesgotável força. A morte e ressurreição de Jesus é exemplo disso, segundo Marcos. Cada palavra falada e escrita do evangelho de Marcos é espelho que reflete a vida de maneira prática: "vencendo a tentação da ganância com a partilha, vencendo a tentação da dominação com o serviço e vencendo a tentação do orgulho com a humildade" (Mc, 9,42-50).
Lucas nos lembra que a vida em sociedade, entre os povos e as nações, deve ser de compaixão e esperança, seguindo o exemplo do amor compartilhado por Jesus entre todos. Por isso mesmo que prega a paz e reafirma a necessidade de que todos se irmanem na construção do bem comum. É a visão universal sobre o bem que reacende nas palavras de Lucas: ""Digo-vos a vós que me ouvis: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos maldizem e orai pelos que vos injuriam. Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra. E ao que te tirar a capa, não impeças de levar também a túnica. Dá a todo o que te pedir; e ao que tomar o que é teu, não lho reclames. O que quereis que os homens vos façam, fazei-o também a eles" (Lc, 6, 27-31).
São João, por sua vez, procura mostrar que ao homem não é dado o direito de pecar por falta de ensinamentos, pois as lições, os exemplos sobre as grandes virtudes e os norteamentos para uma vida segura com a fé em Deus estão nas Escrituras, na Igreja e no próprio homem. Daí afirmar: "Em verdade, em verdade, vos digo: aquele que crer em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas; porque vou para o Pai" (Jo, 14, 12).
Assim, se indeciso pelo amanhã que virá, não seria demasiado pedir ao homem que mesmo assim vá, ao amanhecer, com o seu cesto de responsabilidades colher os frutos saudáveis ou apodrecidos. Não somente colha-os como também os experimente, pois neles estará o sabor que merece sentir pelas ações praticadas ontem.



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NO REINO DO REI MENINO – XLV

NO REINO DO REI MENINO – XLV

Rangel Alves da Costa*


Logo ao amanhecer, parecendo ainda estar em festa de tanta alegria e disposição, Otnejon reuniu os seus homens, mandou que preparassem o casal para a viagem e fez os últimos preparativos para ir tomar posse da fortuna, em qualquer lugar onde ela estivesse escondida. Considerando o local onde Lucius e Lize foram encontrados e presos, até que seria um percurso fácil e tranqüilo, pois até a natureza estava a seu favor naquele dia. Se houvesse sinais de tempestades nem sairia debaixo da cama, por medo.
Antes de saírem do castelo, o baixinho mal-afamado foi ter uma rápida conversa com o ex-soberano de Oninem para saber o local exato aonde iriam. Lucius respondeu que deveriam seguir até o lugar onde haviam sido encontrados, pois de lá seria mais fácil indicar onde estariam escondidos os bens. Depois seguiram viagem, sendo que dessa vez os dois não iam puxados pelo pescoço feito animais, mas sim com as mãos amarradas e ladeados pelos guardas ressacados do baixinho.
Assim que caminharam cerca de um quilômetro após os muros de Edravoc o tempo começou a mudar, surgindo umas nuvens negras no céu. O baixinho, já assustado mas não querendo perder a oportunidade de colocar rapidamente as mãos na fortuna, esforçava-se a todo custo para seguir adiante. Caminhava praticamente olhando para cima, com medo que viesse o temporal, e por isso mesmo tropeçava de palmo em palmo, caindo e muitas vezes rolando feito uma bola redonda sobre o chão. Numa dessas vezes pegou um arcabuz, que é uma espécie de bacamarte, e deu um disparo para o alto, gritando depois que aquele que ousasse sorrir dos seus tropeções seria atingido no traseiro pelo disparo da arma. Dois guardas acabaram sendo atingidos e tiveram que retornar.
Quando chegaram no exato local onde o casal havia sido encontrado, Otnejon nem demonstrou qualquer tipo de satisfação pela proximidade daquilo que tanto almejava, que era colocar as mãos nas joias e nas moedas que estariam em qualquer lugar ao redor. Pelo contrário, com o tempo se fechando cada vez mais, com nuvens negras ficando cada vez mais baixas, o mal-afamado rei a todo instante corria pra detrás de um pé de pau e se punha de joelhos como se estivesse rezando. Voltava olhando para o céu e se benzendo, como se a única coisa que temesse no mundo fosse as forças da natureza.
Os guardas, percebendo a difícil situação do baixinho, perguntaram a ele o que deveriam fazer agora, vez que já se encontravam no local onde Lucius deveria indicar onde os objetos estariam. E o baixinho assustado, totalmente desnorteado, apenas disse: "Hein, o que, onde? Onde eles estão, como estão, estão armados? Jogue água neles, depois um relâmpago, depois um trovão. Se esconderam debaixo do chão, onde, como, hein?". E foi quando o chefe dos guardas tomou uma drástica decisão e gritou o mais alto que pôde bem ao pé do seu ouvido: "Chegamos!".
Ao descer do ar do pulo que deu, Otnejon mostrou que tinha voltado ao seu estado normal de bestialidade, arrogância e frieza. Deu uma arcabuzada bem no ombro do rapaz que havia gritado e em seguida voltou-se para Lucius, de dedo em riste e ameaçador: "Diga antes que chova, senão...". E o fracassado e desonrado ex-soberano nem esperou ele terminar e ajuntou: "Está logo ali, numa gruta aberta num rochedo. Vamos rápido até lá que quero acabar logo com isso".
Caminharam vencendo os empecilhos da mata fechada, dos espinhos e pedras, e não durou muito para chegarem defronte ao verdadeiro tesouro aos olhos de Otnejon, que de tão extasiado com a vontade de se apoderar de vez da fortuna nem olhava mais para cima, para as nuvens que se abriam e a chuva que logo começaria a cair. "Tudo o que eu levava está aí dentro enterrado, é só procurar que vão encontrar um buraco coberto com areia, folhas e outros objetos. Desenterrem logo e decidam o que vão fazer com a gente depois" – Disse Lucius, sempre de cabeça baixa e evitando olhar para a esposa que soluçava.
Otnejon deu um grito e ordenou que procurassem o tal buraco imediatamente e quando encontrasse avisassem que era para ele ir até lá comandar a retirada cuidadosa dos objetos. Depois de matar algumas serpentes que faziam ninho ali, não demorou muito e os guardas encontraram o ponto exato no terreno onde deveria estar o tesouro. Só poderia ser ali, pois era a única cobertura falsa que haviam encontrado.
Assim, retiraram as folhas e os gravetos que estavam por cima, se armaram de pás e quando deram o primeiro sulco na terra esta cedeu e deixou à vista um buraco totalmente vazio. Vazio não, pois tinha algo parecido com um bilhete lá no fundo e a quase indecifrável escrita dizia: Olhem pra cima. Quando os guardas olharam os duendes despejaram sobre eles um cesto repleto de serpentes venenosas.
Correndo e pulando para se livrarem das serpentes, quando os homens chegaram na entrada da gruta para avisar ao baixinho sobre o ocorrido foi no exato momento em que um relâmpago riscou os céus e o estrondo de um trovão quase estremece onde estavam. Ao ouvir o trovão Otnejon nem pensou duas vezes e saiu em disparada, passando pelos guardas e indo parar dentro do buraco, onde caiu enrolado parecendo um tatu.
Lá em cima da gruta, já invisíveis, os duendes sorriam pra se acabar.


continua...



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Ainda (Poesia)

Ainda


Ainda que do desejo
quede o ser invencível
que sou
e ajoelhado implore
tua volte e teu ficar
não te sintas
com voz de ordenar
que não
pois ao levantar
renegado e ferido
mostrarei meu persistir
contente no incontido
mesmo que sozinho
viva do amor
que tenho
por não ter tido.


Rangel Alves da Costa

O PASSAGEIRO DA POLTRONA 6 (Crônica)

O PASSAGEIRO DA POLTRONA 6

Rangel Alves da Costa*


A viagem seria longa e cansativa, porém o destino ainda era incerto. Belas paisagens, pedaços de vidas pelas beiradas da estrada, sol que nascia e sol que se punha, noite que surgia e noite que ressurgia; pessoas sentadas no veículo, conversando, sorridentes e felizes; pessoas em pé nas paradas para o descanso e para o regalo da gula, sorridentes de bocas cheias, felizes com a viagem. Somente um passageiro, o da poltrona 6, não conversava com ninguém, não sorria, não descia, apenas viajava com o seu jeito todo diferente de ser.
Quem seria aquele viajante da poltrona 6? Tamires disse que o conhecia de algum lugar, mas não lembrava exatamente de onde; Tércio tinha certeza que ele estava com algum problema, por isso mesmo precisavam conversar com ele para saber se estava sentindo alguma coisa ou necessitando tomar remédios; Alaor jurou que o indivíduo era completamente maluco, louco de pedra, e que por isso mesmo precisavam ter muito cuidado com ele (disse até que poderia estar carregando algum tipo de arma); Soninha só achou ele bonitinho, com os olhinhos tristes de apaixonado e com jeito de pessoa solitária que precisa de alguém para reacender as chamas do seu coração; Ana não via nada diferente nele, que devia apenas estar indisposto para conversar com as demais pessoas e fazer o que elas faziam.
O velho Abelardo disse que tinha a resposta na ponta da língua para aquela questão e disse baixinho para os demais: "Não tão vendo não, ali é um extraterrestre, um ser de outro planeta que está esperando apenas que seu disco voador chegue para levar todos nós, com transporte e tudo. Vou mandar o carro parar agora mesmo e descer, antes que seja tarde demais".
Verdade é que cada passageiro opinava de uma forma diferente sobre aquele indivíduo sentado na poltrona 6. Este, sem ter companhia alguma na poltrona ao lado, viajava tranquilamente, sempre alerta e com o olhar quase sempre voltado para as paisagens que noite e dia iam se vislumbrando. Parecia nunca ter sono, pois ninguém o via cochilar; parecia não ter fome e sede, pois nunca descia do transporte para fazer um lanche, tomar uma água ou ir ao banheiro. Quando não estava olhando a natureza através da janela, a única coisa que fazia era ler um livro grosso, encadernado de modo que não podia se ver nem o título nem o autor. Era bem velho o livro; era ainda jovem o passageiro.
Na parada seguinte do veículo, todos passageiros desceram e o rapaz ficou lá sentado, sereno, indiferente na sua poltrona, olhando para fora da janela. Diferentemente do que sempre acontecia nas outras vezes, os viajantes não se dispersaram nos seus afazeres, procurando se reunir embaixo de uma tenda para tomarem um posicionamento definitivo sobre aquele passageiro da poltrona 6.
Alguns afirmavam que daquele jeito era impossível que continuassem a viagem, vez que já temiam aquela estranha presença e as conseqüências que isto poderia causar; outros achavam por bem aproveitar um trecho deserto da estrada e expulsá-lo, fazendo que abandonasse o veículo por bem ou por mal; e ainda outros se posicionaram no sentido de que seria melhor formar ali mesmo um pequeno grupo para ir até lá e resolver aquela situação através do diálogo. Optaram por esta última ideia, contudo ninguém queria fazer parte desse grupo que iria conversar com o rapaz. Soninha não queria demonstrar, mas já estava completamente apaixonada por ele, soltando suspiros quando passava perto.
Nada feito. Todos retornaram ao veículo e continuaram a viagem assim mesmo, se benzendo, rezando e até com gente chorando. Somente Soninha parecia estar em outro mundo. Se o rapaz da poltrona 6 quisesse fazer alguma coisa seria naquele longo e deserto trecho, pois a próxima parada seria no local do destino da viagem. Quando lembraram desse fato os ânimos mudaram, ficaram alegres e contentes. Então foi quando alguém perguntou qual seria realmente o destino. Gestos de espanto e dúvida tomaram conta novamente daqueles passageiros. Para onde iriam mesmo?
De repente, o jovem se levantou e se encaminhou para o motorista, falando algo ao seu ouvido e gesticulando com a mão, como a indicar que entrasse por outra estrada. Aí o mundo começou a desabar: "Socorro", "Vai ser agora", "Pulem, pulem todos pela janela se quiserem se salvar", eram gritos e mais gritos, pessoas em polvorosa, gente desmaiando. E foi quando o rapaz olhou para todos naquele vexame todo e disse:
- Calma, calma que já estamos chegando. O hospital psiquiátrico fica logo ali. Façam todos os exames que depois retornaremos e vocês poderão comprovar para essa sociedade maluca que estão com o juízo, com as faculdades mentais em perfeito estado.
E o rapaz continua calmamente sentado na sua poltrona 6. Espera e espera e nada daquela gente retornar.




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NO REINO DO REI MENINO – XLIV

NO REINO DO REI MENINO – XLIV

Rangel Alves da Costa*


Os pais de Gustavo se tornaram invisíveis pela ação dos dois duendes, que haviam se transformado em verdadeiros anjos da guarda. Naquele instante em que Otnejon saiu correndo sem rumo com medo da tempestade, os verdinhos orelhudos se aproveitaram da situação e retiraram os dois da pocilga e em seguida, levando-os para se abrigarem das chuvas, dos raios e trovões, jogaram um pó encantado sobre eles.
A intenção dos duendes era aproveitar que o baixinho estava ausente e alguns dos guardas saíram à sua procura para tirar os dois dali. Contudo, por mais que as forças da magia pudessem colaborar na retirada deles do castelo, sem que ninguém percebesse, o problema era a precariedade da saúde deles, cujos sofrimentos no corpo e no espírito dificultavam muito a locomoção. Por enquanto, até que retomassem mais vigor, a invisibilidade seria o único meio de protegê-los da fúria sanguinária do baixinho.
Para os dois foi como se não tivesse acontecido nada, pois podiam ver, ouvir, falar e sentir; mas para os demais foi como tivessem sumido, desaparecido de repente. Somente os seres das florestas, que também ficavam invisíveis quando bem entendessem, podiam vê-los onde estavam. E estavam escondidos, se é assim que se pode dizer, numa dispensa sem movimentação alguma que ficava bem próximo da cozinha do castelo. Ali comiam e bebiam o que os dois amiguinhos orelhudos surrupiavam na cozinha e traziam.
O problema é que aos poucos o aspecto físico dos dois foi ficando novamente visível, tendo os duendes que jogar novas poções da poeira mágica sobre eles. Contudo, o pó acabou exatamente quando novos guardas contratados pelo rei mal-afamado estavam realizando uma nova ronda, procurando Lucius e Lize em cada aposento e em cada canto do castelo. Haveriam de encontrar, havia prometido o rei, ainda nos seus delírios intermináveis.
Assim que os guardas abriram a porta da dispensa encontraram os dois num canto, sentados no chão imundo e abraçados, unidos mais que nunca nas dificuldades. Não esboçaram nenhuma reação, também não tinham forças para tal, apenas protegeram os olhos da claridade do sol que entrava pela porta aberta. Quanta satisfação para os homens de Otnejon, quantos sorrisos, pulos, gritos e chutes no casal indefeso. Assim, após essa pequena festa de comemoração foram amarrados e conduzidos até à presença do rei.
Otnejon recebeu os dois enquanto se divertia segurando duas cobras venenosas e tendo outra enrolada ao pescoço. Segurava uma e a levava de encontro à cabeça da outra, dizendo "morde, morde, bichinha do papai, morde". Ficou uns cinco minutos nessa brincadeira macabra, parecendo que não estava vendo nem os guardas nem o casal de prisioneiros. Quando quis chamou dois guardas e mandou que um retirasse a cobra enrolada no seu pescoço e colocasse no dele e o outro continuasse brincando com as outras duas serpentes agitadas, como estava fazendo até aquele momento. Como os dois homens, num surto de tremedeira instantânea, se negavam a cumprir a ordem, o baixinho pegou duas setinhas envenenadas e jogou certeiramente contra eles. Não demorou dois minutos e os dois estavam estendidos com as peçonhentas passeando sobre os seus corpos.
Se dirigiu até outra sala e ordenou que trouxessem os dois prisioneiros. Sentado de costas para os dois, com as duas pernas sobre um banquinho, bebia um líquido desconhecido quando começou a falar:
- Vocês andavam sumidos, quantas saudades eu senti, até chorei sentindo a falta dos dois amiguinhos tão queridos, mas agora sou outro homem e estou muito feliz em revê-los. Gosto tanto de vocês que juro que não vou deixar que se separem de perto de mim um só instante, nunca mais – Ficando em pé de repente e jogando o banquinho na parede, falou bem alto e de forma assustadora -, até que me digam de uma vez por todas onde está escondida aquela maldita fortuna que me pertence e vocês me roubaram. Digam agora mesmo ou vou até aí e mato vocês de mordidas e depois como o coração de vocês ainda quentinhos, bebendo desse sangue que era azul e agora nem vermelho é mais, porque não vale nada. Digam...
- Direi senhor...
Para espanto da esposa Lize e até do baixinho furioso, que ao ouvir tais palavras tropeçou uma perna na outra e se estatelou no chão, Lucius fraquejou de vez e tendia agora demonstrar que não era mais o homem corajoso, ex-soberano de Oninem e com um sangue de bravura e valentia que, quisesse ou não, ainda lhe corria nas veias.
Fraquejou porque se sentia inútil e culpado por aquilo tudo que estava ocorrendo com sua amada esposa, em crescente estado de sofrimento. E fraquejou porque não podia suportar mais as chantagens do baixinho e os tantos atos cruéis que presenciava, sabendo que a qualquer instante a insanidade daquele homem imprevisível faria recair sobre os seus corpos todas aquelas atrocidades que estava vendo com relação aos outros. Fraquejou porque estava mostrando ser indigno da condição de pai do grande rei menino Gustavo.
- Como é, como foi que falou? Repita meu amiguinho, você disse que... – Falou Otnejon, de quatro no chão, tentando se levantar.
- É isso mesmo o que ouviu. Se prometer que libertará minha esposa, livrando-a desse sofrimento todo, juro que o levarei até o local onde a fortuna está escondida – Confirmou Lucius, chorando de cabeça baixa.
Como era de se esperar, o baixinho aceitou no mesmo instante a condição imposta, afirmando somente que ela seria cumprida assim que a fortuna fosse encontrada. E mandou que jogassem água sobre eles, dessem algum resto de alimentos e deixassem cochilar naquela noite, sob severa vigilância.
Ainda no local onde havia recebido a notícia que tanto esperava, o baixinho pulava, fazia gestos de dança, bebia, cantava e chorava de alegria. Nessa fúria de contentamento é que resolveu dar uma festinha naquela noite para os guardas ali no palácio, com direito a bebida e um pouco de carne. E assim foi feito. O que os guardas não ficaram sabendo é que a carne assada que consumiram com as estranhas bebidas na verdade eram pedaços daqueles dois jovens amigos mortos pelo desumano e terrível baixinho.


continua...



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Receita desesperada de amor (Poesia)

Receita desesperada de amor


Segure a poesia com cuidado
coloque no vão da janela
faça sair do papel cada palavra
coloque as letras na mão
espere a ventania chegar
e depois sopre sem destino
Feche novamente a janela
deite na cama desarrumada
entristeça a tristeza que houver
chore a lágrima que vier
mas não soluce muito alto
para ouvir se batem na janela
Se o resto da noite
for de silêncio e dor
e nenhum toque na janela ouvir
é porque o seu poema não voltou
e alguém está lendo agora
para responder qualquer dia.



Rangel Alves da Costa

CARTA ENVIADA DO CÉU (Crônica)

CARTA ENVIADA DO CÉU

Rangel Alves da Costa*


Não se sabe se chegou no vento, não se sabe se foi trazida por um anjo, não se sabe de qual norte ou sul apareceu, mas a verdade é que a carta chegou, timbrada com o selo do céu, lacrado com o supremo brasão da cruz. A mesma carta, contudo, estava por todos os lugares, embaixo das portas, nos bancos das praças, endereçada a quem lhe abrisse primeiro.
Memento homo quia es pulvis et in pulverem reverteris, eram as primeiras palavras: Lembra-te, homem, de que és pó e em pó hás de tornar.
E antes que vejas o céu como última moradia do teu ser, responda a primeira pergunta: Tu amas a Deus sobre todas as coisas? João pensou e pensou e respondeu pra si mesmo que sim, e que o seu amor era tanto que se sentia no direito de dizer que em muitas pessoas esse devoção parecia não ser correspondida. E lembrou da pobreza pelo mundo matando crianças inocentes, da violência que ceifa vidas cujo bem maior que possuem é a fé, da indiferença que se alastra nos homens que são filhos de um mesmo pai e que deveriam saber que são filhos de um só pai.
E antes que subas pelas escadas das tuas ações e alcance os portais do céu, responda a segunda pergunta: Tomas o nome do teu Deus em vão? Célia pensou e pensou e disse a si mesma que reconhecia guardar esse pecado consigo, mas ao mesmo tempo se justificou afirmando que diante da carência e do medo do ser humano em todas as situações da vida, não há nada a se fazer senão invocar o nome de Deus em tudo, até mesmo nos momentos indevidos. Assim, deveria ser perdoada porque o que pronuncia não é um desrespeito ao nome do Senhor, mas sim uma forma de dizer que este ser superior está presente em tudo que faz na vida.
E antes que desejes ser recebido em festa nas portas do céu, responda a terceira pergunta: Tu guardas os domingos e feriados para santificar o nome do Senhor? Suzete pensou e pensou e disse a si mesma o quanto acharia bom que isso fosse possível, trabalhando os seis dias da semana e reservando o sétimo dia para realizar as boas obras desejadas por Deus. Contudo, pensou a mocinha, nos dias em que vivemos, onde o trabalho incessante e ininterrupto se tornou em verdadeira necessidade de sobrevivência, dificilmente encontramos qualquer dia na semana para nós mesmos, para refletirmos sobre a vida, para repousar e descansar. O ser humano não comanda mais os seus dias, não tem mais o direito de deixar de viver seu momento para se entregar às boas ações. Que estas sejam feitas sempre, mas no mesmo cotidiano em que o trabalho para a sobrevivência chama e exige.
E antes que se arvore no direito de adentrar no reino dos céus, responda a quarta pergunta: Honras teu pai e tua mãe? Lúcia pensou e pensou e começou a chorar. Começou a lembrar dos seus pais quando vivos, quanto amor verdadeiro sentia por eles, quanto respeito aos dois devotava, vivendo sob os conselhos daquelas autoridades nas palavras e amigos no ensinar a caminhar sempre pelos melhores caminhos. Este pecado da desonra aos genitores nunca tinha prosperado na sua alma bondosa e consciente de filha.
E antes que digas que teus atos testemunham pela tua entrada no céu, responda a quinta pergunta: A pessoa pode tirar a vida de outra ou dar fim à própria vida? Sinésio pensou e pensou e disse a si mesmo que essa pergunta era mais difícil de se responder do que imaginava. Ora, pensou ele, se todos tivessem a exata noção da importância da vida, do valor que tem cada ser humano e das conseqüências religiosas, morais e jurídicas que refletirão naquele que tira a vida do outro, logicamente que o mundo estaria livre dos homicídios e suicídios. Porém, o homem vivendo entre feras tem que se defender, e muitas vezes atacando, cortando a raiz daquele que quer lhe deixar sem sementes. É por isso que as desgraças existem e tal pecado será muito difícil de ser extirpado da terra.
E antes que proclames aos quatros ventos que a tua entrada no céu já está garantida, responda a sexta pergunta: Tu pecas contra a castidade? Solange pensou e pensou e disse a si mesma que hoje em dia se contam nos dedos as pessoas que sabem o que seja castidade, mas não se pode contar o número de pessoas que vivem no pecado, do pecado e na total perdição. Até tem um ditado que diz que a castidade abortou antes de casar.
E antes que digas que já estás com as chaves do reino dos céus, responda a sétima pergunta: Já roubaste? Astromar pensou e pensou e disse a si mesmo que não iria nem pensar em responder, pois roubar goiaba do quintal do vizinho ou uma rosa do jardim não deve ser considerado pecado, pois toda criança faz isso. Mas depois pensou nos assaltantes, nas taxas de juros que as pessoas são obrigadas a pagar e nos políticos, e resolveu que não iria mesmo responder a pergunta. Disse que nem precisava.
E antes que convide amigos porque tua infinita bondade lhe assegura um camarote no céu, responda a oitava pergunta: Tu levantas falso testemunho contra teu próximo? Gracinha pensou e pensou e disse a si mesma que a maioria das pessoas não diz a verdade nem quando prestam juramento em juízo, quando mais nas relações interpessoais, onde imperam os verdadeiros modismos de se diminuir ou aumentar os fatos, a criação de situações inexistentes somente para prejudicar, bem como as dissimulações e as hipocrisias.
E antes que diga que o céu pode esperar e guardar o seu lugar, responda primeira a nona pergunta: Desejas a mulher do próximo? Josimar nem pensou, apenas ficou sorrindo e falando pra si mesmo como certas perguntas são inocentes, nunca teve e nem tem cabimento de se perguntar. Mas ora, disse ele, se é ela mesma que não se dá o respeito e procura ser desejada, principalmente quando o próximo não está próximo.
E antes que diga que já tem vaga no reino dos céus e com um carro novinho na garagem, responda a décima e última pergunta: Tu cobiças as coisas alheias? Neusa pensou e pensou e disse a si mesma que não, pois praticamente era uma pessoa pura e sem pecados, que nunca teve vontade de ter mais do que tem, a não ser o emprego de Matildes, o carro de Jessé e as roupas que Marina usa.
Por fim, na missiva enviada do céu havia ainda uma observação na parte final do texto: Se todas as respostas dadas estiverem em consonância com os ensinamentos divinos todos receberão suas chaves no momento certo. Do contrário, e em caso de desempate, será feito um sorteio com uma bolinha branca e outra preta. Se cair a bolinha preta...



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NO REINO DO REI MENINO – XLIII

NO REINO DO REI MENINO – XLIII

Rangel Alves da Costa*


No exato instante em que o rapaz fazia menção para entregar o embrulho ao menino rei, Bernal soltou um espantoso grito, desviando a atenção de todos:
- Majestade, majestade afaste-se daí imediatamente e nem ouse tocar nesse objeto, seja lá o que for. Se veio de Edravoc não pode conter coisa boa, devendo estar carregado de coisas ruins, de espíritos ruins, de feitiçaria, das maldições da magia negra. Afaste-se daí já e deixe que eu me encarrego de receber e verificar o que tem dentro desse embrulho. Entregue-me rapaz. Você foi muito corajoso em estar andando com isso aqui, sem saber bem o que é e o seu significado, mas não torne a fazer o mesmo outra vez, pois poderá ser tarde demais. Até que você deu sorte. Quem sabe não poderia essa hora estar transformado numa cobra de dez cabeças, num jacaré-lagartixa ou numa lagartixa-elefante ou coisa parecida... – Falava todo agitado o feiticeiro, segurando o embrulho e se dirigindo até um dos cantos da sala para abri-lo.
Se num instante atrás o rapaz estava tremendo dos pés a cabeça, com medo da reação de Gustavo ao se deparar com a mecha do cabelo de sua mãe ali embrulhada, agora, diante da reação espalhafatosa de Bernal, não sabia se continuava relatando a sua viagem ou danava-se a gargalhar. Assim que resolveu repassar o restante das informações ao rei, começou a ver uma cena mais que inusitada.
No canto da sala, depois de fazer alguns gestos da magia e cuidadosamente ir abrindo o embrulho, ao observar que ali estava uma porção de cabelo alourado e aquela mecha não poderia ser de outra pessoa senão da mãe de Gustavo, o feiticeiro do bem perdeu totalmente a cor, quis gritar sem sair voz alguma, começou a suar frio e a sacudir o corpo inteiro e acabou desmaiando.
O menino rei, que não viu nada disso porque estava de costas para o feiticeiro, quando foi alertado pelo rapaz sobre o acontecido, virou-se rapidamente e gritou chamando os empregados do castelo:
- Acudam aqui que Bernal teve algum surto e acabou desmaiando. Tragam o óleo de cânfora e outros extratos aromáticos, tragam também um bom copo de vinho para fazer com que ele engula – E falando para o enviado – Mas o que foi isso mesmo, hein? Já sei, só pode ter sido aquele embrulho que ainda está na sua mão. Deixe-me ir até lá para tirar a limpo essa história de uma vez por todas.
Bernal, que já estava abrindo os olhos e se recuperando, assim que viu o menino rei puxar o embrulho de sua mão desfaleceu novamente. O rapaz tentou convencer Gustavo a não olhar o conteúdo, mas não teve jeito. "Se existe uma coisa que eu não tenho medo é de feitiçaria. Vamos ver o que tem aqui...", e colocou a mão dentro do embrulho e puxou aquela mecha alourada de cabelos. Quem estava quase dando um troço era o rapaz, que não sabia mais o que fazer e muito menos explicar aquilo ao menino.
- Mas olha, são cabelos e são louros como os da minha mãe, só que os dela não são assim tão estragados. De quem são esses fios que saíram de uma cabeça e vieram parar aqui e principalmente por que vieram parar aqui? – Perguntou ao coitado do rapaz, que naquele momento desejava mesmo era voar pela janela ou afundar chão abaixo.
- Ora majestade, lembra que eu fui até aquele reino também com a incumbência de saber quem era a segunda pessoa mais importante de lá? Pois bem, encontrei essa pessoa e se trata de uma mulher, e para que mais tarde vossa majestade acreditasse no que eu estaria dizendo é que implorei a ela que me concedesse como prova alguns fios dos seus louros cabelos, e eis que aí estão neste embrulho, graças a bondade daquela velha senhora – O rapaz procurou de qualquer forma dar um jeito naquela situação, arrumar uma desculpa, de modo que o menino não pudesse cismar que aqueles cabelos eram realmente de sua mãe. Estava tentando se sair, mas não estava fácil não.
- Você disse uma velha senhora? Mas o que é que tem a ver uma velha senhora com esses cabelos que estão aqui, pois ao que me parece esses fios louros, mesmo estragados, não são de uma pessoa tão velha assim não. Ademais... – E o rei teve que ser interrompido pelo aflitivo rapaz, que quase não estava mais suportando aquela pressão.
- Desculpe majestade, mas veja que são cabelos louros e cabelos dessa cor não embranquecem tão facilmente não, principalmente quando a dona destes cabelos é uma pessoa que não faz muito tempo vivia nos luxos dos palácios, nos cremes e nos cuidados. E vou dizer logo tudo, para que a minha missão seja logo inteiramente relatada: a dona desses cabelos é a mãe do rei de Edravoc, o maldito baixinho Otnejon. Ela, como vossa majestade queria saber, é a segunda pessoa mais importante daquele reino – Mentiu, e mentiu tanto com relação à dona dos cabelos, que parecia extasiado dizendo a mais pura verdade, aliviado por ter modificado os fatos segundo achou mais coerente para a ocasião.
Tendo ouvido isso Gustavo largou o embrulho e arrastou o rapaz para onde estavam antes. "Me fale tudo, mas tudo mesmo sobre essa mulher". E o rapaz contou fielmente toda aquela passagem junto com a senhora abandonada pelo filho poderoso. Os olhos do menino brilharam de tal modo e a sua pele ficou tão avermelhada de emoção que quase sua voz não sai. Mas o rapaz ainda conseguiu ouvir bem quando ele disse:
- Vou trazer essa senhora para cá. Ele está com minha mãe e eu estarei com a mãe dele, só que de um jeito diferente.


continua...



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Ad Infinitum (Poesia)

Ad Infinutum


Um grão de areia, um monte
Uma pedra, uma construção
O cimento que une e fortalece
O calor das horas
O suor dos dias
As mãos que retocam
Os olhos que sentem prazer
E eis dentro de nós
O amor arduamente erguido
O amor bravamente construído
Para durar enquanto nós
Acharmos que é infinito.



Rangel Alves da Costa

NO REINO DO REI MENINO – XLII

NO REINO DO REI MENINO – XLII

Rangel Alves da Costa*


Gustavo desceu apressado, quase correndo, com Bernal vindo logo atrás esbaforido. Tinha imenso interesse em saber o que o seu enviado a Edravoc tinha tomado conhecimento na sua breve estadia por lá, em missão pra lá de especial e arriscada. Sorte ele ter retornado com vida, e mais sorte ainda seria se o mesmo tivesse cumprido as tarefas segundo o planejado e obtido as informações que o pequeno rei tanto necessitava.
O menino rei lembrava bem ter ordenado ao enviado que obtivesse as maiores informações possíveis sobre aquele reinado e o seu rei, sobre a situação de seus pais enquanto prisioneiros de Otnejon, sobre quais as medidas que este poderia tomar em relação a eles, e ainda procurar saber qual era a segunda mais importante do reino, com suas características e tendências.
Assim que pôs os pés na sala de recepção, Gustavo foi logo dizendo em tom animador: "Folgo em vê-lo meu rapaz, todo inteiro, sem ter deixado um pedaço sequer naquele maldito lugar. Pelo visto é um excelente cumpridor de ordens, tendo se desincumbido das tarefas antes mesmo do que eu esperava. Será recompensado por isso. Mas espero que tenha trazido novidades boas, coisas interessantes, pois hoje não marquei no meu calendário nenhuma preocupação maior não. Sente-se e vamos ao que nos interessa".
Após as palavras do rei o rapaz ficou num misto de contentamento e preocupação. De um lado estava muito agradecido pela calorosa recepção, mas por outro lado temia que o que tinha a relatar não fosse muito do agrado do pequeno soberano. Isto se veria depois, pensou, e em seguida tirou do bornal um manuscrito contendo uma espécie de relatório de sua viagem. Não foi possível entregá-lo porque foi avisado que aquele procedimento seria totalmente desnecessário, vez que ele queria ouvir tudo o que havia se passado no reino do baixinho mal-afamado pela sua própria boca, de viva voz. E assim começou o rapaz:
- Senhor rei, todas as ordens foram cumpridas, mesmo que a duras penas, e sobre todas elas trago alguma resposta, sendo algumas mais alentadoras e outras mais preocupantes, para não dizer doloridas. Em primeiro lugar, aquilo ali que se chama Edravoc não é nem nunca será um reino, parecendo mais um pandemônio, umas esquisitas construções abrigando um povo empobrecido, na maior miséria do mundo, vivendo nos arredores de um suntuoso palácio para o lugar. É numa mistura de palácio e fortaleza onde se esconde o maldito Otnejon, indivíduo asqueroso e nojento, com cerca de um metro de altura com rabo e tudo, meio gorducho e barrigudo. A cor de sua pele é difícil dizer com precisão, pois o nojento muda de cor segundo seu humor. Infelizmente tive a oportunidade de estar cara a cara e até conversar com ele...
- Como foi, como foi? Diga, diga – Animava-se Gustavo, interessado no relato.
- Eu estava do lado de fora do palácio, espionando como se não quisesse nada, quando fui levado à força até a presença do tal Otnejon. Que homem mais esquisito aquele. Então ele disse que sabia que eu estava espionando o seu palácio e a mando de quem, e foi quando falou em vossa pessoa com ar de desdém, dizendo que aqui era um reino de brincadeira e que iria invadir se o pequeno rei não fizesse o que ele queria...
- Já sei, ele quer a coroa não é mesmo? – Interrompeu Gustavo, indagando.
- Isso mesmo, mas ele disse mais. Disse que os seus pais estão presos no castelo e somente serão libertados em troca da coroa. Além disso – Ficou totalmente nervoso sobre o que iria falar, mas havia decidido que não mostraria a porção de cabelos de sua mãe enviada por Otnejon como presente -, ele afirma que se não aceitar a proposta os seus pais correm um grande risco de vida.
As feições de Gustavo mudaram totalmente. Ficou com aspecto sério, fechado, passando depois a demonstrar entristecimento. Enquanto levantava para ir até uma das janelas, de modo a tentar esconder um pouco a repentina mudança no semblante, foi falando de costas para o rapaz:
- Chantagens, chantagens e mais chantagens, é somente isso que esse maldito sabe fazer, como se eu tivesse um pingo de medo de suas ameaças. Ele verá mais cedo do que pensa que eu não ameaço, mas ajo com o rigor que os bandidos e covardes merecem. E garanto que tirarei os meus pais de lá sem que eles tenham perdido um fio de cabelo sequer.
Quando ouviu tais palavras, mesmo sentado o rapaz estremeceu dos pés a cabeça. Uma mecha dos cabelos da mãe do pequeno rei estava com ele, dentro de um pequeno embrulho. Não sabe qual seria a reação do menino se ao menos desconfiasse do conteúdo que carregava. Por isso mesmo decidiu não entregá-lo de jeito nenhum. Contudo, nesse nervosismo todo o embrulho caiu bem no momento que o pequeno rei estava retornando.
- O que é isto que caiu meu rapaz, será um presente que me trouxe daquele maldito reino? Deixe-me ver – E se encaminhou com a mão estendida até o rapaz.


continua...



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LAUDO SOBRE A MORTE DO AMOR (Crônica)

LAUDO SOBRE A MORTE DO AMOR

Rangel Alves da Costa*


Diferentemente do que as pessoas especulavam e toda a imprensa noticiava, o amor não morreu de infarto, de complicações orgânicas, de falência múltipla dos órgãos, de morte matada, de overdose, por suicídio ou acidente, mas sim de causa indeterminada. Ao menos é isto que consta do laudo.
Na verdade, o exame de necropsia da morte do amor, cujos dados constam no laudo, em linhas gerais informam que "o sentimento profundo de um coração apaixonado" não suportou "as reiteradas desilusões que eram constantemente perpetradas contra seu profundo e inocente desejo de ser correspondido", com a conseqüente "paralisia das esperanças e dos sonhos" e uma terminal "infecção na confiança traiçoeira do outro", cujos elementos em seu conjunto "redundaram na passagem para o além desse ser incompreendido que só queria amar", "sem qualquer aparente dano físico, apenas com um trauma profundo no coração". Consta ainda que morreu sozinho, enquanto pensava em alguém, na flor da idade e na rua das flores esquecidas, sem número, no conjunto da saudade.
Indaga-se, então: Por que o exame é tão conclusivo e fizeram constar do laudo que o amor morreu de causa indeterminada? Não seria morte natural? Simplesmente porque acharam que seria muito poético afirmar que o amor morreu de amor. Tal confirmação, contudo, geraria outro problema de interpretação, pois alguém poderia dizer que se o amor morreu de amor cometeu suicídio, pois aquele que se arrisca a demonstrar que ama demais, que deseja demais, que possui paixão verdadeira, outra coisa não faz senão estar desgostando da própria vida e preparando-se para dar morte a si mesmo.
Mas o amor não teria motivo algum para cometer suicídio, alguém poderia dizer. E certamente acrescentaria que não tinha motivos para tal porque ainda amava e esse amor, mesmo que transformado em martírio e sofrimento, seria o instrumento maior para a superação, para dar a volta por cima e encontrar outro amor verdadeiro. É que aprendendo com os próprios erros, mais cedo ou mais tarde o amor passa a conhecer seus limites e não ultrapassará a voz da razão nem deixará se enganar com as falsas promessas, com as exigências além do que pode doar e muito menos com o outro amor que ama somente da boca pra fora.
Ora, considerando-se que todo amor é forte e expressivo demais para morrer de morte indeterminada, e nem que tenha cometido suicídio, o problema que causou a sua desgraça só pode ter sido o desgosto, concluiu um estagiário de medicina. Desgosto porque quando as pessoas de repente morrem e sempre põem a culpa no infarto ou ataque cardíaco, outra causa não foi senão a tristeza crônica, a solidão eternizada, a rejeição injustificada e o constante sentimento de abandono, tudo isso causando um profundo desgosto na vida, que é um passo certeiro para a morte. E em todos esses casos citados a causa geralmente foi determinada pelo amor desamado. Assim, o desgosto no amor foi a causa mortis do amor.
Ao ler sobre tantas discussões e pontos de vista contraditórios, uma jovem humilde, que há algum tempo vinha tendo sérios problemas com a síndrome do amor não correspondido e que estava fazendo tratamento para desamar, sintetizou bem a questão em sua desgastado "meu querido diário" e talvez tenha sido muito mais coerente do que os legistas e outros profissionais da medicina:
"Puro engano desses que querem encontrar causas para a morte do amor, pois aquele sentimento que viram estendido sem vida era uma paixão mal resolvida que não suporta qualquer dor de saudade e desfalece. Pois o amor verdadeiro, por ser imune às epidemias da banalidade e aos surtos das relações passageiras, nunca morre, eterniza-se enquanto durarem sobre a terra as pessoas de sentimentos verdadeiros. Ademais, mesmo que queiram chorar sua partida e enterrar seus restos em qualquer vão escurecido e solitário, o amor é espírita e reaparece, retorna para cumprir seu papel; o amor é fênix e renasce das cinzas ainda mais forte; o amor é amor e basta-se em si mesmo para ser imortal".
De qualquer modo, no velório daquilo que se tinha por amor, morto por morte indeterminada, estava presente somente o amor que não havia morrido. Chorou e por vezes quis estar naquela feição de ausência, mas pensou e pensou e concluiu que era muito melhor continuar cumprindo sua sina dentro daqueles corações que procuram ser felizes em seu nome.



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Imortal (Poesia)

Imortal


Não surgiu
pois já estava
Não plantamos
pois já flor
É hoje
pois ontem
e antes
É amanhã
pois hoje
e sempre
É eternidade
pois vontade
e construção
É imortalidade
pois amor
e certeza
É amor
pois poema
e palavra.
É amor
pois você
e o teu nome.


Rangel Alves da Costa

NO REINO DO REI MENINO – XLI

NO REINO DO REI MENINO – XLI

Rangel Alves da Costa*


Nas terras do Reino de Oninem habitavam centenas de seres das florestas. Eram duendes, gnomos, elfos, dríades, fadas, silfos, hamadríades, bem como centauros, unicórnios e outros elementais da natureza. Quando os dois duendes chegaram apressados pelos ares, com aspectos de preocupação e levando a coroa real, assim que tomaram conhecimento do que realmente se tratava aquele gesto que mais parecia uma ladroeice, logos se reuniram em torno do lago encantado para decidirem o que fazer.
As opiniões foram as mais divergentes possíveis. O centauro afirmou que seria melhor ouvir o senhor supremo do reino encantado sobre o que deveriam fazer; o elfo disse que essa ideia era a mais correta, só que levariam muito tempo para obterem uma resposta; o gnomo confirmou as palavras do elfo e pregou que eles mesmo deveriam buscar uma solução imediata; foi quando uma fadinha que bailava pelo ar pediu a palavra e perguntou se todos gostavam sinceramente do pequeno rei, e como todos responderam positivamente ela deu a grande ideia: vamos nos esforçar para fazer uma coroa igualzinha àquela que os duendes trouxeram, de modo que ele tenha a sua coroa de volta e possa vender a outra, já que os ditos compradores não vão perceber que é uma cópia.
- Mas como poderemos construir, de modo idêntico, uma coroa de ouro puro e da melhor qualidade, com todas aquelas joias e preciosidades que estão incrustadas nela? - perguntou o unicórnio.
- Boa pergunta e eis uma questão a ser resolvida. Mas eu sei que todos nós que vivemos nas florestas, seja de qualquer espécie for, muito ou pouco, mas tem ouro, pedras preciosas e diamantes escondido pelas tocas, grutas, enterrados em buracos, nos troncos das árvores. Não somente ouro, como também jades, rubis, diamantes e toda uma grande quantidade de esmeraldas. É só cada um querer, ir escondidinho buscar uma parte de sua riqueza onde estiver escondida e pronto, com o esforço de todos em pouco tempo construiremos uma coroa igualzinha à coroa verdadeira - Sintetizou o elfo, tentando resolver logo o problema e sem deixar saída para aqueles mais sovinas, mãos-de-figa.
Mas havia surgido outro problema, observou um duende. Sim, poderiam conseguir todos os minerais e metais necessários para fazer a coroa, mas onde trabalhá-la, lapidá-la, forjá-la no fogo, incrustá-la com o buril, pedra a pedra, diamante por diamante? Foi quando o unicórnio lembrou de algo muito importante:
- Nem todos devem lembrar, mas com certeza os mais velhos entre nós recordam daquela gruta da terra negra, escondida nas ribanceiras do grande paredão do sol, onde um velho e louco alquimista morava e fazia do lugar uma oficina para confeccionar objetos de metais, como escudos e lanças, e transformava em ouro alguns objetos da natureza, com o qual confeccionava artesanalmente lindas joias. Dizem até que essa coroa de Oninem foi o último trabalho do velho, que de tanto buscar a perfeição se esforçou demais e morreu assim que ela ficou pronta. Assim, poucos sabem, mas essa velha oficina ainda existe e é lá onde vamos fazer a cópia dessa coroa. Se a primeira foi feita lá a segunda também será.
A partir desse instante mandaram chamar com urgência os melhores, mais hábeis e mais rápidos ferreiros, artesãos e ourives entre os seres das florestas. Procuraram a amedrontadora e abandonada gruta, fizeram uma limpeza geral nos instrumentos de trabalho ainda totalmente conservados, alimentaram o maquinário rústico, reativaram o forno, acenderam grandes fogueiras, colocaram em condições de uso a fornalha, o fole e a bigorna.
Sacos e mais sacos de ouro bruto foram sendo trazidos, pacotes e mais pacotes de pedras preciosas foram sendo colocados à disposição dos exigentes e competentes trabalhadores das florestas. A todo instante o metal era levado e retirado da forja, moldado, retocado, dando forma ao símbolo real no mais puro e maciço ouro, sendo incrustado depois com todas as pedras existentes na coroa original, observando-se milimetricamente cada detalhe, cada disposição de rubi, cada local exato desse ou daquele diamante. Assim, nesse verdadeiro ofício de abnegação e prazer, a coroa ficou pronta num tempo muito mais curto do que o esperado, e quando as duas foram colocadas lado a lado somente os artesãos sabiam distingui-las.
Assim que os trabalhos foram encerrados e realizadas as cerimônias habituais de agradecimentos, os dois duendes que trouxeram a coroa original foram encarregados de fazer o transporte dos dois objetos até o castelo. Foi no momento que entraram feito raio no grande salão onde estavam reunidos o pequeno rei e a comitiva de compradores, que o velho sacerdote se assustou com os dois vultos passando em disparada.
Essa história, com todos os seus detalhes, foi contada por Bernal ao menino rei na torre do castelo. Gustavo não acreditava de jeito nenhum que os seres encantados tivessem conseguido tal proeza da forma como o feiticeiro relatou, mas também não podia duvidar, vez que de repente uma coroa supostamente roubada se transformou em duas. E isto ninguém poderia negar, pois estavam ali nos aposentos do castelo, servindo agora como instrumentos para que Oninem ganhasse forças suficientes para combater o mal que se avizinhava.
O pequeno rei até que gostaria de ficar mais tempo ali na torre, colocando em dia alguns assuntos pendentes, mas foi informado que o seu enviado ao Reino de Edravoc já havia retornado e estava lá embaixo lhe aguardando.


continua...



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GESTOS DE DESPEDIDA (Crônica)

GESTOS DE DESPEDIDA

Rangel Alves da Costa*


Cada gesto de despedida não diz somente sobre o adeus, até mais, até breve, voltarei. Cada gesto de despedida não é somente um distanciamento, uma ruptura mesmo que momentânea entre quem vai e quem fica. Cada gesto de despedida não significa apenas a dor incontida no peito, a lágrima verdadeira, a saudade que já é antes da ausência. Cada gesto de despedida não se caracteriza somente por uma porta que fecha e um passo que anda, um aceno que vai sumindo e um horizonte diferente pela frente.
Não, não é, pois cada gesto de despedida é o instante que pode ser tudo: tudo pode ter acabado ali, desfeito para sempre, impossível de se ter novamente. Ora, mas dirá que a saudade e a lembrança tornam os distantes presentes, a fotografia diz que ainda está ali, a vontade de ter preenche o vazio, a certeza da volta é o toque na porta. Quem dera fosse assim, e nossa vida seria uma agenda e não uma página solta com nomes riscados ou apagados.
Alguém que se diz hoje tal qual ontem, seria o mesmo de uma semana atrás? Alguém cujo corpo tem saudade do vigor da mocidade espera que mais tarde a mesma força física retorne? Alguém que ontem feriu de morte outro coração que amava, deseja hoje o perdão e o mesmo sentimento de antes? Alguém que bate a porta na cara espera que o outro esteja esperando lá fora para amavelmente retornar? Alguém que bruscamente partiu sem dizer adeus pensará em retornar para depois partir novamente de forma diferente? Alguém que se despede do outro deixa com este a palavra e a presença? Não, e não porque o segundo que passa já é o segundo seguinte e alguma coisa já se encaminha para mudar.
O ato da despedida, tenha certeza, possui um simbolismo muito maior do que se imagina. Pois a despedida, diferentemente do que costumeiramente se pensa, é muito mais do que a separação mais ou menos prolongada, a ruptura de relacionamento, a consumação do adeus, o sinal da partida, o remate, o encerramento, a conclusão. Como conseqüência, a força do simbolismo do ato de despedida reside no seu aspecto psicológico, pois os verdadeiros sentimentos de quem vai e quem fica não são exteriorizados na lágrima, no adeus, na fúria ou no rancor, mas sim intimamente como sinal de perda ou de satisfação.
O gesto de quem se despede da esposa e dos filhos porque terá que se ausentar por algum tempo para trabalhar em outro lugar, é muito diferente do gesto de quem deixa o lar porque se separou da esposa. Do mesmo modo, a atitude de quem dá um beijo de boa noite no seu amor e espera ansiosamente para que retorne amanhã, é muito diferente da atitude de quem bate a porta nas costas do outro porque o relacionamento chegou ao fim. E ainda, o gesto de quem se despede de um familiar porque vai morar em outro país e não tenha previsão para retornar, é muito diferente daquele que se despede com a certeza de que não voltará a vê-lo nunca mais.
Como será a despedida do prisioneiro que não verá mais sua esposa porque irá pagar sua pena de morte daí a instantes? E do filho que vai partir e tem certeza que não verá mais seus pais com vida? E da esposa amada ao ver o rosto do seu amor pela última vez no caixão que está sendo lacrado? E da jovem apaixonada que entrega de volta sua aliança porque o seu noivo resolveu viver com outra? E do favelado que vê seu barraco sendo destruído pela enxurrada que caiu? E do suicida se olhando no espelho com a arma apontada para a própria cabeça?
Não sei quem disse que a despedida é a imagem da morte, mas possui razão tal pensamento, pois ontem mesmo, revirando o baú da memória descobri que sou órfão, viúvo, carente e abandonado por inúmeras coisas que já se despediram de mim. As fotografias são sinais dos muitos de mim que partiram e não voltam mais; as cartas de amor enlutecem a paixão que se foi; pequenas recordações entristecem um tempo que não pode mais ser revivido. Tudo já se despediu, foi embora. Mas o que dói, o que realmente machuca, é ter que dar adeus a mim mesmo a cada instante que passa.



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Sentença e pena (Poesia)

Sentença e pena


Sentença:
Você está
completamente apaixonada
por ele.

Pena:
Ele não te quer.



Rangel Alves da Costa

NO REINO DO REI MENINO – XL

NO REINO DO REI MENINO – XL

Rangel Alves da Costa*


A comitiva dos visitantes, que retornaria logo ao amanhecer do dia, teve que se atrasar porque na hora do embarque o velho sacerdote simplesmente havia sumido. Procuraram por todos os aposentos do castelo e nenhum sinal, sendo encontrado somente uma hora depois, totalmente embriagado, ao lado de dois duendes, alcoolizados do mesmo jeito, tomando vinho embaixo de uma árvore frondosa nos fundos da residência real.
Assim que Bernal os avistou, os verdinhos orelhudos saíram correndo aos tropeços, caindo e rolando pelos matos, deixando o sacerdote sorridente com uma garrafa na mão. Apagou num instante, e somente dois homens para transportá-lo até a carruagem. Antes de partirem, ainda abriu os olhos em direção ao pequeno rei e disse: "Não esqueça do nosso acordo, que eu quero comprar um vinhedo".
Assim que partiram, Gustavo puxou o feiticeiro pelo braço em direção a uma das entradas do castelo e disse que teriam que subir imediatamente até a torre, pois lá, sem ninguém para ouvir ou importunar, ele teria que passar aquela história todinha a limpo, nos mínimos detalhes.
O dia havia nascido com uma cor diferente em Oninem, com uma manhã de cores muito mais vivas, a natureza parecendo mais alegre, com folhas e galhos valseando ao vento, com plantas num sorriso verde que parecia o próprio paraíso. Os animais, que sempre ficavam mais afastados, corriam e brincavam pelos campos ali próximos, como se a presença dos oninenses não causasse medo e espanto. As pessoas, estas, representadas na face alegre e no leve sorrir do pequeno reino, pareciam prontas para viver novos dias de bonança, de fartura nas plantações, de segurança e paz, de desenvolvimento e prosperidade. Ao menos era isso que o menino rei esperava, mesmo tendo consciência das duras batalhas que teriam que enfrentar a qualquer instante.
Uma dessas batalhas já estava sendo travada ali na torre, fazendo a maior pressão psicológica possível para que o feiticeiro do bem contasse a verdade, sem omitir uma coisinha sequer em nome dos segredos da magia. "Mas meu rei, que força tenho eu para contar a um soberano verdades pela metade ou mentiras que encubram a verdade?", indagava assustado. "Acho melhor assim, pois do contrário...", ameaçava Gustavo. E o feiticeiro começou a destrinchar o que sabia:
- Em primeiro lugar, pequeno e assustador Gustavo, juro pelo sangue encantado de minha família, pelos meus guias e seres superiores, que não tenho nenhum envolvimento, o mínimo sequer, com o desaparecimento e surgimento da coroa em dose dupla. Não tem nenhum cabimento se pensar isso de mim, logo eu que estava botando o coração pela boca, andando feito um doido procurando essa bendita coroa. O próprio menino rei sabe que até as forças mágicas eu invoquei, e quase saio desse mundo dando até as minhas últimas forças para saber do seu paradeiro. Você mesmo sabe, menino teimoso, sobre os perigos que tive de enfrentar para ver se alguma luz me vinha à cabeça dizendo onde poderia encontrá-la. Se o que fiz não foi suficiente para prontamente atender o rei é porque reconheço minhas muitas limitações. E se a coroa não fosse encontrada e a honra do rei e do rei fosse ferida de morte, nem mesmo eu sei onde estaria agora, talvez por aí enlouquecido, jogado numa beira de estrada... – E começou a chorar.
- Não quero ver uma lágrima. Continue, continue seu paspalhão – Disse o rei, achando graça no ar choroso de Bernal.
- Em segundo lugar, e vou dizer logo, quem roubou a coroa foram aqueles danadinhos verdes das florestas. Pode castigar eles mais tarde, mas garanto que não foi propriamente um roubo, mais sim uma apropriação momentânea do que não lhes pertencia, porém com um objetivo mais que nobre, que foi o de ajudar o nosso rei e a salvar nosso reino dos problemas que está passando. E como fizeram isso, vou contar segundo eles me contaram. Tudo começou quando dois daqueles enxeridos estavam invisíveis no castelo naquele dia que você falava sobre a necessidade de vender a coroa. Com a maior cara de pau, imediatamente foram até lá em cima, atravessaram todas as portas sem mover uma chave, pegaram a coroa e sumiram mata adentro. E parte das conseqüências disso a gente sabe e sentiu na pele, mas a outra parte é que é complicada de explicar, pois diz respeito ao objetivos deles, que foi o de fazer uma cópia igualzinha da coroa, de modo que vendendo a cópia a original ficaria no castelo e o reino seria salvo. Foi essa a intenção. Mas como eles fizeram essa cópia com tanta perfeição em tão pouco tempo, utilizando os mesmos objetos preciosos contidos na original, acho que somente mesmo eles para contar, pois eu imagino como tenha sido, mas se eu abrir a boca pra contar o menino rei vai dizer que enlouqueci de vez.
- Mas louco você já é, então conte logo essa parte que deve ser muito interessante – Animou-se o menino rei.


continua...



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CARTA DO OUTONO (Crônica)

CARTA DO OUTONO

Rangel Alves da Costa*


Aqui onde estou, nessa noite de muitas recordações, o clima ainda está entremeado de correntes de calor e de ar frio. Às vezes me bate um vento mais forte, próprio do anoitecer, embaixo dessa lua cheia que brilha no céu de poucas nuvens e muitas estrelas. Estou triste, bem sei, mas a minha história, meu percurso pelas horas e anos dessa vida nunca foi marcada por grandes alegrias. Por isso costumo estar triste, bem sei.
É dessa tristeza que me marca e me faz moradia que os outros, com razão, tecem suas considerações sobre o que sou e como sou. Dizem que quando saio por aí a passear, entre as estações do verão e do inverno, geralmente de 22 de setembro a 21 de dezembro em alguns lugares, e de 22 de março a 21 de junho em outros, a primeira coisa que faço é amarelecer e fazer cair as folhas das árvores e outras plantas, dentre outras coisas que dizem. Me criticam porque faço isso e sou assim, mas tudo tem uma razão de ser e explicarei.
Certa vez, caminhando nessas vastidões cumprindo meu destino, passei por um belo e florido jardim e avistei plantas lindas, de vários tamanhos e espécies, mas todas pareciam viver em palácios, distantes umas das outras, sem ter amizade alguma, num exacerbamento de egoísmo que fazia com que cada uma visse a outra como reles plantinha de canteiro de rua abandonada. Era linda a paisagem, mas era odioso de se ver o salto alto da roseira e o pedantismo da margarida.
Segui em frente e fui pensando em modificar aquela situação, em trazer humildade, compartilhamento e amizade entre aquelas plantas, nativas ou exóticas que fossem. E assim, já tendo idealizado o que iria fazer, retornei no ano seguinte e apliquei-lhes um castigo que foi mais uma lição, fazendo vê-las que a beleza que lhes foi concedida era tão frágil quanto às suas flores diante da tesoura do jardineiro.
E fiz mais, pois decidi que a partir de então, como forma de que aprendessem que todas são iguais na beleza e na fragilidade, assim que fosse o meu tempo de passar por ali, todas teriam de refletir mais sobre a vida, e nessa reflexão ir jogando fora todo o luxo em demasia, todo aquele aspecto de infinita superioridade, amarelando suas folhas até caírem, perdendo suas pétalas já sem perfume, para depois renascerem novamente belas e sem discriminação, que é a verdadeira essência daquela e toda natureza, inclusive a humana.
Insistem em dizer que sou sinônimo de decadência, de esmorecimento, de fraqueza, simplesmente porque moro ao lado do verão e do inverno, tidas como estações que possuem objetivos bem definidos na vida. Mas não sou o que dizem, pois sou o próprio reflexo do que as pessoas são, com instantes de grande prosperidade e outros de carência, com instantes de intensa alegria e outros de esmorecimento espiritual, com instantes para a fé e adoração e outros para a negação e o pecado. É assim que sou, também reflexo das muitas contradições de tudo que sobre o mundo tem existência.
Dizem também que sou chato, inseguro e indeciso porque aceito que sobre mim caia ora a chuva incessante ora o sol escaldante. Essa minha instabilidade climática atrapalha a vida de muitos, dizem. Na verdade, assumo minha culpa, porém não acho que esteja agindo errado, pois o que procuro fazer é simplesmente atender a todos que precisam de sol ou de chuva nos seus afazeres cotidianos.
E é fácil constatar que tenho razão: uma plantação não sobreviveria quatro meses seguidos sem a água da chuva para molhar as raízes e fazer brotar os frutos, do mesmo modo as pessoas precisam de sol para enxugar as roupas, para saírem às ruas, para passearem e tomar banho nas praias. Daí que o que faço é não tender somente para um lado ou para o outro, fazendo chover num tempo e chamando o sol noutro instante. O que não seria lógico era trazer os dois ao mesmo tempo. Se assim fizesse, com certeza diria que o outono enlouqueceu.
Contudo, não costumam apontar minhas qualidades, mas nem por isso deixo de cumprir meu papel sobre a terra, ajudar a natureza e o homem e fazer com que a vida tenha um curso normal. Geralmente esquecem que é na minha época que as terras e os jardins são limpos e preparados para novas plantações, que faço as folhas caírem para que renasçam com mais vida e beleza, que faço com que as folhas de algumas árvores adquiram umas lindíssimas sombras avermelhadas, que faço as temperaturas ficarem mais amenas, que faço os dias e as noites terem a mesma duração, que é na minha estação que ocorrem as grandes colheitas, pois as frutas já estão bastante maduras e começam a cair no chão. E o que é para mim o mais importante: chamo o inverno e peço que avise à primavera para trazer as cores e os perfumes que a vida tanto precisa.
Sou orgulhosa e digo mais: não sou apenas uma estação, pois sou a mais bela das quatro estações de Vivaldi. Procure me ouvir agora e reflita, sinta a natureza viva, frutos maduros e folhas caindo no jardim de sua casa. Isto também é sinal de que haverá sempre renascimento em sua vida.



Advogado e poeta
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Beijos (Poesia)

Beijos


No primeiro beijo
segurou nas nuvens
e caiu trazendo o temporal
No segundo beijo
conheceu o paraíso
mas desejou retornar
No terceiro beijo
sentiu a fúria da natureza
no corpo que estremeceu
No quarto beijo
sentiu-se acorrentada
enlouquecida de paixão
No quinto beijo
último beijo que beijou
congelou no polo norte
e lá mesmo ficou.


Rangel Alves da Costa

NO REINO DO REI MENINO – XXXIX

NO REINO DO REI MENINO – XXXIX

Rangel Alves da Costa*


Aos gritos do sacerdote apenas disseram que se ele continuasse entornando vinho daquele jeito daqui a pouco não estaria vendo somente fantasminhas verdes passando, mas também o grande elefante da Índia ali sentado na poltrona, querendo dialogar. "Mas eu vi, eu juro que vi, e carregavam dois objetos reluzentes nas mãos", confirmou, quase sem ser ouvido pelos compradores que se afundavam em óleos, guisados e em até naquilo que não conheciam, mas diziam estar um manjar dos deuses.
Apenas o pequeno rei se ateve àquelas palavras, e por isso mesmo pediu licença aos convidados e se dirigiu até onde estava o vinhático senhor, que mais uma vez confirmou tudo o que tinha visto. E os olhos de Gustavo passaram a ter um brilho diferente, de grande esperança em se concretizar aquilo que estava imaginando. Somente a coroa poderia reluzir tanto, e seria a coroa que eles estariam transportando de volta ao castelo? Indagou para si mesmo, muito mais aliviado, até esboçando um sorriso.
Contudo, precisava confirmar urgentemente a veracidade de sua intuição e somente Bernal poderia dar uma resposta definitiva sobre o retorno ou não da coroa. Olhava para as escadas, para cima, para baixo, para os lados, e nada do feiticeiro aparecer com gestos positivos ou negativos. Chamou um serviçal e ordenou que o procurasse e dissesse para ir até ali com urgência, pois o leilão estava prestes a começar e precisava de sua presença. Mas o serviçal retornou afirmando que não pôde encontrá-lo em lugar algum, parecendo mesmo que ele não estava naquele momento no castelo. E Gustavo tornou-se novamente temeroso e aflitivo.
"Agora creio que estamos mais do que preparados para apreciarmos esta preciosidade, pois então que faça vir tal preciosidade", disse um dos compradores, já em pé, juntamente com os outros, no local onde a coroa seria exposta e realizado o leilão.
- Sim, sim, chegou o grande momento para verificarem de perto o valor da antiga e reconhecidamente bela coroa do Reino de Oninem, que somente será vendida porque já possuímos outra de igual beleza e com motivos riquíssimos que retratam os grandes feitos de cada soberano que fez sua história aqui – Mentiu o pequeno rei, mas tinha que ser assim, para não expor a situação de dificuldes do reino – Porém, antes que eu ordene que tragam esse raro prazer aos olhos, convido vocês a mais um brinde, deliciado entre vocês mesmos, de um vinho muito antigo, que praticamente estava esquecido por anos e anos nos fundos mais escondidos de nossa adega. Por favor, serviçal traga até aqui duas daquelas garrafas de L'acrime de Tristèsse – Falou o pequeno rei, extremamente nervoso e tentando ganhar tempo a todo custo.
Assim que os convidados avidamente tomaram o vinho, acenderam charutos e esfregaram as mãos em sinal de que já estavam prontos para o início da apresentação, o pequeno Gustavo, totalmente desnorteado e sem saber mais o que fazer, simplesmente olhou para cima da escada que dava para o andar seguinte, bateu as mãos e mandou que trouxessem a coroa real. Completamente cego naquele momento, não sabia bem o que havia dito nem as conseqüências desse gesto. O seu reinado poderia estar sendo afundado ali, naquele momento, assim que ordenou que trouxessem a coroa.
De repente, completamente fora de si, tendente a desabar pelo chão a qualquer momento, ouviu um forte bater de palmas ao seu redor e ao se recompor para tentar entender aquilo melhor, olhou novamente para cima e viu Bernal, contagiado e sorridente, descendo a escada com a coroa real sob um manto de veludo com as cores do reino. Não podia acreditar no que via, no verdadeiro milagre que enxergava, mas ali estava a coroa mais preciosa e brilhante do que nunca.
Ao passar por Gustavo carregando nas mãos a salvação do reino, o feiticeiro do bem deu uma leve pisada no pé do amigo e disse baixinho: "Pelo trabalho que deu deve valer o dobro". O próprio menino decidiu colocá-la no local onde todos poderiam apreciá-la com cuidado e atenção. Ainda sem acreditar muito no que estava acontecendo, ele mesmo ficou parado diante dela alguns minutos, tocando levemente os seus contornos e chamando para si uma tristeza de outro tipo. O estado melancólico agora se devia à despedida daquela representação maior da história familiar. Mas teria que ser assim mesmo, procurou se reconfortar.
Quando os compradores iniciaram a análise e discussão dos elementos que compunham a coroa, seu valor histórico e financeiro, o lucro que poderiam ter transformando ela em joias menores, negociando à parte os rubis, diamantes, esmeraldas e outras pedras preciosas, Gustavo puxou Bernal para um canto e disse: "Você vai ter que me explicar tudo isso direitinho, tintim por tintim, sem esquecer um ponto ou uma vírgula. Afinal de contas ainda não estou entendo nada de tudo isso que está acontecendo aqui". "Não se preocupe, meu rei, relatarei tudo direitinho, nos menores detalhes. Mas adianto que isso é apenas uma parte do muito que precisa saber", afirmou o feiticeiro, em tom misterioso.
Para cisma e descontentamento dos demais, não demorou muito e o rico negociante Adeom, do Condado de Excalibur, ofereceu um lance que, pelo alto valor, não pôde ser mais coberto. Havia arrematado a coroa pela bagatela de oito medidas de Dindim, que era a moeda corrente no País dos Voantes e seus reinos. A entrega da coroa se daria em cinco dias, assim que os seus emissários viessem até o reino trazendo a grande soma de dinheiro.
Após o leilão, mesmo sem a presença do sacerdote, que já dormia a sono solto tendo sonhos com os fantasminhas verdes, e enquanto uma última rodada de vinho era servida, Bernal se aproximou de Gustavo e disse baixinho em seu ouvido: "Tanto dinheiro por uma réplica, uma falsa coroa, pois a verdadeira está lá em cima bem guardada".


continua...



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DÊ-ME TUAS MÃOS! (Crônica)

DÊ-ME TUAS MÃOS!

Rangel Alves da Costa*


As mãos de Whitman acariciaram as folhas de relva; as mãos de Baudelaire plantaram as flores do mal; Jorge Amado fez espalhar nas paisagens sangrentas as folhas do cacau; Graciliano mostrou que no Nordeste não haviam folhas a serem colhidas pelas mãos ossudas; as mãos de Machado mancharam a honra de Capitu; Goethe manchou de sangue as mãos do jovem Werther; Eça de Queirós tirava das mãos de Luísa a aliança que simbolizava a honra; Cervantes fez com que Dom Quixote enfrentasse os moinhos-gigantes com a mão empunhando uma lança; José Mauro de Vasconcelos enxugou com as mãos as lágrimas de Zezé quando cortaram seu pé de laranja lima; Fernando Pessoa com uma mão segurava o charuto e com a outra escrevia que o rio mais bonito é o rio que passa pela sua aldeia; Pedro Bloch deu uma fortuna quando Eurídice estendeu sua mão; Drummond apontou com a mão onde José deveria ir, mas este não foi, e agora José?
As mãos de Da Vinci não são mãos, são os olhos da Monalisa; Alfredo Volpi encheu minha rua triste com bandeirinhas coloridas à mão; Munch colocou a mão na boca na hora do grito na ponte; Tarsila insistia naquelas mãos enormes e pés desproporcionais; Picasso queria que todos colocassem as mãos nos olhos para não ver as atrocidades de Guernica; Almeida Júnior mostrou o sertanejo segurando com a mão a faquinha para picar fumo; as baianas e escravas enchiam as mãos de Debret de doces e guloseimas; Michelangelo aproximou as mãos do homem e de Deus na Capela Sistina; a mulher triste de Portinari estava segurando o menino morto nas mãos; Claude Monet espalhava com as mãos tardes, folhas, flores e jardins nas suas paisagens; Edouard Manet penteou com as mãos os cabelos da jovem bonita no espelho; Rodolfo Amoedo deixou estendidas na praia as mãos mortas do último tamoio; que belas são as mãos das morenas de seios fartos de Di Cavalcanti; por que as mãos não apararam o bigode de Dali?
Onde estão agora tuas mãos, Madre Teresa de Calcutá, Irmã Dulce e Zilda Arns? As mãos do bem não doam também além? A mão no chocalho ainda anuncia a fé ritual no terreiro de Mãe Meninha; as mãos de Maria Lenk espalharam as águas para a vitória; tuas mãos ainda acertariam bem no fundo da quadra Maria Ester Bueno; as mãos de Cecília Meireles ainda correm pelos canteiros; Maria Moura pega com as mãos as rédeas do destino e vai na direção de Rachel de Queiroz; por que mãos com tanto esmalte, anéis e alianças Viúva Porcina?; tal qual a cabana do Pai Tomás, tuas mãos também são sábias Harriet Beecher Stowe; quantas mãos alcançaram sucesso nos teus folhetins Janete Clair, Ivani Ribeiro e Glória Magadan?; o que tuas mãos assentaram ainda ressoam em movimento Chiara Lubich; por que não pegou a arma com a mão e atirou primeiro Maria Bonita?
E essas mãos sertanejas, que carentes imploram aos céus, que crentes se apegam aos céus, que sonhadoras limpam a terra, plantam, colhem, tangem o gado, tiram o leite, pegam na enxada, movem o barro, fazem a telha e o tijolo, pregam ripas, portas e portais, tiram o couro, adormecem o couro na água, trabalham o couro, fazem a sandália, a alpercata, o alforje e o gibão, serram a ponta, trabalham a ponta, fazem o berrante, seguram o berrante e sopram chamando o destino, pegam no copo e tomam a pinga, enrolam a palha e fazem o cigarro, pegam a faca, o facão e o punhal e pegam o inimigo, pegam os tostões e fazem a feira, pegam o saco com dois quilos de nada, entregam à mulher que cozinha o que não existe, que fazem mamadeira de água e enganam o choro dos pequeninos, que levam a farinha à boca e depois se benzem agradecendo a Deus pelo muito no pouco que tem.
E essas mãos que trabalham nas máquinas, apertam parafusos, acendem a fornalha, jogam a matéria, abrem a porta para o chefe passar, assinam o ponto, acendem e apagam a luz, tira o lenço do bolso e limpam o suor, recebem o salário do mês, fazem as compras, fazem os cálculos e batem na mesa com raiva; essas mãos que tocam o tambor, o cavaquinho o violão, o pandeiro e o zabumba, enchem o copo de cerveja, levantam a saia pra sambar; essas mãos que podam as árvores, varrem as calçadas, limpam o lixo, jogam os restos no caminhão, pintam as ruas, apitam para o carro parar ou passar, pegam na caneta para multar, pegam a propina escondido; essas mãos que engraxam sapatos, que pegam a cola e levam ao nariz, que furtam, que roubam, que pegam na arma, apontam, miram e atiram, que pedem esmolas, que limpam os vidros nos cruzamentos, que vendem jornais e não sabem ler a manchete escrita por outras mãos: "Fugiu com as mãos algemadas".
As mãos estão sempre unidas no instante da morte. No instante da vida as mãos sempre entristecem dizendo adeus. O que fazem tuas mãos agora? Dê-me tuas mãos!




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A CONTADORA DE ESTÓRIAS (Crônica)

A CONTADORA DE ESTÓRIAS

Rangel Alves da Costa*


Era uma vez uma contadora de estórias, que gostava muito mais de contar estórias do que histórias. Gostava de contar estórias porque podia aumentar, diminuir, reinventar, redimensionar e mudar o contexto e o final do que estava contando. É diferente na história, que tem herois muito certinhos e muitas mentiras que tem de dizer que são verdades. E também na história não se pode dizer "e foram felizes para sempre...", principalmente porque todos sabem que ela é marcada pela dor e não pela felicidade.
O nome da contadora de estórias era Marina, uma graça de pessoa que parecia não saber fazer outra coisa na vida do que contar fábulas, lendas, causos, contos. O pensamento dela vivia povoado pelo saci-pererê, pela mãe-d'água, pela boiúna, pelo patinho feio e o outro patinho que só tinha um olho e uma perna, pelo menino que era rei, pelo rei caçador e a rainha que virou caça, pela bruxinha que era boa, pelo fantasminha camarada, pelo menino que voava e a menina que pensava que era flor, pelo bicho-papão e outros seres fantásticos. Ficava triste quando tinha que narrar um final que não era feliz. Certa vez teve que ser consolada porque a rosa caiu do galho e morreu.
A contadora de estórias não contava as aventuras pra qualquer um não. Tinha que ser criança, estar na escola estudando ou fazendo tratamento de saúde em algum hospital e prestar bastante atenção no que ela contava. Cismou que tinha de ser assim porque certa feita um pai de aluno foi reclamar dela porque o seu filho chegou em casa e foi contar a estória de João e o Pé de Feijão, só que trocou o feijão pela melancia e o menino nunca chegava ao final porque a melancia nunca crescia. Outra vez foi uma mãe, que chegou na escola desesperada porque sua filhinha disse que não ia dormir porque estava com medo da estória que a contadora narrou sobre o fantasminha da cara amarrada. Até que fosse explicado a ela que o fantasminha era camarada e não tinha cara amarrada foi uma perda de tempo.
Contava estórias para crianças pobres, em escolas de comunidades carentes, em locais distantes, onde só ia mesmo quem tinha realmente o que fazer ou uma boa estória pra contar. Contava estórias para garotinhos e garotinhas internados em hospitais, principalmente para aquelas com problemas oncológicos. Contudo, em cada escola ou hospital logo se tornou amiga e confidente da criançada.
Chamavam ela num canto e reclamavam porque ainda não deram uma cadeira de rodas ao saci, porque o bicho-papão queria comer outras coisas e não comia papa, porque o cavalinho da estória era azul e ela nunca tinha visto um cavalo daquela cor, porque a mula-sem-cabeça botava fogo pelo nariz se não tinha cabeça. Assim, era um mundo de encantamentos e descobertas, de pura fantasia como são as estórias que contava. Para ela, entretanto, as descobertas eram outras: era a imensa felicidade em proporcionar instantes de felicidade àquelas crianças.
Um dia, porém, Marina, a moça contadora de estórias chegou na escola, no horário previsto reuniu o grupo de crianças e matutou sobre o que iria narrar naquele dia. Pensou e pensou e um verdadeiro branco se fez em sua mente. Estava triste, sabia, mas os problemas eram particulares e não poderiam interferir no seu prazer em contar estórias. Colocou sobre si uma falsa alegria, tentou contar uma estória qualquer, mas não teve jeito, não saía nada. E para aumentar sua tristeza, foi a primeira vez que deixou de contar uma estória para as animadas crianças. No segundo dia, prometeu a si mesmo que aquilo não se repetiria, mesmo assim não conseguiu contar estória alguma. O pior é que chorou em frente aos seus amiguinhos.
No terceiro dia, já com vergonha de seus pequenos ouvintes, levou uma estória escrita numa folha de papel. Assim não teria jeito de esquecer. Mas quando se reuniu com todos foi surpreendida por uma menininha que se levantou, pediu licença e disse: "Professora, hoje quem vai contar uma estória sou eu, e ela é curtinha mas diz mais ou menos assim: era uma vez uma amiga muito boa que contava estórias, mas de repente deixou de contar estórias porque ela também tinha uma estória que lhe deixava muito triste, mas como não contava a ninguém que estória era essa, continuava triste e sem saber contar outras estórias. Até que um dia ela contou sua estória triste aos seus amiguinhos, que ouviram com carinho e depois disseram a ela como resolver seu problema"
- E o que foi que disseram a ela...? – Perguntou Marina assustada.
- Disseram a ela que transformasse sua estória triste numa estória de brincadeira, pra ser feliz para sempre...



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NO REINO DO REI MENINO – XXVIII

NO REINO DO REI MENINO – XXVIII

Rangel Alves da Costa*


Assim que irromperam no quarto com tochas acesas, os homens de Otnejon foram logo percebendo certa estranheza no lugar. Ninguém estava ali, revistaram por todos os cantos e só encontraram malas com roupas e outros objetos de uso pessoal de quem estava naquele local. Ora, haviam garantido que seria presa fácil, pois encontrariam os dois dormindo e depois o único trabalho seria conduzi-los amarrados até à presença do rei para serem acusados e jogados na prisão. Contudo, verdade é que conseguiram sair antes que chegassem.
Quando ia voltando para dar a má notícia ao rei, um dos homens percebeu um pequeno portão entreaberto e gritou: "Eles fugiram por aqui e parece que há pouco tempo, pois deixaram cair alguns pequenos objetos pelo chão". Haviam deixado rastros e certamente seriam implacavelmente perseguidos.
Assim que soube da fuga, Otnejon colocou a mão sobre o peito e mandou que lhe segurassem porque iria ter um troço ali mesmo e morrer, mas em seguida, todo faiscando de raiva, partiu com ferocidade para cima dos homens e, se fosse da altura deles, falaria empurrando o dedo no nariz:
- Vocês são todos uns imbecis, uns despreparados e sem astúcia nenhuma. O que é que estão fazendo aqui quando deveriam já estar no encalço daqueles ladrões do próprio reino. Deem já meia volta e mais que depressa vão atrás dos dois, seguindo as pistas que eles deixaram. Eles não conhecem o reino nem os perigos que rondam a noite por aqui, por isso mesmo é que vão ser presas fáceis. Andem, agora andem, chispem... – Mas nem deixou que saíssem da sala e deu outro grito – Esperem um pouco que vou à frente. Essas coisas que envolvem muita riqueza é sempre bom que o legítimo interessado vá à frente, comandando as ações. Além disso eu não confio nem um dedo de mindinho em vocês, palermas. Esperem aí que eu já volto.
Uns dez minutos depois e voltou o baixinho mal-afamado rodeado por cães ferozes, armado até os dentes e com um encorajamento que assustava. Após virar um copo cheio de uma bebida forte e colocar folhas de fumo na boca saiu com o seu bando noite adentro, pelas redondezas do castelo, pela trilha onde deveriam ter seguido os dois fugitivos.
Se os homens de Otnejon tivessem saído em imediata perseguição ao casal certamente que o encontraria. A noite dificultava enormemente a fuga, os dois não sabiam bem por onde caminhavam, o peso dos objetos que carregavam impedia qualquer avanço mais rápido, andavam um pouco e tinham que parar para Lize descansar. Contudo, aquela demora em terem ido avisar ao rei e o tempo que passaram ali até saírem em perseguição possibilitou uma vantagem enorme para eles. Estavam, sem saber, com boa frente sobre o bando que vinha no encalço. Mas aí começou a cair a maior chuvarada.
Com um verdadeiro temporal sobre eles, os objetos que levavam pareciam ter dobrado de peso. Ademais, não enxergavam um palmo sequer à frente, tendo que tatear cuidadosamente o desconhecido naquele breu amedrontador. Mas foi quando Lize escorregou e caiu que perceberam que não tinham mais condições de seguir adiante, ao menos por enquanto. A situação tornou-se ainda mais desanimadora, difícil de ser superada, e então procuraram cuidadosamente um abrigo onde pudessem descansar um pouco e esperar a chuva passar. Sabiam, entretanto, que a qualquer momento poderiam ser encontrados, e o medo ia aumentando à medida que ouviam ao longe cachorros latindo.
O temporal não afetou em nada o avanço do baixinho mal-afamado e seus homens. Quanto mais chovia mais pareciam dispostos a seguir em frente. Conheciam muito bem a região, todas as veredas e encruzilhadas, e por isso mesmo nada impediria que a qualquer momento encontrassem sinais da presença dos dois. Nada impediria a não ser a chuva, pois o barulho que fazia impossibilitava ouvir qualquer som que os fugitivos fizessem, dificultava o farejo dos cães, não deixava que acendessem tochas para iluminar os possíveis esconderijos.
Esse emaranhado de coisas, ao menos por aqueles instantes, serviu como tábua de salvação para os pais de Gustavo. Estavam protegidos dentro de uma pequena gruta de pedra quando ouviram o barulho dos cachorros e dos homens que estavam se aproximando. Pertinhos um do outro, se uniram em orações e perceberam quando iam passando sem darem conta de que estavam ali bem próximo, a uns cinqüenta metros.
O susto foi tão grande que não resistiram e adormeceram ali mesmo. Quando abriram os olhos a chuva já estava fininha e o dia começava a clarear. Quando Lucius quis levantar um pouco, ao olhar para cima percebeu quatro olhos estranhos mirando eles, em duas cabeças viradas para baixo.


continua...



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Amar de amar (Poesia)

Amar de amar


Espero te amar
mas não sei se vou amar
como quero te amar
Sei que vou te amar
mas não sei se esse amar
é o amor que quero amar
Pois amar
como sonhei te amar
não é mero amor de amar
mas amar amar
e mais que amor amar
amar e eternamente amar.



Rangel Alves da Costa

47 ANOS, O MENINO BRINCANDO E O ESPELHO (Crônica)

47 ANOS, O MENINO BRINCANDO E O ESPELHO

Rangel Alves da Costa


Consta de minha certidão de nascimento que vim ao mundo às 9:00 horas do dia 16 de março de 1963. Hoje, consequentemente, faço aniversário, completo 47 anos. Saído do ventre de minha mãe e entrando no ventre da vida. Garanto que no calorzinho da barriga da saudosa sertaneja era bem melhor.
Quando nasci fizeram uma coisa feia comigo, pois disseram que a vida não era brincadeira. Mas como não é brincadeira se a criança para aprender tem que brincar? A partir daí tentei levar a vida a sério, mas ela insistiu e insiste em fazer brincadeiras comigo.
Como não sou de brincadeiras, avisei a vida que só queria viver, só isso. E ela disse que já que eu queria assim, que me responsabilizasse sozinho pelos meus atos a partir daquele momento. Com tal responsabilidade, o que fiz foi brincar com a vida. Dei o troco.
Brincar porque acho que sei jogar a bola sem acertar ou ferir o próximo; sei brincar de esconder sem fugir de nada ou de ninguém; sei caçar passarinho sem destruir o meio ambiente, a natureza, os caminhos por onde cotidianamente passo; sei catar frutas no quintal sem levar o que é dos outros, furtar, roubar, me apropriar indevidamente; sei soltar pipas sem tirar os olhos do que está ao redor, ameaçando, procurando gratuitamente fazer o mal; sei pintar e desenhar no papel a lua e o sol, mas também as noites e as tempestades de cada dia; sei gostar de docinhos, mas muito mais das dietas; penso que sei, na medida que a vida me deixa brincar.
Dizem que cresci, que estou gente grande, quando se diz de quem só tem tamanho. Não acredito que tenha sido assim, pois a cada novo dia me vejo como ontem, a mesma pessoa de sempre, portanto ainda criança brincalhona. Não sei por que, mas as pessoas deviam mesmo eram viver suas vidas e deixar de mentir, de inventar, de dizer que enxergaram rugas se formando pelo rosto, viram alguns fios de cabelos brancos aparecendo, sentiram marcas do tempo em mim. Digo que é a mentira mais deslavada, pois o meu espelho nunca olhou pra mim e disse que era preciso eu me enxergar melhor e deixar de ser criança.
Ele sim, o meu espelho, que vejo estar envelhecendo, amarelando o sorriso, se comportando com ares de solitário, ficando mais triste e com um olhar menos brilhante e vazio. Já disse a ele para tomar cuidados, para deixar de brincadeiras e cuidar mais da aparência, da saúde, das escolhas que faz e das brincadeiras que insiste em brincar. Mas ele é teimoso, sempre teima, e fica lá impassível, indiferente, procurando somente refletir a vida que passa.
Gosto muito desse espelho, pois é o meu espelho e gosto de tudo que tenho. Jamais pensei a sério em vê-lo se quebrar, cair da parede da vida. Mas se um dia o destino disser que mais cedo ou mais tarde os espelhos tem que apagar, quebrar, sumir, não saberei dizer da dor que sentirei ao não mais vê-lo e nem me ver ali espelhado. Como posso saber o que senti se não posso mais ver minha face espelhada?
Talvez os outros digam que o espelho não se quebrou, mas foi um menino brincalhão que brincou com o espelho e ele se partiu.



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NO REINO DO REI MENINO – XXVII

NO REINO DO REI MENINO – XXVII

Rangel Alves da Costa*


Realmente, não foram bons os sinais produzidos na revoltosa água da bacia, cujo significado maior só podia ser conhecido por Bernal. Este, mesmo diante daquela água turva e agitada, podia ver uma seqüência de cenas e imagens que lhe apertavam o coração já carregado de maus presságios quanto às conseqüências que poderiam ter aquelas visões.
Por cerca de três minutos os movimentos da água revelaram a instabilidade da situação envolvendo os pais do pequeno Gustavo, ali atônito e sem poder compreender nada. De repente, parte do líquido transbordou, a torre do castelo pareceu estremecer, relâmpagos e trovões agiram com violência e tudo voltou ao normal. Num segundo tudo voltou à mais perfeita normalidade da noite, como se lá fora apenas a brisa soprasse pelas paragens. Lá dentro, onde os dois estavam, até a água derramada estava completamente enxuta.
Bernal suspirou forte, soltou a mão do garoto e todos procuraram se refazer um pouco daquele transe, daquela verdadeira viagem. O feiticeiro chamou o menino e deram alguns passos até uma mureta da parte externa da torre. Ali no alto, em silêncio, avistavam o que permitia a escuridão e mais próximo enxergavam pequenas luzes que se deslocavam de um lado para outro. Eram as sentinelas enviadas pelos espíritos das florestas, disse o feiticeiro. Em seguida, este, de olhos voltados para o firmamento, começou a relatar as visões ao amigo:
- Pequeno rei e grande homem, não se assuste com o que vou dizer, pois tudo na vida pode ser modificado através da nossa ação. Contudo, pelo que pude observar com o auxílio dos espíritos, a situação não anda nada boa para os seus pais naquele reino onde eles estão. Senti como estivessem agoniados, desesperados, procurando a todo custo sair dali e fugir para bem longe dos olhos e das mãos daquele rei mal-intencionado. Vi que tentavam fugir, procuravam arrumar um meio de se protegerem da melhor forma possível, mas sempre ocorriam coisas inusitadas que impediam que conseguissem. Na verdade os dois estavam muito aflitos. Sua mãe talvez por estar numa cilada armada pelo esposo, seu pai, e o seu pai talvez por arrependimento de ter feito tudo o que fez e ir pedir refúgio logo naquela arapuca. Porém, quando a água subitamente derramou da bacia foi para dar um sinal de que essa situação pode ser resolvida, as enxurradas de perigos podem cessar e tudo caminhar por melhores destinos. Mas não se preocupe meu corajoso menino, tudo será resolvido o mais rapidamente e da melhor forma possível. Mas neste momento eu daria um reino, se tivesse um, para estar ao lado dos seus pais e conhecer todo aquele contexto de perto.
Com efeito, se naquela hora da noite Bernal estivesse no castelo de Otnejon, o baixinho, poderia ver que a situação de Lucius e Lize era realmente desesperadora. O ex-soberano e fugitivo de Oninem não tinha mais dúvidas de que a qualquer momento seria traído, atacado, roubado, feito prisioneiro ou enxotado das terras daquele reino, se não tivesse pior sorte. Temia pela segurança pessoal e também com o que pudesse ocorrer com sua esposa. Esta não poderia nem deveria sofrer as conseqüências daquele gesto impensado seu. Mas gesto apenas no sentido de ter ido buscar guarida com aquele rei, mas não em relação à fuga intencional, ao roubo praticado e a riqueza que guardava consigo. Aliás, dentre suas maiores preocupações a que mais lhe perturbava o juízo era a de não ser roubado pelo maldito baixinho. Por isso mesmo é que conversou com a esposa sobre a necessidade de fugirem dali imediatamente, naquela mesma noite, levando o máximo que pudessem da fortuna, aproveitando-se da porta que havia sido abertas nos seus aposentos, que os levaria até o solar e de lá tomariam o destino que a escuridão e os seus perigos permitissem.
Fizeram tudo conforme o planejado. Lucius insistiu para que levassem apenas o mínimo dos objetos pessoais, pois o seu interesse maior evidentemente era poder transportar a sua fortuna. Assim, silenciosamente deixaram o espaçoso quarto, se dirigiram até a varanda de sol, observaram cuidadosamente se estavam sendo vigiados e seguiram ladeando as tortuosas paredes do castelo, até alcançarem o pátio externo. Restava somente sair dos seus muros e entrecortar a noite em busca da liberdade, se não surgissem as tão temidas surpresas. Seria um verdadeiro desastre serem descobertos naquela situação.
Lucius e Lize não imaginaram, contudo, que Otnejon havia escolhido aquela mesma noite para surpreendê-los enquanto estivessem dormindo. Prenderia os dois sob a acusação de que estariam espionando o reino e depois os mandaria para as masmorras. A sorte deles seria decidida depois, sendo que o mais importante haveria de já estar assegurado, que era a fortuna.
Foi com esse objetivo que os malfeitores de Otnejon chegaram até o solar, na parte externa do quarto onde deveriam estar repousando o ex-soberano e sua esposa.


continua...



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Meu lugar (Poesia)

Meu lugar


Durmo na rede
pra não sonhar
ao lado da solidão
Caminho sozinho
pra não ter a companhia
dessa multidão
Minha casa é longe
ninguém nunca viu
e não existe não
Converso em silêncio
sorrio com os bichos
nessa vaguidão
Planejo o futuro
sei que vou construir
na palma da mão
Mas chamo teu nome
mas grito teu nome
nesse chamado em vão
Para fazer companhia
para morar comigo
nesse vão coração.


Rangel Alves da Costa

sexta-feira, 12 de março de 2010

ANJO DA GUARDA DO CORAÇÃO ATEU (Crônica)

ANJO DA GUARDA DO CORAÇÃO ATEU

Rangel Alves da Costa*


Sem qualquer tipo de dúvida, o que dá sustentação à vida e a recobre de significado é a fé, a crença ou a certeza de que o que se vive ou se busca não é em vão. As metas, os sonhos e os objetivos de nada valeriam se não fossem alicerçados por uma possibilidade de realização. E essa possibilidade ganha força e sentido quando se tem um Deus ou deuses no coração, quando se acredita em uma força superior que interceda positivamente para que as coisas se realizem.
Pessoas existem que simplesmente negam a existência de Deus, de deuses ou de outras entidades divinas, superiores. Para elas, não existe religião, fé, força superior ou qualquer luz espiritual que indique que não estamos e não somos sozinhos. A descrença faz com que elas acreditem que os seres humanos simplesmente estão por aí por um acaso, que nada pode interferir no destino senão os próprios indivíduos, que o que foi e será feito só deve ser prestado contas a si mesmos. Presumem, enfim, realizados nos seus próprios poderes de grãos de areia sobre a terra.
Contudo, verdade é que muita gente confunde a descrença numa força superior com a ausência de Deus no coração. Aí se diz ateu simplesmente porque acha que Deus o abandonou, que o seu coração está vazio de fé porque implorou a Entidade e não foi atendido, porque rezou, fez promessa e acendeu todas as velas do mundo e mesmo assim o namorado não voltou. "Eli, Eli, lhama sabactani", Deus, meu Deus, por que me abandonaste? E a partir daí já se diz ateu.
Desse jeito era Maria, com seu passo triste, seu olhar chorão e seu coração despedaçado. Se achava a pessoa mais infortunada do mundo, a mais feia, a mais sem sorte, a mais rejeitada, a mais abandonada, a mais carente de amor. Nunca havia arrumado um namorado porque era isso tudo, dizia. Daí que começou a odiar todo mundo e tudo no mundo, a se isolar, a não crer mais em nada. Não passava mais na frente da igreja, deu a sua bíblia, nem de longe queria ouvir falar em religião. E o que é pior, primeiro brigou com seu anjo da guarda e depois ficou de mal com Deus.
Maria vivia assim, jogada, sem crença e sem fé mais em nada. Não sabia, porém, que o seu anjo da guarda acompanhava tudo de perto, estava sempre ao seu lado, protegendo, interferindo silenciosamente nas suas ações, iluminado seu caminho e dando o apoio espiritual que ela tanto necessitava. Mas ela não sabia disso, e se soubesse não aceitaria, pois tinha a certeza que nada mais na vida faria voltar a fé naquele coração ateu.
O seu anjo da guarda, de nome Gabriel, aquele que é enviado por Deus, resolveu interferir mais fortemente na sua vida. Sabia que ela não era atéia e muito menos o seu coração se predispunha a ser ateu. Então, numa dessas circunstâncias do destino arranjou um namorado pra Maria. E que sorte a dela, pois o grande amor surgido do nada se dizia também ateu. Dois ateus juntos seria a perfeita conclusão de que as pessoas se encontram simplesmente porque andam por aí e não porque são predestinadas ao encontro.
Verdade é que Maria começou a ficar mais animada, tendo mais prazer nas coisas, fazendo planos para o futuro e mostrando cada vez mais felicidade. Por outro lado, o seu namorado ateu outra coisa não fazia senão falar mal de tudo, pensar negativamente em tudo, discordar de tudo que existia na vida. E ela foi ficando desgostosa com aquela situação, não suportando mais o jeito dele e até chegou um dia que disse: Deixe de ser assim e procure ter Deus no coração. Logicamente ele, como não acreditava em nada, também não acreditou no que estava ouvindo. E sumiu por dois dias.
Quando teve saudade e voltou encontrou Maria mais feliz que nunca. E a primeira coisa que ela disse foi que havia sonhado com o anjo da guarda dele. "Mas isso não existe Maria", retrucou ele. "Existe sim, eu tenho certeza, e tem dois anjos neste momento perto de nós, nos guardando. E eles, como todos os outros anjos da guarda são enviados por Deus para nos proteger durante toda a nossa vida, são espíritos superiores que estão ao nosso lado para nos guiar e nos preservar do mal, são aqueles seres invisíveis que nos socorrem e nos ajudam, nos envolve de paz e serenidade e nos leva a fazer o bem, são os mensageiros da esperança que estão a serviço de Deus. Eles nos faz chegar bons conselhos através dos pensamentos, idéias estas que nos inspira nas realizações da vida, e quando não os aceitamos ainda assim eles nos deixam adquirir experiência por nossa própria conta. É por isso que o Livro do Êxodo diz: "Vou enviar um anjo adiante de ti para te proteger no caminho e para te conduzir ao lugar que te preparei". Foram as palavras de Maria, a que há bem pouco tempo dizia não ter crença nem fé.
Era inegável. Maria havia se convertido de vez novamente. Estava repleta de felicidade, de esperanças e valorizando a si própria como nunca. O seu namorado aos poucos também ia mudando, deixando de ser tão combativo aos poderes de Deus e a sua efetiva existência na terra a partir do coração dos homens. Simplesmente não defendia mais o ateísmo nem afirmava que o único responsável pelo homem é o próprio homem. E Maria quis saber o que vinha ocorrendo com ele.
"Agora sei Maria que o anjo da guarda que existe em mim é o amor que sinto por ti, eis que o amor é o anjo da guarda do coração ateu", disse.



Advogado e poeta
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