SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de julho de 2017

O NOME DE TUDO


*Rangel Alves da Costa


Está cada vez mais difícil dizer o nome das coisas, chamar as coisas pelos nomes conhecidos, nomear o que costumeiramente se conhece.
Todo mundo sabe o que é puxa-saco, fofoqueira, puta, viado, corno, mentirosa, etc., e tudo isso sempre foi assim conhecido e assim chamado, mas de uns tempos para cá tudo se tornou diferente.
Ora, as coisas, as situações, os fatos e os acontecimentos, não existem sem que se tenha conhecimento de suas existências. E só tomam existência exterior quando são nomeadas e conhecidas.
E não precisa ter nome científico para que as coisas sejam conhecidas e ganhem visibilidade. Acaso as ciências e as teorias prevaleçam nas denominações, pouco se terá como conhecido.
Também cabe ao costume e à voz popular dar nome a tudo que envolve uma sociedade. O sertanejo chama de arupemba ao que tem nome diferente em outro lugar. No sul do país dificilmente alguém sabe como o nordestino chama sua moringa de barro: quartinha.
Então por que viado não é mais viado, puta não é mais puta, corno não é mais corno, puxa-saco não é mais puxa-saco, fofoqueira não é mais fofoqueira, mentirosa não é mais mentirosa?
Certamente que puxa-saco, por exemplo, pode muito bem ser denominado de outra forma, pois demasiadamente conhecido como bajulador, baba-ovo, sabujo, adulador, lambe-botas. E como eu conheço gente assim!
Mas hoje, nem o puxa-saco nem o puxa-saco do puxa-saco, aceita ser chamado assim. Dando-se uma importância que não possui, então se compraz em ser chamado de assessor. Quer dizer, o puxa-saquismo se tornou sinônimo de assessoria. Mas assessor de que? De bajulação, só pode ser.
Igualmente com relação ao termo puta. Quem nesse mundo não sabe o que é uma puta, quenga, rampeira, rapariga, piranha e muito mais? Mas compra uma briga grande quem chamar puta de puta. Injúria, calúnia, difamação e o escambau, logo a “santa” arvora para si e diz que vai processar.
Puta não, de jeito nenhum. É feio dizer assim. Amante, quando muito. Até mulher casada e que trai o marido não tolera a vulgar denominação, pois sempre acha que amante é até um termo mais bonito e respeitoso. Mas por que assim se todo mundo sabe que é puta mesmo?
Fofoqueira, de jeito nenhum. Apenas uma observadora da realidade da vida, diz a sem-vergonhice em pessoa que não sai da janela, da calçada ou da esquina, tomando conta da vida dos outros. E, logicamente, para macular a imagem de todo mundo.
Fofoqueira não, exijo respeito, diz a safada que outra coisa não faz senão deixar a panela queimar por que a vida dos é mais importante. Uma lambisgoia mexeriqueira e que ainda se acha no direito de dizer que de sua boca não sai uma maldade sequer.
E assim a vida vai, com tantos nomes a serem chamados, mas de repente impedidos pela modernidade. Ora, o que faz uma garota de programa e que não seja locutora? Todo mundo sabe o que faz. Mas por que essa invencionice de garota de programa se o nome é outro?
Mas, pensando bem, é bem melhor deixar que as coisas continuem assim. O puxa-saco não é puxa-saco, a puta não é puta, a garota de programa não é garota de programa. O problema é que não é mudando a denominação que as coisas passarão a ser de outro jeito.
Não adianta fazer uma coisa e depois querer ser outra coisa. A pessoa pode fingir a si mesma, mas não ao mundo. E principalmente aos olhos e boca da fofoqueira.


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Lá no meu sertão...


Ainda a beleza do Cariri Cangaço Exu/Serrita 2017






Um mar de amar (Poesia)


Um mar de amar


Há um mar de amar
em todo mar que há

gaivotas são saudades
que voam pelos espaços

há um mar de amor
em todo mar que sou

um cais espera um barco
e desço com flores à mão

há um mar no olhar
de quem espera à beira-mar

meu amor me abraça
e descalços caminhamos

adiante o azul do mar
e em nós um mar de amar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - liberdade, liberdade


*Rangel Alves da Costa


Ao invés de canções nativas embaladas por rios de vinho, os bárbaros bradaram fúrias enquanto se preparavam para invadir impérios e derrubar reis e castelos. Ao invés de saquearem templos e cidadelas desprotegidas, as hordas rumaram em direção aos reinados até então imbatíveis. As tiranias deveriam cair, os escravismos deveriam sucumbir, as atrocidades deveriam cessar, ainda que por mãos brutais e sanguinárias. Caiu a primeira cabeça, rolou a segunda cabeça. O primeiro castelo foi despedaçado, a segunda fortaleza foi aniquilada. Pelo ódio e o ensandecimento, até pessoas inocentes tiveram suas cabeças cortadas. Mas apenas uma vingança pelas cabeças cortadas de sua gente ou de civilizações inteiras. Das bandeiras e dos selos, dos brasões e dos escudos, das armas e das cavalarias, das fortalezas inexpugnáveis e das lanças sempre levantadas, restaram apenas os escombros. Os bárbaros não souberam reinar sobre os reinos que destruíram, mas tão somente vingar na lança as arrogâncias do poder. Ainda assim fizeram muito. Derrubaram ditaduras, tiranias, reinos cruéis. E o mundo nunca mais foi o mesmo depois disso. Proclamou-se a liberdade, a liberdade. Mas qual liberdade? Que os bárbaros, mongóis e vikings, novamente avancem sobre os impérios modernos e seus governantes. Precisamos ao menos de um sonho de liberdade, liberdade...

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domingo, 30 de julho de 2017

A BORBOLETA E OS MEUS CEM ANOS DE SOLIDÃO


*Rangel Alves da Costa


Borboletas, borboletas, borboletas. Suas presenças parecem tornar a vida mais alegre, mais ajardinada, mais primaveril. Mas suas presenças também inquietantes sinais, misteriosos, indagadores. Leves, belas, coloridas, mas também provocando muitas e múltiplas indagações. Estar na presença de uma borboleta não é apenas estar na presença de uma borboleta. Nunca.
Acordo e logo corro para abrir a janela. Sei que ela vem. E ela chega. Todos os dias faz assim, cumprindo um mesmo ritual de magia e de cor. Não sei o que pretende fazendo assim, pois no meu quarto não há nenhuma flor, nenhuma planta, nenhuma fonte de água, nenhuma compota de doces. Mas ela chega todas as manhãs, parecendo mesmo que dorme ao umbral da janela esperando somente que eu a abra.
Um mistério que me comove e encanta. Não há qualquer explicação para que uma borboleta, e sempre a mesma borboleta, entre pela janela do meu quarto ao alvorecer. Vem, pousa no umbral, em seguida levanta voo e começa a planar por cima da cama, pelas paredes, pelos cantos, por cima da escrivaninha. Já pensei em espantá-la, em colocar tela protetora na janela, mas depois fui aceitando alegremente aquela inesperada visita.
Levanto a mão, passe rente, mas sempre prefere um pouso ligeiro no meu ombro. Talvez não encontre no meu corpo nenhum perfume que lhe agrade. Nunca fica em mim mais que poucos segundos, pois sempre levanta voo em outras direções. Quanto mais a manhã é ensolarada mais ela parece mais bela e fascinante em seus tons amarelados, de um dourado parecendo pintado à mão.
O fato mais estranho, contudo, é que ela sempre prefere ficar em cima do meu livro de cabeceira: Cem Anos de Solidão. E ali como quisesse folhear o livro, entrar no livro, viver o livro. Certamente não sabe, contudo, que ali está Macondo e seu mundo mágico, fantástico, povoado dos Buendía, de espantos e estranhezas. Gerações e mais gerações de personagens que nos ensinam que o incompreendido é a realidade maior e mais convincente.
E um fato surpreendente depois revelado nas minhas indagações. Dentro daquelas páginas existem borboletas e mais borboletas, muitas borboletas, entrando no quarto de Meme, a Renata Remedios do livro, enquanto o cigano Maurício Babilonia está ao seu redor em amoroso cortejamento. Aliás, borboletas amarelas que sempre acompanham o rapaz e que parecem estar por todos os lugares de Macondo, pois ler o livro de Garcia Márquez é como ouvir o ruflar de asas de borboleta a todo instante.
 Cem Anos de Solidão é um mundo povoado de borboletas amarelas. Garcia Márquez colocou um jardim entre loucos, insanos e sonhadores, e ao invés de flores povoou de borboletas amarelas. Então, será que aquela borboleta não seria uma das tantas existentes em Macondo e querendo às páginas de Garcia Márquez retornar? Mas não a aprisionarei dentro daquelas páginas. Apenas deixo o livro aberto, esvoaçando ao vento, para que a borboleta voeje ao redor do seu mundo.
Em Cem Anos de Solidão, dezenas, centenas, milhares de borboletas amarelas, povoam o quarto de Renata Remedios quando Maurício Babilonia chega para visitá-la. As borboletas sempre acompanham Babilonia a cada passo que dá, sendo todas amarelas, leves, suaves, como surgidas de encantamento, ou mesmo como que afloradas das raízes ciganas do rapaz. Mas também borboletas que povoam os sonhos da bel Remedios e sobre o seu corpo em virgem flor passeiam apaixonadas.
"As borboletas amarelas invadiam a casa desde o entardecer. Todas as noites ao sair do banheiro, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando borboletas com a bomba de inseticida. "Isto é uma desgraça", dizia. "Toda a vida me disseram que as borboletas noturnas chamam o azar." Certa noite quando Meme estava no banheiro, Fernando estrou no seu quarto por acaso e havia tantas borboletas que mal podia respirar. Apanhou um pano qualquer para espantá-las." Diz uma passagem do romance.
Eu não tenho nada a ver com Maurício Babilonia nem com Meme, com a bela Remedios ou qualquer dos Buendía, em quaisquer de suas gerações, mas uma coisa tenho certeza que me aproxima daquela história de solidão e borboletas: minha solidão de janela aberta e minha estranha visitante de todo dia. A borboleta povoando meus cem anos de solidão.


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Lá no meu sertão...


O maravilhoso Cariri Cangaço Exu 2017




No coração (Poesia)


No coração


Por que tem asas
o amor voa
rufla os ares
depois pousa
e repousa
no coração

pássaro que é
beija-flor que é
colibri que é
o amor voa
e faz ninho
no coração.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - “um Lampião se apagou, outros Lampiões ficaram...”


*Rangel Alves da Costa


De vez em quando ouço a música Lampião Falou, de autoria de Aparício Nascimento e Venâncio, e magistralmente interpretada por Luiz Gonzaga, o nosso Rei do Baião. E cada vez que eu a ouço mais a tenho não só preciosidade musical como retrato renovado de nossa realidade social. Tratando sobre Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, a letra mostra como uma confissão do cangaceiro ante a imagem criada e propagada após sua morte. Diz que foi apenas um homem que lutou e que morreu por uma causa, mas também que nunca foi o bandido que tantos insistem fantasiá-lo. O mais importante: os verdadeiros bandidos estão aí, no dia a dia presente, como se o mundo estivesse tomado de sanguinários cangaceiros. Eis, então, o que diz a letra: “Eu não sei por que cheguei, mas sei tudo quanto fiz, maltratei fui maltratado, não fui bom, não fui feliz, não fiz tudo quanto falam, não sou o que o povo diz. Qual o bom entre vocês? De vocês, qual o direito? Onde esta o homem bom? Qual o homem de respeito? De cabo a rabo na vida não tem um homem perfeito. Aos 28 de julho eu passei pro outro lado, foi no ano 38, dizem que fui baleado, e falam noutra versão que eu fui envenenado. Sergipe, Fazenda Angico, meus crimes se terminaram, o criminoso era eu e os santinhos me mataram, um Lampião se apagou, outros lampiões ficaram. O cangaço continua de gravata e jaquetão, sem usar chapéu de couro, sem bacamarte na mão, e matando muito mais, tá cheio de Lampião. E matando muito mais, tá assim de Lampião. E matando muito mais na cidade e no sertão. E matando muito mais, tá sobrando Lampião”.


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sábado, 29 de julho de 2017

A CULTURA RENASCIDA EM POÇO REDONDO


*Rangel Alves da Costa


Ultimamente - e graças a Deus -, ventos bons vêm soprando sobre a cultura de Poço Redondo. O que se tem visto é um verdadeiro renascimento do senso de pertencimento histórico-cultural do poço-redondense.
Neste aspecto, o que se tem visto é uma afloração do orgulho sertanejo, do senso de valorização do passado e presente, algo bem característico naqueles que reconhecem e valorizam a história, a cultura e as tradições do seu lugar.
Verdadeiramente nunca se teve uma juventude poço-redondense tão engajada na valorização das riquezas de seu berço de nascimento ou de acolhimento. A todo instante se percebe um interesse maior de jovens perante as potencialidades do seu rincão sertanejo.
Como dito, bons ventos sopram. E que venham mais sopros de ânimo, de busca, de procura, de interesse. As escolas parecem que, enfim, descobriram que o patrimônio de Poço Redondo é de riqueza e tamanho imensuráveis.
No passado, de vez em quando surgia uma feira cultural, uma semana cultural, ou eventos pontuais, onde as riquezas históricas e culturais do município eram expostas aos participantes e visitantes. Mas agora tudo isso é feito quase que diariamente.
Mesmo sem qualquer apoio ou patrocínio dos poderes públicos, o Memorial Alcino Alves Costa se tornou quase como uma obrigatoriedade a todos aqueles que desejam conhecer mais das raízes sertanejas e até conhecer um Poço Redondo de outros idos.
Talvez não tenha sido o Memorial Alcino Alves Costa o responsável por esse despertar histórico e cultural do poço-redondense, mas certamente foi através dele que Poço Redondo passou a se reconhecer ainda mais e a se valorizar muito mais.
Só para recordar, no passado não havia sequer um pequeno museu que contasse qualquer coisa da saga sertaneja. Hoje é diferente. O Memorial recebe a visita constante de estudantes universitários, de alunos da rede estadual e municipal, bem como pesquisadores, escritores e muitos outros que logo se encantam com seu acervo.
As escolas e outros centros de ensino também têm cumprido um papel importantíssimo neste despertar histórico e cultural. Toda vez que um professor propõe uma tarefa que envolva algum tipo de conhecimento sobre a própria localidade, certamente estará ativando o senso de pertencimento no filho da terra.
E assim por que, em cada um, passa a surgir um orgulho bom de ter nascido numa terra de tão vastas e imensas riquezas. Quem não gosta de ter nascido na terra de Zé de Julião, de Zefa da Guia, das belezas ribeirinhas, da rica saga cangaceira, de Alcino e Dionizio Cruz e tantos outros ilustres, da estrada percorrida pelo Conselheiro, da Capela de Santo Antônio do Poço de Cima?
Quem não sente orgulho de dizer que é filho da terra onde estão fincadas a Gruta do Angico e a Fazenda Maranduba, onde mora e trabalha o Mestre Tonho, onde se mostra imponente o Casarão de Bonsucesso, onde ainda há Cavalhada, Reisado, São Gonçalo, onde toda uma juventude e mocidade um dia trilharam os passos do Capitão Lampião, berço do Xaxado na Pisada de Lampião? Terra de Adília, de Sila, de João Paulo do Alto.
Só para citar alguns exemplos, outro dia, a Escola Justiniano de Melo e Silva promoveu um maravilhoso evento para homenagear as raízes catingueiras do poço-redondense. Os alunos de Pedagogia do IETC promoveram exposições e debates sobre o patrimônio histórico e cultural do município. Tudo isso é de suma importância.
O tema cangaço, mesmo na dita Capital do Cangaço, sempre foi menosprezado por muitos. Mas agora, de forma até inesperada, o que se tem é uma verdadeira adoração pela saga cangaceira no município. Tanto assim que a caravana de Poço Redondo no Cariri Cangaço Exu (realizado entre 20 e 23 de julho) foi uma das maiores e mais engajadas. Significa dizer que o poço-redondense está chamando para si a responsabilidade pela sua própria história.
E a partir de agora certamente que tudo irá aflorar cada vez mais forte. Em junho de 2018 haverá o Cariri Cangaço Poço Redondo e não há dúvidas de que a própria comunidade poço-redondense chamará para si a responsabilidade de promover o maior evento cangaceiro de todos os tempos.
Então, que os bons ventos continuem soprando.


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A caravana de Poço Redondo no Cariri Cangaço Exu 2017



Era uma vez um destino (Poesia)


Era uma vez um destino


Era uma vez
um homem que amava
e uma mulher que amava
que se amavam
mas não se conheciam

era uma vez
uma estrada distante
e dois passos na estrada
para se conhecerem
pelo destino

era uma vez
do nada surgido
esse mistério destino
que do nada aparece
para o amor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - todo aumento de preço é menor que o preço da escravização de um povo


*Rangel Alves da Costa


Não há como duvidar: todo aumento de preço é menor que o preço da escravização de um povo. Impostos, tributos, faturas, taxas, tudo o que se pague forçadamente, será sempre menor que o preço pago pelo povo. Não há valor que se pague quando se tributa a alma, quando se impõe sobre o espírito, quando se cobra sobre a própria paz. Toda a carga tributária brasileira será sempre menor que a submissão, a escravização, o uso e o abuso da sociedade menos favorecida. Quando governantes empurram goela abaixo aumentos e mais aumentos, sequer imagina o quanto o povo já perdeu de si mesmo, já se esvaziou em si mesmo, já secou por dentro. O que empobrece e invalida o povo não é o tributo a mais, mas tudo o que lhe é exigida sempre a mais. O que empobrece o povo é a certeza dos abusos que contra si é cometido. O que deixa o povo em desvalia não é o aumento do gás, do óleo ou do remédio, mas sim sua incapacidade de reagir, a certeza de que será sempre pior e que nada pode fazer para mudar essa caótica situação. Tudo o que sai do bolso do povo nada significa perante o que já perdeu no seu sentimento de nada ser perante aquele que o deveria valorizar e proteger. Eis a dor maior, o tributo maior: o nada que é perante as forças do poder. E que a cada dia sangra, míngua, exaure a própria existência.


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sexta-feira, 28 de julho de 2017

SEU BRIÓ E AS COISAS BOAS DA VIDA


*Rangel Alves da Costa


Brionício da Santidade de Jesus. Eis o nome do sertanejo mais conhecido por Seu Brió. Já nos idos dos oitenta, porém ainda no porte da velha umburana de cheiro, não queria outra coisa na vida senão viver. E vivia.
Quando perguntado pela idade, logo respondia que já mais de oitenta vaga-lumes. E por que vaga-lumes, Seu Brió? Indagava o visitante, ao que ele logo respondia: Quando o candeeiro da mata não mais se acende no breu é porque desiluminou ou já morreu.
Todos esses anos vivendo no mesmo lugar. E agora sozinho desde que sua Mariinha um dia deixou o fogão de lenha em brasa e foi fazer o café do Senhor, lá em riba. Foi chorar escondido, perto da catingueira e mais adiante, debaixo de portentoso umbuzeiro.
O mesmo umbuzeiro onde um dia, ainda rapaz moço, avistou uma tufada de gente assentada pra descansar. Ao se aproximar devagarzinho, pé ante pé, quase acocorado em meio aos tufos do mato, deu de frente com homens armados até os dentes. Eram os cabras de Lampião, parte do bando ali de passagem apressada.
Depois disso nunca mais se deitou debaixo do sombreado ao entardecer. Tinha receio de ser acordado por aqueles homens de pouco sorriso e valentia demais. Não era medo não, mas o que ouvia dizer sobre os cangaceiros e volantes deixava qualquer um de cabelo em pé. E ele era novo demais para morrer.
O seu negócio era viver. E sempre viveu na maior simplicidade do mundo, desde a sua moradia. Não trocava seu casebre de cipó e barro por qualquer outro tipo de casa, muito menos na cidade. Se Seu Brió não gostava de alguma coisa era ir até a cidade. Tudo fazia pra não botar o pé na estrada em dia de feira.
Casinha simples, humilde, parecendo mesmo estar num mundo muito mais antigo. Fogão de lenha, panela de barro, frigideira de fritar ovo com toucinho, de preparar tripa e bucho pra comer com cuscuz, pote em cima da trempe na cozinha, moringa na janela ou em riba da mesinha de madeira tosca.
Quando forçado ir à feira, de lá retornava trazendo fumo de rolo, um litro de cachaça com casca de pau e sempre uma garrafa de vinho de jurubeba. Esta era guardada para algum visitante que aparecesse. O restante era consumido no dia a dia da solitária, porém feliz, vida.
Pinicava o fumo, miudinho do mais miudinho, depois juntava um tantinho na palha de milho seca, passava tudo pelo lábio molhado para fechar, em seguida acendia já se encaminhando para a malhada, para o meio do tempo, de onde permanecia divisando os horizontes e as distantes nuvens de chuvarada. Era difícil avistar uma nuvem boa, prenhe.
A cachacinha apenas de vez em quando. Uma talagadinha só e já se dava por satisfeito. Deitava um tiquinho no copo antes de colocar sobre o prato de estanho o arremediado do meio-dia. Comida pouca, quase nada. Gostava de fazer feijão com carne do sol por que demorava mais, e bastava dormir fervido para estar bom no outro dia.
Outro tantinho de cachaça quando chegava o entardecer e logo a paisagem sertaneja tomava um encantamento sem igual. Nunca se cansava de admirar aquela magia divina, aquela força estranha que ia acendendo candeeiros pelos horizontes, entre as nuvens, para depois a tudo esturricar e ter a lua grande chegando. E quanta saudade, quanta recordação!
Dormia em rede armada na varanda, de porta aberta, caçando pedaço de lua enquanto o sono não chegava. No meio da noite, parecia ouvir vozes da natureza, das folhagens, da ventania. Apertava com dois dedos o pavio do candeeiro ali pertinho no tamborete e depois adormecia. E lá fora o seu mundo se refazendo para renascer noutra luz.
Não havia galo a despertar a manhã. Ao primeiro alvorecer, ainda quase na madruga escurecida, e Seu Brió já estava de pé, adiante da malhada, de toco de pau à mão, andando de canto a outro. Um bom dia ao calango, um bom dia ao graveto tombado ao chão, um bom dia ao passarinho.
Depois se sentava na pedra para orar: Senhor Deus sertanejo, que nenhuma porteira se feche, que nenhuma cancela se tranque, que nenhuma estrada seja tomada pelo inimigo. E que vossa mão bondosa sempre abençoe o filho dessa natureza sertão que lhe clama em oração!
Amém, Seu Brió. Amém!


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Lá no meu sertão...


JOSÉ BEZERRA LIMA, MÚCIO PROCÓPIO, RANGEL ALVES DA COSTA - Quando amigos escritores e pesquisadores se encontram e sentam para um diálogo, logo imaginam que falam sobre teses, teorias, livros, academicismos. Nada disso. Apenas sobre o simples da vida. As paisagens ao redor, o tempo que passa transformando tudo, o pássaro que canta, a borboleta que voa. Simples assim.



Presentes (Poesia)


Presentes


O céu e o paraíso
a lua e as estrelas
tudo ela pediu
e prometi
e dei

mostrei meu olhar
e pedi que avistasse
tudo que desejava
então ela sorriu
e agradeceu

depois me beijou
e se apossou do céu
se fez dona do paraíso
e no corpo espalhou
a lua e estrelas.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - preciso de silêncio


*Rangel Alves da Costa


Preciso de silêncio. Preciso de silêncio a qualquer palavra, a qualquer sussurro, a qualquer gemido, a qualquer grunhido, a qualquer grito, a qualquer alarido. Preciso de silêncio que não ameaça a paz, que não seja incompreendido nem que traga a discórdia. Preciso de silêncio que não seja interpretado como uma falar e o falar transformado em aleivosia. Preciso de silêncio que não seja além da voz do vento, da brisa, do farfalhar de folhagens, do murmurejar das águas. Um silêncio como um entardecer no monte, como a poesia em campo de relva, como a nostalgia em noite estrelada, como uma janela aberta para a lua entrar. Preciso de um silêncio que não seja ouvido, que não seja pensado como palavra arrogante, como barbárie verbal, como punhalada na voz. Preciso de silêncio que fale comigo, que também me ouça e que também me sinta. Um silêncio de monge, de ermitão, de beneditino em antigo mosteiro, de um errante em estrada sozinha. Um silêncio que pela minha boca diga apenas: Cala-te e serás um sábio!


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quinta-feira, 27 de julho de 2017

SOU FILHO DE ALCINO, SIM SENHOR!


*Rangel Alves da Costa


De repente me esqueço de que sou ainda menino - aquele mesmo menino de banho nu debaixo de chuva e brinquedo de ponta de vaca pelos quintais - e me surpreendo matutando sobre o meu percurso de vida.
Menino sertanejo de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, arribado pra capital aos onze anos, mas sempre com os pés fincados na aridez da terra e de cordão umbilical ainda preso na raiz mais profunda.
Em meio à reflexão, a recordação de meus pais e o quanto ainda sou daquilo tudo que um dia foram. Minha mãe Dona Peta, moça bonita, filha de Dona Marieta e Seu China do Poço (em cuja residência Lampião um dia dividiu a mesa com o Padre Artur Passos, mas não sem antes quase uma guerra ser declarada entre a cruz e a espada), despediu-se dessa vida sem jamais perder a candura sertaneja, numa docilidade de acalantar espinhos e flores.
Já o meu pai Alcino Alves Costa, igualmente poço-redondense de passo e estrada, e filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo, representou em vida a plena caracterização sertaneja, matuta, caipira, cabocla, ainda que tanto tivesse representado na política, na escrita, no verso, na sabedoria. Estudou somente até a quarta série primária, porém se fez doutor em tudo aquilo que lançou mão com afinco e perseverança.
Nasci junto com mais seis irmãos. E tenho tantos outros irmãos que nem sei a conta. Mas tenho muito mais irmãos. Todo sertanejo de Poço Redondo é meu irmão, e irmão de sangue, de destino e sina, de orgulho e dor. Como se vê, minha família é grande demais para eu ser sozinho.
Não sei se sou diferente dos demais, mas também sei que sou diferente. Explico. Talvez eu tivesse nascido para jamais colocar os pés na capital. Ainda hoje eu caminho sem jeito entre o cimento, o ferro e o asfalto. E daí muito do que meu pai um dia também pensou.
O amor de Alcino por Poço Redondo era tão grande que um dia abdicou da capital para retornar ao sertão. Era estudante no Colégio Manoel Luiz, em Aracaju, quando resolveu que seu mundo era outro: o sertão. Arrumou a mala e quase levanta voo.
Retornou ao sertão, colocou havaianas nos pés e nunca mais saiu. Mas eu não quis fazer assim e nem posso fazer assim. Eu tive que ficar para mais adiante, através do estudo, dignificar a terra que me viu nascer. Não sou egoísta, sempre prefiro oferecer a ter.
Na capital permaneci e me tornei o homem mais rico do mundo. Tenho ouro em mim, tenho tesouros em mim, tenho riquezas infinitas em mim: um sertanejo que aprendeu além dos livros. Aprendeu a ser humilde, aprendeu a pensar, aprendeu a equação exata entre o estudo e a sabedoria: a certeza que sempre se sabe tão pouco.
Não levo anel no dedo por que não preciso. Meu pai merecia muito mais que eu. Se há doutor de sertão ele era um. Mas o anel que carregou foi a havaiana nos pés e a persistência matuta em conhecer cada vez mais de sua terra, de seu povo, de sua história. Conheceu e não ficou pra si mesmo. Seu legado continua cada vez mais vivo.
E é neste passo que o filho de Alcino - que sou eu - se torna ainda mais filho de Alcino. Hoje ainda moro na capital, mas não levanto os pés de Poço Redondo. Pelas suas roupas ando de sapatos e chinelos, mas sempre arrastando as mesmas havaianas que um dia meu pai arrastou. Por quê?
Por que além de filho de Alcino tenho outro Alcino dentro de mim. Por que além de filho de Alcino tenho o mesmo sertão de Alcino dentro de mim. Por que além de filho de Alcino levo comigo as palavras de Alcino: ame seu sertão e faça seu sertão ser amado!
Não sou Alcino. Apenas filho. Mas queria ser o próprio Alcino revestido de vida. E de uma vida tão bela como as craibeiras no seu florescer. Mas a vida é flor de mandacaru. E dura tão pouco a flor do mandacaru.


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Lá no meu sertão...


Pelos sertões...



Noite de chuva e de solidão (Poesia)


Noite de chuva e de solidão


Daqui do quarto eu ouço a chuva caindo
também do telhado chega um som molhado
e imagino que nesta noite os gatos sofrem
suas solidões de gemidos em outros lugares
e sozinhos me deixaram com seus lamentos
como bicho sofrido num quarto fechado
lacrimejando o gotejar em cada pingo caído

numa sombria e triste noite assim chuvosa
de uma tristeza sem lua ou estrela no céu
apenas os grilos que cricrilam sem parar
as dores aflitivas escondidas na escuridão
e que se misturam ao cantar da chuva caindo
para que não se perceba onde está o pranto
e onde está o som molhado da solitária solidão.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - Dona Mariá


*Rangel Alves da Costa


Dona Mariá, originária da família Feitosa, uma das mais numerosas e ilustres de Poço Redondo, é uma das mais respeitadas e queridas mulheres nascidas na terra das beiradas do Jacaré. Ainda entre nós, graças a Deus, já faz algum tempo que se mudou do centro da cidade, na Rua Prefeito João Rodrigues, para a Avenida Alcino Alves Costa, indo morar com sua filha Neide. Talvez a idade avançada e a aflitiva solidão, tenham afastado Mariá dos olhos de todos aqueles que passavam pelas proximidades da Câmara de Vereadores e da Praça Eudócia. Ela não é mais avistada na sua calçada nem porta adentro, mas é como se ali permanecesse na memória de tantos. Sim, eis que Mariá é mulher que carrega em si um mundo de histórias sertanejas. Na sua luta incessante pela sobrevivência, um dia foi desde lavadeira a muitos outros ofícios, juntando pedaços de ganhos para o pão de cada dia. Sempre morando no centro da cidade, ladeada de novos e velhos amigos, porém teve de suportar a perda de filhos e viu sua solidão aumentar pelas ausências forçadas pelo destino. Sobre ela há uma história bastante interessante e que merece ser recontada. Nos anos 70, quando uma caravana de cantadores e sanfoneiros estava em Poço Redondo para uma apresentação (Clemilda, Gérson Filho, João do Pife, Messias Holanda, Pedro Sertanejo, Marinês, Elino Julião e muitos outros), o então prefeito Alcino Alves Costa passeava ao lado de Messias Holanda, quando o sanfoneiro achou interessante uma mulher passando com uma trouxa de roupas para lavar na cabeça. Então Alcino, sempre amigo da sertaneja, chamou Mariá e a apresentou ao artista e compositor. E não demorou muito para surgir um grande sucesso: “Pra onde vai com essa trouxona de roupa Mariá, na cacimba só tem água pra beber. Pouca água deixa a roupa mal lavada Mariá. Lavar roupa também tem o que aprender. Bota pouco pano nessa trouxa Mariá, nesse tempo não tem água pra gastar, leve a colcha, eu preciso dessa colcha, abra a trouxa, bote a colcha, leve a colcha pra lavar...”. Atualmente, ao entardecer, Mariá é sempre avistada na calçada de sua filha, silenciosa, pensativa. Um passado, vidas e vidas em sua memória.



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quarta-feira, 26 de julho de 2017

AINDA SOBRE O ENGENHO DE FLORES


*Rangel Alves da Costa


Neste 25 de Julho, Dia do Escritor, eis que pelo Messenger me chega algo que jamais imaginei. E que belíssima surpresa! Vocês se lembram da música Engenho de Flores, brilhantemente interpretada por Diana Pequeno? Sim, aquela mesma que diz: “Ê alumiô toda terra e mar, ê alumiô toda terra e mar, eu vi fortaleza abalar, agora que eu quero ver se couro de gente é pra queimar. Vou pedir pra São João, Cosme Damião, pra nos ajudar. Quero o apito do Engenho de Flores chamando pra trabalhar. Quero o apito do Engenho de Flores chamando pra trabalhar. Ê alumiô toda terra e mar, ê alumiô toda terra e mar...”. Pois bem, o compositor desse verdadeiro hino é o maranhense Josias Sobrinho. E nesta quarta-feira abro o Messenger e ele, o próprio Josias, está à minha procura para dizer: “Boa tarde, me perguntaram sobre o texto “Esse Engenho de Flores”. Já conhecia e sempre soube como seu. Estou certo? Um amigo aqui de São Luís quer incluí-lo em uma publicação sobre personalidades da região de onde sou originário e me falou que seria de outra pessoa”. Significa dizer que o Josias me pede permissão para que o texto sobre sua música seja incluído. E o que respondi? A honra será minha, Josias. Ter gostado de um texto que escrevi sobre sua famosa música e ainda incluí-lo num livro sobre sua obra, não haverá honra maior a um sertanejo. A seguir, o texto “Esse Engenho de Flores”.
Verdadeiramente, se existe uma música que mexe comigo, me aflora tudo ao mesmo tempo, esta se chama Engenho de Flores. Ao irromper a melodia, o ritmo contagiante, é como se saíssem dos sons zabumbas, chocalhos, violas, caixas, pandeiros e um povo enfeitado de fitas rodando ao redor, cantando o boi, pisando festeiro.
Cantiga bonita, que viaja nas veredas do nosso espírito. Cantiga diferente, com cheiro de gente e de festança popular. Por isso mesmo nem de longe se trata de uma canção romântica, com melodia de cadência apaixonante, ou daquelas páginas musicais, também chamadas de clássicas, inesquecíveis no percurso da vivência. Nada disso. Engenho de Flores é apenas um buquê de sentimentos.
Composta pelo cantor e compositor maranhense Josias Sobrinho e gravada com grande sucesso por Diana Pequeno, é mais raiz, mais gente, mais suor e povo do que propriamente música. Se for possível uma definição, diria que é um bailado popular, à moda da cantoria de boi. E ao ouvir a pessoa também se enfeita todo, coloca o seu colorido de roda, se enfeita de fita e de chapéu, começa a rodar atrás do povo em cantoria.
Contudo, passada a euforia do ritmo, nas entrelinhas da cantiga se encontra um verdadeiro hino à liberdade, uma bandeira do pobre trabalhador sendo libertado da submissão cotidiana, na labuta diária no engenho ou nos latifúndios, uma luz que se acende para chegar um novo dia de canto e alegria.
Um rápido olhar sobre a letra e logo se imagina o povo na sua luta diária para sobreviver, no desvão da vida que faz pingar sangue no lugar do suor. E lá vai o corpo cansado ainda de ontem para a labuta do dia, pois a empreitada chama; a foice, o facão e a enxada chamam. Mas quer dizer muito mais, pois é exatamente para mostrar o momento em que o povo não tem mais que suportar tantas agruras nas mãos dos carrascos empregadores.
E na letra, lá pelos seus escondidos, ouvem-se o barulho da máquina, o apito do trem, as dores nos corpos que se dobram em sacrifício; da ventania que sopra um lamento. E sente-se o cheiro da palha, da palha da cana, da fumaça do engenho, do suor endurecido, da terra queimando, do sol escaldando e esturricando tudo.
E é como se avistasse nas feições desse povo humilde uma junção de sacrifício e fé, de sofrimento pela realidade vivida e religiosidade exacerbada, de inconformismo e alegria por estar sobrevivendo para continuar na luta. E o que seria então o Engenho de Flores cantado na música senão a dor na sublimazia da vida? Ou seria a fronteira entre a dor e a liberdade festeira? Tudo.
Engenho de Flores que poderia também se chamar sacrifício e esperança. Engenho de Flores que poderia também ser denominado o imenso usurpador diante do pequenino que lhe dá valia e enriquecimento. Engenho de Flores que também é verdadeiro Engenho de Flores, com suas riquezas tiradas do sacrifício dos pobres e humildes trabalhadores. E todos os dias, ao apito da alma que não mais se assusta, levantam e vão fiar mais um traçado de sua sina.
Não há que se duvidar de nada disso porque o trem apita, a letra diz; porque chama o povo trabalhador, a letra diz; porque o povo vai virar fumaça e cinza, a letra diz; porque o povo só suporta a ingrata sorte pela fé que possui em São João, Cosme e Damião, como a letra diz. E que bela letra, que síntese melodiosa das fascinantes aflições dos humildes rumo à sua libertação:
“Ê alumiô toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar/ Ê alumiô toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar/ Vou pedir pra São João/ Cosme e Damião/ Pra nos ajudar/ Era o apito do Engenho de Flores/ Chamando pra trabalhar/ Ê alumiô toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar/ Vou pedir pra São João/ Cosme e Damião/ Pra nos ajudar/ Era o apito do Engenho de Flores/ Chamando pra trabalhar/ Ê alumiô toda terra e mar/ Eu vi fortaleza abalar/ Agora que eu quero ver/ Se couro de gente é pra queimar...”.
Daí, o que se tem é um verdadeiro grito de liberdade de um povo que não se submete mais ao apito do trem chamando para a sina do Engenho de Flores. E em nome desse forjado destino a usurpação, a submissão, a escravidão na plantação e no corte da cana, na juntada, nos afazeres da moenda, nas fornalhas queimando e soltando fumaça com cheiro de gente.
Como diz a letra, nesse tempo de alumiar sobre toda terra e mar não haverá mais o apito do trem do Engenho de Flores chamando para o sacrifício de vidas. E nesse alumiar surgido não haverá mais chicote nem açoite, nem grito nem imposição, muito menos a queimação de couro de gente.
Ou seria o Engenho de Flores uma metáfora? O engenho como um tempo de dor, e flores como um tempo de liberdade. Nada disso importa, se o mais importante é que não haverá mais couro de gente pra queimar”.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Penso, logo existo...




O choro feliz de Mariazinha (Poesia)


O choro feliz de Mariazinha


Mariazinha chorava
mas não era triste não
era pelo que lhe acalantava
e tanto lhe causava emoção

as comadres em procissão
as chuvas grossas caindo
pastagens verdes no sertão
ranger de porteira se abrindo

as rezas e os ofícios de fé
o cuscuz ralado cheirando
a chaleira perfumada de café
a brisa que soprava cantando

então Mariazinha chorava
sua lágrima de satisfação
e se essa paz assim chegava
Mariazinha era rio imensidão.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - preciso de palavra sem voz


*Rangel Alves da Costa


Decididamente, prefiro a palavra sem voz. Prefiro ouvir o grito e a pronúncia sem ter de ouvir qualquer tipo de voz humana. Preciso, necessito, tenho de ouvir sempre a palavra sem voz. Triste do ser humano que desde o amanhecer ao anoitecer tem de continuamente estar ouvindo a palavra maldosa do vizinho, a fofoca do conhecido, a arrogância da autoridade, o esnobismo do poder, o tiro verbal disparado nas ruas, as hipocrisias da língua. Não, não quero mais isso pra mim. Não quero mais ter na palavra ou na voz do outro a desfeita da vida. Preciso, pois, de palavra sem voz. Uma palavra vinda do vento, chegada da boca da noite, expressada do lábio da brisa. Uma palavra que se traduza no olhar um pôr do sol, um amanhecer ajardinado e perfumado, um horizonte pronunciando sonhos e desejos de partida. Quero uma palavra assim, nascida na memória, no pensamento, na nostalgia. Quero uma palavra que me chegue cheirando a café torrado, a pão saindo do forno, a fruta madura de quintal. E a tudo responderei pela voz do coração. Sem palavras.


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terça-feira, 25 de julho de 2017

FEIRA MATUTA


*Rangel Alves da Costa


Tudo aceso feito braseiro ainda na madrugada. Pouco tempo depois já começava a fervilhar feito formigueiro. Mais tarde parecia um descampado abandonado às traças, tomado de bagaceira, sujeira de toda espécie. Não poderia ser diferente. Era fim de feira.
Se feira interiorana é acontecimento dos mais atraentes, instigante e concorrido, o que se vê quando o comércio matuto se finda é coisa de arrepiar. As cores, os cheiros, o povo de matiz trigueiro, as barracas, as bancas, as vozes, as frutas, verduras, farinha, a carne, de tudo um pouco, logo dão lugar à sujeira e imundícies jamais imaginadas para um lugar que há bem pouco guardava tantos atrativos e sabores.
Até parece que a feira espera o povo matar a fome nas barracas cheirosas e apetitosas, se fartando da carne fresca de boi, de porco ou de bode, ou na gulodice do sarapatel, do fígado acebolado ou ainda da invenção sertaneja do dia, para se despedir da função. Enquanto os últimos famintos pedem um pouquinho mais de galinha de capoeira, as barracas já estão sendo desmontadas, os restos embalados e os caçuás recebendo o que não foi vendido.
Já é hora de avistar, e até contar, todos os bêbados do dia. Aqueles que começaram o dia tomando uma pinguinha, e em meio à compra do tomate, do quilo de farinha, do pedaço de fumo de rolo, emborcaram mais uma e depois mais outras. No tropel de fim de feira já não saem mais do balcão, já não sabem nem quantas viraram e quantas raízes de pau talagaram sem pestanejar.
Os bares e barracos ladeando a feira ficam repletos depois que os compradores se dissipam e os feirantes vão contando seus lucros e lamentando o que vai ter de retornar. Aguardente misturada com raiz ou casca de pau, com angico, umburana, aroeira, cedro, uma vegetação sertaneja inteira, faz a festança de um povo sempre disposto a virar mais uma. E aí é onde está o problema.
Já tomados demais, amigos desconhecem amigos, os inimigos de pinga se estranham de peixeira na mão. O fuzuê é criado, é um vexame danado, por pouco um não desembucha o outro. Os dois são retirados do ambiente e por lá mesmo, no pé do balcão ou num canto qualquer, a feirinha da semana é esquecida. E mais tarde, completamente bêbados, às cegas, cortam estrada para apanhar da mulher quando chegar à tapera.
“Coisa feia, um homi véio desse, pai de famia, bom de se arrespeitá, espanta o galo pa ir pa feira e vorta feito um gambá. Tá qui num se sustenta nem de pé, seu desgraçado. A feira, cadê a feira?”. O coitado, sem condições de responder a contento, até mesmo porque não sabe onde o saco de mantimentos ficou, tropeça até a malhada e começa a entoar um desafinado e doloroso aboio. Mas doloroso mesmo vai ficar seu lombo daí em diante.
Mas enquanto a feira vai terminando é que algumas pessoas sempre atrasadas começam a chegar. Não que procurem o lugar pra comprar pano de chita, água de colônia, talco de pó, presilha de cabelo ou um quadro bonito da Virgem Maria. E também não vão até ali para escolher a verdura, a fruta, o arroz, o café, a farinha. Nada disso. Vão precisamente para fazer o que sempre fazem no fim de feira: colher os restos, catar os restos, mendigar pelo chão.
Homens, mulheres, velhos, meninos, pessoas de fim de feira. Acordaram tão ou até mais cedo que as outras pessoas que passaram pelas suas portas em direção ao comércio semanal interiorano. Avistaram adiante, virando a curva, seguindo de mochila, saco ou sacola à mão pra colocar as compras. Aquelas pessoas que passam e que vão certamente levam algum no bolso e poderão escolher sem pedir, sem a submissão da mendicância.
Porém muitas outras não. Quando as pessoas retornam com suas compras e quando, vigiando pelos arredores, sentem que o restante que ficou por ali espalhado não possui mais dono, é que vão catar o alimento do dia e talvez o de amanhã. Banana amassada ou apodrecida, tomate e pimentão imprestáveis, repolhos e folhas deixados pelos cantos. E que festa ao olhar da penúria, da necessidade, da precisão.
Alguns desses sacrificados chegam logo cedinho, se misturam a feirantes e compradores e pedem o quanto podem. Mas outros não. Outros, tomados pela imorredoura honra matuta, preferem catar os restos a estender a mão diante de outra mão, de outro olhar sertanejo. Seria desonra demais, seria dor ainda maior.


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Lá no meu sertão...


Pedro Popoff e Pedrinho do Museu. Estes dois meninos, ao lado da maravilhosa Cecília do Acordeom, garantiram instantes maravilhosos ao Cariri Cangaço Exu 2017.




Manhã (Poesia)


Manhã


Bom dia, meu amor
abro-te a janela
e chamo o sol
a beijar sua face
a cariciar seu corpo
por um instante
apenas

e trago flores vivas
e trago fruta madura
e trago uma borboleta
e um voo de colibri
na manhã mais bela
mas por um instante
apenas

nos demais instantes
viveremos em nós
a beleza do amor
a cada instante.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - ratos e esgotos


*Rangel Alves da Costa


Os ratos estão aflitos. Os ratos estão desesperados. Os ratos estão angustiados, aflitos, desesperançados. Os ratos estão indignados com as ameaças à rataria. Os ratos estão sentindo verdadeiramente ameaçados na sua sobrevivência em meio aos lixões, aos monturos, às imundícies dos esgotos. Um verdadeiro desrespeito aos ratos. Um acinte à vida dos ratos. Uma exposição a uma situação que, segundo os ratos, não mereciam, pois vergonhosa e constrangedora demais. Mas o que aconteceu para que os ratos de repente se mostrassem tão aflitos e até agonizantes. Ora, seus esgotos agora estão imprestáveis. Seus esgotos agora estão totalmente tomados por dejetos, imundícies e podridões, que nem os ratos suportam. Onde havia lama fedida, agora somente a imagem nojenta e asquerosa de políticos, governantes e poderosas autoridades. Onde havia lixo espalhado, descendo pelas tubulações, agora somente inquéritos lamacentos, processos putrefatos, sentenças e penas. Onde havia restos imprestáveis de tudo, agora somente acúmulos de corrupções, fraudes, ilicitudes, improbidades. Onde havia o insuportável ao homem, agora somente o homem tendo de ser suportado pelos ratos. Por isso mesmo que os ratos de esgoto, ante a nova configuração de vida, estão indo embora para Brasília. E vão na esperança que os ratos de lá escorram de vez pelos esgotos.


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segunda-feira, 24 de julho de 2017

DA ARTE DA POBREZA E DA NECESSIDADE


*Rangel Alves da Costa


A situação economicamente caótica em que vive o Brasil acaba fazendo surgir verdadeiras mirabolâncias no intuito da sobrevivência. O crescimento da pobreza, a miséria que se alastra por todo lugar, o desemprego, a falta de qualquer oportunidade de ganha-pão, são aspectos negativos que transformam pessoas em verdadeiros artistas da sobrevivência. Daí se ter pelas ruas, esquinas, semáforos e calçadas, a contínua exposição da arte da pobreza e da necessidade.
Não é fácil ser artista sem o dom ou a propensão à criatividade espontânea. Nada fácil ser artista do próprio estômago, do bolso vazio, da mesa nua e da fatura atrasada. Mas, como diz o ditado, na hora da precisão, da necessidade, da carência mais veemente, a pessoa se vira como pode. Então se torna artista daquilo que nunca fez ou jamais pensou em fazer. Um artista que surge sem pincel ou tela, sem caderno e lápis, sem molde ou cinzel, sem qualquer transformação do nada em beleza.
A arte das ruas já não está mais no esmero arquitetônico do luxo, na parede grafitada, na escultura das praças, nos monumentos, nos modernos equipamentos urbanos ou nas fachadas das lojas grã-finas. A arte das ruas agora está na estátua humana, no ilusionista da calçada, na novidade repentinamente surgida e que vai aglomerando pessoas incrédulas no que acabam vendo. Palhaços sem circo, trapezistas sem palco, mambembes sem picadeiro. Ou apenas a postura de um envelhecido senhor carregando uma placa dizendo que compra ouro.
A capital sergipana nunca teve tantos artistas assim. Agora eles estão por todos os lugares. As calçadas, logradouros, marquises, meio de rua, tudo está tomado de arte, da arte da pobreza e da necessidade. Flores de plástico, arames transformados em brinquedos, carrinhos de madeira, cuscuz de coco, laços de fita enfeitados, diademas floridos, bombons e doces caseiros de todos os tipos, tortas e salgados igualmente caseiros, enfeites e objetos do lar feitos à mão, uma infinidade de produtos dessa arte crescente das ruas.
O comércio ambulante deixou de ter o cafezinho, o chá, o suco e o pão de queijo ou sanduíche, para ofertar o inesperado. Passa o carro de frutas, de amendoim, de legumes e verduras, de milho verde e canjica, de meias e cuecas, de cds e filmes, de pipoca e algodão doce, de bebidas e refrigerantes, mas também os produtos e objetos até mesmo desconhecidos à maioria da população. É uma reinvenção ambulante na tentativa de atrair clientes e garantir a sobrevivência. E os ambulantes não recriam seus comércios para auxiliar outros ganhos, mas como única forma de sustentar a si mesmos e até a família inteira.
Pelo centro comercial, principalmente na região central do principal calçadão, a cada dia vai surgindo uma nova forma de arte da pobreza e da necessidade. A pessoa pode tirar um retrato ao lado de uma monstruosidade qualquer, de uma pessoa vestida em fantasma aterrorizante. Logo abaixo está a caixinha para o vintém, para o trocado tão útil e necessário. A pessoa pode admirar estátuas humanas, e tão perfeitas que mais parecem de cobre reluzente. Logo abaixo a caixinha da moeda ávida por uma compra qualquer. A pessoa pode se encantar com a mágica do dia, com a cobra que dança, com o objeto que some, com o cãozinho de máxima ou obediência ou com o transformista que vai se enrolando em si mesmo. E logo ao lado a caixinha para a moeda ser lançada como uma esmola.
Verdade que aumentou o número de vendedoras de acarajé, de bolsas e relógios pelas esquinas, de óculos e chapéus, de sandálias e bolsas. Há um comércio paralelo tão forte que passa a assustar os comerciantes estabelecidos em lojas. Mas nem o preço se diferencia muito como antigamente. O que diferencia do grande ou pequeno comércio é a possibilidade da pechincha e a aquisição de objetos por preços muito mais justos. Mas até no comércio de meio de rua há uma invencionice para atrair e cativar os passantes. Os ambulantes se reinventam de tal forma nos seus jeitos de vender que mais parece estar diante de um artista da voz, do humor, da alegria. Tudo uma questão de necessidade.
Ora, mas que tristeza avistar aqueles senhores, muitos já envelhecidos, em pé nos calçadões e carregando à frente e nas costas aqueles anúncios de “compro ouro”. Quanto estes idosos ganham por dia? Uma insignificância, mas com a ilusão da soma à mísera aposentadoria. Também são artistas do silêncio, da simulação da dor e do sofrimento, do fingimento de que estão ali por vontade e satisfação. E mais adiante a jovem grita “olha o chip, olha o chip”, enquanto outra vai puxando pelo braço qualquer um para dizer que pode fazer seu cartão de crédito na hora ou que dinheiro não é mais problema, pois logo adiante há empréstimo a juros baixos.
É preciso ser artista para sobreviver. Será a resposta dada por qualquer um que a cada dia se esforça como pode para garantir seu tostão. Seja como estátua humana ou como tagarela gritante, o objetivo da arte é a própria vida.


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Lá no meu sertão...


Povoação ribeirinha de Bonsucesso, município de Poço Redondo/SE, 
cerca de pedra construída por mãos escravas.



De todo amor que sinto (Poesia)


De todo amor que sinto


De todo o amor que sinto
amo apenas uma parte
do que desejo amar

tenho medo do todo
e cada parte que amo
em tanto amor revelar

e revelado todo amor
a parte de amor que sinto
não queira amor somar.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – nada me surpreende mais


*Rangel Alves da Costa


Nada me surpreende mais. Um sim ou um não, nada mais me surpreende. O ser humano parece já ter chegado aos seus limites. Não há mais sexo masculino ou feminino. Tudo embananou de vez. Gêneros sexuais que são criados unicamente para a satisfação das insatisfações com o sexo próprio de cada um. Antigamente existiam apenas dois nomes para isso tudo, mas deixe pra lá. Cada um opta pela sexualidade que desejar. Ademais, nada me surpreende mais. Também já não me surpreende nada de lamacento que surja no noticiário. Surpresa seria se surgisse um exemplo de honestidade na classe política, palaciana, gabinetes e todo o contexto de poder. Como eles sequer se importam serem processados como corruptos, ladrões, falsários e etc., nada posso fazer com relação a tal aptidão aos esgotos. Também não me surpreendo mais com pais que pais que desconhecem filhos e filhos que desconhecem pais, com famílias desintegradas dentro de quatro paredes e um tanto faz sem limites de aceitação. Por isso que nada me surpreende mais. Surpreendido eu ficaria com uma jovem que se casasse ainda virgem, com uma família que ora antes e após as refeições, com filhos dando a benção aos pais e pais verdadeiramente cuidando de filhos. Surpreendido eu ficaria se alguém dissesse que ama e tal amor fosse demonstrado na ação, no cotidiano do relacionamento, e não apenas com palavras.


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domingo, 23 de julho de 2017

LOUVAÇÃO AO CUSCUZ


*Rangel Alves da Costa


Segundo Sinésia da Cocada, o cuscuz merece toda a louvação do mundo. E ela mesma confidenciou que até o coloca no rosário de suas orações, pedindo aos céus para que nunca lhe falte à sua mesa. Sentimento igual de Toniquinho Poeta, que vive a escrever rimas pobres em louvor ao cuscuz. E escreve: Igual ao lábio da mulher, seja na mão ou colher, o cuscuz delicia a boca e a fome desandar em louca...
Tanto amor ao cuscuz já me levou a escrever alguns textos sobre este alimento que, ao lado do pão, certamente é o mais apreciado na mesma do nordestino, seja pobre, rico ou remediado. Interessante que a paixão é tamanha que até mesmo totalmente puro é devorado em instantes por bocas ávidas pelo amarelado prazer.
Como efeito, o cuscuz é um dos pratos típicos mais apreciados do mundo. Típico por que cada povo costuma ter uma receita própria e à base de milho, arroz, trigo e outros cereais. Dependendo da região, o cuscuz se torna num misturado que mais parece outro prato.
As receitas são muitas, levando miúdos, carnes diversas, queijos, salsichas e outros embutidos, temperos, conservas, dentre outras opções. Mas nada igual ao nosso velho e conhecido cuscuz nordestino, sertanejo de cheiro e fogão. Cuscuz de massa ou flocos de milho, sem mistura, saído fumegante do cuscuzeiro.
Conheço muita gente que se basta no cuscuz puro, sem acompanhamento algum. Até diz que qualquer coisa misturada às fatias amareladas acaba distorcendo o generoso sabor. E com razão. E tem gente que aprecia tanto o prato que é capaz de devorar um cuscuz inteiro em poucos instantes.
“Agora, imagine sendo o cuscuz autêntico, de milho ralado em quintal, cozido em fogão de lenha e recoberto por pano limpo, de onde logo surge uma névoa quente, cheirosa, perfumada, apetitosa, para depois ser fatiado e saboreado com manteiga da boa, ovos de galinha de capoeira ou queijo da terra se espalhando ainda quente pelas fatias e ao redor...”.
Conheci um senhor que causava um problema sério na hora do café da manhã ou do jantar. Sempre queria cuscuz, e puro, mas tendo de ser vigiado pela família para não fugir do limite. Como eram feitos dois cuscuz, sendo o dele um pouco menor, comia inteirinho o seu e depois olhava para os cantos e, não avistando ninguém, corria a pegar fatias no outro cuscuzeiro.
“Agora, imagine se esse cuscuz tão apreciado fosse saboreado com uma xícara de café batido em pilão e torrado, feito em chaleira antiga, derramando pelas beiradas o mel enegrecido dos deuses. Manteiga se derretendo por cima de cada fatia, mais adiante uma porção de tripa assada, fininha, mas daquelas que escorre pelo canto da boca a cada mordida...”.
Muita gente come o cuscuz puro por falta mesmo da chamada mistura. Mas tenho certeza que muito mais gente prefere ele assim, sem acompanhamento algum, pelo simples prazer em comer, em saborear cada pedaço de fatia, e sempre querendo mais. Quando no ponto, nem muito endurecido nem muito molhado, descendo ainda fumegante no prato, realmente faz esquecer qualquer outra comida que possa ser misturada. Basta esfriar um pouquinho e mastigar revirando os olhos.
“Agora, imagine um cuscuz de milho ralado, como aqueles próprios das fazendas e lugarejos afastados, chegando sobre a mesa acompanhado de um bom pedaço de porco assado, uma boa costela de gado, ou mesmo uma carne torrada e oleosa. Antes de tudo, molhar a fatia com o óleo da fritura, depois espalhar por cima uns pedaços já cortados segundo cada garfada ou colherada, e tendo ao lado uma xícara de café negro e encorpado. É um não querer sair mais nunca da mesa...”.
Muita gente prefere pão, inhame, macaxeira, sopa, ou mesmo o que tiver na hora da fome da manhã e da boca da noite. Mas há os verdadeiros apaixonados, fanáticos pelo cuscuz. E tanto faz que seja em floco ou a simples massa, bastando que chegue com aquele cheiro inconfundível do milho cozido. Verdade que o aroma nunca é igual àquele ralado em quintal e cozido sumarento sobre o fogão de lenha, mas a intenção vai pela fome e a fome faz surgir o perfume.
“Agora, imagine um cuscuz caipira, de milho ralado, com leite de coco por cima, ou mesmo leite de gado morno, com nata grossa por riba. Imagine um cuscuz assim acompanhado de uma perna de preá assado, de uma nambu ou codorna, de uma caça qualquer. Imagine um prato assim diante de um cabra que chega cansado ou que tem de ter sustança para o trabalho do dia. A pessoa come de perder a hora, de dar moleza, de dar vontade de somente se estirar numa rede e sonhar. Com mais cuscuz...”.


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