SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

SERTÃO NA BOCA DA NOITE



*Rangel Alves da Costa


Aos fins de semana sempre viajo ao sertão. E cada retorno sempre sentindo algo como se saudade fosse sendo acumulada ainda mais. A vontade que dá é sempre permanecer por lá.
Os ossos do ofício sempre chamam a outros afazeres que não junto àqueles que mais amo: caminhar, como meu pai fazia, pelas ruas singelas do meu Poço Redondo, pelas suas estradas, pelas malhadas das casinhas de cipó e barro.
Como dito, sinto-me sempre mais entristecido toda vez que retorno. E aqui na solidão da capital, em meio ao desencanto da capital, ponho-me então a recordar aquilo que deixei lá nas distâncias sertanejas daquele mundo meu.
Quando a noite começa a surgir, exatamente nos instantes em que o sertão parece mais belo, mais reflexivo, mais nostálgico e até melancólico, aquele retrato ressurge com maior nitidez e melancolia.
Lá no sertão, noutros idos, pontualmente os sinos da Matriz ecoavam seus brados como a dizer que chegada a hora da Ave Maria, da prece, da oração, dos joelhos dobrados perante oratórios.
Um instante em que o candeeiro do sol já se apagou entre as nuvens e os cheiros de cuscuz, de café, de tripa de porco e ovos, perpassam as cozinhas e vão se espalhando pelos ares.
Um instante docemente chamado de boca da noite. Sim, a noite vem bela boca aberta dos horizontes, das paisagens, da natureza. O sol vai embora, a lua desponta, a mataria apenas sussurra, as folhagens dançam ao sabor dos sopros dos ventos e ventanias.
Da cor vermelho afogueada da boca da noite, a cidade vai sendo tingida por outras cores. As luzes lançam seus amarelos, o negrume se estende e vai alargando seu manto noturno.
A lua desce, passeia, toma conta de tudo. Mais tarde as pessoas estarão reunidas em proseados, as vizinhas em suas calçadas, a juventude legislando entre copos na calçada da vereança municipal, os enamorados procurando seus destinos do coração.
Até as portas e janelas irem se fechando no chamado dos sonos e sonhos. Tudo assim em Poço Redondo, no meu sertão amado. E eu aqui, apenas eu e a solidão.
Mas para lá retornarei e novamente sentirei todos os prazeres e sensações da boca da noite. Ouvirei os sinos bradando, sentirei os cafés cheirando pelas cozinhas, ouvirei as preces junto aos velhos oratórios. Abraçarei a chegada da lua e com ela dormirei de braços dados.
Mesmo que nada assim aconteça, certamente acontecerá. Na mente, na vontade, no pensamento.


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Lá no meu sertão...


Em Bonsucesso, Velho Chico na noite. Poesia ribeirinha...



Trem da vida (Poesia)



Trem da vida


Ao longe
apita o trem da vida
que vem
de trem
que vem
e vem
e vem

na estação
as flores
os abraços
as lágrimas
as chegadas
e partidas
os adeuses

e segue o trem
da vida que veio
e que já vai
ao além
de trem
no trem
o trem.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - comida cheirosa de feira



*Rangel Alves da Costa


Quando nas sextas eu estou no sertão sergipano, no dia de feira por lá, fico verdadeiramente maravilhado toda vez que passo perto das vendas de comida. São umas três ou quatro barracas, uma perto da outra, numa junção de cheiros que apavoram por dentro. Ali, em grandes panelas, a carne de bode, de gado, de porco, o fígado, a galinhada. Mas também por cima das grelhas que estão sempre assando carnes. Tem gente que não gosta de tais comidas, que até sentem enojamento, mas pensam diferentes as muitas pessoas que até lá se dirigem para saborear os pratos gordos, coloridos e apetitosos. Macarrão, arroz, feijão, farinha, e por cima os tipos de carne escolhidos, apenas com o caldo ou com a pimenta. Tem gente que come de colher mesmo, outros só faltam meter a mão no prato e levar à boca. Mas seja do modo que for, basta observar o ato de comer para saber do prazer em se deleitar com aquela comida barata e farta.


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quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

VAQUEIRO ELIAS



*Rangel Alves da Costa


Toda vez que encontro o amigo Elias, ou Elias de Tonho Gervásio, como é mais conhecido, eu festejo por dentro e por fora.
Não há criatura sertaneja mais alegre, simpática e de prosa boa, que ele. Parece nunca estar preocupado. Também nunca foi encontrado de cara feia ou de poucos amigos.
Toda vez que o encontro é um abraço apertado. Era muito amigo de meu pai Alcino e continua meu amigo também. Aliás, com Elias meu pai proseava de quase passar o dia inteiro.
No último encontro, na sexta de feira interiorana, apimentei o reencontro ao perguntar quem ele achava o maior vaqueiro de todos os tempos nas caatingas de Poço Redondo e arredores.
Pergunta mais que melindrosa perante um vaqueiro afamado, ante um verdadeiro titã das caatingas e cuja história já é cantada por todos. Mas ele, um tanto surpreendido, não pensou duas vezes para dizer:
“De todos, e digo sem medo de errar, que nenhum se igualou a Rivaldo de Janjão. Rivaldo, que dias atrás deixou o sertão mais triste e foi vaqueirar lá nos céus, foi o maior vaqueiro entre todos. E pertinho dele, quase no mesmo prumo, estava Tião de Sinhá. Dava gosto ver esses dois na verdadeira pega-de-boi, no meio do mato atrás de boi valente, vencendo os espinhos e as pontas de pau para dar cabo da empreitada. Por outro lado, quando se falava em rastejador, aquele que parece que sente o cheiro do bicho e vai atrás pelas marcas dos cascos fincadas na terra, não havia outro igual a Bastião de Timbé. Nunca houve no mundo um vaqueiro que descobrisse a presença de um boi, já passado mais de ano de seu desaparecimento, apenas pelo rastro encontrado. E Bastião de Timbé avistava a marca no chão e dizia qual era o boi e onde ele estava. E não errava não. Um ou dois dias depois, ou mesmo com mais tempo, nas lonjuras do mundo, e o boi estava lá. Não errava uma. Outro rastejador respeitado era Nofinho. Mas igual a Bastião de Timbé nunca houve um igual. E ele tá aí pra contar muito melhor essa história”. Mas quando eu perguntei sobre o que tinha a dizer sobre o vaqueiro Elias, sobre ele mesmo, quase dá gargalhada para dizer: “Deixe pra lá!”.
Deixe pra lá nada, Elias. Há que se reconhecer sua majestade e soberania na vida vaqueira. Todo animal e toda caatinga ainda reverenciam a sua passagem. Você sempre foi e sempre será reconhecido como um dos maiores vaqueiros da história sertaneja.
O bicho conhece o seu nome, a caatinga conhece o seu nome, a vaqueirama proclama seu nome. E Poço Redondo simplesmente o festeja com orgulho e gratidão.


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Lá no meu sertão...


Sertão antigo!



Um viver feliz (Poesia)



Um viver feliz


Antes que o sol se vá
ainda há muito a fazer
a roupa da pia enxaguar
e depois os panos estender
buscar lenhar pra guardar
pro fogo de chão se acender

depois da lua em clarão
o feijão de corda a debulhar
rezar com o terço na mão
que é pra Deus mais ajudar
assim o viver num sertão
sem a cidade a lhe dominar

ali vivem Maria e João
na paz da porteira fechada
tendo muito em cada grão
querendo o viver e mais nada
mas com a certeza no coração
que a felicidade ali faz morada.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - ofícios de um povo



*Rangel Alves da Costa


Brasilino curtia o couro e fazia um sertão. Dona Benvinda amassava o barro e fazia um sertão. Seu Galego afogueava o ferro e depois batia para fazer um sertão. Mané Dandacho vaquejava a cria e fazia um sertão. Carmosina no doce de frade, saudade que ainda invade. Zé de Bela costurando faceiro, no modismo um engenheiro, fazendo roupa pra dona de casa e também para o fazendeiro. Maria do Piau duro oferecia piaba, levando o peixe na cabeça e dando de presente goiaba. João da Bicha, o feiticeiro, fazendo mandinga escondida e se dizendo verdadeiro. Sebastião sapateiro botando sola de borracha, pregando tudo em tarraxa, ofício sem ter herdeiro. Dona Luisinha fazia do pirulito um doce sertão. Baíta preparava arroz-doce com gosto de sertão. Zé de Julião se sacrificou em nome do sertão. Alcino amou e viveu para o seu sertão. E eu, sertanejo de berço e de pisar no chão, o que posso fazer? O que puder pelo meu sertão!


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terça-feira, 29 de janeiro de 2019

QUEM GOSTA DE CUSCUZ?



*Rangel Alves da Costa


Certamente que pessoas de outras regiões do país irão ler esta postagem e até não compreender bem o tipo de cuscuz aqui descrito. Com efeito, cada povo e cada região possui seu jeito próprio - e até de muitas formas - de fazer cuscuz. A verdade é que tem cuscuz que mais parece um lombo recheado ao contrário. Outros o fazem com ovos, linguiça, carne moída, também temperado de todo jeito. Apenas uma questão de gosto.
Mas o cuscuz aqui descrito não é nem nordestino, pois sertanejo mesmo, matuto de pai e mãe, tabaréu desde a raiz. E por isso mesmo o melhor cuscuz do mundo. E não é nordestino por que na região há também muitas variedades no preparo da farinha de milho. E quando digo matuto é para me referir ao cuscuz nele mesmo, sem frescura, na farinha molhada, deixada apurar e depois levada ao cuscuzeiro e ao fogo. De dar água na boca!
E daria ainda mais água na boca se o cuscuz fosse como aquele de antigamente, ou seja, ralado no quintal, com os grãos miúdos e a polpa deitados em bacia, e depois despejados em cuscuzeiro grande, com pano de prato limpo amarrado na boca. Em seguida, deixar por alguns minutos no fogão de lenha até que o cheiro bom vá tomando os ares. Por cima do pano úmido pelo calor, a névoa saborosa subindo e subindo.
Ainda nesse tempo, no tempo do cuscuz ralado e cheiroso igual a sertão, enquanto as chamas do fogão envolviam o fundo do cuscuzeiro, a senhora dona da casa já corria aos outros preparos. Cuscuz sertanejo todo mundo come e se farta até sem nenhuma mistura por cima, mas o costume é que um naco de qualquer coisa faça companhia ao prato. E o que não faltava era coisa boa para misturar. Mesmo num sertão empobrecido, a cozinha sempre teve a guarnição para as necessidades.
E o que a senhora dona da casa fazia, então? Ia depressa ao varal com uma faca amolada e passava a lâmina na carne de sol ali estendida, no pedaço de porco gordo ali depurando, na tripa, no bucho ou qualquer coisa. Sem falar nos ovos de galinha de capoeira e na banha de porco para fazer chiar gostosamente a frigideira. Mesmo sem carne, bastava cortar toucinho e misturar com os ovos. Ou então fazer o mesmo com a tripa, o bucho e outros miúdos do gado e do porco. Há mistura melhor para o cuscuz mais gostoso que tudo na vida?
Café a gosto, gordo, cheiroso, quase espumante, como aquele que Dona Lídia fazia aos entardeceres de Poço Redondo. O café de Dona Lídia era mágico, enfeitiçado, só podia ser. Antes mesmo da boca da noite e a cidade inteira era tomada pelo cheiro inebriante daquele café. Como dizia o outro, só faltava ficar com a xícara à mão e beber pelo cheiro. Eu mesmo testemunhei as proezas desse café. Já vi fila ser formada para ter ao menos um tiquinho como experimentação.
Mas voltando ao cuscuz, companheiro inseparável do café, a verdade é que ele continua sendo bom e saboroso de todo jeito. Dificilmente ainda é possível encontrar um cuscuz ralado em quintal e preparado no fogão de lenha. Tal costume somente nas distâncias interioranas e onde os mais velhos não desapartem do prazer de comer o que realmente vale a pena ser saboreado. Comida simples, barata, humilde, singela, mas que não há coisa igual. E perguntem ao do mato se ele prefere um prato de cuscuz ou uma macarronada. Podem levar o cardápio inteiro e nada substituirá o bom e velho alimento de milho.
A verdade é que o cuscuz é mesmo um prato interessante. Ele não assenta com determinadas misturas de jeito nenhum. Despejar receitas estrambólicas por cima dele de forma alguma. É como se ele dissesse que só aceita ser comido com os já conhecidos da terra. Por isso mesmo que o cuscuz sempre pede uma boa manteiga, carne de bode ou de gado, carne de porco torrada, toucinho misturado com ovos, tripa de porco e bucho. Também o queijo de coalho lhe causa encantamento. E quem tiver seu suco nem se aproxime. Cuscuz só assenta com café. E pronto.
E me deu agora uma vontade danada. Como não sou besta, já preparei o meu. Cuscuz com ovos e queijo. E na memória o café de Dona Lídia, ali na Praça da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo. Servidos?


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Lá no meu sertão...


Levy, meu Pensador!



A vida (Poesia)



A vida


Na luta renhida de déu em déu
na bonança das flores ou jogado ao léu
suando os piores suores abaixo do céu
na lágrima, no queimor, no sal e no fel
sob as patas vorazes em ávido tropel
e depois se erguer tendo à mão o troféu
e então escrever a vida toda num papel:

venci!

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - meus amigos



*Rangel Alves da Costa


Meus amigos, onde estão meus amigos? Meus amigos - que serão sempre amigos do mais novo ao mais velho -, estão nos seus lares, nos bares, nas ruas, nas esquinas, nas praças. Mas também nas distâncias, nas beiradas dos matos, nos casebres e currais, na debulha do feijão, no bordado da renda. E ainda nas suas calçadas, nas suas portas abertas, debruçados pelas janelas. Caminho, vou ao encontro deles, encontro a palavra e o sorriso. Muitos me chegam em visita, em inesperados encontros que alegram ainda mais os sentidos. Mas geralmente caminho e vou ao encontro deles. Ao pé do balcão, peço pra descer uma pinga e sei que o amigo aceitará com prazer. Mais adiante, virando a esquina, logo estendo a mão e o outro sorri com prazer. Uma assentada num beiral de canteiro e um proseado descompromissado de tudo. Um inté mais, inté! E de repente, debruçado à janela, aquele olhar miúdo e aquela feição carregada de tempo. Uma velha amiga, um velho amigo. Aproximo-me sem pressa, cumprimento, procuro despertar alegria e puxo outras conversas. E o tempo vai passando, passando e passando. Que livro lindo é aberto. Páginas do passado, letras escritas na luta e no passo do dia a dia. Uma saga de vida, um emaranhado de histórias, uma costura de situações e revelações. E depois, com tudo já guardado no embornal da memória, despeço-me e sigo adiante. E levando comigo um monte de amigos.


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segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

AS FLORES QUE ESTAVAM ALI



*Rangel Alves da Costa


E de repente, a normalidade se transforma em caos, os passos seguros se tornam em correria, as palavras passam a ecoar em gritos, e tudo também aflige as flores. As flores que estavam ali...
Flores de Brumadinho. E quantas flores. Flores humanas, flores da terra, flores nas plantas, flores nos bichos, flores nas vidas.
E de repente as comportas se rompem, as engenharias cedem às pressões dos descasos e das omissões, as estagnações transbordam em rios de lama, as furiosas enxurradas se lançam derramam em mar de sofrimento e morte. E levam as flores que estavam ali...
Flores que apenas queriam viver, brotar, florescer. Flores acostumadas com os seus dias, até sem medo, e que jamais esperaram que o horror viesse na fúria da lama.
E de repente, quando a brisa se transforma em ventania, quando a ventania logo se torna em vendaval, quando a calmaria se transmuda em todo o mal, logo as flores se vão. As flores que estavam ali...
Flores dando vida aonde a morte se espreitava em sombras. Às sombras dos minérios, dos dejetos mortais, dos metais perigosos, da química acumulada em lamaçais ferozes.
E de repente, os rejeitos rejeitando a vida. E sobre as vidas avançando sem piedade. Não adiantou correr, não adiantou fugir, não adiantou gritar, não adiantou chorar. Quanto mais se abraçava à esperança de salvação, mais os braços do lodo sufocando a existência. A existência das flores que estavam ali...
Flores da Mina Córrego do Feijão, flores de jardim e de algodão. Flores com nomes, sobrenomes, famílias, vidas. Flores nas espécies, nas feições, nos arredores de tudo.
E de repente o outono mais perverso, desumano e furioso, que pudesse existir. Não o outono da natureza, do desfolhamento de folhas e murchamento de pétalas, mas o outono da insensatez humana, da ganância, da ambição, dizimando tudo o que encontrasse pela frente. Dizimando as flores que estavam ali...
Flores do Igarapé, flores das nascentes e das corredeiras, das fontes e das junções. Flores aguadas não pela água boa, água limpa, mas do lixo, do lixo e da química putrefação.
E de repente as pessoas sendo arrastados, encobertas, sumidas, desaparecidas. De repente os gritos sufocados e as agonias pela incapacidade de salvação. De repente apenas a lama, o terrível e voraz lamaçal, encobrindo e levando tudo. Levando as flores que estavam ali...
Flores do Rio Paraopeba, flores de outras águas, flores são franciscanas, flores que um dia nasceram em jardim e que de repente se transformaram em espinhos na alma.
E de repente o bicho feito um brinquedo miúdo sendo revirado, sacudido e levado pela voracidade da lamacenta correnteza. Casas, veículos, utensílios domésticos, pequeninos animais, tudo de repente tornado em triste folha seca sendo açoitada. E na imensidão jazendo as flores que estavam ali...
Flores da Bacia do São Francisco, flores de um mundo ajardinado e que de repente se viu em escombros de guerras. As mãos implorando salvação apenas afundando na fúria sem fim.
E de repente apenas o luto e a certeza da incerteza de quantos partiram assim, na agonia, no sofrimento e na aflição. Sequer partiram, pois simplesmente afundados e levados pelos esgotos humanos da ganância e da ambição, do lucro e da insensatez. E assim morreram as flores que estavam ali...
Flores da dor, do choro, da lágrima. Flores sem vida, pois flores mortas. O que vale uma vida para uma Vale que negligenciou a vida e gestou a morte das flores que estavam ali?


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Lá no meu sertão...



Mais uma honra sertaneja e poço-redondense. Fui convidado agora para fazer parte, na condição de membro efetivo, da ACADEMIA DE LETRAS E ARTES DO BAIXO SÃO FRANCISCO, com intelectuais, escritores, artistas e personalidades de toda a região nordestina. E eu, que já sou membro efetivo da ACADEMIA DE LETRAS DE ARACAJU, sinto-me ainda mais honrado. Orgulhoso e grato!




O sonho do amor (Poesia)



O sonho do amor


O sonho da construção do amor
é como o desejo de ter casa própria

junta pedaço e mais pedaço
juntando tijolo e pouco de tudo

junta o desejo de estar junto
juntando a promessa de felicidade

e o lar construído enfim surgirá
como digna moradia no coração.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - quando Bastião me chamou para almoçar e eu fui com o maior prazer do mundo



*Rangel Alves da Costa


Eis aqui a história de quando Bastião me chamou para almoçar em sua residência e eu fui com o maior prazer do mundo. Até aí tudo bem, pois mais que normal que um amigo convide a outro para um almoço ou jantar. O que ainda não sabem é quem é Bastião. Direi. Trata-se de um pobre e humilde roceiro dos cafundós sertanejos, morador em casebre de cipó e barro, com telhado de palha e porta aberta ao tempo. Não totalmente, pois um pedaço de lona velha serve como proteção. Sua cozinha certamente não possui sortimento algum. Quando muito um tiquinho disso e daquilo. A sua pobreza é tão extrema que até dizem passar fome rotineiramente. Mas como uma pessoa assim poderia convidar um conhecido, gente da cidade e de mesa sempre posta, para almoçar em seu lar sagrado? Mas convidou, e no convite a maior satisfação do mundo. Lá cheguei muito mais interessado no proseado e nos causos antigos de sua lavra do que qualquer outra coisa. Cheguei por volta das dez da manhã e fiquei com ele proseando até que o tempo passasse. E eu já sabia o que aconteceria quando a hora do almoço chegasse. Dito e feito. Num certo horário, ele gritou pra esposa dizendo que já estava com fome e que botasse mesa pra três. Então ela apareceu com dois ovos fritos e uma cuia de farinha. Todo contente, então ele disse que gostaria muito de oferecer outra coisa, mas era somente aquilo que podia dispor. Então comi como se estivesse diante de uma mesa das mais refinadas. E depois, depois de tudo, saí lá fora um instantinho e voltei com duas bolsas cheias de alimentos. Seria desfeita demais ter feito isso antes do almoço. Mas ao entregar, logo vi os olhos do casal marejando. E eu sabia o motivo.


Escritor
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domingo, 27 de janeiro de 2019

ANOTAÇÕES SOBRE O AMANHECER DE UM POVO



*Rangel Alves da Costa


Bairro São José, cidade de Poço Redondo, Sertão Sergipano do São Francisco, amanhecer deste domingo (ou de outro dia qualquer) - Tudo parecia ainda adormecido até às cinco da manhã. Apenas aparência, vez que os pais de família sempre despertam após a madrugada desapartar da noite e os primeiros raios da aurora surgirem. Mas tudo ainda silencioso e calmo pelas ruas, esquinas, travessas, vielas, becos e descidas.
As noites velam, e principalmente escondem, realidades absurdamente desconhecidas após as portas e janelas fechadas. Enquanto lá fora os gatos passeias, os andantes noturnos buscam os seus mistérios e os sopros de vento vão levando as folhas secas, outras realidades vão sendo gestadas nos interiores residenciais, dentro de seus aposentos. Quem avista de fora, certamente está tudo bem, mas nem sempre assim. Somente após o madrugar, assim que as primeiras alvas do dia vão chamando ao despertar, é que as feridas não saradas começam a doer mais fortemente.
Os primeiros lumes do dia. Como dito, as portas ainda fechadas nada dizem dos interiores das residências. Sons vão surgindo aqui e acolá. Barulhos de portas de quintal sendo abertas, as primeiras vozes no radinho de pilha, panelas sendo arrastadas de seus armários. Somente depois é que as portas vão sendo abertas, lentamente. Olhares pelas frestas, pelas semiaberturas. Olhares que bem desejariam avistar um mundo mais esperançoso e alegre, que gostariam de encontrar motivações para encontrar caminhos de paz e realizações. Mas tudo parece nevoento aos olhares já infelizmente acostumados com os dias se iniciando em terríveis sombras.
As pessoas procuram manter-se como que se escondidas. Dificilmente mostram o corpo inteiro quando a porta se abre. Não demora muito e surgem os sons de vassouras varrendo as dependências, as calçadas e arredores. Os cachorros magros desandam a se espalhar, os gatos fogem em correria, as galinhas cacarejam famintas. Também. Mas haverá galinhas nos quintais? Não. Galinha é fortuna demais para ciscar por ali. Um menino chora, a mãe pede calma. Está com fome, certamente. Ou despertando com alguma enfermidade, também não muito difícil de acontecer.
A maioria da comunidade já despertou para o dia. O relógio já marca por volta das seis. As vozes se acentuam e os sons também. Pessoas arrastam cadeiras pelas calçadas, esteiras empoeiradas são batidas no meio da rua, um leiteiro aparece implorando por freguesia, meninos passam com gaiolas de passarinhos, cumprimentos de bom dia pelas esquinas e mais adiante. Amigas se juntam nas calçadas de vassoura à mão, outras fazem dos portais das janelas o início de um estudo profundo sobre o bem e o mal. Não há sino tocando. Somente aos domingos, dia da missa, os sinos dobram chamando à fé. Todas as orações do mundo já foram rezadas. E ao final os mesmos pedidos: forças para o enfrentamento da vida.
Contudo, em localidades mais distanciadas do bairro, principalmente nos limites dos descampados que se alongam em direção aos matos, a maioria das portas continua fechada. Sim, ouvem-se sons, barulhos, mas com as portas continuando fechadas. Infelizmente, há que se dizer que nem sempre há o prazer de abrir janelas e portas e deixar a manhã entrar trazendo esperança e alegria. Na maioria das situações, é a preocupação e o sofrimento que despertam juntos com aqueles moradores, aquelas famílias, principalmente naqueles que precisam oferecer algum alimento aos filhos.
Que bom que em toda cozinha houvesse panela esperando alimento para ser preparado. Que bom se toda mesa pudesse receber o cuscuz, o café, o leite, os ovos mexidos, a tripa de porco, um mingau, um naco de carne. Mas nem sempre assim acontece. Ou melhor, dificilmente acontece. Daí que a partir das seis, nas vagas das sete em diante, os sons se acentuam, porém sons chorosos, aflitivos, angustiantes. Portas e janelas fechadas e crianças chorando lá dentro. Portas e janelas fechadas e pais chorando por dentro. E o pior: um estado calamitoso que pode ir até a hora do almoço e da janta.
O sol já se levantou e agora se abre por todo o bairro. Algumas crianças brincam pelas ruas, correm descalças, fantasiam felicidades. Outras permanecem desanimadas até para as maravilhosas traquinagens da idade. E o tempo vai passando e passando. Retornar mais tarde aos mesmos locais é ainda encontrar a maioria daquelas janelas e portas fechadas. E lá dentro o quadro dantesco e estarrecedor da pobreza. Infelizmente, a pobreza ainda é alarmante perante algumas famílias daquela comunidade e de outras que avançam dentro e pelos arredores de Poço Redondo. Contudo – e infelizmente -, uma situação que apenas exemplifica uma realidade ainda existente por todos os rincões nordestinos e brasileiros.
No radinho uma música jovem, animada. Algum sorriso, alguma palavra boa. Mas onde estará a beleza da felicidade? Onde estará a felicidade desse povo que está bem ali e que é nosso irmão?


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Lá no meu sertão...


Memorial Alcino Alves Costa, Poço Redondo/SE



Do beijo (Poesia)



Do beijo


Tão jovem
e tão desejoso
de um beijo

pensei que era
goiabada com queijo
um fogaréu de desejo

nada do que pensei
quando beijei
logo voei

e ao descer
entorpecido de amor
enamorei.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - visitando Frei Enoque



*Rangel Alves da Costa


Ontem, sábado, eu estava em Poço Redondo, no sertão sergipano, meu berço de nascimento, e fui fazer uma visitinha a Frei Enoque, ex-pároco do município, ex-prefeito, e agora, já na altura da idade e do cansaço do tempo, apenas um celebrante ocasional de missas pelos sertões. Durante a visita, olhando sorridente em minha direção, com voz terna e serena, disse Frei Enoque: “Uma cabeça pensante e outra que deixou de pensar!”. Ah, Frei, quem dera, quem dera o tino e a sabedoria que ainda repousam sobre ti. Quem dera a voz que do alto desce e se transforma em alento e fé. Quem dera jamais deixar de avistar o cume deste Sagrado Monte que nos chega ecoando as bem-aventuranças da vida e do mundo. Quem dera esse Salmo que leva no olhar e esse Evangelho que ainda queima e arde, abrasa e afogueia corações e mentes. E faz o teu nome ser essa chama ainda tão viva em Poço Redondo e pelos sertões!



Escritor
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sábado, 26 de janeiro de 2019

O RIO QUE AINDA CORRE ALI



*Rangel Alves da Costa


O Rio São Francisco, de história distante e ai da de beleza constante, é o principal rio que passa em minha aldeia sertaneja. Da cidade de Poço Redondo até seus beirais, apenas 14 km. O quase nada pelo que pode ser encontrado.
Não é mais o Velho Chico de antigamente, um rio grande, largo, caudaloso, piscoso, cheia de vida e de belezas. Emagreceu, perdeu parte de suas águas, e somente quando as hidrelétricas liberam água é que passa a ganhar outros sopros de vida.
Como dito, já não oferece como antigamente, pois as águas magras, a falta de peixes e as carências de seu povo, provocam um sentimento de verdadeira aflição. Basta olhar para as calçadas altas agora distantes cerca de quinhentos metros para as águas, para sentir quanto definhamento ocorreu.
Mas nem tudo perdido. O rio ainda corre belo e ainda escorre toda uma vida no seu percurso. Um rio de passado fabuloso, de tantas histórias, de embarcações grandiosas, de lugares progressistas às suas margens, de caminhos grandes entre as águas. Agora quase apenas o rio ou o que ainda lhe resta.
O que ainda lhe resta é grandiosamente suficiente para deleitar olhares, corações e mentes. O espelho d’água manso, a correnteza sem pressa, o remanso leve, um leito que descortina na curva do rio e vai seguindo em frente com seu destino de vida.
Mesmo poucas, as águas alargam-se como que em imensidão. Suas margens molhadas, cúmplices daquele destino, bebem de sua vida e verdejam mesmo em meio à sequidão sertaneja.
As canoas e outras pequenas embarcações ora são avistadas miudinhas em meio ao rio, ora adormecem silenciosas nas suas beiradas. A rede de pescar é levada apenas pelo costume. A tarrafa é lançada apenas pelo desejo de arriscar. Nunca aparece além de uma piaba ou outro peixe pequeno.
Estar às suas margens é ter diante do olhar um livro aberto. Assim por que aquele rio não é apenas aquele rio. Aquele rio leva em cada água nova o que as águas passadas já levaram, apenas com outra feição. Daí ser possível avistar quase todas as vidas do Velho Chico.
Eu por ali, caminhando devagar ou mesmo adentrando seu leito, de repente me via olhando para trás em direção às calçadas altas. E tão altas assim para que as grandes cheias não permitissem que as residências ribeirinhas ficassem tomadas de águas.
Neste confronto entre as águas de agora e a existência ainda de tais calçadas altas, logo me via imaginando como seria aquela imensidão de águas correndo entre beirais altos, serras e calçadas. Água muita e por todo lugar. E no se u leito, as antigas embarcações passando, chegando, partindo.
Em situação assim, de indescritível pujança, é possível ainda avistar aquelas senhoras arrumadas, bem penteadas e perfumadas, sentadas em suas cadeiras de balanço e de olhos fixos na vida e no percurso do rio. Miravam a curva do rio como se sempre desejosas de que as carrancas despontassem, os apitos ecoassem, as lanchas e os vapores desfraldassem suas bandeiras de chegada.
Quanta saudade eu então senti daquelas mulheres e seus olhares, e suas calçadas, e suas cadeiras de balanço, e seus maravilhamentos com os vultos despontando ao longe, na curva do rio, e logo se transforma em forma viva de adoração. Cada passagem era uma festa.
A curva do rio ainda está lá. O rio ainda desponta de lá. Mas de lá pouco aparece que possa encantar além do próprio rio. As grandes carrancas já não despontam, os apitos das grandes embarcações também não. Mas é o mesmo rio.
E no rio que resta, a grandeza de sua presença. Um Velho Chico eterno, na presença e na saudade.


Escritor
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Lá no meu sertão...


                Na manhã deste sábado, fazendo o que mais gosto. Aqui à janela de Dona Maria, na altura de seus oitenta e tantos, proseando passado e presente.



Eu só sei amar (Poesia)



Eu só sei amar


Eu não sei amar
como os outros amam
que é como desamar
e sequer apaixonam

eu só beijei
só sei abraçar
eu sei só ouvir
eu só sei falar
só sei acarinhar
eu só amar

não quero amar
como os outros amam
no apenas ficar
e depois reclamam

eu só sei sentir
só sei partilhar
eu só sei cuidar
eu só sei afagar
eu só sei me doar
por que só sei amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – a noite do jovem



*Rangel Alves da Costa


Não faz muito tempo que saí um instantinho na rua e num trecho adiante avistei  a festança. Som alto, bebidas, danças, requebros, conversas ao pé do ouvido, atrações e descontrações. Muitos reclamam, falam mal, dizem que não passam de um bando de desocupados. Mas creio não ser assim. Sou daqueles que compreendem que a juventude tem todo direito de brincar, de se divertir, de encontrar instantes onde extravasem um pouco suas tensões. São realmente jovens, gostam de brincar, gostam de curtir, de ouvir som alto, de paquerar e flertar. O que há demais nisso. Nada. Absolutamente nada. O dia a dia já é difícil demais. Nos sertões, as durezas estão em cada passo. A luta pela sobrevivência já exige um sacrifício além da conta, e não seria de se esperar que os jovens se recolhessem aos finais de semana para meditar sobre suas aflições rotineiras. Então que brinquem. A noite é de vocês.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

O SERTANEJO E SUA VERDADE



*Rangel Alves da Costa


Eis que ouço e me contento demais. E aplaudo. E choro. E sorrio por dentro. E como eu queria ouvir mais e mais verdades assim:
“Sim, sinhô. Pru mode dizê tem de tudo. Arrebenta e esquarteja pru dento, mai num se deve negá não. Pru que negá se tudo num dexa mentí? Sim, seu moço, a gente vive num mundo de seca triste sem fim. Num há um só dia no sertão adonde a seca triste num caia pru riba de nóis. A seca triste tomem no tanque cheio, na boneca de mio. Um mundo nublado demai merma sem nuve lá em riba. Oiá da maiada e só avistá desalento. Um bicho berra, uma galinha cisca. Quano morre um entonce a gente chora a vida intera. Tudo aqui é como um luto sem fim. O sertanejo inté parece feito com lágrima nos óio e maresia de suó. A gente tem alegria sim, munto contentamento tomem. Mai o carcará e o arubu só farta querê pinicá o tiquinho de contentamento de nóis. Entonce, pru mode dizê, num é só a seca da farta de chuva que é triste não. Há uma seca que nunca acaba. Oi, seu moço, pa mode falá em seca num é só fala em farta de parma, em pasto derreteno no fogo, em tanque no barro duro, em bicho no couro e osso ou já caído pros carnicento. Não. É munto mais. Aquerdite, seu moço, que num há seca mai triste que a seca da desvalia, da percisão, da necessidade. Munta gente pensa que seca é só farta de chuvarada, de comida pro bicho e gente e a secura do tanque. Oiano direito, há seca maió que o esquecimento, que o fazê de conta que a seuventia do povo é só na hora de votá? Há seca mai danada que fazê de conta que nem ixiste o povo pobe que vive no mato? É a seca do abondono, sim sinhô. Tem uma seca chamada umiação que é a que mai dói. Num se devia umiá ninguém não, poi todo mundo fio de Deus. Mai o que mai tem é umiação. O povo da cidade oia pa gente cuma se fosse do outo mundo. Uma mão num é istendida e nem um bom dia é dado. Tudo isso é umiação. Pur isso que mermo na chuva grande a seca continua. Pur isso que mermo cum a pranta nasceno e munta água no barrero, num deixa de ter seca não. A seca é essa merma que eu dixe. É a seca de um sertão pareceno de porta fechada pros da cidade. Ninguém vive nossa vida pa sabê cuma ié. Só a gente sabe o que passa e o que sente. Mai todo mundo iguar a todo mundo. Omeno ansim devia de ser, num é? Entonce a seca maió é essa, a seca do fazê de conta que a gente num ixiste. Mai num há vida mió do que essa não, seu moço. Da porta da frente adento tudo que a gente percisa. Tem candiero, tem pote e muringa, tem fogo de lenha, tem panela de barro e arupemba. E tem munto mai. A gente tem a filicidade e o gostá de vivê desse jeito. A gente sofre com a seca da farta de chuva, mai sofre munto mais cum os outo tipo de seca. Mai que ansim seja. Na grandeza de Deus, do meu Padim Pade Ciço e Frei Damião, a gente vai levano a vida. Tudo cuma rosaro de fé, pelas mão de Nosso Sinhô!”.
“Pensô no meu cansaço, mai num me canso não sinhô. Merma que doa tudo pru dento, tem coisa que a gente num pode esquecê não. De vei em quano dá mermo vontade de ter nascido num mundo que ninguém visse como sertão. Se me preguntá pruquê logo digo, meu sinhô. Se digo se sou do sertão, entonce os dotô logo me óia atravessado, os de gravata só farta sorrir e mangá da gente. Arguém pode negá, mai a pura verdade. Inté penso que acha que e gente é sujo, doente, coisa parecida. Logo se avista, só farta corrê. É cuma se dizesse que ali tá um bicho ou argo nojento e perigoso. Mai num é assim não. Probeza nunca foi feiura a ninguém. Humirdade nunca feiz feio a ninguém. Roló no pé e pano remendado nunca feiz feiura a ninguém. A gente é pobe mermo, num tem roupa bonita, carça cara nem camisa enfeitada. A gente num tempo essa comida de nome feio que eles tem. A gente num tem o carro bonito que eles tem. A gente num tem nada disso. Mai tomem ele num tem o que a gente tem. Isso eu agaranto. Agaranto que eles num tem a merma dignidade que o sertanejo. Agaranto que ele num tem a merma corage e a merma valentia que nóis. Enxada num é bicho não. Enxadeco num arranca pedaço de ninguém não. Foice num desfaiz ninguém não. Machado e forquia num desonra ninguém não. O que desonra é a marvadeza, é a peuvesidade, é a roubaiera, é ruindade no coração. Mai duvido que o sertanejo seja desse jeito. Mai sei munto bem quem é. Tudo isso causa um desgosto danado. Quano digo que queria ter nascido nouto mundo, é pruquê deve ter um mundo onde nenhum forastero chegue pa se desfazê da pessoa. Bastava uma cancela e pronto. Eles pa lá e nóis pa cá. Eles no mundo deles e nóis no mundo de nóis. E o mundo de nóis nem percisava ser chamado de sertão. Bastava ser desconhecido a quem num presta. Eles lá e nóis cá. Eles no mardito mundo e nóis no vivença do que Deus pranta no coração. Só isso, seu moço. Só isso!”.


Escritor
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Lá no meu sertão...




Fúria e paz (Poesia)



Fúria e paz


Depois de amar
e do amor perder
de sorrir e de sofrer

não sei se choro
ou se sou um mar
furioso a desaguar

ou se acalmo
e medito então
amando a solidão.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – o pilão e a mão do pilão



*Rangel Alves da Costa


O pilão e a mão do pilão. Um tronco fincado ao chão, uma boca aberta em comoção, por tanta luta desde a escravidão. Assim o pilão, assim sua mão. Bate o milho, bate o feijão, bate o arroz, torna tudo em grão, esmigalha e esfarela, faz tremer o chão. Nas distâncias longe, no mundo-sertão, na senzala negra e no casarão, por todo lugar o batido da mão, da mão do pilão. A mão calejada tem sossego não, quanto bate mais bate, mais pede o pilão, pede mais força, mais determinação, para tornar em pó, para tornar em grão, para fazer o farelo da alimentação. A poeira levanta, assoma do chão, vai subindo aos ares, vai espalhando aflição, geme a dor da dor, geme a dor da mão, geme o braço ao peso da mão do pilão. A vida é dura, é de sofreguidão, mas não há saída no mundo sem perdão, ou bate o pilão ou fome desperta e faz cair ao chão. Por isso bate a mão, a mão do pilão. Deixo o grão voar, deixe a poeira ao clarão, pois nada vida e dor que bater o pilão. Então bate, então levante a mão, e desça com força na boca do pilão.


Escritor
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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

PRECISANDO REENCONTRAR AS COISAS BOAS DA VIDA



*Rangel Alves da Costa


De repente me vejo solto e acorrentado. Livre, porém aprisionado por não fazer o que tanto gosto e preciso. Para que depois eu não me arrependa do tempo perdido, urge abrir a porta ou saltar a janela e partir por aí.
Estou desconhecendo a mim mesmo. Nunca mais caminhei pelas estradas e ruas, de pés descalços, pelo prazer de pisar na terra, sentir o calor do chão e estar mais aproximado do mais puro ventre.
Estou entristecido comigo mesmo. Nunca mais abri a janela para esperar borboletas, para a chegada de colibris nem pássaros do amanhecer. E sei que agora me falta aquele sorriso da flor e o beijo da brisa do amanhecer.
Estou me sentindo desumanizado demais. Chego a me perguntar se não perdi a sensibilidade, se não desacalantei o amor pelas coisas simples, se não reneguei o prazer pela jabuticaba e a sapoti de quintal.  E tão doce era beijar a boca do araçá.
Estou me distanciando de mim mesmo. Temo ter deixado ir embora a criança que sempre esteve em mim, o menino traquina que sempre gostou de brincar e de sorrir. Temo que até a memória e as doces lembranças e nostalgias tenham se distanciado de mim.
Estou me tornando cada vez mais insensível, e eis o medo maior que dá. Não desejo a lágrima petrificada nem o soluço preso, não quero olhos sem brilho nem coração que não pulse mais perante as situações de vida. E tudo parece simplesmente acontecer.
Estou sem tempo para as coisas boas da vida, estou sem encorajamento para reencontrar as coisas boas da vida. Nunca mais sentei na pedra, nunca mais conversei com a pedra, nunca mais deitei no colo da pedra e sonhei com um jardim florido e perfumado.
Estou envelhecendo demais sem ainda ter alcançado os portais da velhice. Imagino que os espelhos vão me negar o sorriso, penso que os espelhos vão acrescentar minhas rugas, imagino que de repente já serei outro, triste e alquebrado, num corpo apenas cansado.
Estou sem tempo de fazer o que sempre fiz mesmo sem ter tempo. Sempre encontrei um instante para subir à montanha, para sentar à beira das águas, para me aquecer com as brasas do pôr do sol. E sequer tenho tido tempo de olhar o horizonte e imaginar o que está além e mais além.
Estou sem tempo de pensar nas coisas boas da vida, de trazer ao pensamento o que sempre me confortou, ainda que com saudades. É como se o sabor do café torrado já não mais esteja na minha boca, é como se o perfume do café na chaleira já não estivesse ao meu alcance.
Estou sem auroras e entardeceres que realmente sejam auroras e entardeceres. Não adianta apenas acordar, levantar e caminhar pelo quarto, sem que pule a janela e vá logo beijar a primeira luz e o primeiro sol. Não adianta chegar ao fim da tarde e perante o pôr do sol apenas fingir que o avista.
Estou sem tempo para mim, sem tempo para ser eu mesmo, sem tempo para fazer o que gosto e o que me faz bem. Preciso conversar com o vizinho, falar com as pessoas que passem adiante, sentar na calçada e conversar sozinho. Preciso jogar pedrinhas no meio do nada e riscar o chão com uma varinha qualquer.
Preciso chupar picolé de graviola, de coco e mangaba. Preciso pedir um algodão doce e uma maçã do amor. Preciso de pipoca colorida e de cocada de rua. Preciso piscar o olho pra menina bonita que passa de flor vermelha no cabelo. Preciso beijar a palma da mão e depois lançar o beijar em qualquer direção.
Preciso riscar o tronco da madeira e nele desenhar coração. Preciso escrever versos rimando amor e bilhetinhos com letras miúdas e implorando ao menos um olhar. Preciso ler um livro do começo ao fim e depois reescrever o mesmo livro do fim ao começo. Preciso abrir a janela. Preciso abrir a porta.
Preciso também de um sorriso e de um espelho que não negue as verdades, mas que não doa tanto nas suas verdades. Ora, por que negar o tempo, a idade, o calendário? São fiéis amigos e provas de um percurso na existência.
Preciso viver mais e reencontrar muito mais o que sempre me encantou, mas que o tempo foi afastando de mim. Como uma roupa velha que implora para ser usada, e sempre cai confortavelmente sobre o corpo, eu preciso me amoldar mais ao que tanto me causa prazer.


Escritor
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Lá no meu sertão...


Templos católicos em Poço Redondo, sertão sergipano



Na calçada de minha avó (Poesia)



Na calçada de minha avó


Ainda vejo em meu olhar
e me entorpeço de saudades
as formas e as cores alaranjadas
as janelas grandes e os batentes
da casa bonita de meus avôs
meu avô China na vendinha
e minha avô Marieta na calçada
ou saindo apressada para a missa

tropeiros e viajantes na entrada
o padre e os cangaceiros por ali
uma mesa farta cheirando a sertão
uma imponência na humildade
como nas ruas de casas toscas
e nos beirais das calçadas simples
feição de um Poço Redondo antigo

meu avô partiu ainda cedo demais
minha avô ficou abençoando a vida
a vida de quem lhe pedisse a benção
e na sua calçada sentasse ao entardecer
para avistar aquele sertão caminhante
no seu passo de alpercata e roló
e eu ainda menino traquina demais
nem imaginava quanto ia doer a saudade.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - a religiosidade em Poço Redondo, sertão sergipano



*Rangel Alves da Costa


O amigo Silvestre recolheu das velharias da Igreja Matriz de Poço Redondo relíquias que já estavam destinadas ao lixo, pois já largadas ao deus dará, sendo consumidas pelas traças e já cheias de mofo e realmente prontas para serem lançadas fora, e, após uma cuidadosa limpeza, as fez chegar ao Memorial Alcino Alves Costa. Por isso mesmo que agora estou com mais de 2000 slides (que em grande parte serão transformados em fotografias) sobre a religiosidade em Poço Redondo, no sertão sergipano. Registros sobre Santas Missões, A Presença de Frei Damião, Dom José Brandão de Castro, a Participação da Igreja na Luta pela Terra, Barra da Onça, Acampamentos e Assentamentos, Frei Enoque e demais religiosos, Antigas Procissões, a Religiosidade Ribeirinha, Missas, Novenários, Beatos e Beatas, Comunidades e suas Igrejas. E muito mais. Tenho muitos planos com todo esse material, principalmente um livro sobre a religiosidade em Poço Redondo a partir de tais registros. Mas a partir da próxima sexta-feira, a partir das 19:00h., defronte ao Memorial, já daremos início à exibição destes slides, com comentários e a participação de todos os interessados. Todos convidados para o maravilhamento perante tais relíquias, ou o comovente retrato da religiosidade sertaneja.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com