SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 30 de novembro de 2014

UM ESTRANHO NO NINHO CANGACEIRO


Rangel Alves da Costa*


Certa feita, lá pelas bandas do Rachado do Xiquexique, em meio uma imensidão de quipá de ponta cortante, catingueira revoltosa, cobra e espinho valente, aconteceu de um estranho adentrar no ninho cangaceiro e ser preciso tempo e o tino de Virgulino Lampião para que o forasteiro arribasse de lá sem provocar problemas maiores.
Tudo começou depois que o Coronel Sinhô Bendegó enviou uma missiva ao Capitão, e com ela um rapazote. Na carta, o poderoso sertanejo, após afirmar que estava esperando a visita do amigo e se mantendo sempre de portas abertas para auxiliar no que fosse preciso, afirmou que ficaria deveras satisfeito se o grande senhor das caatingas aceitasse aquele portador no seu bando, ao menos por uns tempos, por experiência.
E falou também sobre as qualidades do pretendente a cangaceiro. “É parente duma rapariga minha, mas que já se ajoelhou diante da botina e foi abençoado. Teve que fazer experiência em tocaia e só não derrubou um cabra porque o trabalho era muito importante pra ser feito por amador. É novo, mas já é muito estudado, tendo me falado dumas coisas que num entendo muito, mas que aí no bando tudo vai ser decifrado. Um negócio de guerrilha, de tática psicológica de enfraquecimento do inimigo, de estratégia camuflada e um monte de outras coisas. Sei que tudo aí é diferente, mas creio que se for aceito terá uma iniciação que o transformará num grande combatente. Mas é mandão. E se deixar ele vai querer ser mais esperto e importante que muita gente que já vive no rastro do espinho desde mais de dez anos. Desse modo, deixo ao seu entendimento sobre a aceitação ou não. De qualquer modo, tenha nesse velho senhor o amigo de sempre. Não só amigo como defensor de sua justa causa”.
A verdade é que Lampião não gostava de aceitar qualquer um no bando, principalmente quando não se tratava de sertanejo autêntico, conhecedor daqueles carrascais e veredas. Não dizia a ninguém, mas tinha predileção por aqueles que abraçavam a vida cangaceira porque tido como injustiçado ou revoltado com a opressão mantida pelos poderes frente ao pobre homem da terra. Estes sim, estes já chegavam com motivos para lutar. Mas a situação do rapazinho era diferente, pois enviado por um grande e poderoso amigo, fornecedor não só de armas e munições como do que fosse necessário à luta.
O rapazinho acabou sendo aceito, mesmo que a maioria do bando o olhasse com desconfiança desde sua chegada. Mas tudo começou a azedar já no dia seguinte, quando o novato tencionou ensinar como a cangaceirama deveria se comportar na iminência da chegada do inimigo. Teve cangaceiro que mirou no fundo dos olhos e, cuspindo fogo, perguntou quem ele achava que era pra querer ensinar a bicho do mato como esperar e enfrentar cobra ruim. E disse mais: Acho mió vosmicê aprender cum nóis ou vortá agorinha mermo pá donde num devia ter saído.
No dia seguinte mais um problema no bando, eis que o novato chamou dois cangaceiros num canto e disse que seria útil e necessário que aprendessem a fabricar bombas e abrir trincheiras. Falou em arma química, em artefato incendiário e gás venenoso. E também em engenharia de guerra e barricadas. Os cangaceiros ali presentes, sem entender nada do relatado, simplesmente perguntaram se tudo aquilo tinha validade quando o inimigo de repente surgisse detrás dum paredão de pedra ou de um tufo de mato.
Mas o rapazinho não se deu por satisfeito. Vendo um cangaceiro limpando a arma, chegou perto e quis ensinar como movimentá-la mais rapidamente e como renovar a munição sem perda de tempo. Era como ensinar ferreiro a forjar ferro. E o valente das caatingas deu sua resposta. Levantou sua tasca-fogo até as fuças do abusado e perguntou se queria que mostrasse como se mata um safado.
O mal-estar já estava espalhado, não havia jeito. Nenhum cangaceiro queria ter o novato por perto. Não somente isso, pois já procuravam um modo, mesmo sem o conhecimento do líder cangaceiro, de fazer com que o cabra arribasse dali. Contudo, precavido, alguém disse que seria de mais acerto relatar as ocorrências ao próprio Capitão.
Após ligeira conferência nos afastados do mato, Lampião disse que tinha conhecimento de tudo, desde o início e até já sabia o que fazer. Ou melhor, como aquela intriga chegaria ao fim. Afirmou, por fim, que bastaria o primeiro confronto com a volante e o rapazinho enviado pelo coronel encontraria seu verdadeiro destino.
Dito e feito. Quando na Ribeira da Égua a macacada foi avistada e o bando preparou-se para atacar, assim que o fogo começou, numa violência de não deixar toco de pau em pé, o novato se tomou de um medo tão grande que se danou a correr desembestado por outra direção. Corria que parecia um louco gritando que queria mamãe, queria papai, que queria o coronel. E nunca mais foi visto pelos sertões catingueiros.
Depois do fogo assentado, da chama apagada, um cangaceiro se deu conta da ausência do rapazinho e perguntou se teria sido baleado e ficado pra trás. Mas Lampião logo disse: Bastou o primeiro tempo ruim pra fugir de medo. Eu sabia que ia ser assim. Só é cangaceiro aquele que nasceu com o suor sertanejo na veia. Só suporta a batalha aquele que luta em nome do sertão como um parente que foi açoitado. E quem não se reconhecer assim não pode ser cangaceiro nem prosseguir nessa vindita de sangue debaixo da lua e sol.


Poeta e cronista
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Qualquer verso (Poesia)


Qualquer verso


Para o coração amoroso
qualquer verso é bela poesia
é canto de ecoar primoroso
plangência que a tudo irradia

cada amante é poeta voraz
tece versos de prazer e saudade
mesmo que da rima seja incapaz
escreve o livro da grande verdade

o verso surge em qualquer papel
na folha seca e na madeira nua
em tudo cabe um pedaço de céu
e o rosto da amada na face da lua.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 808


Rangel Alves da Costa*


“Sou sertanejo sim...”.
“De longe, muito longe...”.
“Dos grotões matutos...”.
“Da terra árida...”.
“Do sol e da lua...”.
“De pobreza imensa...”.
“E de riqueza infinita...”.
“Gente com fome e sede...”.
“Bicho magro e encurvado...”.
“Planta nua e ressequida...”.
“Um calango que chora...”.
“Um mandacaru que lamenta...”.
“Mas também de grandeza singela...”.
“De um povo de fé...”.
“De uma gente temente a Deus...”.
“E que faz da sobrevivência...”.
“Um ato de adoração...”.
“E em todo lugar...”.
“A vela acesa no oratório...”.
“A imagem sacra na parede...”.
“Tanta fé e tanta esperança...”.
“E nos dias e nas noites...”.
“A vida na simplicidade...”.
“Um pouco disso...”.
“Um tantinho daquilo...”.
“Mas também o bolo gostoso...”.
“A fornada de leite ou macaxeira...”.
“O queijo de coalho...”.
“O doce de leite...”.
“O pão caseiro...”.
“O milho ralado...”.
“O cuscuz subindo no ar...”.
“O cheiro de café torrado...”.
“O tempero sempre forte...”.
“Da galinha gorda de capoeira...”.
“E assim vai a vida...”.
“Com um bom dia...”.
“Um boa noite...”.
“No proseado de compadres...”.
“Na debulha do feijão de corda...”.
“No remendo da roupa...”.
“Tudo tão simples...”.
“Mas tudo tão singelo e cativante...”.
“Que nem o sofrimento...”.
“Pelas agruras do tempo...”.
“Apaga a chama maior...”.
“No coração sertanejo...”.
“No meu coração...”.
“E no de meu irmão...”.
“De sina e de chão...”.


Poeta e cronista
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sábado, 29 de novembro de 2014

AMIGOS


Rangel Alves da Costa*


Tornou-se cada vez mais costumeiro ouvir de um e outro que não se faz mais amigo como antigamente. E com toda razão. Não só não se faz mais amigos como outrora como se tornou raridade encontrar alguém com as características de verdadeiro amigo. Tornou-se tão difícil que numa hora de precisão um bom tempo é despendido para lembrar um só nome. E ainda assim sem a certeza da acolhida tão urgente e necessária.
Quais são as características de um verdadeiro amigo, alguém poderia indagar. Nada que assombre a ideia. Pelo contrário, apenas o reconhecimento do outro não apenas no instante de necessidade maior, mas em todos os momentos da existência. Noutras palavras, ter a certeza de não estar desamparado, sozinho, que pode contar com alguém. E não somente para ser auxiliado, receber apoio, mas para compartilhar o prazer do encontro, do convívio, do instante acompanhado de café com palavras.
O amigo faz falta não porque esteja ausente num momento de precisão ou porque desconhece a amizade quando dele mais necessita, e sim por estar presente na recordação e no afeto e não ser encontrado no dia a dia e nos acasos da vida. O amigo, ou aquele em que se confia a amizade, vive na lembrança e não em pensamentos ocasionais, permanece no coração e não apenas como número de telefone ou nome de agenda. Por confiar, cria-se a sensação de segurança e de presença.
 A verdadeira amizade é bondosa e altruísta, é solidária e humilde, é compreensiva e sincera, e um amigo assim é sempre essencial na vida de qualquer um de igual pensamento. Por isso mesmo que se mostra difícil encontrar pessoas com tais características nos dias atuais, e estes tão cheios de vaidades, soberbas, egoísmos e isolamentos. Com efeito, o mundo atual é formado por pessoas que se tornam estranhas aos conhecidos e familiares, por viventes que buscam refúgio em ilhas cercadas de gente por todos os lados.
As ilhas humanas demonstram bem como o ser está cada vez mais sozinho. Pessoas que evitam pessoas, que as olham com desconfiança e até arrogância, seres que se presumem capazes de tudo na sua solidão premeditada. Verdade que surpresas desagradáveis fazem evitar até pessoas mais íntimas, porém nada justifica a descrença no próximo, o isolamento como se ninguém mais merecesse confiança e a construção de uma amizade sincera. Por consequência, as ilhas proliferam separando aqueles que estão lado a lado.
Ou o homem acredita no homem ou o convívio terreno ficará cada vez mais insustentável. Porque já suportou uma falsidade de quem não esperava que cometesse, muitas vezes a pessoa acaba evitando ir além de um tratamento distante e frio. Mas é preciso conhecer as pessoas, será preciso uma maior aproximação para apreciar suas virtudes, seus modos, o que as guarnecem positivamente. E de repente, naquele que nem se mostra além da sinceridade estará alguém que pode ser confiado, compartilhado, acreditado. Um amigo.
A amizade não se constrói nem se sustenta com escusas intenções, e muito menos perdura com fingimentos e falsidades. Até que um possa ser enganado por algum tempo, vez que aquele de bom coração insiste em não acreditar na maldade do outro, mas quando a verdade estabelece a realidade dos fatos, então será o farsante que amargará a solidão e o desprezo, sentirá no íntimo a falta que faz não poder contar com alguém que ao menos lhe diga o quanto andou errado.
A verdade é que, demonstre ou não, todo mundo deseja um amigo, e quanto mais verdadeiro melhor. Assim na vida, assim na morte, e assim para a eternidade. Citei amizade até na morte para narrar uma passagem ocorrida lá no sertão. Eis que um senhor muito pobre morreu na boca da noite e um seu vizinho, sentindo a situação desesperadora da viúva solitária, disse-lhe que não se incomodasse com nada que ele havia sido amigo do falecido na vida e continuaria sendo na hora da morte. E no meio da noite rompeu mais de dez quilômetros, sozinho por entre perigosas veredas, para ir encomendar o caixão. E com ele voltou na cabeça, sem descansar um só instante, até avistar a malhada do casebre entristecido. Depois ainda teve tempo para chorar, e o choro mais verdadeiro de todos, que é nos olhos do coração.
Mas outras breves situações também ilustram gestos de profundas amizades por este mundão afora. Diante de uma doença, muita gente sofre pelo enfermo como se ao lado de uma pessoa amada, guardando-lhe a cabeceira, fazendo orações, providenciando o que for possível para amenizar a desesperadora situação. No meio da noite, diante de qualquer ocorrência, ao bater a porta é que se reconhece a verdadeira amizade. O bom amigo não só abre a porta como serve no que estiver ao alcance. Na ausência do amigo, somente aquele que lhe guarda carinho e afeição faz a defesa sincera e justa perante línguas ferinas.
Também é amigo aquele da canção, guardado no lado esquerdo do peito. Ou o outro que chora sua dor sobre o ombro daquele que desde muito não encontrava. Amigo é pra essas coisas, diz a música. Não só para essas coisas como para muito mais, pois a verdadeira amizade possui a firmeza do diamante e o valor inestimável da própria vida.


Poeta e cronista
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Poema de amor matuto (Poesia)


Poema de amor matuto


Chupei rapadura
pra adoçar a sua boca
trancei laço de cipó
pra enfeitar o seu cabelo
tenho flor de catingueira
pra alegrar seu coração
roubei pedaço de lua
pra iluminar a sua noite
aprendi uma toada
pra mostrar o meu amor
e entrei no mato
e fui buscar seu araçá
é tudo que tenho
e é tudo que possa dar
queria ter joia dourada
e uma palavra enfeitada
mas nada mais tenho
e é isso que posso dar.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 807


Rangel Alves da Costa*


“Não venha apontando o dedo...”.
“Não venha com arrogância...”.
“Não venha com brutalidade...”.
“Não venha com chicote...”.
“Não venha com açoite...”.
“Seu tempo já passou...”.
“E eu ainda sou...”.
“Você não manda mais...”.
“E de tudo sou capaz...”.
“Seu reino desabou...”.
“E nada mais restou...”.
“Sou livre...”.
“Tenho voz e liberdade...”.
“Faço o meu destino...”.
“Não me curvo a ordem...”.
“Não me submeto...”.
“Não tenho algemas...”.
“Não tenho grilhões...”.
“O seu tronco ruiu...”.
“Seu poder diluiu...”.
“Seja o seu senhor...”.
“Da própria escravidão...”.
“Caminhe pelas sombras...”.
“Do seu coração...”.
“Faça do curral o que bem quiser...”.
“Ou fico lá dentro ruminando o que é...”.
“Pois tenho um caminho...”.
“Tenho uma estrada...”.
“Jamais seguirei...”.
“Por sua encruzilhada...”.
“Minha porta aberta...”.
“Tem adiante um sol...”.
“Minha janela aberta...”.
“Possui arrebol...”.
“E colho manhãs...”.
“E recolho as flores...”.
“Ser feliz assim...”.
“Distante das dores...”.
“Então volte para o mesmo lugar...”.
“Na minha estrada não vai mais passar...”.
“Foi-se o tempo do mando...”.
“Do senhorio e da perseguição...”.
“Hoje a história tem outra lição...”.
“E ensina que o homem...”.
“É pássaro e asa...”.
“Possui horizonte...”.
“E pode voar...”.
“E do alto vê-lo no breu da memória...”.
“Sem relembrança...”.
“Sem um traço na história...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 28 de novembro de 2014

A VIDA PELO ZODÍACO


Rangel Alves da Costa*


Ela não pensava noutra coisa a não ser no zodíaco. Aliás, sua vida dependia totalmente das previsões zodiacais. Vivia lendo e relendo um livreto com as previsões astrais para o não inteiro, ainda assim madrugava já ouvindo pelo rádio o que o zodíaco reservava para o seu signo naquele dia.
E tanta preocupação com as previsões acabava lhe causando problemas gravíssimos de resolver, não só porque as previsões nem sempre se combinavam como porque acreditava com mais fervor naquela que sentisse como mais negativa. Então seu dia se transformava num verdadeiro transtorno.
Bastava ler: “Não deixe que os respingos do passado ou do presente atrapalhem sua caminhada”. Pronto, pois para ela era quase como uma sentença ruim. Transformava o termo respingos em pingo ou gota d’água ou qualquer coisa que pudesse cair sobre si e molhar, e então fazia tudo para evitar se aproximar de qualquer líquido.
Por consequência, com medo que qualquer gotícula respingasse no seu corpo, nesse dia não tomava água nem saía de casa se estivesse chovendo, sequer tomava banho. Não se aproximava de ninguém que estivesse com copo ou xícara à mão. E logicamente fazia tudo para não entristecer e chorar, pois estremecia só em pensar ter lágrimas respingando pelo seu rosto.
Bastava ler: “Desnude o que há em você. Tire de cima de si o que atrapalha sua vida e faça da nudez dos sonhos e planos uma forma de realização”. Quase desmaia quando ouviu o locutor matinal ler tais palavras na previsão do seu signo. Ouviu tudo, mas fixou a mente apenas na palavra nudez. E daí um problema danado para resolver tal situação. Não para ela, que queria porque queria sair porta afora completamente nua.
Apareceu diante dos pais como veio ao mundo, sem ao menos estar de calcinha, completamente pelada. A mãe avançou-lhe com um cabo de vassoura enquanto o pai encobria os olhos para não ver a cena. Enxotada para o quarto, logo se ouviu uma gritaria do lado de fora. Era a varredoura de rua bradando para que a família não deixasse a mocinha pular a janela daquele jeito. Acabou o dia amarrada e coberta por dois vestidos longos. Aos prantos, ela repetia que morreria no dia seguinte, pois tendo descumprido a ordem zodiacal.
Mas logo que despertou, já liberta daqueles roupões, a primeira coisa que fez foi ligar o rádio ao tempo que lia o livreto com a previsão do dia. E a que lhe pareceu mais verdadeira dizia: “Não deixe que os outonos da vida fragilizem a essência do seu ser nem que desfolhem suas esperanças. Mas ou luta contra o sofrimento ou será levada pelo ar como folha seca”. Pronto, a morte, minha morte, foi o que logo pensou.
Sequer tentou compreender o real significado da previsão e logo juntou a contrariedade ao zodíaco do dia anterior com a sentença do dia e não deu outra: tinha certeza que ia morrer. Ora, outono, folha seca, só podia ser morte. Então, convicta que seu dia final havia chegado, decidiu que morreria ali mesmo na cama. Assim permaneceu até sua mãe entrar no quarto para perguntar se estava doente. Respondeu apenas que ia morrer. Mas ainda não tinha chegado sua vez.
Quase não dorme pensando nas previsões zodiacais não acontecidas. E se culpou por estar fugindo do destino. Dizia a si mesma que os astros não mentem jamais, mas ela estava se transformando numa mentirosa. E também que não mais confrontaria as previsões. Comprometeu-se, então, a ser ainda mais fiel ao que o destino, através dos astros, lhe reservava.
E leu ao acordar: “Após a porta há uma estação e nesta o trem da felicidade que lhe aguarda. Então faça dos seus trilhos o caminho que deverá seguir nesse dia”. E nem pensou duas vezes. Levantou e seguiu para os lados da estação. E deitou nos trilhos do trem que já apitava ao longe.


Poeta e cronista
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Sentidos (Poesia)


Sentidos


Nos olhos
um mar
no lábio
um pomar
no corpo
voar

um azul
uma doçura
um pássaro

quero o mar
o pomar
e voar
para amar.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 806


Rangel Alves da Costa*


“O destino do homem está no homem...”.
“A estrada da maldade não tem repouso feliz...”.
“A semeadura de desavenças não tem boa colheita...”.
“A inimizade não causa sorrisos...”.
“Fazer a guerra não faz nascer a paz...”.
“Fazer sofrer será causa de sofrimento próprio...”.
“E tudo na lição do Eclesiastes...”.
“A brisa hoje e a ventania amanhã...”.
“A luz de agora e a escuridão de depois...”.
“Por isso mesmo que o destino do homem...”.
“Está no próprio homem...”.
“Fazer o bem e receber o justo...”.
“Ter boa conduta e não temer a desonra...”.
“Ser reconhecido pelo que verdadeiramente é...”.
“Ser a face e a feição de um espelho só...”.
“Colher frutos maduros no desejado pomar...”.
“Porque tudo na lição do Eclesiastes...”.
“Nada será sempre do mesmo jeito...”.
“Nascer hoje e morrer qualquer dia...”.
“O relógio que ainda é já sendo o instante seguinte...”.
“A mesma pessoa com outra idade...”.
“E assim semear o destino...”.
“O destino do homem não está no acaso...”.
“Senão no próprio homem...”.
“No seu passo e nas suas ações...”.
“Daí que não espere a vitória quem não a merecer...”.
“Não espere calmaria quem semeia tempestade...”.
“Não espere o grão que espalha o pó...”.
“Não deseje a flor que cultiva o espinho...”.
“Quem não espere a água quem quebra o pote...”.
“Não dorme contente quem faz da vida maldade...”.
“Pois tudo será mostrado na outra face...”.
“Tudo tem outra feição que será revelada...”.
“Mas só pode avistar sua face...”.
“Aquele que mereça enxergar sua beleza...”.
“Do resto, na outra face...”.
“Apenas os frutos semeados na aridez...”.
“Com a injustiça e a insensatez...”.
“Com a desonra e a iniquidade...”.
“isto o que muitos avistarão na sua estrada...”.
“No seu caminho e destino...”.
“Mas nada que lhes seja estranho...”.
“Pois conhecedores do que têm feito agora...”.
“E do que mais tarde os aguarda...”.
“Apenas uma resposta da vida...”.
“Uma resposta do tempo...”.
“Na lição que diz...”.
“Que aqui mesmo a colheita de todos os frutos...”.
“Tanto os doces como os apodrecidos...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CLEMILDA ETERNA


Rangel Alves da Costa*


A sanfona pausou seu toque, a cantoria nordestina embargou sua voz, o forró – desde a sala de reboco ao asfalto – arrefeceu o chinelado, eis que tudo entristecido pela notícia passada de boca em boca: Clemilda, a guerreira alagoana, a rainha sergipana do forró, faleceu! Partiu num canto de despedida, ecoando a mais bela cantiga que se ouviu cantar e foi-se unir ao companheiro Gerson Filho e forrozar lá pras bandas de riba, no paraíso das grandezas nordestinas, no céu sertanejo.
A notícia, infelizmente, foi esta. E desde o alvorecer que a tristeza enlaça a cultura forrozeira nordestina, espalhando seu espanto de dor desde o norte ao sul do país. E o que se ouviu foi que Clemilda, aos 78 anos, faleceu num hospital aracajuano, após longo e tormentoso período de enfermidades. Os diagnósticos eram muitos, envolvendo diversos problemas de saúde. Faleceu na madrugada deste dia 26 de novembro, enlutando todos aqueles que aplaudiam sua trajetória de luta e sucesso, mas também seu encorajamento nos instantes de dor e sofrimento.
Difícil imaginar a cultura forrozeira nordestina sem a alegria contagiante de Clemilda. Era artista ímpar, de canto inconfundível, desde suas raízes primeiras aos tempos de músicas comerciais ou de duplo sentido. Não importava a letra, mas sim a maestria da interpretação e a forma como transmitia seu vigor artístico. Fosse num pequenino circo nas brenhas interioranas ou nos palcos das grandes emissoras de televisão, era sempre a artista em sua plenitude que se entregava ao doce ofício do encantamento musical.
Não faz muito tempo que escrevi um texto dominical (Clemilda, guerreira alagoana de nobreza sergipana) em sua homenagem. Naquela oportunidade, meu objetivo maior era prestigiar e reconhecer, ainda enquanto presença, sua importância como mulher, artista, compositora, apresentadora, enfim, nas múltiplas vertentes que se lançou, e todas com absoluto sucesso. E agora, diante da cortina que se descerra em aplauso final, apenas transcrevo algumas considerações ali lançadas.
De baixa estatura, rosto arredondado, feições trigueiras, cabelos negros encaracolados, usando preferencialmente vestidos rodados e floridos, com maquiagem que acentue sua feição sorridente, assim era aquela batizada como Cremilda Ferreira da Silva, e depois Clemilda. Verdade que nos últimos tempos já trazia as marcas de múltiplas enfermidades pelo corpo. As doenças a impediam de realizar apresentações, também estava impossibilitada de receber e divulgar os artistas locais no seu Forró no Asfalto, programa dominical da TV Aperipê com mais de 25 anos de sucesso absoluto.
Pelas raízes fincadas em Sergipe, até que se poderia imaginar ser a forrozeira sergipana de folha e flor. Mas não, ainda que tenha escolhido Aracaju como seu verdadeiro lar e toda essa terra sergipana como sua irmandade, Clemilda nasceu em São José da Laje, no estado das Alagoas, e lá pelos idos de 1936, mas passou a infância e adolescência em Palmeira dos Índios. Na década de 60, seguiu para o Rio de Janeiro em busca de dias melhores. Na capital fluminense trabalhou como garçonete até conseguir, em 1965, apresentar-se como caloura na Rádio Mayrink Veiga. Foi nesta emissora que conheceu Gerson Filho, também alagoano do município de Penedo, então artista já contratado. Assim, o destino unia a voz com a sanfona de oito baixos.
Inicialmente gravou ao lado daquele que viria se tornar seu esposo e a acompanharia pelas estradas forrozeiras até 1994, quando faleceu. Mas seu primeiro disco, “Gerson Filho apresenta Clemilda”, só foi gravado em 1967. Daí em diante o sucesso lhe abriria cada vez mais as portas. Mas o casal sabia que era na própria região nordestina, berço do forró, que estava o seu público maior. E assim arribou do sul do país para shows e apresentações junto ao seu povo, morando primeiro em Palmeira dos Índios e depois vindo fixar residência na capital sergipana.
Inegável que o sucesso alcançado foi também fruto de sua obstinação. Poucas artistas nordestinas conseguiram levar o forró aos grandes espaços radiofônicos e televisivos como ela o fez, se tornando presença constante em programas como Cassino do Chacrinha, Clube do Bolinha e Faustão, dentre outros. De voz aguda, porém delicada, impondo a cada canção um acorde melodioso dos mais afinados, Clemilda foi além da mera interpretação para também se firmar como compositora famosa, de grande sucesso, mas geralmente em parceria com outros compositores nordestinos.
E foi nesse acuido que a grande artista foi se firmando no meio forrozeiro até alcançar a fama tão difícil e até impensável para uma mulher já de longa estrada musical, tendo recebido dois discos de ouro e um de platina. Mesmo que o sucesso absoluto somente chegasse com maior força na fase do duplo sentido, ainda assim estava na artista a destreza pela aceitação popular. Eis que não apenas com letra apelativa, mas tendo por fundo a sua sempre empolgante interpretação. Por isso tanto e duradouro sucesso. E assim sempre será pela eterna gratidão que lhe guarda o povo nordestino, principalmente sergipano, por ter a honra e glória de ter acolhido tão bela flor agrestina.
O canto forrozeiro apenas silencia um momento de dor, mas logo ecoará sua alegria em homenagem àquela que foi sua feição e voz. E tudo com a mesma eternidade da artista, da guerreira Clemilda, a morena de olhos negros.


Poeta e cronista
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As palavras (Poesia)


As palavras


Ah meu amor, meu amor
todas as outras palavras
mesmo com aroma e sabor
serão apenas dizeres
diante de quando digo
ah meu amor, meu amor...

por que amor, meu amor
não é apenas expressão
um eco na voz do coração
mas o espírito em louvor
a alma em silêncio dizendo
ah meu amor, meu amor...


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 805


Rangel Alves da Costa*


“Temos afinidades...”.
“Mas não fomos feitos um para o outro...”.
“Ninguém nasce para ser do outro...”.
“Ninguém nasce para ser de ninguém...”.
“Apenas nos doamos de vez em quando...”.
“Apenas nos repartimos de vez em quando...”.
“Mas nunca entregando a essência...”.
“Nunca como doação absoluta...”.
“Mas melhor assim...”.
“Eis que procuramos confirmar o contrário...”.
“Insistir em dizer que somos...”.
“Que nascemos um para o outro...”.
“E assim porque ninguém tanto amou...”.
“Ninguém jamais se entregou tanto...”.
“Ninguém jamais se deu por devoção...”.
“Porém tudo idealismo...”.
“Um jogo de ilusões...”.
“Um encantamento do coração...”.
“Apenas agrada o ser...”.
“Apenas o conforta com imaginação...”.
“Quando a realidade...”.
“A dura e visível realidade...”.
“Acaba colocando tudo em seu lugar...”.
“E não nascemos um para o outro...”.
“Porque sentimos ciúmes...”.
“Porque queremos domar...”.
“Porque desejamos manejar...”.
“Porque queremos ser donos...”.
“Porque de vez em quando...”.
“Somos irreconhecíveis...”.
“Somos bestiais...”.
“Somos enlouquecidos...”.
“Somos como feras...”.
“E atacamos...”.
“E procuramos destruir...”.
“E procuramos sangrar a existência...”.
“E ferimos...”.
“E fazemos sofrer...”.
“E isso é amor?”.
“Tais atitudes justificam o amor?”.
“Logicamente que não...”.
“Mas ainda assim...”.
“Depois de ferir e fazer sofrer...”.
“Ainda abre a boca para dizer te amo...”.
“Te amo e te venero...”.
“Que fomos feitos um para o outro...”.
“Melhor será aprender a sozinho...”.
“Respeitar o outro na distância...”.
“E não querer ser dono de nada...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

AUSÊNCIAS E SAUDADES


Rangel Alves da Costa*


Ontem a presença terrena, hoje a presença ainda maior, mais viva, pois perante a imensidão de afeto e ternura trazida pela saudade. A recordação dos parentes queridos que partiram desta vida acaba revelando a pujança dos sentimentos aflorados. E assim nos filhos, netos, bisnetos, parentes e amigos, numa linhagem de convívio e permanência.
Difícil para todos que assim aconteça, mas desde o dia ou do instante daquela sempre inesperada despedida que muitas certezas acabam tomando voz, feição e pensamento em cada um. Somente a partir daí, com o lamento e tristeza do acontecido, é que a valorização do ente querido é despertada e vai se tornando cada vez mais difícil se afastar da recordação, da saudade e do sofrimento.
A verdade é que, enquanto no convívio terreno, acostumamos que o tempo simplesmente vá passando e quase nada revelamos àqueles que amamos, que estão ao nosso lado, fazendo parte do dia a dia. É como se vivêssemos para a eternidade. É como se jamais despertemos para as situações fatídicas da vida, para os instantes de despedida.
A morte é fato jamais aceito. Por mais que tal destino seja a única certeza existente na vida do ser humano, a verdade é que ninguém se prepara para sua chegada – nem própria nem do outro. A morte é inaceitável sob qualquer aspecto e situação, ainda que a enfermidade seja duradoura ou a doença não possa ser debelada pela medicina. Ainda assim ninguém aceita sua chegada e, por consequência, cada despedida se transforma num martírio indescritível.
 Não reconhecer que somos agentes dessa iminência do destino, acaba se tornando num tipo de negligência amorosa, de desleixamento ou esquecimento para com os nossos. Somente depois que perdemos é que pensamos em reparar os erros pelas omissões afetivas. Mas, infelizmente, somente através das lágrimas, das tristezas, dos sofrimentos e das saudades torturantes.
Geralmente apenas convivemos e nos damos por satisfeitos e sempre achando que amanhã e depois de amanhã, no ano seguinte e depois, ainda estaremos ao lado daquela pessoa. Mas eis que nos chega a lição do Eclesiastes: Há um tempo pra tudo. Tempo de nascer e tempo de morrer...
Temos todo o tempo do mundo para o compartilhamento, para a palavra, para a demonstração de carinho e ternura, mas apenas na ausência é que geralmente sentimos que tudo poderia ter sido muito diferente. E na ausência nos damos conta que fomos bem menos do que deveríamos ser, que amamos muito menos do que deveríamos amar, que ouvimos muito menos do que deveríamos compreender.
Então passamos a divagar mirando as vidraças das janelas, olhando os horizontes, diante de retratos e situações que relembram a presença. E intimamente dizemos que quem dera que o tempo e a vida pudessem retornar a outros momentos. E quem dera reencontrar, quem dera que a voz ainda estivesse sendo ouvida falando com os seus, dando conselhos, sorrindo, brincando, esbravejando. Quem dera...
E são estes dolorosos pensamentos que acabam trazendo a certeza da eternidade, mas noutro sentido: a eternidade do amor, fruto da saudade sentida. Muitas vezes um reconhecimento tardio, mas tão verdadeiro quanto na presença física, pois somente permanece na dor e no sofrimento aquele que continua guardando o outro no coração.
Mas as lições da dor nem sempre ajudam na transformação da realidade. Tanto que sofremos pela partida, mas esquecemos de alimentar o amor vivo, presencial, daquele que ao nosso lado convive. E urge que reconheçamos o amor no presente, de modo a não recairmos em culpas quando das despedidas.
Assim, valorize sempre a face diante de si. E não viverá o tormento de, amanhã, querer continuamente declarar seu afeto ao retrato que jaz silencioso na parede.


Poeta e cronista
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Poema da vida (Poesia)


Poema da vida


Olho o relógio na parede
e fico imaginando
quanto tempo ainda terei

olho o retrato na parede
e fico imaginando
quando ali também estarei

olho o espelho na parede
e fico imaginando
até quando ainda serei

olho a vida além da parede
e fico imaginando
a estrada que não caminhei

olho para dentro de mim
e fico imaginando
o quanto tinha e não me dei

olho além disso tudo
e fico imaginando
por que só agora tanto sei.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 804


Rangel Alves da Costa*


“Era uma vez...”.
“Um sábio e seu discípulo...”.
“Numa viagem distante...”.
“Rumo à montanha da sabedoria...”.
“E pela estrada...”.
“Entre flores e espinhos...”.
“O sábio dizia...”.
“O silêncio nos espera...”.
“E o discípulo continuava...”.
“Não há silêncio maior que este...”.
“Há um silêncio muito maior...”.
“Dizia o sábio...”.
“E prosseguia...”.
“Um silêncio com voz...”.
“Mas silêncio com voz?”.
“Indagava o discípulo...”.
“Ao que o sábio respondia...”.
“Silêncio com vozes e gritos...”.
“Com alardes e trovões...”.
“E ainda assim o maior silêncio...”.
“Mas como pode acontecer assim?”.
“Questionava o discípulo...”.
“E o sábio explicava...”.
“Filho, filho...”.
“Eis o mistério dessa caminhada...”.
“Seguimos rumo à montanha...”.
“Para, lá no alto...”.
“Perto da nuvem e da brisa mansa...”.
“Sentir no silêncio a voz esperada...”.
“E o mesmo silêncio após sua chegada...”.
“Pois ali diante de nós...”.
“No mais absoluto silêncio...”.
“A doce voz que desce do espaço...”.
“Irrompe a nuvem e nos chega à face...”.
“Assim como somente...”.
“E o discípulo entrecortava para dizer...”.
“Assim como somente Deus...”.
“Fala diante de nós, não é mesmo?”.
“Sim, justamente meu filho...”.
“Dizia o sábio, que prosseguia...”.
“Agora somente nossas vozes...”.
“E o voejar dos pássaros...”.
“E o zunido da ventania...”.
“Mas lá no alto da montanha...”.
“Junto ao silêncio de Deus...”.
“Então ouviremos a voz da vida...”.
“As palavras do mundo...”.
“Verdades ecoando em trovões...”.
“E em silêncio estaremos ouvindo...”.
“O silêncio tão compreensivo de Deus!”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 25 de novembro de 2014

O BICHO HUMANO DO CORONEL


Rangel Alves da Costa*


Coronel nordestino de verdade não precisava de patente outorgada pela Guarda Nacional para expressar seu poder e mando. Mesmo que muitos poderosos tenham feito do título uma forma de aumentar seus prestígios e alargar suas influências perante as forças políticas, a verdade é que a expressão máxima de sua autoridade tinha de estar enraizada nos limites de mando e perante aqueles que se submetiam e sustentavam o seu poder.
A força coronelista, o seu respeito e influência, bem como o reconhecimento de sua patente, surgiam do exercício de seu poder não só nos seus limites quase que feudais como nas áreas comandadas por outros coronéis. Assim porque a construção e fortalecimento de sua liderança exigia uma medição de forças com outros poderosos, com cada um querendo tirar proveito na esfera alheia. Daí as tantas inimizades, desavenças e combates sangrentos. Os capangas e jagunços eram colocados em ação para resolver na bala as muitas discórdias.
De qualquer modo, sempre baseada em resquícios do feudalismo, a autoridade do coronel era fruto de um exercício de poder por ele próprio implantado e não de um título que lhe era politicamente oferecido. Sua força era forjada no poder sobre a terra, o homem e o bicho, e não de formalidades políticas. O reconhecimento de sua patente se dava, pois, pela imposição de uma situação de poder e aceitação por aqueles que se tornavam dependentes desse poder, ainda que exercido de forma demasiadamente autoritária, cruel e desumana.
Logicamente que a caracterização do coronel nordestino exigia muito mais que apenas o exercício de poder e autoridade numa determinada região. E também não podia ter sua força reconhecida somente pelas forças externas. Tinha que fazer de sua ação a síntese maior de seu mando. E assim fazia, por exemplo, mantendo trabalhadores no subjugo, fazendo do voto de cabresto uma expressão de poder eleitoral, tendo o clientelismo e o apadrinhamento como formas usuais de manipulação, alongando sua mão férrea em todas as direções. E, por consequência, mantendo a vida e a morte de todos sob seu controle.
Tudo gestado a partir da riqueza, do latifúndio, da exploração, da submissão até escravocrata de uma classe desvalida de quase todos os meios de sobrevivência. E também o mandante de tocaias e emboscadas não só contra poderosos inimigos como de qualquer um empobrecido que ousasse transgredir seu desejo e sua lei. Teria morte certa aquele que se negasse a sair de seu pedaço de terra ou entregá-la por dois vinténs. Para aumentar os latifúndios fazia do sangue escorrendo uma prática costumeira.
Não havia limite ou medida no mando do poderoso nos rincões nordestinos. Seu respeito e poder eram construídos por cima de tudo e todos. Certamente que em alguns casos a honraria alcançada surgiu de muito suor e luta, enfrentando o desbravamento sangrento do sertão para fincar seus limites. Mas depois do poder alcançado tudo desandava numa coisa só: o trato do homem da terra, do seu inferior, como se fosse bicho. Um bicho humano devendo obediência, vivendo nas suas rédeas, servindo exclusivamente aos seus doentios desejos.
Bicho humano que tinha de lhe servir sem tempo para pensar nem reclamar, sem poder dizer não ou se demorar. O bicho humano conhecia bem quais as armas do poderoso e do que ele era capaz para conseguir tudo o que desejasse. O bicho humano que não tinha razão, não tinha esperança, não tinha como reconhecer-se como humano, senão como burro de carga, como mão da lavoura e da colheita, como pé no espinho da lide debaixo do sol, como aquele retornado à escravidão por força da necessidade de sobrevivência.
E bicho humano não somente aquele que vivia sob as ordens diretas do coronel, cuidando de seu latifúndio, mas também todo aquele que vivesse na circunscrição sob sua autoridade. Igualmente tratando como bicho todo aquele precisasse de seus favores. E todos acabam precisando, pois dono da vida e da morte, da honra e da negação. No coronel a esmola, o remédio, o pão para não morrer de fome, tudo na medida da mera sobrevivência. Mas nada de mão beijada. Tudo com o preço alto da subserviência, da submissão, de tornar-se bicho no seu curral.
O homem considerado como bicho de curral, com seu voto negociado pela liderança, servindo à manutenção do poder que o oprime e subjuga. Ora, toda a região de mando era tida como um grande latifúndio e cada ser vivente como um bicho de sua propriedade. E na época de eleição, perante os acertos e conchavos, toda aquela gente tinha seu voto negociado a preço alto. E a venda de dois mil votos, por exemplo, era feita com a porteira do curral fechada, eis que tanto o político como o coronel sabia que o cabresto conduziria cada um daqueles votantes às urnas.
Ser tido e tratado como bicho confronta todos os preceitos humanos. Mas não havia educação que permitisse uma consciência crítica sobre a educação. Também não havia esperança de vida fazendo oposição ou negando a ação do coronel. Ou aceitava ou calava. E calado aceitava sua condição de eterno dependente de um quilo de fubá, um pedaço de carne seca, uma garrafa de cachaça. Tudo capim de bicho. E sem sequer poder mugir a sua dor, o seu sofrimento.


Poeta e cronista
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O que apenas somos (Poesia)


O que apenas somos


Apenas somos
o que queremos ser
nem mais nem menos
do que merecemos ser
porque somos apenas
o que desejamos
e sempre aceitamos ser
o limite que avistamos
ainda que mais alto
tudo possa ser avistado
mas sempre renegado
porque nosso olhar
nunca pensa ir além
do que quer enxergar
e acaba se contentando
com o chão das coisas
e jamais com o horizonte.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 803


Rangel Alves da Costa*


“Conheço todos eles...”.
“São todos belicosos...”.
“São todos arrogantes...”.
“Derrubaram o meu muro...”.
“Destroem meu jardim...”.
“Arrancam minhas flores...”.
“Devastam primaveras...”.
“Conheço todos eles...”.
“Avisto suas armas...”.
“Sei dos seus punhais...”.
“São todos disfarçados...”.
“De seres humanos...”.
“Mas entram nas florestas...”.
“Derrubam suas árvores...”.
“Incendeiam plantas...”.
“Matam animais...”.
“Envenenam os rios...”.
“Devastam toda a vida...”.
“Conheço todos eles...”.
“São todos violentos...”.
“São horripilantes...”.
“Olham para o próximo...”.
“Com olhar inimigo...”.
“Cheio de ódio e ferocidade...”.
“E mandam calar...”.
“Exigem que ajoelhe...”.
“Forçam pra deitar...”.
“E depois violentam...”.
“E batem e sangram...”.
“E matam e sorriem...”.
“Conheço todos eles...”.
“Estão lá na frente...”.
“Estão no portão...”.
“Estão na janela...”.
“Estão no telhado...”.
“Estão aqui dentro...”.
“E já não sei onde estou...”.
“Aonde me levaram...”.
“O que fizeram de mim...”.
“Não sei se existo...”.
“Ou se foi o meu fim...”.
“Mas conheço todos eles...”.
“São todos covardes...”.
“São medrosos e frios...”.
“Não têm coragem de nada...”.
“A não ser com a arma...”.
“A não ser com o ferro...”.
“Mas de resto não passam...”.
“De infelizes na vida...”.
“E torturados na morte...”.
“Pois haverão de pagar o medo...”.


Poeta e cronista
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segunda-feira, 24 de novembro de 2014

HISTÓRIAS DE SOL E SECA


Rangel Alves da Costa*


Tudo que diga respeito a sertão assume logo lugar de destaque nas manchetes, principalmente quando se trata do sofrimento do seu povo, das estiagens devastadoras e demais intempéries tão próprias da região. Os livros também gostam de pincelar a ossatura humana e a vegetação esquelética e desgrenhada. E de boca em boca, principalmente naqueles que estão distantes, o retrato desenhado é de moldura carcomida e feia.
Logicamente que há um realismo exagerado, mas nem de todo inverídico. Do mesmo modo, não há situação retratada que já não seja conhecida desde os tempos mais distantes. Como a seca é problema endêmico, jamais terá fim, igualmente as descrições e os relatos acerca de suas incidências. A carcaça do bicho, a planta morta, o barro rachado, a desolação, tudo isso apenas se renova por cima do mesmo cenário de outros tempos.
Mas o sol e a seca do sertão também motivam relatos que vão além das situações tão conhecidas. O próprio sertanejo de repente começa a descrever situações verdadeiramente inacreditáveis para muitos. Não fosse a palavra honrada do homem da terra logo se diria ser pura invenção. Mas não, tudo verdade. Ou quase tudo. Desde a história do calango engolido vivo ao relato do ensopado de pedra com folha seca de catingueira. E muito mais.
Contam que havia um menino que mal começou a caminhar e já dizia com precisão se a chuvarada iria cair ou não. Ainda meninote e já tido como verdadeiro profeta sertanejo, sendo cotidianamente visitado por muitos querendo saber se havia alguma esperança de terra molhada. E ele olhava as cores do horizonte, a feição das folhagens e o voo dos passarinhos, para em seguida sentenciar: Quem tiver com sede guarde cuia d’água. Ou: É bom ir tirando o grão da cumbuca. Ou ainda: Amanhã mesmo vai ter bafo de chuva encobrindo tudo. E que cheiro forte vai ser!
Não demorou muito e uma estiagem danada começou a tomar conta de tudo. E uma verdadeira peregrinação diariamente acorria até a casa do menino na expectativa que desse alguma notícia boa. De início até que ele encontrava encorajamento para falar a verdade e dizer que não via sinal de chuva de jeito nenhum. Mas depois, sentindo que o povo não aceitava mais sua resposta, querendo a tudo custo que anunciasse trovoada com brevidade, foi ficando cada vez mais calado. Até que não respondeu mais a ninguém. E emudeceu de vez.
Completamente mudo permaneceu por três anos seguidos. E este foi exatamente o tempo que durou uma das maiores secas da região, até hoje tida como a devoradora de bicho e homem. Mas num entardecer, enquanto revirava pedra para ver se encontrava algum bicho, eis que olhou pra cima e disse: Ela já vem, a chuva já vem! E se danou a gritar que a trovoada seria das grandes.
A ficção e o memorialismo também servem para ilustrar o drama nordestino e assim já ganhou pujança pelas mãos de Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Jorge Amado, dentre outros. Portinari igualmente transpôs para as telas, com pinceladas de nudez cortante, a saga dos retirantes, o entristecimento nas faces esqueléticas e a morte sendo carregada nos braços. Num dos meus livros também tomo a seca como pano de fundo para abordar a fragilidade do homem perante as forças da natureza.
Tudo está descrito num conto chamado “O menino que nasceu verde”. Como sugere o título, conta a história de um pequenino sertanejo que nasceu com tez esverdeada. Mas a cor do menino não significa quase nada diante do que o destino lhe reservara, eis que sua vida, igualmente uma planta sertaneja, dependia das condições climáticas. Assim, se a chuva caísse o menino tinha sua seiva alimentada e desenvolvimento normal, mas, ao contrário, o surgimento de qualquer estiagem sinalizava perigo de existência, fazendo com que começasse a definhar como uma folha seca.
Numa situação tal, logicamente que os pais do menino se viam numa situação difícil de resolver, pois sabendo que a vida do filho dependia das chuvas. Ou chovia e sua cor esverdeada ganhava força e viço, ou se tornava de um marrom acinzentado, frágil demais, quase sem esperança de sobreviver. E eis que uma seca medonha começou a tomar conta de toda a região. Aos poucos foram ficando sem água até para encher a cuia e ir derramando por cima do filho. E sem água seria morte certa.
Pobres demais, os desesperados pais até que pensaram em subir num pau-de-arara e tomar o rumo de qualquer lugar onde caísse chuva e seu filho pudesse ser salvo. Mas não havia tostão para nada. E a cada dia o pequenino secando, esturricando, em tempo de se tornar num graveto de chão. Quase não se movimentava, sequer abria totalmente os olhos. Tomados de aflição, sem mais saber o que fazer, os pais se entregavam dia e noite às preces e orações, implorando a todos os santos que uma nuvem de salvação derramasse a vida sobre seu filho.
Aquela seca foi impiedosa demais. As estradas eram tomadas por beatas em procissão, todas as promessas eram feitas, os santos eram exortados e até enterrados na terra seca. Mas nenhum pingo d’água. E o menino? Não precisou nem ser enterrado. Seus pais juntaram os restos da folha seca e jogaram ao vento.


Poeta e cronista
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A estrada (Poesia)


A estrada


Dizem que a estrada do amor
esconde as flores diante de espinhos
possui labirintos de causar temor
e torna a brisa suave em redemoinhos

dizem que a estrada do amor
é a mais difícil de ser caminhada
impõe desencontros ao seu seguidor
e vai tornando o desejo em encruzilhada

mas tão bela é a estrada do amor
quem ama prossegue sem temer a jornada
sabe que encontrará o que tanto semeou
ser feliz no caminho e ao final da estrada.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 802


Rangel Alves da Costa*


“Esforço-me para não olhar...”.
“Tento não recordar...”.
“Mas ali a parede...”.
“Ali a estante...”.
“Ali as lembranças...”.
“E as recordações...”.
“Velhos retratos...”.
“Sorrisos e olhares...”.
“Feições que são minhas...”.
“Em quem já partiu...”.
“Meu pai...”.
“Minha mãe...”.
“Na moldura do tempo...”.
“Na feição da história...”.
“E parece que foi ontem...”.
“Aquelas vozes...”.
“Aquelas palavras...”.
“Aqueles chamados...”.
“As lições e as reprimendas...”.
“Os conselhos e os cuidados...”.
“O pedaço de bolo na mesa...”.
“Para ter cuidado com a chuva...”.
“A hora de tomar banho...”.
“A roupa engomada...”.
“A brilhantina e o perfume...”.
“A vida, o tempo...”.
“A infância, o percurso...”.
“E olho ao redor...”.
“A cadeira ainda parece balançar...”.
“A agulha e o dedal...”.
“O tricô e o crochê...”.
“E do meu pai a história...”.
“Rabiscada e reescrita...”.
“Como se a sabedoria do mundo...”.
“Nascesse daquelas mãos...”.
“Mãos de lua e de sol...”.
“De luta e esperança...”.
“Para depois ser apenas...”.
“Um retrato na parede...”.
“Uma moldura tristonha...”.
“Dizendo que tudo passa...”.
“Tudo segue na estrada...”.
“Até sumir entre nuvens...”.
“Até sumir no olhar...”.
“E restar apenas...”.
“A saudade imensa...”.
“A tomar a vida...”.
“E afligir o coração...”.
“Apenas retratos...”.
“Mas também a vida...”.


Poeta e cronista
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domingo, 23 de novembro de 2014

NO SERTÃO EU VI


Rangel Alves da Costa*


Seu moço, sertões adentro, seu moço eu vi! Meninos eu vi café sem pão, vi pão sem ter gole d’água pra mastigação, mastigado e engolido a seco como a secura do chão. Coisa de cortar coração.
Vi chaleira sem água e vi fogo sem chaleira, não vi chaleira nem fogo, não vi nada no fogão. De tanto ver coisa assim, no peito a judiação.
Vi um fogo entristecido, esperando um toucinho ou de carne qualquer tiquinho. Mas sem nada abrasar nem cheiro a se espalhar, apenas o fogo no chão sem panela nem tição. E o vento levando a cinza para o ar acinzentado, assim o sertão é pintado pelo sol demasiado.
Vi um pote com lama, vi moringa já rachada, caneca sem ter mais nada, tudo seco e encardido como retrato sofrido e pelo tempo afligido. Lá fora o sol esquentando, a poeira levantando, o bicho magro e ossudo, eis o retrato de tudo.
Vi oratório sem vela e vi aberta a cancela, janela sem aquarela, cena mais triste aquela. Tapera sem porta na frente, casa sem porta no fundo, assim aquela gente no mundo. Menino barrigudinho, mas do barro na parede, come sem matar a sede e depois adormece na rede.
Vi um pai com espingarda seguindo pela estrada, dizendo que ia caçar um preá para o jantar. O dia inteiro esperando e nada de bicho passando, voltou todo entristecido, tudo parecendo perdido, mas nada de diferente naquele povo sofrido. Assim a vida e a sina do sertanejo oprimido.
Vi o cachorro secar, vi papagaio emudecer, vi gato cacarejar, vi calango enraivecer, toda a bicharada dali com o mesmo padecer, o mesmo sofrimento da gente também no ser inocente. E a ossuda vaquinha, desde muito tão magrinha, caiu ao entardecer. Não tendo mais qualquer, prostrou-se para morrer.
Vi o menino com fome, vi o menino chorando, vi o menino esperneando. E vi a mãe lamentando, vi a mãe suplicando. E vi o pai em aflição, catando pedaço de pão, buscando raiz pelo chão num desespero cristão. Então achou uma lagartixa, segurou de jeito a bicha e jogou pelo braseiro. E logo aquele cheiro, carne branca sem tempero, e o menino sem berreiro.
Vi uma manhã sem manhã, apenas com oração, faltando café com pão. Sem café na dispensa sem pão dormido escondido, sem farinha nem fubá, sem nada de alimentar. Manhã que acorda mais triste na pobreza que persiste, na desvalia do mundo, num povo e seu submundo.
Mas também vi o inverso, desse espelho o reverso. Mesmo com a vida em lamento, com tudo no sofrimento, vi uma feição de alento. Ninguém se dobra à dor, eis que um povo sem temor. Ninguém se dá por vencido, pois a fé o torna erguido. Ninguém desanima de morte, pois na vida está a sorte.
Por isso vi moça bonita, toda vestida de chita, sonhando de sua janela, sendo a mais linda donzela. Vi moço subindo em alazão, cortando todo o sertão por estar apaixonado. E fiquei admirado com a flor que levava à mão, de craibeira do sertão com perfume do coração.
Vi a roupa no varal bailando num pedestal, vi a mulher numa cantiga, tão bela e tão antiga, enquanto batia o pilão. Uma cena de adoração: enquanto a mulher batia e a madeira rangia a sua voz mais subia. E tão alegre cantava que ninguém imaginava que no pilão nada pisava.
Vi o menino brincando, vi o calango correndo, dois amigos convivendo. O passarinho chegava, ao redor esvoaçava até o menino falar. Falava com o passarinho e fazia do ombro um ninho. E assim o dia inteiro e tudo tão verdadeiro que chegava a intrigar. Um menino de sertão, criança de pé no chão, com os bichos a prosear.
E depois do sol vi a lua. E que lua imensa a do sertão. Descia aquele clarão com a noite em veneração. A mão dedilhando a viola, pois a vida assim consola. E depois a porta fechada, o silêncio por jornada. Brisa matuta da serra, cortina que se descerra.


Poeta e cronista
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