SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de agosto de 2020

TIBERIANO AROEIRA, O CORONEL



*Rangel Alves da Costa


Coronel Tiberiano Aroeira, também conhecido como Senhor do Vai-e-Vem, pois dono de tudo que ia e voltava, era homem de muitas e estranhas manias. Padre Licurguino morreu com hóstia envenenada exatamente porque caiu na besteira de dizer isso num sermão. Cavou a sepultura ao dizer que o velho coronel era também o senhor das manias maníacas.
Não precisava nem o coitado do vigário entrar nesta seara, pois todo mundo sabia disso. E sabia principalmente que a principal e mais odienta mania da velha cascavel era mandar matar, e qualquer um, fosse um inimigo do mesmo cabedal ou um desvalido de casinha de choupana de beira de estrada.
Realmente, o homem parecia não ter outra coisa a fazer que não viver maquinando esquisitices, maldades, coisas de arrepiar. Mas também presepadas de gente doida, maluquices desmedidas, excentricidades de toda sorte. Diziam que era também um mentiroso de marca maior. Mas quem era maluco passar isso na cara da serpente cheia de linho branco por cima?
Corria à boca miúda que havia mandado cavar um buraco nos escondidos do seu casarão. Buraco grande, até confortável para quem quisesse ali se esconder. E diziam que o poderoso não podia nem ouvir falar no nome de Lampião que corria para o dito buraco. E ali ficava rezando para que o grande justiceiro das caatingas não lhe aparecesse para fazer perguntas sobre uns certos desmandos.
Homem rico demais, coronel de patente política, senhor do voto de cabresto e da vida de todo mundo que tivesse a desdita de ter nascido na sua região, do seu casarão latifundiarista selava a sorte de tudo. E de todos. Jagunço pra mais de vinte, armas num arsenal, cabeças de inimigos guardadas em formol. De vez em quanto ia até a despensa macabra pra conversar com suas vítimas, principalmente dizer que estava pensando em mandar cortar sua língua, vez que falava e não ouvia resposta.
Confessou a um amigo político, gente de mando em todo o estado, que estava com vontade de relatar suas memórias para alguém que fosse mestre em escrever biografia de gente importante. Até já tinha o título da biografia: “Coronel Tiberiano: um anjo com asas e tudo”. O amigo pigarreou desconfiado, meio sem jeito, mas disse que no mais tardar cinco dias riscaria ali um memorialista de renome para transformar em livro uma vida de tantas glórias.
Três dias depois se apresentou ao coronel o esperado memorialista, biógrafo reconhecido pela veracidade nos fatos relatados. Era tido por todos como aquele que não admitia acrescentar nada além da mais pura verdade da vida do biografado. Mas se realmente fosse assim, eis que tinha um grande problema para resolver nos relatos da vida do poderoso.
O homem das letras marcou para começar a ouvi-lo logo na manhã do dia seguinte. Assim que sentou diante do enviado, o anfitrião foi logo dizendo que não se esquecesse de colocar no relato nada do que dissesse dali em diante. Afinal de contas o livro ia sair como sendo ele o próprio escritor. O letrado então logo começou a desconfiar que aquilo não ia dar certo. Mas o medo não lhe permitia discordar de nada.
Assim, com três dias de relatos o velho gravador já havia utilizado mais de dez fitas cassetes. E em todas a mais pura verdade, no dizer do biografado. Assim constava sobre o menino pobre, de família religiosa, que havia sido coroinha, e que até os vinte anos não tinha nem o que comer nem o que vestir. Num sonho, recebeu um aviso onde estava uma botija e sua vida se transformou totalmente daí em diante.
Repartiu com os pobres a maior parte da herança e com a sua parte comprou umas terrinhas, mas pensando em fazer uma propriedade comunitária. Toda riqueza conseguida daí em diante foi para fazer caridade, para auxiliar os necessitados, para dar casa e comida a quem não tinha. Mandou construir e reformar igrejas, erguer casas de saúde e, se continuava sendo um homem rico, talvez fosse pelo reconhecimento divino do seu bondoso coração.
O biógrafo estava em tempo de explodir, não suportando mais ouvir tantas mentiras e descaramentos. Até que arranjou coragem e perguntou se era verdade o que comentavam, com notícias dando conta de que ele era um covarde mandante de assassinatos, impiedoso com inimigos, a pessoa mais violenta e desumana que podia existir. E que se mijava todinho só de ouvir que o Capitão Lampião estava na região.
O coronel deu uma gargalhada de espantar bezerro, e disse em seguida, com olhos brilhando, que não havia no mundo alguém mais bondoso que ele, um verdadeiro anjo de pessoa, alguém que no seu coração cristão não admitia nem que matassem uma mosca. E acrescentou que jamais teve do que temer no maior dos cangaceiros, de quem, aliás, era compadre.
Como havia sido contratado para escrever sobre o que ouvia, e também pelo fato de que a precaução é amiga de muita coisa, três meses depois o memorialista voltou com um calhamaço de palavras bem trabalhadas. Colocou em frente ao coronel e disse que toda a verdade sobre a sua vida estava ali. Então o homem chamou dois jagunços e mandou que ficassem por trás do escritor enquanto este estivesse lendo o livro sobre sua vida.
A cada página o coronel se enchia de sorrisos, de encantamentos, ficava feliz. Assim mesmo havia relatado, dizia ele. Mas já depois de umas trinta páginas os jagunços começaram a se comportar de um jeito diferente. Um olhava pro outro desconfiado, vermelho, querendo desmentir tudo aquilo. De tanto esforço ouvindo tantos embustes, lá pelas tantas um deles, depois de arroxear, não suportou e caiu mortinho da silva.
O outro quis acudir o companheiro, porém o coronel exigiu que esquecesse e prestasse atenção na sua bonita e bondosa história. Mas quando o biógrafo leu que “Desde então, o Coronel Tiberiano Aroeira vive iluminado pelas graças divinas, cercado por anjos, um verdadeiro querubim espalhando a graça e a bondade entre os seus”, o outro jagunço não suportou mais e disse raivoso:
“Vai mentir assim na casa da peste. Esse homem num vale nada, nunca fez bem a ninguém. Bote aí que ele mandou matar mais de cem, que só vive pra fazer o mal. E bote aí também que ele disse que não é pra deixar vosmicê sair vivo daqui de jeito ninhum! Bota aí, bote!”.
Ao ouvir isso o coronel corou, desbotou, azedou, rosnou, mumunhou, revirou os olhos, tentou puxar a arma pra atirar no jagunço, mas teve de parar ao ouvir do seu próprio pistoleiro: “E bote aí tomem que ele morreu de morte matada, e por um cabra que num suporta mais viver de tanta mentira. Tome fi do cabrunco! Bote aí, bote. Tome fi da peste!”.
E disparou bem na testa do patrão. E as últimas palavras do coronel, do Senhor do Vai-e-Vem, foram exatamente essas: “Bote isso não...”. E descoronelou de vez.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Poço Redondo, a arte de um povo...





As velhas flores (Poesia)



As velhas flores


As velhas flores
foram trocadas
por flores novas

mas ao invés da alegria
o velho jarro
quedou-se em melancolia

tomado de novas flores
o velho jarro
entristecia em suas dores

o pó dos anos trazia acalanto
e o amor que sentia
não merecia ser pranto

quebrou-se ao anoitecer
e junto às flores velhas
debruçou-se até morrer.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - os anos passam...



*Rangel Alves da Costa


Os anos passam. Tão rapidamente os anos passam. Minha idade corre, avança, com infatigável desejo de chegar a qualquer lugar. Nem quero saber onde seja este lugar. Dói-me saber que os anos passam para apressar um fim. Ontem eu era criança. Na verdade, ainda sou criança. Mas criança na memória, na nostalgia e na relembrança. Uma felicidade alcançada pelo passado. A bola de gude, o cavalo de pau, a nudez do menino pelas ruas encharcadas de chuva. E querendo crescer logo, crescer mais, ser logo adulto. E sem saber que quando a idade começa a correr, quando os anos tomam fôlego de pressa, nada mais poder conter seu ímpeto de chegada. Inevitável que fosse de outro modo, pois tudo em pressa de ventania. Agora, tentando conter a pressa dos anos, chamo novamente o menino para novamente brincar, para ser feliz e de novo sonhar. Olho para trás e me vejo correndo descalço pelos descampados da vida. Olho para frente e o meu espelho amarelado já não diz o que sou. Mas adiante há uma porta. E após ela uma estrada. Um caminho que forçadamente me faz caminhar. E algum dia chegar aonde não quero chegar.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

ENLAÇADOS LAÇOS



*Rangel Alves da Costa


O tempo passa, a gente vai envelhecendo, de repente já estaremos distanciados demais de nossos antepassados, nossas raízes familiares e de todo o convívio que nos permitiu chegar até onde estamos agora. Mas jamais esquecer.
Ora, não se pode esquecer as lições de um livro bom que sempre pede para ser relido em nossa memória. Página a página, vidas e suas sagas.
Mesmo que às vezes doa, que aflija por dentro pelas recordações, lembranças e nostalgias, ainda assim temos que olhar pra trás e avistar o que há de nós e o que há dos nossos que ainda podem ser avistados. Não nasci agora, não vim ao mundo sozinho.
Sou filho de pessoas que foram gestadas por outras pessoas, e daí um vínculo consanguíneo e familiar que jamais poderá ser negado em nome do esquecimento, da ingratidão ou do tanto faz.
Meu pai Alcino era filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo. Minha mãe Maria do Perpétuo, Dona Peta, era filha de Teotônio Alves China (o China do Poço) e Dona Marieta (Mãeta).
Sou neto deles, sou neto de Seu Ermerindo e Dona Emeliana Marques, e de China do Poço e de Mãeta. E estes também tinham suas raízes, seus berços familiares.
Com isto quero afirmar que minha presença de agora é um reflexo do ontem, do passado distante, do que foi brotado pelos meus até que em mim florescesse a vida.
Por isso não posso enxergar o espelho do presente sem avistar as velhas fotografias molduradas na parede do tempo e do coração. E quanta saudade dá!
Lembro-me, dentre tantas lembranças e nostalgias, dos santos no céu amadeirado do oratório de minha avó Emeliana, de seu gosto pelo Juazeiro do Padim Ciço e de sua voz firme dizendo assim e assim. Romeira, devota, uma sertaneja de rosário de contas e de promessas.
Lembro-me do coração perfumado de meu avô Ermerindo e do seu jeito firme, como a não querer revelar seu sentimentalismo e sua bondade.
Relembro seu armazém, sua mercearia, seus couros, seus fardos de algodão, seu balcão imenso e sua geladeira a gás nos fundos da venda. Lembro sua predileção pelos repentistas nordestinos e o monte de discos que ele trazia a cada romaria.
Meu avô China era um abridor de portas para os muitos amigos que possuía. Não recebeu apenas Lampião e o Padre Artur Passos em sua moradia, mas também comboeiros, andantes, mascates, pessoas que cortavam os sertões poço-redondenses.
Sua vendinha ao lado da casa era mais para prosear com os amigos do que mesmo como meio de sobrevivência, vez que possuindo algumas fazendas e sendo reconhecido como um de posses da pequena povoação.
Minha avó Marieta, Mãeta, vivia para os santos, para as rezas, para as igrejas, para abençoar quem passasse pela sua porta e para avistar o mundo, ali sentadinha ao entardecer em sua calçada.
Em dias de missa, e lá ia ela, toda miudinha, levando livros de rezas e crucifixos, levando sua cadeira de oração e seu xale de renda escura sobre a cabeça.
Meu pai Alcino sempre foi dividido em muitos, o Alcino político, o Alcino amante de seu sertão e o Alcino familiar.
Mas eu gostava mesmo era do Alcino sertanejo, aquele apaixonado pela terra, pelo seu povo, adorador de Tonico e Tinoco, catador de causos e histórias da saga sertaneja, aprendiz de escritor dedilhando em antiga máquina de escrever.
Inesquecível aquele Alcino saindo com sua pequena radiola e discos e indo até o cruzeiro da Praça da Matriz, e aí fazer ecoar pelas noites sertanejas o cancioneiro apaixonado de seu sertão.
Minha mãe Dona Peta, a fina flor do meu coração. Sem outras palavras para descrevê-la, senão aquelas que dizem sobre sua beleza, sua doçura humana, seu indistinto amor.
Costurava, bordava, pintava tecidos, gostava de fazer doces e comidas, possuía uma voz tão bela que os anjos se encantavam quando chegava à igreja.
E eu, eu sou uma parte de tudo isso, uma prenda viva de laços familiares, ou aquele que tudo faz para jamais se afastar daquele jardim de onde floresci.
Por isso que olho no espelho e me avisto em muitos. Não sou apenas Rangel. Sou Rangel de Alcino e de Dona Peta, mas também Rangel de Seu Ermerindo e de Seu China, de Dona Emeliana e Dona Marieta.
Tenho um nome, mas sou aquele que vem do sobrenome.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Em Curralinho, às margens do Velho Chico, recordações ribeirinhas...



Lobo na solidão (Poesia)



Lobo na solidão


Na noite escura
no alto do monte
uivos em profusão
uma dor angustiante
do lobo na solidão

o dia amanhece
o silêncio no monte
nada lembra a noite
e seu uivo de dor
da solidão em açoite

o dia anoitece
e o lobo caminha
tristeza em seu coração
vai ecoar no monte
seu uivo de solidão.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - masoquismo e passividade



*Rangel Alves da Costa


A maioria do povo brasileiro é essencialmente masoquista e de uma passividade sem precedentes. Masoquista por que quanto mais apanha mais gosta de apanhar, sofre por prazer, e ainda diz que deseja mais. Passiva por que se deixa conduzir sem qualquer atitude. Passiva por que se mostra indiferente ao que lhe atormenta e aflige o viver. Mas também um povo esquecido, de memória que sempre evita o confrontamento com o passado. Os políticos cospem, escarneiam na sua cara, mas de repente os algozes vira santo. O governo míngua sua existência, trata-o como asqueroso indigente, mas, ao dar uma esmola, também se torna o salvador. Toda revolta que prenunciada logo é esquecida. Povo que reclama e xinga na hora, mas no segundo seguinte já está completamente esquecido. Vota no seu ladrão preferido, no seu corrupto da vez, ou simplesmente reitera o voto naquele que só pensa em usurpar suas forças. Um povo que bajula, que preza pelo puxa-saquismo, que faz da adulação uma forma de contentamento. O que merece um povo assim? O que tem. Quer dizer: nada!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

domingo, 23 de agosto de 2020

UMA MÃE



*Rangel Alves da Costa


Em 1884, o pintor norueguês Edvard Munch (1863-1944), retratou em pintura a óleo uma realidade triste e angustiante, mas também amorosa e de profunda ternura. Na pintura, intitulada “A Menina Doente” (ou “A Mãe à Cabeceira da Criança Doente”), está traduzido o sentimento da dor e da aflição.
Sobre uma cadeira e com parte do corpo envolto em lençóis, uma menina doente (cabelos ruivos, de pele clara, ainda na flor da idade), de feições já tomadas pela enfermidade, tendo ao lado sua mãe. A menina, de cabeça levemente voltada para o lado, apenas sente as carícias e o afago das mãos de sua mãe.
Esta, de cabeça baixa, certamente chora, mas aquele choro represado, mais por dentro do que pelo lacrimejar, ante a angústia da filha. Na pintura, Munch retratava a doença de sua irmã de apenas quinze anos e o sofrimento de sua mãe perante tão desesperadora situação, eis que a menina realmente não suportou a enfermidade e faleceu de tuberculose. Ademais, uma pintura que fielmente traduz o amor de uma mãe.
A pintura comove pela beleza e pela situação de angústia e de dor tão bem expressada. Mas uma realidade constante perante o amor de mãe, perante a devoção de mãe, perante a abnegação de uma mãe e os desalentados instantes que envolvem os seus.
Mãe que sofre o mesmo sofrimento do filho, mãe que chora a mesma dor do filho, mãe que seria de se doar à morte para salvar a vida de um filho. Não apenas em leitos de enfermidades, mas em todas as situações e instantes de vida.
O amor de mãe é tamanho e seu coração tão protetor, que somente sua alma para traduzir seu real sentimento. Assim perante uma doença ou mesmo outra situação difícil passada pelo filho, mas que se imagine o tamanho do sofrimento perante a morte de sua cria desde o mais profundo do ventre.
Um amor tão verdadeiro que se torna impossível ao ser humano discernir sua dimensão. E somente Deus para compreender tal amor e igualmente amá-la em plenitude.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Os Sertões e as águas do Velho Chico...





O Rei (Poesia)


O Rei


Se o rei
quer subir
ajude o rei
a subir

se seu ego
quer mais alto
aumente o degrau
da escada

se o rei
além que ir
suba ainda mais
ajude o rei a subir

quando o rei
estiver bem alto
e nem avistar
o povo que está ali

basta puxar a escada
e fazer o rei cair
e ouvir a gargalhada
do povo feliz a sorrir.

Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - comer de máscara, beber de máscara...



*Rangel Alves da Costa


A pandemia está enlouquecendo muita gente, principalmente os governantes, ou aqueles com poder de decretar o fechamento de órgãos, a flexibilização, o isolamento, a reabertura, e por aí vai. Mas as decisões são tão absurdas ou contrastantes que é de se imaginar que estão brincando com coisa séria. Sei de situações onde a polícia mandava fechar as portas de uma pequena mercearia e de pequena loja de doces, e permitia o funcionamento de supermercados logo adiante. No interior, proibia-se sentar em mesa para beber, mas era permitido beber em pé. Mas nada igual ao decreto do uso obrigatório de máscaras. Não pelo uso obrigatório, pois atitude correta, mas o que veio depois, que foi a reabertura de bares e restaurantes, porém sem que o decreto das máscaras perdesse seu efeito. Quer dizer, esqueceram que pra comer ou beber há que se tirar a máscara. Mas tirar a máscara é proibido, impondo multa ou mesmo prisão. Eu soube até que estão pensando em obrigar o uso de um novo tipo de máscara: com zíper de abertura na boca. A pessoa bebe e come e depois tranca a boca novamente.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

domingo, 16 de agosto de 2020

BONSUCESSO: UMA FOTOGRAFIA TRADUZINDO A VIDA



*Rangel Alves da Costa


Recebo uma fotografia e nela encontro toda a história de uma povoação. Digo da comunidade de Bonsucesso, povoado pertencente ao município de Poço Redondo, no sertão sergipano, e que nasceu às margens do Rio São Francisco, no seu percurso interiorano e sertanejo.
Numa janela lateral da casa ribeirinha de seu irmão Netinho, a amiga Lorenna Carla clicou sem imaginar que sua fotografia traduziria toda a pujança da povoação poço-redondense e sergipana de Bonsucesso.
Na foto, a síntese de tudo: a história, a fé, o Velho Chico, a ribeira das águas e suas embarcações, as singelas moradias, a vastidão sertaneja subindo e descendo serras e montes. E o povo ribeirinho, nas entranhas desse singelo mundo, moldurando o viver.
No retrato, ao longe se avista o antigo e majestoso Casarão, construído em 1887 e por muito tempo suntuosa moradia dos Tavares. Edificado em local estratégico, pois em parte elevada que permite uma ampla visão desde o rio às serras, surgiu e continua rodeado por uma inigualável paisagem.
Casarão dos escravos, do coronelismo, das cercas erguidas na pedra, da senzala ao lado e da chibata sangrando vidas. Mas também da fé que fez tornar Nossa Senhora do Rosário a padroeira local. A santa, segundo dizem, foi trazida pela matriarca dos Tavares.
E a feição da fé e da religiosidade do ribeirinho está logo mais abaixo do Casarão. A igreja, construída defronte ao rio, abre os seus olhos para avistar o remanso das águas e suas margens.
Sua calçada alta, descendo em direção ao rio, faz com que o templo católico se afeiçoe a uma santidade em cima de andor. Mais abaixo, as canoas parecem sonolentas, meio adormecidas, enquanto as águas embalam seus sonhos de viagens e pescarias.
Uma vastidão de águas espelha a vida do rio. Por caminhos longos, os azuis vão chegando, vão passando, correndo e escorrendo, como seiva de vida que navega nas veias do povo do rio.
Como seiva pulsante de força e fé que percorre as veias do povo do rio...


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Na janela, proseado sertanejo...


Flor de amor (Poesia)



Flor de amor


Não é apenas flor
mas uma flor de amor

nasce na estação
do semeado coração

brota perante o olhar
que deseja enamorar

possui pétala macia
e perfume que acaricia

e no corpo em jardim
buquê de desejo sem fim

mas não é apenas flor
é flor brotada no amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - da solidão na janela



*Rangel Alves da Costa


De repente a janela é aberta e um vulto lentamente surge rente as cortinas. O vento sopra festivo. As folhas da amendoeira lentamente caem. No chão ocre e amarelado, ou talvez entre a ferrugem e o dourado envelhecido, um tapete se alonga em indescritível beleza. Da janela, aquele olhar tudo avista. Uma paisagem de todo dia, de todo entardecer. Mesmo com a beleza derramada sobre o chão adiante, sua feição é de angústia e de tristeza. Não havia muito tempo que aos seus olhos havia chegado um poema escrito em ponta de punhal: “Não espere do amor senão o vento, a ventania, a tempestade. Aquela bela flor matinal, que sempre ilude os que se imaginam amar, logo cairá sobre o chão como folhas mortas de amendoeira”. Nem a face nem o olhar se mostraram perante a luz lá fora. Apenas um vulto. Mas era ela. Era ela a mocinha da solidão na janela. E que não demorou muito para fechar as cortinas e desaparecer entre as sombras do quarto, para depois reler o poema e chorar.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

SINAIS



*Rangel Alves da Costa


Nosso mundo amado foi sempre marcado por alguns sinais. E até no desamor também os sinais. Dessa frente e verso, poder fugir jamais.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, arrumar as coisas e dizer que vai embora. E seguir a estrada pelo mundo afora, acreditando que atrás fica alguém que chora.
São os sinais do tempo, são os sinais de agora, dizer que só gosta e não dizer que adora, ou fingir sentimentos do peito pra fora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, tudo tão volúvel, tudo que evapora, sem nobreza n’alma que tanto implora a boa virtude de esperar a hora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, tanto fez tanto faz em tudo o que aflora, pois nada importa se tudo é brinquedo que se joga fora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, a insensibilidade que a tudo devora, na incoerência que a verdade deplora, deixando o ser sem prumo ou escora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, um navio sem rumo que num porto ancora e saudoso fica das águas de outrora, sem ter mais destino, pois o mundo o ignora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, o que estava dentro e foi jogado fora, só pela maldade de mandar tudo embora, até mesmo o amor que no outro aflora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, que mesmo a esperança nada revigora, já que tudo desfeito não retorna na hora e o que foi rejeitado não retorna sem demora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, a sede de ter tudo e de tudo se arvora, quando o que tem diga que adora, mas o que não tem logo se assenhora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, tanto faz a manhã, tanto faz a aurora, o galo que canta parece ter uma espora que espanta o sorriso e a felicidade desaflora.
São os sinais do tempo, os sinais de agora, e já não se conhece, já não se namora, tudo é logo na cama e depois vai embora, fazendo do corpo a honra que se devora.
Será que o tempo só traz amargor, que renega a paz, que rejeita o amor? Será que o tempo é assim tão atroz, de tamanho egoísmo que se esquece de nós?
Será que o tempo nos constrói de vento, nos faz de areia e na cal do tormento, será que ao invés da alegria e prazer, simplesmente nos doa a dor e o tormento?
Será que o tempo tem borracha à mão e vai apagando cada passo no chão? Será que o tempo brinca de viver, não dá tempo ao tempo para que o melhor possa acontecer?
Será que o tempo é relógio quebrado, que ao invés do compasso vai descompassado, transformando o instante num tempo já passado e o que passou no que à frente é avistado?
Será que o tempo guarda para mim algo além de um tempo que tudo seja fim, ou que algum tempo a felicidade porta a porta enfim? Ou será que me nega até o que há em mim?
Sei que são os sinais do tempo e os sinais de agora, queria outra fruta, mas só tenho amora, e já não há pomar na minha aurora. E já não sei se fico ou se já vou embora.
Os sinais de agora atormentam a vida. Da porta pra dentro só a dor doída. Da porta pra fora a estrada dividida entre o caminhar e a espera sofrida. Mas são os sinais e não há saída.
Os sinais de agora são como vendavais que levam os restos e não voltam mais, deixando os lenços estendidos em varais. O que aqui estava já não será mais.
Os sinais de agora são como profecias, como o Eclesiastes e suas ironias, que transformam noites em clarões dos dias, pois tudo se transforma depois das calmarias.
Os sinais de agora são sinais de dor, não há mais sinal sequer de amor, pois o que se plana é o medo e o horror, e o que se colherá será de espinhos na flor.
Em tudo os sinais do tempo e os sinais de agora, não há como fugir ou desejar ir embora, pois tem de suportar a colheita da hora e o que foi plantado não se joga fora.
Resta ao homem reaprender a viver, não querer ser além do que merecer, pois tudo está marcado com a sua hora, no sinal do tempo, no sinal de agora.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


No Casarão do Coiteiro Adauto Félix, em Cajueiro, povoação ribeirinha de Poço Redondo/SE



Amor de fé (Poesia)



Amor de fé


Assim como minha oração
pede aos céus proteção
com a mesma imensa fé
roga a presença no seu coração

assim como a vela acesa
faz fulgurar a face de Deus
a luz que ilumina fé
reflete o luzir dos olhos teus

assim como faço promessas
desejando a paz em clamor
ajoelhado e contrito prometo
ter mais e mais seu amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – um povo de tanta fé



*Rangel Alves da Costa


E tanta fé mesmo. Na povoação ribeirinha, sergipana e poço-redondense de Bonsucesso, o povo tem motivos demais para fazer valer sua fé, pois contando com santo padroeiro, santo co-padroeiro e santo de admiração. E assim porque tem Nossa Senhora do Rosário como Padroeira, tem São Sebastião como santo de maior devoção, e tem São Francisco (o santo do rio) como santo de singela adoração. Na igreja defronte ao rio, os corações ribeirinhos se enchem e se deixam aflorar em preces, cantos e orações. Pelas ruas em procissão, os sentimentos ribeirinhos carregam os estandartes da fé e da abnegação religiosa. Nos oratórios e nos cantos das casas ao cair da noite, as mãos repassando as contas do rosário em clamores a Nossa Senhora do Rosário, a São Sebastião, a São Francisco... E os santos, sempre ouvindo as preces, silenciosamente abençoam e dizem: Que tenham Paz e Vitórias, que tenham Bom Sucesso!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com


sábado, 1 de agosto de 2020

CHEIRANDO A MATO, A SERTÃO, A VIVER...



*Rangel Alves da Costa


Sou de um sertão de raiz, o mais sertão existente. Não existe outro sertão igual ao que sinto em mim presente. Desde a terra à semente, desde o bicho à sua gente. Um sertão sem ter igual no que se tem e no que se sente.
No sertão da minha terra há vereda de pé de serra, de bicho de pasto que berra, luta que não se encerra. Um caminha na poeira, um sol queimando em lareira, pouca comida de feira, uma pobreza avistada como bagaceira.
No sertão da minha terra há menino e pé no chão, há barriga sem o pão, há prato vazio no chão. Por todo o sertão é sim, o tudo vira tiquim, o muito vira poquim, o que pouco tem já tá no fim. Um povo que vive assim.
No sertão da minha terra, um dia um tempo de dor, na tocaia e na emboscada, na violência o clamor, o sangue jorrando ao chão, quem já viveu já chorou. Carnicento destripando a vida que a bala levou.
No sertão da minha terra, lá longe e bem distante, um casebre morro adiante, casinha desfeita em levante. A guerra na minha terra, a cruz que debaixo enterra os restos de um passado feito bicho que berra.
No sertão da minha terra, um chão assim tão espinhento, um viver que é de lamento no seu passo em sofrimento. Na vida feita de labuta, que somente a fé e a luta desenterram das desentranhas os restos da terra bruta.
No sertão da minha terra e noutros sertões mais além, um viver de querer bem, um se entregar ao que tem. E nada tem além do pão, na fé a vela e o sermão, na parede a imagem do Padim Ciço e Frei Damião.
No sertão da minha terra há uma igrejinha e uma prece, há um pedido de benção a todo aquele que padece, religiosidade tão forte que a esperança não perece. Há um povo em procissão, na crença e abnegação, rezando pra cair chuva e para salvar o sertão.
No sertão da minha terra há fogão de lenha em quintal, há roupa estendida em varal, há na nuvem um bom sinal, que amanhã será melhor, pois nada será pior que o sofrimento ao redor. Uma galinha que cisca, um gato que vem e belisca.
No sertão da minha terra há bolo de milho e jabá, há jumento na estrada levando o caçuá, uma carroça passando cheinha de croatá. Um cavalo esquipador, na vaqueirama um voador, alegria do sertanejo que um dia já vaqueirou.
No sertão da minha terra tem pirulito de mel, tem panelada e sarapatel, tem bolinho de chuva e de céu, tem linha no carretel. De cumbuca é o cantil e de couro cru é o chapéu. E assim vivendo se vai na vida de déu em déu...
No sertão da minha terra tem chuva grossa e pinguinho, tem chuvarada e sereninho, tem tempestade e tiquinho do chuvisco já caído, mas um sol tão atrevido que chega como enxerido e vai se arvorando escondido e deixa tudo esmaecido.
No sertão da minha terra tem rolinha fogo-pagô, tem seriema sim sinhô, e de todo bicho que restou. Mas muito existe não, nem sabiá nem cancão e nem ave de arribação. Pouco é a cantoria onde o canto existia, no sertão mais a tristeza onde havia alegria.
No sertão da minha terra há cuscuz no amanhecer e qualquer coisa ao anoitecer. Não se escolhe o que comer nem o prato que vai ter. Primeiro come a criança, depois vem toda a restança da família em esperança.
Assim no sertão de minha terra. Assim em todo o sertão.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Lá no meu sertão...


Cajueiro, Poço Redondo. Velho Chico que passa...




Aquelas lições (Poesia)



Aquelas lições


Meu avô
e seu livro aberto
de tantas lições
e até no silêncio
ou no vago olhar
dizia de tudo
dizia do norte
da vida e da morte
do medo e da dor
e do seu recorte

mas nada igual
ao que minha avó
dizia sem nada dizer
bastava a presença
e eu compreendia
o certo e o errado
o destino apontado
para eu seguir
e ser ou não abençoado.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – poema sem roupa



*Rangel Alves da Costa


Poema nu, sem roupa, em plena nudez. Mas não em versos e estrofes. Mas não em métrica ou versificação. Mas não em brancura ou de rebuscadas e preciosas palavras. Nu, apenas. Tão nu que mostra o sexo, mostra a vontade, mostra o prazer, mostra a ereção, mostra a excitação. Um poema que passa a língua entre os lábios, que lambe os lábios carnudos, que deixa cair pelo canto um veio lânguido de volúpia e prazer. Um poema que pisca o olho, que acena com a mão, que lambe o dedo, que chupa o sorvete como se sugasse a êxtase. Um poema sussurrante, gemedor, grunhido, e de grito aterrorizante querendo ser mais poema. Um poema que se despede sem timidez, que se lança sedento e faminto sobre o outro poema, que se suja todo pelo sabor que pelo corpo vai escorrendo. Um poema com mãos que se entrelaçam, com unhas que se movem afiadas, com fúria tal que até se esquece de que é um poema. Quando volta a si nem lembra mais que é poema. Sabe apenas que já gozou.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com