SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 30 de setembro de 2015

A IGREJINHA DO POÇO DE CIMA


Rangel Alves da Costa*


A gente sertaneja sempre teve a religiosidade espelhada na intensidade da fé. Talvez não haja qualquer outro povo mais devotado aos mistérios divinos que o vivente nas distâncias áridas da região nordestina, principalmente naquele contexto onde o sertão é mais característico: o bicho, a vegetação e o homem, tudo na dependência do que vem lá do alto, respingando como chuva abençoada ou se espalhando como sol de esturricar coração.
Se ainda hoje, em meio a tempos mundanos e pecaminosos, a religiosidade continua aflorada e incontida pelos sertões, que se imagine lá pelos idos do século XVIII para o XIX. Foi nesta época que o atual município de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo começou a ser efetivamente habitado, pois antes disso apenas as penetrações de desbravamento no desconhecido sertão. Distando cerca de treze quilômetros do Velho Chico, nos confins da mata fechada, porém numa localidade mais elevada e de visão privilegiada, foi o local escolhido por Manoel Cardoso de Sousa para se instalar com sua família.
Tem-se, pois, a família Sousa, englobando os Cardoso, como pedra fundamental na gestação da futura povoação sertaneja. Quando as filhas de Manoel Cardoso, sendo estas Delmina e Maria Rosa, tomaram como esposos os irmãos Feitosa e Lucas, linhagens familiares frutificariam até os dias atuais. Igualmente ocorreu com o terceiro irmão, chamado Cirilo, que se engraçou por uma mocinha chamada Maria, das beiradas do Curralinho, e igualmente fez gestar uma importante família poço-redondense.
Toda essa gente necessitava ir além das orações e oratórios para expressar sua fé. Assim, logo foi providenciada a construção de um pequeno templo católico aonde aqueles moradores da região do Poço de Cima pudessem compartilhar com o sagrado as dádivas da existência. E também para celebrações, batizados, encontros de fé. Como padroeiro foi escolhido Santo Antônio, o santo protetor dos pobres e desvalidos e guardião dos grandes milagres. Nada mais justo a abençoar um povo em contínua luta pela sobrevivência.



Com o passar dos anos, o templo que era conhecido apenas como Igrejinha do Poço de Cima foi recebendo outro batismo e passou a ser denominada Capela de Santo Antônio do Poço de Cima. Foi erguida em local elevado, talvez defronte às principais moradias da localidade – considerando que quase nada resta das antigas residências – e com a parede do fundo voltada para a atual sede municipal.
 A Igrejinha do Poço de Cima ou Capela de Santo Antônio de Poço de Cima, como se prefira denominar, foi, pois, construída nos primórdios do surgimento da povoação. Consiste em uma pequena construção de arquitetura simples, com um pequeno altar um pouco adiante da parede do fundo, uma porta mais larga como entrada e mais uma em cada lado. Tais características continuam as mesmas dos tempos idos, diferenciando-se apenas nos reparos estruturais que foram feitos recentemente.
Com efeito, por muito tempo a igrejinha ficou relegada ao completo abandono. Os familiares dos antigos moradores do Poço de Cima sofriam com a visão das ruínas a cada visita que faziam àquele local de grandiosa importância sentimental, pois ali não só a escrita de um glorioso passado como a presença de entes queridos no pequeno cemitério que se estende pelos arredores da capela. As cruzes e os túmulos, ora mais imponentes ora apenas vestígios sobre a terra, são testemunhas dos quantos ali jazem na eternidade.
No rústico e quase familiar cemitério foram sepultadas não só as ilustres figuras do Poço de Cima como outros importantes personagens que deram origem ao povoamento do município, sobressaindo-se sempre os falecidos das famílias Sousa, Cardoso e Lucas. Importante ressaltar que até hoje estas famílias preferem ali, em campo aberto e muitas vezes rente às sombras das catingueiras, dar repouso aos seus entes queridos.
Ao longo dos anos, talvez como forma de não deixar que igualmente às antigas residências a igrejinha também desmoronasse, algumas tímidas iniciativas procuraram mantê-la em pé. O que foi conseguido, mas não de forma que a população sentisse que o seu templo sentimental estivesse devidamente reformado e pronto para os ofícios religiosos. A verdade é que não fosse a iniciativa da Paróquia de Poço Redondo, através do Padre Mário, mais uma vez as paredes estariam caindo, o telhado desabando e o interior tomado de morcegos.
Coube então ao Padre Mário, apaixonado e devotado que é pela terra sertaneja, designar um grupo de jovens para tomar a frente dos destinos da Capela de Santo Antônio de Poço de Cima. E que acertada escolha. Atribuiu-se a estes jovens, alguns deles com profundos laços familiares na localidade, proporcionar a feição que hoje pode ser encontrada: um verdadeiro templo de Deus, de história e amor ao berço de tantas gerações.


Poeta e cronista
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Para amar (Poesia)


Para amar


Uma estrada
entre a saudade
e o desejo

uma parede
entre a solidão
e o abraço

uma porta
entre o encontro
e o beijo

e o amor
querendo seguir
e amar

e o amor
querendo viver
além do sonhar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: sabiá tão triste, quanta tristeza do sabiá...


Rangel Alves da Costa*


O sabiá estava triste demais, uma tristeza indescritível no sabiá. Dois dias sem voar, dois dias sem cantar, dois dias sem sair da copa do galho mais alto da árvore. Seu ninho era logo mais abaixo, mas nem voltar ao lar ele parecia querer. Por que não voa, por que não canta, por que não faz festa na vida passarinheira? Por que tanta tristeza, sabiá? Aquele sofrimento todo não era de solidão, não era de saudade da amada, não era de enfermidade, não era de qualquer coisa própria dos passarinhos. Por amor não haveria razão para sofrer. Escolheu a solidão para afinar mais o canto, para melhor refletir sobre a vida, para cuidadosamente enfeitar o ninho para quando desejasse a companhia de uma sabiá bonita. Na verdade, já estava envelhecido, já estava cansado de tanto voar e cantar em cima da copa das árvores. Mas sua tristeza tinha outra motivação. Desde muito que observava o sumiço de outros passarinhos. Quase não havia mais ninho nem se ouvia mais a festa da cantoria passarinheira. Também pudera, quase não havia mais mato, mais arvoredo alto pelos arredores. O que era dos bichos, dos pássaros, dos encantados e da natureza, parecia ter sumido com a invasão desenfreada do homem. Caçador, lenhador, gente com facão ou serra elétrica, ali chegava e começava o gemido de tudo. As árvores se dobrando em lamento e a voracidade humana querendo mais. Tanto assim que agora só restavam algumas poucas árvores naquela que um dia foi exuberante floresta. Daí não ter mais ânimo para cantar, para voar, para buscar a felicidade. Talvez o seu ninho fosse o próximo a ser derrubado. E qual motivo de felicidade numa vida assim de ameaça e extinção?


Poeta e cronista
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terça-feira, 29 de setembro de 2015

CAMINHANTE SERTANEJO


Rangel Alves da Costa*


Todas as vezes que chego aos quadrantes sertanejos de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, logo me divido entre o centro da cidade e seus arredores. Na verdade, gosto muito mais de estar pelas estradas e veredas, em meio a tufos de mato e arvoredos, como um andante interessado por tudo, a andar por ruas e praças desinteressantes e abandonadas.
Assim que acordo, não demora muito e já estou caminhando rumo aos conjuntos da cidade, às beiradas do riachinho Jacaré, aos logradouros um pouco mais afastados, andando ao redor de sítios e chácaras, visitando lugares tão conhecidos na minha infância e em tempos mais recentes. Mas dessa última vez tive a oportunidade de ir um pouco mais longe e visitar um local almejado desde muito. E no contexto daquilo que sempre desejo encontrar em Poço Redondo: seu passado, sua história, suas raízes e tradições. Por isso que vou ali e acolá em busca de velhos cacos, de pedaços esquecidos de tempo, de remendos esquecidos nas varandas velhas e cumeeiras carcomidas.
Já compromissado desde uns vinte dias atrás, no sábado logo cedinho saí da cidade e caminhei cerca de dois quilômetros até a região do Poço de Cima. Foi nesta localidade que nasceu o que se tem hoje por cidade de Poço Redondo. Foi ali numa área mais alta, ideal para se lançar o olhar sobre os arredores e mais distante, que Manoel Cardoso de Sousa levantou moradia e deu início à povoação daquela vastidão sertaneja. Chegou com familiares por dentro do mato e não pelas águas do Velho Chico.
Posteriormente novas moradias surgiram mais abaixo, ladeando o Riacho Jacaré, no que se denominou de Poço de Baixo. E foi nesta área mais abaixo, com o crescimento da povoação, que surgiu o Poço Redondo. Deixou de ser Poço de Baixo para se transformar em Poço Redondo por um fato da natureza. Para dar água ao gado – ainda que água salobra – em tempos de tanques secos pelas estiagens, os moradores começaram a cavar um grande poço no leito do Jacaré. E o tal poço, fundo e redondo, acabou proporcionando uma nova denominação à povoação. Quando os vaqueiros passavam com seus rebanhos e alguém perguntava aonde tencionava ir enganar a sede dos bichos, então a resposta é que iam ao poço redondo. E daí em diante sempre Poço Redondo, ainda que afetuosamente batizado como Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo. Eis a força da religião dando o seu parecer sobre a existência de tudo.
Pois bem, à saída da cidade encontrei o amigo João Vitor, um dos responsáveis pelo convite àquela caminhada. Fomos seguindo na estrada nua, passando por paisagens ora encantadoras ora desalentadoras, até o olhar divisar as formas da pequenina capela adiante. Nosso objetivo era precisamente chegar a Capela de Santo Antônio do Poço de Cima, primeiro templo católico do município e construído pelos primeiros habitantes da região. Ali, um pouco antes da sete da manhã, foi celebrada uma missa pelo cordial e generoso Padre Cláudio.
A missa tinha sua razão de ser. A capela, totalmente reformada, passou muito tempo abandonada, renegada à companhia dos túmulos que se espalham ao redor. Por muitos anos, apenas os mortos cujas raízes familiares estivessem no Poço de Cima, como os Cardoso, os Sousa e os Lucas, eram enterrados ao redor da igrejinha. Mas de uns tempos para cá, muitos outros foram levados por familiares para o repouso eterno naquele local. E pela importância histórica e familiar, sob as bênçãos do Padre Mário, um grupo de jovens poço-redondenses passou a ter incumbência de zelar pela capelinha do Poço de Cima. E os amigos João Vitor e Enoque, juntamente com outros jovens, se sobressaem neste ofício de cuidado e preservação.
Após a missa, caminhei mais alguns instantes pelos arredores até tomar o chão de retorno. Já na cidade, avistei uma senhora que desde muito tempo não encontrava para um abraço e um pé de prosa. Das raízes mais profundas de Poço Redondo, foi das mãos de Dona Clotilde que certa vez recebi por doação uma brochura muita antiga, um misto de partitura e diário, manuscrita por um Lucas de raízes mais distantes ainda. Um documento histórico de indescritível valor.
Assim que cheguei à porta, Dona Clotilde olhou-me sorridente, porém sem acreditar em quem reencontrava depois de alguns anos. Após os abraços, convidou-me a entrar na humilde moradia para avistar uma pessoa logo ali sentadinha na sala. Era Neném, sua filha, toda linda e miudinha no seu cantinho de sofá. Assim que me aproximei ela perguntou, um tanto indecisa: É Alcino é?
Dona Clotilde então trouxe um santinho de sétimo dia quando do falecimento de meu pai em 2012 e disse a Neném que Alcino era aquele do retrato e que eu era Rangel, seu filho. Então ela comparou o retrato com a minha feição e disse: É Alcino.


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Além da ilusão (Poesia)


Além da ilusão

Beijar a fruta
já não satisfaz
araçá e manga
quero algo mais

namorar estrelas
e a lua abraçar
na manhã solidão
quero outro amar

viver de sonhos
e cativar fantasia
faz voar o amor
quero outra magia

quero amar amor
um corpo e um ser
com cheiro e suor
e perfume em você.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: o diferente mundo das diferentes pessoas


Rangel Alves da Costa*


Para muita gente, não há mudança no mundo que implique em sua transformação ou mudança no jeito de ser, de sentir e agir. Ainda conheço pessoas que vivem anos-luz distantes de avanços tecnológicos, modernidades, informática ou mesmo qualquer coisa que seja diferente de seu mundo próprio e único aceito. Mesmo não vivendo muito distante da cidade, pouco saem além da cancela ou porteira, pouco viram a curva da estrada, pouco vão além de sua malhada. Conhecem a radiola, mas não a parafernália de som; conhecem a palavra, a voz e o grito, mas não o telefone e muito menos os smartphones da vida; conhecem a roupa, o vestir, o usar, mas não a etiqueta, o luxo e a moda; conhecem o pão, a fome e a comida no fundo da panela, mas não a guloseima, o cardápio, o fresquê culinário; conhecem a lua e o sol, mas não as luzes dos modismos que tanto enganam e cegam os citadinos; conhecem o lombo do burro, do jumento e do cavalo; mas não o selim da moto, do veículo, do possante motorizado; conhecem a pinga, o chá medicinal, a água de moringa e o café gordo e gostoso, mas não o uísque, o vinho e champanha da burguesia. Aboia, ecoa sua toada dolente e sequer quer saber de sofrência, baianada ou qualquer porralouquice musical. Um povo assim ainda existe, e muita gente assim eu conheço. Pessoas que encontro nas minhas andanças sertões adentro, levando comigo o embornal para tudo retratar e um coração sertanejo para tudo sentir e admirar.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 28 de setembro de 2015

ILUSTRES VISITANTES


Rangel Alves da Costa*


Neste último domingo, 27 de setembro, eu estava em Poço Redondo, no sertão sergipano do São Francisco, organizando algumas peças do acervo do Memorial Alcino Alves Costa, quando, um pouco antes do meio-dia, vi-me surpreendido com a chegada de dois ilustres visitantes, vindos do Juazeiro do Padre Cícero e ali de passagem para uma visita à antiga residência do amigo Alcino, falecido em 2012.
Tratava-se de dois escritores, pesquisadores e estudiosos das lutas sociais nordestinas de antigamente, principalmente o fenômeno cangaço. O primeiro, Oleone Coelho Fontes, jornalista baiano, autor de obras de relevo na historiografia nordestina, dentre as quais Lampião na Bahia, O treme-terra, No rastro das alpercatas do Conselheiro, Euclides da Cunha e a Bahia, Sergipe na Guerra de Canudos e Um jagunço em Paris.
O segundo, José Bezerra Lima Irmão, autor de Lampião – A Raposa das Caatingas, obra publicada em 2014 e que se trata de um dos mais profundos estudos acerca da trajetória de Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião. Fruto de muitos anos de pesquisa, o resultado foi um livro grandioso tanto no conteúdo como na forma, pois são 740 páginas. Sobre o livro, assim se referiu o próprio autor, à época do lançamento:
“Depois de onze anos de pesquisas e mais de trinta viagens por sete Estados do Nordeste, entrego afinal aos meus amigos e estudiosos do fenômeno do cangaço o resultado desta árdua porém prazerosa tarefa: Lampião – a Raposa das Caatingas. Lamento que meu dileto amigo Alcino Costa não se encontre mais entre nós para ver e avaliar este livro, ele que foi meu maior incentivador, meu companheiro de inesquecíveis e aventurosas andanças pelas caatingas de Poço Redondo e Canindé. Este livro – 740 páginas – tem como fio condutor a vida do cangaceiro Lampião, o maior guerrilheiro das Américas. Analisa as causas históricas, políticas, sociais e econômicas do cangaceirismo no Nordeste brasileiro, numa época em que cangaceiro era a profissão da moda”.
Ainda com referência a Oleone Coelho Fontes, é preciso relembrar que o mesmo foi o autor do prefácio do contraditório e combatido livro O Mata-Sete, de Pedro Morais, onde se coloca em dúvida a masculinidade de Lampião. E bastou tal fato para que Oleone recebesse as críticas mais desabonadoras da grande maioria dos pesquisadores e estudiosos do cangaço. Creio que aos poucos foi sendo perdoado. Mas, segundo afirmou o prefaciador, atendeu apenas um pedido do amigo Pedrinho, como se refere ao contestável autor. Porém, sem comungar com as conclusões lançadas no livro.
Então, ao me dirigir ao portão do memorial encontrei Oleone e Bezerra. Este, em tom sorridente, foi logo perguntando se Alcino estava. E estava mesmo, porém na sua obra ali presente e na sua memória sempre pujante naqueles sertões. Em seguida, como se quisesse provocar o amigo Oleone, afirmou: Amigo Rangel, agora lhe peço uma coisa, por você e principalmente por meu amigo Alcino, jamais deixe que aquele livro prefaciado por este moço aí chegue a estas estantes. Nunca mais colocarei os pés aqui se aquela mentira fizer rastro onde ainda passa Alcino.
Os dois escritores são amigos de longa data de meu pai Alcino. Mantinha contato telefônico constante com Oleone e correspondência frequente, além de muitos encontros em eventos acerca do cangaço. Os dois sempre estavam costurando velhos retalhos da saga cangaceira no intuito de obter tramas possíveis. Com Bezerra foi mais presencial, pois este fazia constantes visitas ao sertão e com Alcino percorriam localidades de importância no contexto do cangaço. Como resultado, a maioria das referências do livro de Bezerra se volta para a obra de Alcino.
Senti-me verdadeiramente comovido com a visita, com a disposição dos dois de enveredarem pelos sertões sergipanos para uma visita ao memorial em homenagem ao amigo falecido em 2012, e na mesma residência onde recebia a todos e escrevia seus livros reconhecidos nacionalmente. Para se ter ideia, o livro Lampião Além da Versão – Mentiras e Mistérios de Angico, tornou-se verdadeira obra-prima na literatura cangaceira. E, como marco da visita, Oleone e Bezerra autografaram livros e doaram ao acervo do memorial.
Foram momentos prazerosos e inesquecíveis entre diálogos, apreciação do acervo e fotografias, e mais memoráveis ainda pelo simples fato de eu estar representando o meu pai perante aquela amizade desde muito construída. Como já disse o poeta, os amigos retornam para rever os amigos, ainda que estes já tenham tomado outro destino. Meu pai partiu, mas os amigos retornaram à sua porta.


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Minha eterna namorada (Poesia)


Minha eterna namorada


Oh minha eterna namorada
um amor de ontem e já eterno
por que o passado e o amanhã
por que o tempo e o calendário
por que baú antigo e sol de agora
por que já segredo e já mistério
vivência que nem mesmo nós
compreendemos a eternidade

eis ainda a mão segurando a mão
eis a poesia declamada ao olhar
eis o juramento debaixo da lua
eis a saudade a qualquer instante
eis um sabor de fruta no lábio
e eis o beijo como voz ao coração
e os doces gestos cativando a vida
como grãos e frutos de eternidade.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: flores na aridez


Rangel Alves da Costa*


Estive recentemente no sertão. De uma viagem para outra, e em pouco tempo, a paisagem já completamente transformada. A mataria, antes esverdeada, deu lugar a um cenário feio, acinzentado, seco, quebradiço. Significa dizer que a seca está novamente chegando de forma devoradora. Neste percurso, não vai demorar muito e tudo ficar na desvalia, na magreza, no gemido, no couro e no osso. Então o sertão se transforma na sua feição mais sofrida: bicho e homem ao desalento, planta e graveto numa só finura, folha e fruto tornados em pó. E é uma história que se repete sempre, infelizmente. O que avistei já foi suficiente para entristecer a alma e tornar mais pesaroso o olhar. Sou sertanejo e padeço o mesmo sofrimento dos conterrâneos que amargam os dias e as noites numa agonia sem fim. Contudo, um fato simples e corriqueiro me afastou do espanto com aquele cenário desolador. Eis que caminhando pelas estradas de chão, na terra nua, pedregosa e espinhenta, de passo a passo encontrava flores sublimes, singelas, encantadoras. Eram flores de cactos que brotavam das palmas espinhentas e se abriam em visões de sonho. Cactos rasteiros, de beira de estradas, conhecidos como jurubeba, faziam surgir um manto num misto de vermelho e alaranjado, adornado pelo verdume da planta, no contraste mais estarrecedor que podia existir. Mas tudo num só sertão: o cacto com sua bela flor e pelos arredores os gravetos de plantas mortas. Talvez a flor velando a dor ou a dor ainda suspirando na flor.


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quinta-feira, 24 de setembro de 2015

ARISTÓTELES E AS ESTRELAS NO FUNDO DO POÇO


Rangel Alves da Costa*


Imagina-se que as estrelas estão sempre distantes, muito distantes, lá no alto, no firmamento. À noite, no negrume do céu aberto, então elas surgem brilhosas e apaixonantes. Ao lado da lua formam um cenário noturno encantador.
Aqueles pontinhos luminosos lá em cima, e que de repente parecem voar numa rapidez desenfreada, são como gotas perfumadas aos poetas, amantes, apaixonados e tantos outros que procuram decifrar seus tantos mistérios.
Mas o brilho das estrelas seria dádiva apenas da noite ou seria possível avistar seu fulgor noutros instantes do dia? As estrelas são avistadas somente no céu ou podem ser encontradas em outros firmamentos da vida?
Surge então a ideia de céu estrelado como possibilidade mental, de firmamento estrelado como desejo de cada um, de luminosidade estelar em qualquer lugar que o sujeito deseje encontrar. Mas como isso seria possível?
A melhor resposta está numa frase do filósofo Aristóteles: “No fundo de um buraco ou de um poço, acontece descobrir-se as estrelas”. O que isto significa? Simplesmente que a visão das estrelas é uma possibilidade de qualquer um segundo o seu desejo.
Por outras palavras, significa que ao invés de esperar o negrume da noite para que as estrelas surjam radiantes no espaço, a pessoa pode antecipar sua visão e procurar encontrá-las em outros lugares. O que importa não é a estrela em si, mas a visão dela que se deseja ter.
A frase de Aristóteles é permeada de metáfora e simbologia. Logicamente que as estrelas enquanto astros celestiais não saem do firmamento para surgirem noutro lugar, muito menos no fundo escuro de um poço. Impossível de acontecer. Mas o sentido da frase é outro, bem diferente.
Quando o filósofo diz que no fundo de um buraco ou de um poço, acontece descobrir-se as estrelas, está afirmando que nada é impossível aos que se lançam ao desejo de encontrar. É a vontade, a construção mental ou a idealização de algo, que acaba permitindo que o inexplicável aconteça.
Acontece de descobrir-se estrelas num fundo do poço ou a lua no fundo do mar, ou mesmo num copo d’água ou na lágrima que cai, pelo fato de que a pessoa assim deseja encontrar. O desejo profundo, a vontade enraizada, acaba permitindo céus, horizontes e noites, diante do olhar ou em cima da cama.
Numa primeira análise, até se imaginaria que Aristóteles tencionou afirmar, na mesma vertente de Shakespeare, que nada seja impossível de acontecer, pois tudo entremeado de mistérios indecifráveis. A leitura pode ser neste sentido mesmo, mas o que se depreende é a intencionalidade maior em colocar a vontade humana como descobridora de estrelas. E em lugares muito diferentes do céu estrelado.
As duas frases, a de Aristóteles e a de Shakespeare, possuem a mesma conotação: “No fundo de um buraco ou de um poço, acontece descobrir-se as estrelas” e “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”. Nas duas um mesmo fundamento: a possibilidade de existência do que se imagina como impossível.
É tal possibilidade de existência do que se imagina como impossível que coloca no homem a responsabilidade de romper as barreiras do que se tem como inalcançável. O homem, contido pelo negrume, aflito pela escuridão que o cerca, de repente sem saída para encontrar qualquer luz, pode lançar sua última força para encontrar estrelas.
Ora, as estrelas de Aristóteles são os desafios vencidos, os caminhos encontrados, a perseverança que venceu o medo de não conquistar. As estrelas de Aristóteles estão apenas adormecidas em cada indivíduo. Basta desejar que elas surjam e um céu iluminado será a recompensa da fé, da luta, da obstinação.


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A longa caminhada (Poesia)


A longa caminhada


De lá pra cá
passei por muito lugar
me fiz de bicho e gente
pra poder acostumar

e quando diziam
menino volte pro sertão
dizia amanhã ou mais tarde
depois de fazer a lição

depois da mala aberta
sonho espalhado em varal
o menino sertanejo
abriu janela e portal

e quando diziam
menino tome cuidado
dizia logo que o medo
comigo não havia chegado

depois do passo na rua
sem existir mais fronteira
sabia bem aonde ir
nas rédeas da vida inteira

e quando diziam
menino vá devagar
nem precisava mais dizer
pois a vontade era voltar

depois de suar sangrando
produzir pra outra mão
peguei a mala e passagem
disse aqui fico mais não

dei um grito da estrada
espantei o alazão
um olhar veio choroso
me abençoar no sertão.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: silêncio e voz


Rangel Alves da Costa*


De um lado o silêncio e de outro a voz. Uma casa ora de porta aberta ora de porta fechada. Uma feição sorridente, mas depois entristecida. O olhar de pranto que logo se revela aberto ao sol. Uma fronteira ultrapassada, uma margem rompida. Assim o silêncio, assim a voz. As palavras soltas, ávidas por expressão, por ecos e sons, mas a inércia no lábio e o adormecimento da boca. A voz possui seus motivos para silenciar. Muitas vezes o espanto esconde o grito, a dor esconde a palavra, o instante não sabe o que dizer, o pensamento continua escolhendo a melhor expressão. Enquanto isso, apenas o silêncio torturante querendo falar. Ou a voz cansada de dizer querendo calar. Eis o sofrimento maior da palavra: adormecida no silêncio e abruptamente despertada pela expressão, pelo grito, pelo murmúrio. Dependendo da situação, preferia jamais pronunciar qualquer coisa. Ademais, coisas existem que não precisam de palavras: o amor, o carinho, a amizade, a afeição. Dizer que ama, que sente é amigo ou possui profunda afeição, nem sempre se expressa tão verdadeiramente quanto o apenas ser nem nada dizer. A existência não necessita da voz à mesma proporção que precisa do silêncio. Este reflete o sentimento do ser. E o que o homem sente jamais é expressado na mesma proporção do sentir. Por isso cale, silencie, mas sinta. Sentimento é palavra e tudo.


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quarta-feira, 23 de setembro de 2015

NOITES DE LOBISOMENS


Rangel Alves da Costa*


Conta a tradição popular que os lobisomens surgem das transformações humanas em bichos. Não são pessoas mortas que voltam em forma de lobos gigantes, cachorros disformes, animais asquerosos, mas pessoas vivas recheadas de maldade no coração e pecados terrenos e que acabam sendo penalizadas com a medonha transmudação, principalmente em noites santificadas. E assim porque surgem mais no período da semana santa, a chamada quaresma.
Nas noites assim, medonhamente escurecidas, cujos labirintos avançam sobre as cidades e quintais, é que os horrendos visitantes surgem para amedrontar e até querer avançar sobre as pessoas indefesas. Nos sertões nordestinos, onde tais fatos se propagam como verdades, não é difícil ouvir causos e mais causos sobre os lobisomens. Contam sobre o homem que bateu a mãe e foi sentenciando a se tornar em bicho de olhos de fogo da quarta-feira de cinzas até a madrugada da sexta-feira santa, surgindo sempre horripilante nas noites fechadas. Dizem também sobre o padre que jamais era encontrado nas noites da quaresma. E assim porque estava sentenciado a se transmudar em lobo com cabeça de cachorro uivante pelos seus pecados terrenos. Ora, o vigário tinha mais de vinte filhos sem reconhecer nenhum.
Por isso mesmo que as noites escuras sertanejas se transformam em paisagens de aflição nos períodos quaresmais. As pessoas não saem nos quintais, não enveredam pelos caminhos escuros, não abrem as portas dos fundos. Pelo contrário, se lançam às orações, aos apegos divinos, aos pedidos para que as medonhas aberrações de repente não apareçam pelos arredores. O Velho Titió, ele mesmo acusado de se transformar em lobisomem, contava como se dava a transmudação, mas o fazia sempre jurando que tinha ouvido tal história de um sertanejo bem mais antigo. Dizia o velho pecador:
“Segundo me contou o Veio Filismino, todo aquele que vira lobisomem pode ser reconhecido quando a semana santa se aproxima. Ele sabe o padecimento que vai passar e se torna noutro homem. Quem olhar bem pra o cabra logo vai perceber que já possui o olho muito mais afogueado, parece que vai babar a qualquer momento, não para quieto num canto, se coça e se pinica todo como se tivesse em riba de formigueiro. Começa a dizer coisa com coisa, parece rosnar sozinho, não para quieto num canto de jeito nenhum. A todo o momento olha pra cima pra ver se o sol já está descambando e quando a boca da noite chega é um deus nos acuda. Quando o tempo escurece mais o cabra o cabra some de vez. Ninguém sabe onde ele foi parar, mas eu sei. Gente que vira lobisomem já tem lugar certo para a transformação. No meio do mato, sabendo que a qualquer momento o corpo pode começar a se transformar, então faz uma cama de capim, no meio do escondido, e ali se deita até tudo acontecer. Daí em diante se abate de sofrimento e rola de canto a outro, urrando, uivando, esperneando, até pular no meio do tempo como o bicho mais feio do mundo. Então vai para as estradas escuras, em meio aos labirintos, quintais e malhadas das casas, onde começa a fazer estripulia com que avista ou passa. Quem quiser conhecer a cama de lobisomem basta procurar nos roçados, onde houver capim machucado, estendido pelo chão, então foi ali que o cabra se deitou esperando o pior acontecer. E é assim que sempre acontece”.
Tais fatos, pois, acontecem no período da quaresma de noites mais negras, mais escurecidas, mais misteriosas. Nos rincões distantes, nos casebres solitários, nas fazendas e pequenas propriedades, as portas e janelas das casas são fechadas ainda no entardecer. E outra motivação não há senão pelo medo dos lobisomens e suas assustadoras aparições. Até mesmo nos centros urbanos há um temor desenfreado de que a qualquer momento um bicho feio, de língua de fogo e garras imensas, seja avistado nos quintais.
Há quem jure por tudo na vida que já encontrou com lobisomem, relatando ainda ser a experiência mais medonha que lhe aconteceu. Não há retrato nem nada que possa comprovar, mas não se pode negar o que estranhamente se ouve nas noites matutas. São uivos, lamentos, gritos medonhos. De onde vêm tais uivos ninguém sabe dizer. A única certeza é de jamais se esquecer do rosário, da imagem santa, do frasquinho com água benta.
Mas também contam a história de uma solteirona que vivia contando os dias para que chegasse logo a semana santa e com ela os lobisomens. Guardava alfazemas e lavandas especiais para o período e se enchia toda de sibiteza quando alguém perguntava se já havia preparado água santa e cruz benta para colocar atrás das portas e janelas. Então dizia que era calorenta demais para fechar qualquer coisa e que também gostava de uivar noite adentro e madrugada afora. E, por falta de homem, o jeito era lobisomem mesmo.
E no outro dia aparecia lanhada e com marcas avermelhadas pelo corpo. Mas sempre feliz e cantante, só faltando mesmo apressar as horas para a noite chegar. Noites de mistérios, lobisomens e outros uivos.


Poeta e cronista
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Manhã, janela e flor (Poesia)


Manhã, janela e flor


O meu amor desperta ao alvorecer
e vai logo correndo abrir a janela
e logo chegam as cores da manhã
e borboletas, pássaros e colibris
e um suave perfume na leve brisa
e uma canção da natureza em flor

meu amor abre os braços e o sorriso
e sorri a mesma alegria da natureza
e agradece ao seu Deus pela existência
e agradece ao Senhor pela luz do viver
e depois se faz criança pulando a janela
e corre descalça querendo uma flor

enquanto meu amor abraça a manhã
olho da janela e encontro um jardim
o meu amor como a mais bela flor
e tudo ao redor num paraíso sem fim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta: balança lembrança, balança cadeira...


Rangel Alves da Costa*


Não sei se já perceberam, mas a cadeira de balanço possui uma profunda significação. Sua simbologia é tamanha que logo remonta a recordação, a tempos idos, a avôs e avós, a velhas senhoras se embalando rente ao umbral da janela ou mesmo debaixo dos sombreados dos arvoredos lá fora. Sei de muitas histórias sobre cadeiras de balanço e seus assentos. O Velho Titonho colocava a sua na calçada, lançava mão de canivete e de palha de milho, aprontava um cigarro de fumo e começava a dar baforada pelo ar. Em seguida falava sozinho a se danar. Dizia que homem mesmo era Getúlio, que ainda ia dar o troco ao que fizeram com Juscelino, que havia sido ele quem havia aconselhado a não colocarem camisa-de-força em Jânio, mas o homem era maluco mesmo. Já a Velha Florzinha tinha um procedimento todo especial quando queria chorar relembrando o passado. Mandava que o neto colocasse a cadeira embaixo do tamarineiro da malhada e depois se espalhava toda para pensar na vida. Pensava na vida sim, mas não nessa. Então começava a relembrar de seus defuntos, de seus antepassados, de um tempo já amarelecido e sem uso. A cada pensamento uma lágrima, a cada feição que surgia um rio correndo pela face enrugada. A noite caía em ela ainda navegando num rio de tristezas sem fim. Noutra casa, numa sala escura, a cadeira de balanço balançava sozinha. Desde muito que sua dona não sentava mais ali. Havia morrido naquele mesmo local e enquanto contava os pingos de chuva que caiam lá fora. Durante o clarão do dia a cadeira permanecia estática, parada, mas quando a noite caía então ela começava a se embalar lentamente. E sozinha ainda vai embalando o mistério da vida e da morte.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

terça-feira, 22 de setembro de 2015

METAMORFOSE (A NOSSA)


Rangel Alves da Costa*


Em seu livro mais famoso, A Metamorfose, o escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) desvela a condição humana de forma tão real como asquerosa. O que verdadeiramente é o homem? Há de se indagar, principalmente quando não tem mais serventia para a função materialista do mundo e tem de amargar a submissão e continuamente se sentir ameaçado pela sola dos sapatos dos seus e da sociedade. A dura analogia da transformação do homem à condição de verme e, como tal, sempre sujeito aos pisoteamentos e massacres do poder.
Originalmente um conto, A Metamorfose de Kafka trata sobre um homem comum que ao acordar descobre que o seu corpo está sendo transformado, aos poucos tomando a feição de um ser repulsivo. A transmudação de um sujeito normal em um inseto repugnante vai tomando rumos catastróficos. Mesmo querendo levar uma vida habitual, o sujeito vai sendo condicionado pelo seu novo estado. Trancado um quarto, rejeitado pela maioria dos conhecidos, de repente é avistado subindo pelas paredes. Já não passa de uma barata monstruosa e repelente, repulsiva a todos. Tenta fugir e é ferido pelo próprio pai, ferimento este que vai dominando suas forças até definhá-lo completamente, minguando como um bicho asqueroso qualquer.
A Metamorfose é também a simbologia da desvalia humana e de sua impotência para qualquer ação ante a realidade que o cerca. Mesmo transformado num bicho monstruoso, o sujeito ainda ouve tudo o que dizem a seu respeito, ainda tem sentimentos, ainda consegue discernir o que desejaria encontrar. Mantinha a família com o seu trabalho, mas agora se vê enojado e até odiado pelo que inesperadamente aconteceu na sua vida. Um triste e inexplicável acontecimento que vai levando a existência de um ser ao mais reles do chão. Uma barata, um inseto nojento, um bicho repulsivo. O que será do homem ao chegar a tal estágio?
O mais doloroso é sentir-se em tal condição e não poder reagir. Em meio aos presumivelmente normais e sadios não há lugar para parasitas. E assim, na solidão de seu quarto, sem voz nem poder de ação, envolto em dor física e espiritual, sente apenas as solas do mundo querendo pisar sobre si para expurgar de vez aquela abominação da existência. Neste sentido, talvez a verdadeira visão de ser repulsivo não estivesse no resultado da transformação, mas tão somente no homem visto como ser econômica e socialmente imprestável. Aquele que agora rasteja já não interessa àqueles acostumados a rastejar pelos seus pés.
Gregor Samsa, o personagem de Kafka, pode ser avistado muito além das paredes de seu solitário quarto. No tempo presente, aquele inseto asqueroso, aquele bicho repelente, aquela barata repugnante, pode ser reconhecido em muitos seres humanos. O próprio mundo se incumbiu de metamorfosear não só a compleição física como os sentimentos e as virtudes. As realidades do mundo novo e contraditório, moderno e ainda tão primitivo, tecnológico e estarrecedor, logo cuidam de transformar o homem num ser estranho consigo mesmo, intimamente desconhecido e relegado às imposições de um mundo opressivamente voraz. Daí que as baratas kafkianas continuam proliferando a cada instante e por todos os lugares.
Mas a metamorfose kafkiana alastra-se por horizontes ainda maiores. A transformação do valoroso homem num ser negado ante sua nova condição está mais visível no mundo moderno do que se possa imaginar. Em qualquer quadrante da vida, basta que a pobreza ou a miséria de repente recaiam sobre o sujeito e logo este será avistado como aquele ser descrito por Kafka. Igualmente, basta que os infortúnios ou o desandar de caminhos escondam um pouco do sol do sujeito, e este sequer será avistado em meio às sombras. Em muitos sentidos, é o ter ou não ter que tende a transformar um indivíduo em parasita repulsivo, sempre na visão do dono da sola do sapato pronta para pisotear.
O Brasil, por exemplo, desde uns tempos para cá, a partir dos contínuos desacertos governamentais que transformaram o cotidiano da existência num caos, a metamorfose de Kafka não se cansa de provocar novos seres rastejantes, submissos, levados aos esgotos da desesperança. Ao invés daquele quarto onde Gregor Samsa suporta seu infortúnio, é no clarão do dia ou no negrume da noite que a população brasileira se vê subindo em paredes, andejando pelos esgotos, rastejando na cada vez mais difícil sobrevivência.
Na história de Kafka, quem começa a acabar com a vida do filho/barata é o próprio pai, após feri-lo nas costas. E na realidade brasileira atual, quem faz surgir os seres rastejantes e a cada dia pisoteia um pouquinho mais é a governança maior. O governo, criador de submissos que perambulam empobrecidos, desesperançados e desvalidos, a cada medida tomada para ajustar as contas da roubalheira desenfreada, é como se estivesse avançando com os sapatos da arrogância e da insensatez sobre os já indefesos seres.
Infelizmente, a visão do ser enojado e odiado descrito por Kafka é a mesma avistada na face do brasileiro comum. A cada manhã acorda mais empobrecido, mais aviltado na sua integridade humana. A cada manhã traz consigo um pouco mais dessa metamorfose cruel. E pelas favelas, nos distantes rincões, nos lugarejos empobrecidos, em meio à tristeza das ruas, as baratas rastejam sem rumo. Ou será o homem?


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Saudade (Poesia)



Saudade


Qualquer fruta doce
é saudade boa
do lábio e da boca
sumo que escoa

qualquer lua cheia
é doce saudade
tanta nostalgia
e amor de verdade

qualquer entardecer
é saudade e dor
o sol que se põe
nas cinzas do amor.

Rangel Alves da Costa