SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 24 de novembro de 2014

HISTÓRIAS DE SOL E SECA


Rangel Alves da Costa*


Tudo que diga respeito a sertão assume logo lugar de destaque nas manchetes, principalmente quando se trata do sofrimento do seu povo, das estiagens devastadoras e demais intempéries tão próprias da região. Os livros também gostam de pincelar a ossatura humana e a vegetação esquelética e desgrenhada. E de boca em boca, principalmente naqueles que estão distantes, o retrato desenhado é de moldura carcomida e feia.
Logicamente que há um realismo exagerado, mas nem de todo inverídico. Do mesmo modo, não há situação retratada que já não seja conhecida desde os tempos mais distantes. Como a seca é problema endêmico, jamais terá fim, igualmente as descrições e os relatos acerca de suas incidências. A carcaça do bicho, a planta morta, o barro rachado, a desolação, tudo isso apenas se renova por cima do mesmo cenário de outros tempos.
Mas o sol e a seca do sertão também motivam relatos que vão além das situações tão conhecidas. O próprio sertanejo de repente começa a descrever situações verdadeiramente inacreditáveis para muitos. Não fosse a palavra honrada do homem da terra logo se diria ser pura invenção. Mas não, tudo verdade. Ou quase tudo. Desde a história do calango engolido vivo ao relato do ensopado de pedra com folha seca de catingueira. E muito mais.
Contam que havia um menino que mal começou a caminhar e já dizia com precisão se a chuvarada iria cair ou não. Ainda meninote e já tido como verdadeiro profeta sertanejo, sendo cotidianamente visitado por muitos querendo saber se havia alguma esperança de terra molhada. E ele olhava as cores do horizonte, a feição das folhagens e o voo dos passarinhos, para em seguida sentenciar: Quem tiver com sede guarde cuia d’água. Ou: É bom ir tirando o grão da cumbuca. Ou ainda: Amanhã mesmo vai ter bafo de chuva encobrindo tudo. E que cheiro forte vai ser!
Não demorou muito e uma estiagem danada começou a tomar conta de tudo. E uma verdadeira peregrinação diariamente acorria até a casa do menino na expectativa que desse alguma notícia boa. De início até que ele encontrava encorajamento para falar a verdade e dizer que não via sinal de chuva de jeito nenhum. Mas depois, sentindo que o povo não aceitava mais sua resposta, querendo a tudo custo que anunciasse trovoada com brevidade, foi ficando cada vez mais calado. Até que não respondeu mais a ninguém. E emudeceu de vez.
Completamente mudo permaneceu por três anos seguidos. E este foi exatamente o tempo que durou uma das maiores secas da região, até hoje tida como a devoradora de bicho e homem. Mas num entardecer, enquanto revirava pedra para ver se encontrava algum bicho, eis que olhou pra cima e disse: Ela já vem, a chuva já vem! E se danou a gritar que a trovoada seria das grandes.
A ficção e o memorialismo também servem para ilustrar o drama nordestino e assim já ganhou pujança pelas mãos de Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e Jorge Amado, dentre outros. Portinari igualmente transpôs para as telas, com pinceladas de nudez cortante, a saga dos retirantes, o entristecimento nas faces esqueléticas e a morte sendo carregada nos braços. Num dos meus livros também tomo a seca como pano de fundo para abordar a fragilidade do homem perante as forças da natureza.
Tudo está descrito num conto chamado “O menino que nasceu verde”. Como sugere o título, conta a história de um pequenino sertanejo que nasceu com tez esverdeada. Mas a cor do menino não significa quase nada diante do que o destino lhe reservara, eis que sua vida, igualmente uma planta sertaneja, dependia das condições climáticas. Assim, se a chuva caísse o menino tinha sua seiva alimentada e desenvolvimento normal, mas, ao contrário, o surgimento de qualquer estiagem sinalizava perigo de existência, fazendo com que começasse a definhar como uma folha seca.
Numa situação tal, logicamente que os pais do menino se viam numa situação difícil de resolver, pois sabendo que a vida do filho dependia das chuvas. Ou chovia e sua cor esverdeada ganhava força e viço, ou se tornava de um marrom acinzentado, frágil demais, quase sem esperança de sobreviver. E eis que uma seca medonha começou a tomar conta de toda a região. Aos poucos foram ficando sem água até para encher a cuia e ir derramando por cima do filho. E sem água seria morte certa.
Pobres demais, os desesperados pais até que pensaram em subir num pau-de-arara e tomar o rumo de qualquer lugar onde caísse chuva e seu filho pudesse ser salvo. Mas não havia tostão para nada. E a cada dia o pequenino secando, esturricando, em tempo de se tornar num graveto de chão. Quase não se movimentava, sequer abria totalmente os olhos. Tomados de aflição, sem mais saber o que fazer, os pais se entregavam dia e noite às preces e orações, implorando a todos os santos que uma nuvem de salvação derramasse a vida sobre seu filho.
Aquela seca foi impiedosa demais. As estradas eram tomadas por beatas em procissão, todas as promessas eram feitas, os santos eram exortados e até enterrados na terra seca. Mas nenhum pingo d’água. E o menino? Não precisou nem ser enterrado. Seus pais juntaram os restos da folha seca e jogaram ao vento.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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