SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 31 de dezembro de 2019

PRESTANDO CONTAS



*Rangel Alves da Costa


Nada fácil prestar contas de 2019. Uma tarefa cujo troco sai mais amargo do que o imaginado. Entre perdas e ganhos, como se muito de mim tivesse chegado à beira da falência.
Mas tudo bem. A gente nem sempre ganha. Ademais, as realidades da vida são de um comércio tão injusto que a gente perde achando que está lucrando.
Nem tudo perdido, porém. E ainda bem. A vida, o ato de continuar vivendo, sempre será o lucro maior que se tem. E quando o viver está acompanhado de saúde, então não há que se reclamar.
Nenhuma novidade de monta. Nem subi ao alto da escada nem permaneci no reles do chão. Olhei muito para o alto, e sempre como se quisesse alcançar além. As dificuldades nos degraus, contudo, impediram tal escalada.
Amei e desamei. Fui apaixonado e desapaixonado. Muito beijei e também ressequei o lábio. Tive prazer e tive dor. Na junção dos sorrisos com as tristezas, sempre a mistura de tudo em qualquer instante.
Nada havia me prometido que não consegui realizar. Não me prometo nada. Vou apenas vivendo, fazendo, tentando construir castelos. Alguns se mostram de areia, outros permanecem como espelho da luta.
Não comprei carro nem fiz nenhuma viagem dos sonhos. Também eu não havia me prometido nada disso. Não enchi os meus dedos de anéis nem perdi a conta de cifras em contas bancárias. O mesmo que eu tinha na entrada do ano é o mesmo que continuo tendo.
Não sou de mágoas, de ódios nem de rancores. Não juntei nada disso e agora não guardo nada que me permita revanches. Sou de paz e de concórdia, talvez suportando mais do que deveria. Mas assim mesmo.
Como diz a canção e o poema, a verdade é que eu deveria ter vivido mais, namorado mais, brincado mais, ter sido mais menino do que sempre fui. Eu deveria ter olhos de mais poesia, ter braços mais abertos para os abraços, ter palavras mais amigas e mais ecoadas. Eu deveria ter feito muito mais.
Contudo, comigo levo – e sempre aberto – o Livro do Eclesiastes. Sei que depois da alegria vem a tristeza, depois da seca vem a chuva, depois do amor vem a solidão, depois da palavra vem o silêncio. De nada disso eu jamais pude fugir.
E assim o ano passou. 2019 acabou e agora a janela já se abre para 2020. Esperar o melhor, sim. Desejar o melhor, sim. E fazer o melhor também. É preciso construir, edificar sempre. Fazer e viver!


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Lá no meu sertão...


Nas águas do Velho Chico



O amor é flor (Poesia)



O amor é flor


O amor
é flor

a beleza
o perfume

na flor
do amor

o outono
a sequidão

no amor
que era flor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – ilusões fingidas



*Rangel Alves da Costa


A ferrugem enferruja o ferro. Verdade visível, absoluta. A pedra dura, inflexível e impenetrável, vai se tomando de musgos, vai sendo açoitada pelo tempo, vai, imperceptivelmente, sendo carcomida. O diamante, com sua solidez petrificada, ainda assim vai sendo alquebrado pela ação humana. E o que dizer do ferro, o tão conhecido metal que sempre aparenta força, durabilidade e resistência? O ferro e o ser humano vivem de aparências. Este, o ser humano, sempre querendo se mostrar inflexível e inatacável, não suporta sequer o sopro do vento. A dureza humana é desfeita com simples ações. Quando sua máscara cai, tudo desmorona. Quando seu segredo é revelado, então todo o seu interior pode ser avistado. Quando desce do pedestal, então sente que tem de suportar os espinhos. Ainda assim muito ser humano se mostra com inexistente altivez. Quanta ilusão em fingidas fortalezas que não suportam sequer um sopro de verdade. Os cemitérios, as sepulturas e as covas rasas, estão cheios de pedreiras humanas em pó transformadas. Fantasmas vagueiam achando que levam escudo e coroa. Apenas um nada sob a forma humana. Triste ouvir “Eu sou!”. És o que? Nada mais que uma ilusão. Bem assim aconteceu com o ferro. Imponente, inatacável, indestrutível, mas baixou a cabeça quando a maresia soprou. Começou a sentir nas entranhas a fragilidade. Ainda assim se mostrou mais inflexível e mais arrogante. Então a ferrugem acariciou sua pele, dizendo: “Mostrarei o que és!”. E hoje do ferro nada mais resta. A ferrugem do tempo destruiu o ferro da vida.


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segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

A BORBOLETA



*Rangel Alves da Costa


Borboletas, borboletas, borboletas. Suas presenças parecem tornar a vida mais alegre, mais ajardinada, mais primaveril. Mas suas presenças também inquietantes sinais, misteriosos, indagadores. Leves, belas, coloridas, mas também provocando muitas e múltiplas indagações. Estar na presença de uma borboleta não é apenas estar na presença de uma borboleta. Nunca.
Acordo e logo corro para abrir a janela. Sei que ela vem. E ela chega. Todos os dias faz assim, cumprindo um mesmo ritual de magia e de cor. Não sei o que pretende fazendo assim, pois no meu quarto não há nenhuma flor, nenhuma planta, nenhuma fonte de água, nenhuma compota de doces. Mas ela chega todas as manhãs, parecendo mesmo que dorme ao umbral da janela esperando somente que eu a abra.
Um mistério que me comove e encanta. Não há qualquer explicação para que uma borboleta, e sempre a mesma borboleta, entre pela janela do meu quarto ao alvorecer. Vem, pousa no umbral, em seguida levanta voo e começa a planar por cima da cama, pelas paredes, pelos cantos, por cima da escrivaninha. Já pensei em espantá-la, em colocar tela protetora na janela, mas depois fui aceitando alegremente aquela inesperada visita.
Levanto a mão, passe rente, mas sempre prefere um pouso ligeiro no meu ombro. Talvez não encontre no meu corpo nenhum perfume que lhe agrade. Nunca fica em mim mais que poucos segundos, pois sempre levanta voo em outras direções. Quanto mais a manhã é ensolarada mais ela parece mais bela e fascinante em seus tons amarelados, de um dourado parecendo pintado à mão.
O fato mais estranho, contudo, é que ela sempre prefere ficar em cima do meu livro de cabeceira: Cem Anos de Solidão. E ali como quisesse folhear o livro, entrar no livro, viver o livro. Certamente não sabe, contudo, que ali está Macondo e seu mundo mágico, fantástico, povoado dos Buendía, de espantos e estranhezas. Gerações e mais gerações de personagens que nos ensinam que o incompreendido é a realidade maior e mais convincente.
E um fato surpreendente depois revelado nas minhas indagações. Dentro daquelas páginas existem borboletas e mais borboletas, muitas borboletas, entrando no quarto de Meme, a Renata Remedios do livro, enquanto o cigano Maurício Babilonia está ao seu redor em amoroso cortejamento. Aliás, borboletas amarelas que sempre acompanham o rapaz e que parecem estar por todos os lugares de Macondo, pois ler o livro de Garcia Márquez é como ouvir o ruflar de asas de borboleta a todo instante.
 Cem Anos de Solidão é um mundo povoado de borboletas amarelas. Garcia Márquez colocou um jardim entre loucos, insanos e sonhadores, e ao invés de flores povoou de borboletas amarelas. Então, será que aquela borboleta não seria uma das tantas existentes em Macondo e querendo às páginas de Garcia Márquez retornar? Mas não a aprisionarei dentro daquelas páginas. Apenas deixo o livro aberto, esvoaçando ao vento, para que a borboleta voeje ao redor do seu mundo.
Em Cem Anos de Solidão, dezenas, centenas, milhares de borboletas amarelas, povoam o quarto de Renata Remedios quando Maurício Babilonia chega para visitá-la. As borboletas sempre acompanham Babilonia a cada passo que dá, sendo todas amarelas, leves, suaves, como surgidas de encantamento, ou mesmo como que afloradas das raízes ciganas do rapaz. Mas também borboletas que povoam os sonhos da bel Remedios e sobre o seu corpo em virgem flor passeiam apaixonadas.
"As borboletas amarelas invadiam a casa desde o entardecer. Todas as noites ao sair do banheiro, Meme encontrava Fernanda desesperada, matando borboletas com a bomba de inseticida. "Isto é uma desgraça", dizia. "Toda a vida me disseram que as borboletas noturnas chamam o azar." Certa noite quando Meme estava no banheiro, Fernando estrou no seu quarto por acaso e havia tantas borboletas que mal podia respirar. Apanhou um pano qualquer para espantá-las." Diz uma passagem do romance.
Eu não tenho nada a ver com Maurício Babilonia nem com Meme, com a bela Remedios ou qualquer dos Buendía, em quaisquer de suas gerações, mas uma coisa tenho certeza que me aproxima daquela história de solidão e borboletas: minha solidão de janela aberta e minha estranha visitante de todo dia. A borboleta povoando meus cem anos de solidão.


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Lá no meu sertão...


Nos sertões de Poço Redondo




Após o sonho (Poesia)



Após o sonho


Entrego meus beijos
aos sonhos
entrego meus abraços
aos devaneios
entrego meus desejos
às fantasias
entrego meus amores
às ilusões
e o que me vem
chega em pesadelos

adormeço para sonhar
com amor e com amar
e na mente me entrego
ao que imagino ser meu
para que o pesadelo
diga que tudo se perdeu.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – ano após ano



*Rangel Alves da Costa


E o ano já passou. E lá se foram os sonhos, os planos, as promessas, as expectativas. E o ano já se vai em curva sem olhar pra trás. Os amores amados ainda continuam, os amores desamados foram estendidos em varal, as promessas de amor ficaram pra depois, o que foi prometido nem foi cumprido. E o ano já se vai como açoite de vento, como vendaval. Adeuses e saudades, alegrias e tristezas, sorrisos e lágrimas, um buquê de flores e espinhos. E para tudo ser jogado fora. Sim, jogado fora, pois quando um ano novo se anuncia é como se o passado não existisse mais, como se nada tivesse valido a pena, eis que se planeja como se a vida fosse nascer do nada, do zero. E assim ano após ano. O ano vem, o ano vai, as folhas murcham e caem.


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domingo, 29 de dezembro de 2019

MARIAZINHA



*Rangel Alves da Costa


No mundo masculinizado pelas convenções sociais, ou perante o meio onde o feminino continua sendo o lado oculto do lar e da existência, o fazer mulher se contrapõe a todo preconceito e discriminação, ao injusto desconhecimento da luta e à negação de sua força, para se reafirmar como o fermento sem o qual nada vinga e nada cresce. O homem deveria saber disso: na mulher a sua própria raiz, na companheira o seu próprio passo.
Mas nem sempre a luta feminina é reconhecida. Até mesmo perante os seus, quanto mais esforço e sacrifício mais a simplista noção de ser assim mesmo. E não é não. Do barro feminino que foi feita humanidade, certamente que o visgo continua sendo a tessitura de toda caminhada da vida. Dizer que o macho faz o trabalho pesado para sustentar o seu lar, é não reconhecer o peso de cada dia que é suportado pela mulher para cuidar desde o quintal à porta da rua e mais adiante. Tudo feito de maneira incansável.
É, pois, num mundo assim que ecoa a Canção de Mariazinha. Um canto mulher, uma canção feminino, uma melodia senhora, esposa e filha. Ou mesmo uma poesia torta, rasgada, lanhada de tempo e de sol. Talvez um verso descalço e de mãos espinhentas, calejado de luta e respingando suor. Quem ouvir tal canção ou lançar o olhar sobre os seus versos, certamente estará perante a mulher em toda sua inteireza, sertaneja ou não, mas sempre se afeiçoando àquela mulher bíblica vestida de sol.
Mariazinha parece com Maria, que parece com Joana, que se afeiçoa a Bastiana. Ou a Marta, a Clemência, a Lurdes, a Paula, a Sônia, a Gorete. Não precisa um nome específico, pois todas Mariazinhas no seu dia a dia e no seu percurso de vida. Tantos caminhos desiguais, tantas alegrias e dores diferentes, mas no mesmo compasso da existência. Uma mulher, mulheres, de raças e feições diferentes, de pele tingida de cores diferentes, de vivências e sobrevivências em meios diferentes. Um só nome em todas: mulher.
No barraco ela está, mas também no casarão. Vestido de chita ela está, mas também pode usar roupa de grife. Chinelo aos pedaços, pés descalços, ou nas alturas do salto alto. São todas mulheres. Contudo, há uma feição mais pujante e mais autêntica numa Mariazinha que vive num mundo bem além do urbano capitalizado, que se faz presente num meio onde ainda é possível sentir o aguerrimento labutador feminino. Nas entranhas de um mundo distante e empobrecido, no contexto de um mundo esquecido e solitário, eis que ela grita seu nome desde, ou mesmo antes, do primeiro cantar do galo.
Antes de deitar para descansar, muito já fez durante cada instante do dia. Não é tarefa fácil reinventar a vida quando a própria vida se vê ausente de muito daquilo que sem ele se faz até impossível viver. Mas faz, cria, reinventa. Onde há panela vazia há o esforço maior para juntar um tiquinho de qualquer coisa. Onde há falta de remédio há a catação no quintal para fazer o chá, a infusão, a mistura milagrosa. Onde a esperança já perece desesperançada, eis que as mãos se juntam em oração, os lábios trêmulos conversam com anjos e santos, a fé incontida chama a providência sagrada.
O pote, o balde ou a lata na cabeça, no caminho de todo dia até uma fonte qualquer, nunca foi troféu de submissão. Igualmente o trabalho pesado da lenha, do catar graveto, do juntar feixe seco para alimentar o fogão de caixão. Muito menos a lavagem de roupa, o esfregar, o bater, o estender em varal. Apenas ofícios de luta na divisão dos afazeres da sobrevivência. Não tem vergonha de ir para o mato levando enxada, enxadeco, foice, facão. Revira e remove a terra, cava, semeia, cuida e sempre cuida. Colhe e debulha o feijão de corda, divide a melancia com a família, coloca à mesa a abóbora com leite.
Nunca foi feio lutar, trabalhar, desde dentro de casa à estrada adiante. Há sempre um compromisso com a existência que permite a abnegação até mesmo com as durezas da vida. A partir do instante em que os joelhos, após o primeiro ofício de fé aos pés do velho oratório num canto de sala, levantam-se para os demais afazeres, é como não desejasse se dobrar mais a nada, numa luta incansável e num passo que sempre segue adiante. Tanto faz se na cozinha, se no roçado, se no caminho da feira ou em qualquer outra situação do dia a dia.
Assim a Mariazinha, assim tantas Mariazinhas. Tão alegre e tão triste. Gosta de ouvir o sino da igrejinha tocar e recordar os seus. Mãe e mulher, filha e senhora do mundo, nunca desaparta dos seus. Seus filhos são como crianças para toda vida. Mesmo adultos ou já envelhecidos, todos continuam sendo aquelas crias de berço e de peito. Por isso sofre tanto, por isso chora tanto. Mas também não há quem seja mais feliz com os bons frutos que vão vingando de seu eterno berço. Que sorria sempre Mariazinha. As durezas da vida precisam de seu sorriso.


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Lá no meu sertão...


Nas entranhas dos sertões de Poço Redondo



Voz do vento (Poesia)



Voz do vento


Minha palavra silenciou
para ouvir a canção do vento
e assim em mim ecoou
sua voz no meu pensamento

eu que tanto te amei
e pra você teci palavras e poesia
para o adeus ainda não acordei
deixar de ter o que tanto eu queria

agora no silêncio da voz
e somente o vento a falar por mim
o açoite rompendo o que havia em nós
no ser que ama é o mais triste fim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – o vermelho e o negro



*Rangel Alves da Costa


Silencio de coração partido. A vontade é de gritar, mas silencio de coração partido. Tenho que fingir uma felicidade que não existe em mim. Sorrio chorando por dentro. Mostro alegria e contentamento quando sei que nada merece sequer uma feição de tranquilidade. Não sei até que ponto a ilusão vai se sobrepor à realidade. Não sei até quando a máscara vai fingir que é o rosto. Não sei até quando a palavra presa vai continuar sendo apenas silêncio. Gota a gota o copo vai enchendo, e talvez não caiba nem mais um pingo. Mas dizem que o amanhã sempre será outro dia. Uma verdade. Mas dia após dia que o outono devasta tudo, a ventania açoita sem fim, a tempestade em fúria devasta tudo. Esperar o tempo do Eclesiastes, não há outra coisa a fazer. Se após a dor vem a cura, depois do sofrimento vem a paz, então não resta outra coisa a fazer. Esperar o tempo do Eclesiastes ou fazer tudo ao modo dos homens ou dos animais selvagens. Avançar, destruir, dizimar, acabar de vez com a causa de todo o mal.


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sábado, 28 de dezembro de 2019

CURRALINHO: O AMOR E O ABANDONO



*Rangel Alves da Costa


São 14 km entre a sede do município de Poço Redondo, no sertão sergipano, e a povoação ribeirinha de Curralinho. A estrada, mesmo de chão batido e mais dificultosa em alguns pontos, está bastante convidativa à locomoção. Um percurso curto, fácil de ser feito e prazeroso, pois em direção às beiradas do Velho Chico, do Rio São Francisco que por ali passa e passeia para deleite de todos.
Do Velho Chico em Curralinho sou amigo e rotineiro visitante. E quando vou até lá, meu interesse, contudo, não se volta apenas para as margens do rio e suas águas, os bares e as belíssimas paisagens, mas também – principalmente - para o Curralinho histórico, povoação, comunidade, local de moradia e sobrevivência de ribeirinhos simples, honestos e irmãos sertanejos.
O Curralinho histórico é de uma grandeza sem fim. Ali, pelos caminhos do rio, foi onde tudo começou. Num tempo onde o sertão era de mata fechada, ainda sem qualquer penetração desbravadora, somente pelas águas do Velho Chico era possível chegar às margens sertanejas. Os primeiros desbravadoras chegaram pelo rio, ali desceram de embarcações, ergueram pequenos currais (daí o nome “curralinho”), e somente depois adentraram os hostis sertões.
Curralinho foi a primeira povoação surgida em Poço Redondo. E surgida com ares de progresso, pois em suas margens toda a vida econômica sertaneja começou a progredir. Era das margens curralienses que chegavam e saíam embarcações abarrotadas de quase tudo. Chegava o açúcar, o café, o tecido, a bebida, a novidade, e saíam os fardos de algodão, de peles, os sacos de carvões, as caças e muito mais. Por isso mesmo que no passado Curralinho teve comércio forte, moradias suntuosas, construções de belíssimas molduras arquitetônicas.
Até mesmo Antônio Conselheiro, o místico e mítico beato de Canudos, um dia, lá pelos idos de 1874, atravessou o rio e fincou os pés em Curralinho para deixar suas marcas. Ao lado de seus fanáticos e fiéis seguidores, logo deram forma de igreja a uma rústica construção numa parte mais elevada da povoação, dando-lhe o nome de Igreja de Nossa Senhora da Conceição, ainda tão viva e bela. Em seguida, tencionando ir aos rincões baianos, o séquito do Conselheiro foi abrindo, em direção a atual sede de Poço Redondo, a estrada que hoje leva o nome de Estrada Histórica Antônio Conselheiro.
Com o passar dos anos, porém, o surgimento de estradas cortando os sertões fez refrear a intensa movimentação pela beira do rio. Curralinho foi perdendo sua força progressista, o comércio definhando, muitos moradores preferindo fixar moradia na já desenvolvida sede municipal. E desde então, com grande parte do comércio fechando suas portas, a povoação ribeirinha se viu como que parada no tempo. O único contentamento encontrado foi permanecer apenas como comunidade de pescadores e de donos de pequenas embarcações fazendo transportes pelos arredores.
Até dói o que vou dizer, mas direi: se não fosse o rio, a permanência do Velho Chico contornando o seu mundo, passando bem defronte às suas moradias de calçadas altas, Curralinho já teria definhado de vez. O que permitiu que Curralinho continuasse tão amado, tão querido e visitado, foi somente o encantamento provocado pelas águas do rio. E que, mesmo em épocas de magreza no leito, mesmo em períodos aonde o caudal não vai além de uma finura lá embaixo, ainda assim possui o dom e a magia de chamar às suas margens para o banho, para o vivenciamento de suas belezas.
Ainda assim, ainda que o Velho Chico possua tamanho poder de atração em Curralinho, alguns fatores persistem em querer afastar os visitantes e turistas. A povoação inteira vive como que abandonada, a pobreza se alastra por todo lugar, as margens do rio são como pastos de animais ou monturos para passeio de outros bichos. A sujeira afasta o banhista, os bares insistem em ter somente o mesmo peixe de sempre (e nenhum prato diferenciado), o lodo toma conta da beirada das águas e até enfeia a visão do rio como um todo. E uma realidade bastante diferenciada, por exemplo, das águas límpidas de Cajueiro ou das águas convidativas de Bonsucesso.
Seria fácil – e até justificado - preferir ir outro destino de passeio e banho que não Curralinho. Mas tem gente que ama aquele trecho de rio como se ao seu coração pertencesse. Tem gente que se envolve de tal modo com aquele leito remansoso passando, aquelas serras e montes e ao redor, aquelas margens com sua pequenas canoas, que não consegue se afastar de sua vida, da vida do rio.
O mesmo amor que eu sinto por Curralinho e o seu rio. Dói demais sentir o abandono por todo lugar, mas faz amar demais a simples presença. O encanto, a poesia, a magia do rio.


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Lá no meu sertão...


A solidão sertaneja





O presente (Poesia)



O presente


O que posso dar
nada além de flor
ou imenso amor

presente dourado
ou o anel que viste
nada disso existe

o que posso dar
e de mais valor
é o amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – esperança e fé



*Rangel Alves da Costa


ESPERANÇA E FÉ. Sempre com esperança e fé. Imensamente grato pelo dom da vida e pela dádiva de viver. Extremamente agradecido pelas grandes e pequenas realizações. Infinitamente feliz pelo conseguido e pelo que ficou pra depois. Enormemente orgulhoso pelo que pude fazer e compartilhar com Poço Redondo e com meus conterrâneos e amigos. Pelo que pude fazer em Aracaju e por todos os lugares onde caminhei. Sou de luta, sou um lutador. Igual ao velho sertanejo que nunca desiste de nada, também guardo as sementes para lançar sobre a terra quando as oportunidades chegarem. Sei que nada é fácil, tudo é dificultoso e até desanimador. Mas é a persistência, o amor e a esperança boa, que sempre alimentam a caminhada. E quero fazer muito mais, e conseguirei. Assim o desejo de Deus. E também desejo de Deus que todos tenham um 2020 repleto de alegrias e felicidades. Por isso o meu desejo a todos: FELIZ ANO NOVO!


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quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

NOSSOS PRECONCEITOS



*Rangel Alves da Costa


É no próprio contexto da definição de preconceito onde se encontram as provas de sua disseminação por todo lugar, perante as pessoas e meios. Tem-se, assim, que o preconceito expõe-se e expande-se abertamente, através de palavras, gestos e atitudes, mas principalmente através de sutilezas e múltiplos disfarces.
Por definição, preconceito é qualquer opinião ou sentimento concebido sem exame crítico. É o sentimento hostil, assumido em consequência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio. É um juízo pré-concebido, que se manifesta numa atitude discriminatória perante pessoas, crenças, sentimentos e tendências de comportamento. É ainda uma ideia formada antecipadamente e que não tem fundamento crítico ou lógico.
Muitos outros conceitos, definições e significados, poderiam ser dados com relação a preconceito. Mas em todos, invariavelmente, sempre a noção de repulsa, de não aceitação, de negação do outro. Então, o que sempre se tem é uma crítica pessoal acerca do outro, seja na sua roupa, na sua opção sexual, na sua cor, na sua religião, no seu jeito de ser e conviver. Basta que alguém confronte uma idealização ou uma concepção, então já se terá o preconceito.
Diz-se muito do preconceito de raça e de credo. O evangélico tem aversão ao católico, o católico sente repulsa ao umbandista, o ateu execra todas as religiões, apenas para servir de exemplo. O negro é evitado pelo branco, o branco é negado pelo negro. Alongando a exemplificação, não raro que rico não goste de pobre, moradores de áreas nobres não gostem de favelados, vaidosos e egoístas não gostem da humildade e da simplicidade. E mais um rol infinito de situações onde o preconceito é percebido, ainda que não totalmente visível.
Contudo, o que dizer do preconceito no olhar, na palavra dissimulada, no forçado convívio social? O que dizer da ação supostamente despretensiosa, mas que carrega em si forte dose de desfazimento do outro? O que dizer das relações que se dão entre forças superiores e inferiores, onde os níveis ou classes sociais pontuam as formas de tratamento? O que dizer das amizades baseadas na pretensão de um sobre outro, onde o menos favorecido economicamente é visto como servil?
Ademais, não adianta dizer que respeita o outro que seja desta ou daquela religião, que possua esta ou aquela cor, que tenha esta ou aquela origem. Nada disso tem valia se no íntimo da pessoa existe uma concepção bem diferenciada de tudo isso. Ora, existem pessoas que não dizem – ou juram de morte que não são assim -, mas que não suportam sequer ter uma mão de um “dito” inferior estendida em sua direção. Relatos existem de políticos que simplesmente levam álcool nos seus veículos para a limpeza das mãos após o contato com seus eleitores empobrecidos.
As pessoas não dizem, sempre se negam a dizer ou demonstrar, mas no fundo da alma há muito mais preconceito do que imagina qualquer vã filosofia. O que se vê é um monte de demagogos, de interesseiros e ambiciosos, que forjam sentimentos para tirar proveito de pessoas e situações. Ama o eleitor, adora o eleitor, sente saudade do eleitor, procura o eleitor, mas somente nas proximidades das eleições. Passado o pleito e por muito tempo, o adeus, o esquecimento. Por que assim acontece? Ora, a política não gosta de povo além daquilo que este, enquanto votante, possa servir a seus propósitos de poder e mando.
Outro exemplo claro do preconceito disfarçado, e desta vez de humanitarismo, está presente nos hospitais, nos postos de atendimentos, nos prontos-socorros. Relatos existem de tratamentos desumanos e até bestiais de enfermeiros e médicos contra pacientes indefesos e seus familiares aflitos. Aqueles que deveriam cuidar da vida, prestar socorro com paciência e zelo, de repente se transformam em algozes, em bárbaros, onde pessoas entre a vida e morte são tratadas como bichos de tanto faz. Um preconceito contra a doença, o doente, o necessitado, como se aquela vítima ou paciente fosse um estorvo, um fardo que não mereça um olhar verdadeiramente humano.
No meio social, dificilmente se encontra aquele que tem o outro como verdadeiro irmão, que o trata com carinho puro, com o afeto mais profundo que possa existir. Não é fácil avistar aquele que abraça o pobre como se tivesse abraçando a um pai ou a um filho, aquele que se revela amigo com suas feições mais positivas. Basta ter como exemplo a seguinte situação. Mesmo perante velhos e bons amigos de infância, quantos não os tornam como que esquecidos e vão atrás de estender a mão a poderosos desconhecidos? Juntos, o preconceito e a desonestidade moral.
Diga-se, por fim, que a cachorrinha de raça da madama não pode sequer passar perto de mendigo de calçada. A Luluzinha pode pegar doença de pobre: infecção, sujeira, imundície, pobreza mesmo. Mas a madama é a mesma que tudo faz para fingir seu arraigado preconceito. Faz parte de uma liga qualquer de assistência aos desvalidos e empobrecidos.


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Lá no meu sertão...


Procurando entender as coisas



Enquanto existir amor (Poesia)



Enquanto existir amor


Enquanto existir amor
e eu sentir o pulsar no coração
será sempre em teu nome
que eu pensarei com devoção

o amor não morreu
o amor não morre não
e por isso a certeza
da certeza do coração

pois enquanto existir amor
e tanto amor por ti eu sentir
a certeza que em mim estará
e que vai voltar mesmo se partir.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – folhas secas



*Rangel Alves da Costa


Tanta ventania. Quanta ventania. Pelo ar o sopro, o açoite, o redemoinho. E nos instantes de silêncio, apenas a saudade chegando como folhas secas. A saudade dói, e dói demais. Não há dor maior que a moldura de um corpo na mente, que o retrato de um sorriso na mente, que as paredes do coração tomadas de suas imagens. Amei seu sorriso, amei sua palavra, amei o seu toque, o seu calor, o seu abraço. Amei o seu sexo, amei o seu prazer, amei o seu gozo. Tudo amei. Mas como amar a saudade de toda moldura e de todo retrato? Eu que queria paz, que queria apenas tentar esquecer, eis que tenho de suportar essa ventania da saudade, essa voracidade do vento. E as folhas secas que entram pela janela da alma e se espalham como tapete de dor. E eu queria apenas viver. Já que não pude amar, eu só queria apenas viver.


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quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

POÇO REDONDO E SUAS MIRABOLÂNCIAS



*Rangel Alves da Costa


A cidade sergipana e sertaneja de Poço Redondo, encravada no tacho mais quente do sol e na reluzência da lua mais bela que possa existir, é lugar que desde muito vem mostrando fatos, situações e realidades, até difíceis de acreditar. Um misto de lenda, de irreal, mas tudo na mais verdadeira verdade, como se diz por aqui.
Muita gente não acredita em botija (dinheiro enterrado em pote, vasilhame ou outro instrumento, e assim deixado para ser retirado somente anos depois, mas principalmente por outra pessoa que não a que escondeu a riqueza na fundura do chão), mas meu avô China do Poço já desenterrou mais de uma. Em sonho, a pessoa é avisada da existência da botija e depois vai à caça do que foi enterrado, mas sempre num ritual, em obediência a determinações, sob pena de não conseguir seu intento e ficar assombrado para o resto da vida.
Foi em Poço Redondo que um sertanejo, depois de tomar umas e outras, fazia tanta estripulia que até sua esposa não acreditava mais em sua palavra depois que bebia. Retornando a casa depois de virar copo de todo tipo de pinga, avistou no quintal um homem escondido num canto e resolveu dar cabo da vida daquele estranho naquele mesmo instante. Puxou a faca e deu dois golpes certeiros. Em seguida foi avisar à esposa que tinha de fugir, pois havia matado um homem. Sem acreditar, a esposa foi se certificar da vítima e lá encontrou um saco de carvão rasgado pelos golpes da peixeira.
Coisas existem que parecem somente acontecer em Poço Redondo. Como dito numa postagem passada, em Poço Redondo a Rua de Cima (Praça de Eventos) fica na parte baixa e a Rua de Baixo (Avenida Alcino Alves Costa) fica na parte alta. Existe uma Praça Antônio Conselheiro (Tanque Velho) que de praça nunca viu nada. Ruas com nomes como Cuiabá, Mato Grosso e Castelo Branco, mas nenhuma com o nome do primeiro prefeito: Artur Moreira de Sá.  Uma rua com o nome José Francisco de Nascimento (Zé de Julião), que faz uma volta e adentra noutra rua com o mesmo nome, e ainda passando pelo meio da Rua Deputado Djenal Tavares de Queiroz.
A via pública que já bateu o recorde mundial de mudança de nomes: Rua de Baixo, Rua dos Vaqueiros, Avenida 31 de Março, Avenida Poço Redondo e agora Avenida Alcino Alves Costa. Uma cidade sem uma lixeira sequer e uma população reclamando do lixo jogado nas ruas e praças. Lógico! Um Beco das Sete Facadas que ninguém sabe quantas foram. Passagens de ruas que são fechadas para construção particulares e vai ficando por isso mesmo. Um terreno do estado, ao lado de um colégio estadual (Justiniano de Melo e Silva), mas com gente dizendo que é seu e, por isso mesmo, não deixa fazer limpeza nem plantar uma só árvore.
Uma Rua do Campo que ninguém sabe verdadeiramente qual é, pois qualquer rua ao lado ou perto do campo. Um Bairro São José que quase ninguém conhece pelo verdadeiro nome: Belém. Um Conjunto Lídia Souza que poucos conhecem que fica no Bairro Gado Manso. Uma rua que não se chama Zé do Óleo, mas que ninguém conhece se não for por Zé do Óleo. E você, sabe onde fica a Ponta da Asa?
Coisas que parece somente existir em Poço Redondo. Coisas até de não se acreditar, mas que existem.


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Lá no meu sertão...


Em Poço Redondo, sertão sergipano



Ao meu amor (Poesia)



Ao meu amor


Jardins inteiros
e flores mais
eu te daria
oh meu amor

brilhos de estrelas
e astros mais
eu te daria
oh meu amor

manhãs de sol
e luzes mais
eu te daria
oh meu amor

oh meu amor
eu te daria mais
além do que tenho
no coração que ama.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – o Natal de Dona Corina da solidão



*Rangel Alves da Costa


Entristecido, indago: Como tem sido o Natal de Dona Corina, em meio a tanta solidão? Juro por Deus, mas só agora me lembrei de Dona Corina, uma senhora que vive sozinha numa casinha ao pé da serra, na divisa entre Sergipe e Bahia, indo pra Serra Negra. Desculpe pelo esquecimento, Dona Corina, mas saiba que eu gostaria muito de visitá-la, de passar um pedaço de noite ao seu lado, de repartir um naco de qualquer coisa. Imagino sua tristeza nessa lonjura de mundo, nesse breu perigoso, nessa silenciosa desvalia. Talvez tenha chegado uma visita ou outra, um parente ou outro, mas sua solidão continua. Solidão que é quase uma escolha de vida (e eu conheço isso, minha amiga). E a essa hora da noite, já passado das sete, sua porta fechada ouve somente o silêncio da oração e das memórias que chegam como açoite de ventania. Boa noite, Dona Corina. Que suas saudades não atrapalhem os seus sonhos e nem seu despertar chegue com pouco sol. Feliz Natal, Feliz Natal, tudo de bom em sua vida!


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terça-feira, 24 de dezembro de 2019

FELIZ NATAL



*Rangel Alves da Costa


A palavra escrita não tem o poder da voz. A linguagem textual não substitui a presença. As frases e os contextos jamais alcançariam, por exemplo, o poder expressivo de um olhar, de uma aproximação, de uma saudação, de um abraço afetuoso. Mas ainda assim me aproximo o máximo que puder para dizer: Feliz Natal!
Feliz Natal pra você! Tanto gostaria agora que este escrito estivesse perfumado em jasmim, alfazema do campo, uma suave fragrância silvestre; como gostaria que as palavras chegassem acompanhadas de um buquê de flores matinais, de um cestinho de frutas colhidas em pomar, de miçangas de cipó de caroá e com uma concha de mar como pingente.
Ai como eu gostaria de juntar às palavras uns presentinhos que tanto lembram você. Tenho certeza que iria gostar de receber um poema escrito em folha seca, um pedaço rústico de madeira com seu nome talhado, um patuá batizado na correnteza do rio, um segredo guardado de uma garrafa no mar recolhida. A simplicidade não requer o fausto nem o suntuoso, o dourado nem a pedraria, mas a cordial singeleza.
Tantas e tão boas as intenções. Não somente porque o espírito natalino ainda está em mim preservado, nada fruto de um repentino desejo de agraciar, mas sim uma vontade imensa de compartilhar contigo algumas pequenas e essenciais coisas da vida. O que alenta meus dias de sol e lua haverá de ser repartido com quem merece ser recordado.
Um dia, do alto da mais alta montanha, um velho sábio fez ecoar pelo vento: O coração que compartilha torna o espírito multiplicado; o que é partilhado pelo desejo, recompensado será pelo prazer; o que é dividido com quem mereça, faz com que a semente brote e cresça e o seu grão nunca pereça.
Na presença, aí perto de você, tudo seria mais fácil. Sei que gostaria de ouvir Fernando Pessoa, Florbela Espanca, Mário Quintana, Drummond, Cecília Meireles. Sem livro aberto, mas com as páginas da mente devidamente marcadas, declamaria poema e poesia até que a lua surgisse lá em cima e a aragem da noite chegasse para recolher os restos dos versos ainda ecoando.
Talvez até eu recordasse alguma velha canção de fogueira debaixo da noite. Mas cantarolo agora, baixinho, um tanto entristecido, confesso: “Como vai você? Eu preciso saber da sua vida, peça a alguém pra me contar sobre o seu dia. Anoiteceu e eu preciso só saber. Como vai você?...”
Sim, como vai você? Sei que esta época natalina nos joga diante do espelho das nostalgias infindas. Sei que as recordações chegam mais vivazes, mais angustiantes, quase fazendo sofrer. E faz. Difícil recordar, abrir os baús, reencontrar e não padecer. Ora, não podemos fugir dos sentimentos. Por mais dolorosos que sejam, são os sentimentos que nos tornam melhores e mais humanizados, sensíveis e amorosos.
Nada é fácil. E neste período natalino tudo parece emoldurado em tristezas, relembranças e nostalgias. Os corações batem mais fortemente, os olhos lacrimejam por vontade própria, os olhares se voltam aos horizontes em busca de visões e respostas. A janela entreaberta logo adiante da velha cadeira de balanço (que parece levemente balançar), traz apenas uma luz sombreada ao invés da cor alegre do dia. Sempre assim no período natalino.
Muitos agora estão recolhendo as folhas secas que já se avolumam no chão do ano que se finda, outros já começam a abrir as portas e janelas para o novo sol. Mas eu continuo apenas pensando no melhor presente que possa oferecer a você. Talvez jamais encontre a dádiva ideal, mas se compartilho o que para mim desejo, então certamente receberá uma folha em branco. Sim, uma folha em branco!
E nesta folha a possibilidade de escrever o que bem desejar para o instante e o amanhã. Os sonhos, os planos, as aspirações e inspirações, o melhor que deseja conquistar. E também o que deseja esquecer, não mais recordar. Depois arremessá-la ao vento, e melhor ainda na ventania, pois temos pressa de felicidade, precisamos tanto de felicidade.
E nesta folha em branco a esperança que nela surja um Salmo que represente sua esperança de um novo tempo: Que das lágrimas os lenços não sejam o seu socorro, pois já não chorará qualquer dor de tristeza ou de sofrimento. Que ao invés da lágrima, dos teus olhos surja o brilho ensolarado do renascimento e de um novo canto. Que do renascimento e do novo canto, sua alma e seu espírito enfim levantem e, de mãos levantadas ao alto, digam em direção aos montes do céu: Obrigado Senhor!
E nesta folha em branco, que a mim e a todos caberá escrever, que cada palavra e linha sejam de reconstrução, de reencontro ao amor e a paz. Na parte da folha que me resta, além de outros desejos do coração, certamente escrito estará: Feliz Natal pra você!


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Lá no meu sertão...


No sertão...


Tristeza em nós (Poesia)



Tristeza em nós


Cantei
minha última canção
e calei a voz

falei
a última palavra
e silenciei a voz

o amor
não merece mudez
mas eu calei minha voz

já não sei
o que cantar ou falar
ante a tristeza em nós.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – na pele



*Rangel Alves da Costa


Eu caí e levantei. Eu chorei e enxuguei a lágrima. Eu entristeci e depois sorri. Eu disse não e depois disse sim. Eu adoeci e depois sarei. Eu fui levado na ventania e depois retornei. Eu vi meu sangue jorrando e depois curei. Eu cansei na estrada e depois repousei. Eu gritei o urro dos aflitos e desesperados e depois aceitei. Eu me deixei enlaçar e entrelaçar e depois me soltei. Eu fui açoitado e lanhado e depois me desatei. Eu fui escravizado e depois e me libertei. Eu tive as asas cortadas e depois eu voei. Eu tive veneno na boca e depois eu não traguei. Eu pedi e implorei e depois não quis mais nada. Esqueci os beijos, os abraços, os prazeres. Tudo eu esqueci. Esqueci as esperanças, as promessas, as expectativas. Tudo eu desisti. Não sei até quando eu vou cair e levantar. Não sei até quando eu vou morrer e renascer. É melhor é evitar. É melhor viver apenas minha solidão.


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sábado, 21 de dezembro de 2019

O NATAL QUE TEMOS



*Rangel Alves da Costa


As imagens servem para exemplificar como o Natal vem se transformando ao longo dos anos. Os cartões postais (que praticamente não existem mais) mostravam os três reis magos seguindo a estrela-guia em direção ao local do nascimento do prometido. Noutra cena, o estábulo tendo uma manjedoura ao meio e o menino sendo visitado por bois, cavalos, aves, ovelhas e outros animais. Um cenário empobrecido, ladeado de capim seco, pedras, garranchos trazidos pela ventania. E ali José e Maria adorando e protegendo o pequenino. Neste sentido são as cenas retratadas nos presépios.
Deste nascimento é que vem o espírito natalino. Para a cristandade, tal espírito representa o advento, ou seja, o nascimento ou a vinda do menino Jesus, que outro não é senão o Deus encarnado. No Natal, pois, celebra-se a vinda do Messias como a grande esperança da humanidade. É a preparação dessa chegada, renovada a cada ano, que caracteriza o espírito natalino: um tempo de preparação, de reflexão, de renovação das esperanças. Mas sempre em obediência à simplicidade daquele estábulo, sua manjedoura e o menino nascido em tão humilde família.
Com o passar dos anos, e aquelas imagens permanecendo apenas nos cartões natalinos e nos presépios, o período natalino foi sendo transformado de tal modo que sua caracterização ficou por conta dos enfeites reluzentes, das luzes espalhadas por todo lugar, nos pisca-piscas e nos adornos cada vez mais tecnologizados. Arrefeceram o sentido religioso da celebração, transformaram um período de solene reflexão em algazarra consumista, transmudaram toda a simbologia natalina num festim desenfreado de gastos, troca de presentes, preparação de ceias suntuosas e brindes com importados.
Quando aqueles três reis magos (Belchior, Baltasar e Gaspar) se dirigiram à Belém para presentear o menino Jesus com ouro, incenso e mirra, e mais tarde as pessoas se contentavam em oferecer doces, frutas e presentes modestos aos parentes e amigos, jamais imaginariam a feição que tais lembranças foram tomando. Modernamente, presentear alguém com presente barato é correr sério risco de inimizade. Houve um tempo de sinceros agradecimentos ao receber um simples cartão natalino ou mesmo uma folhinha ou calendário, mas de repente ou se dá a marca, a grife ou a etiqueta ou sequer receberá ao menos um abraço.
E assim porque o Natal passou a ser tido como mero período de compras. As lojas se enfeitam de luzes e adornos não para relembrar o nascimento do menino, mas para chamar clientes. Muitas pessoas passam a frequentar as igrejas não porque estejam com a fé reanimada, mas para implorar recursos para a compra de muitos e alentados presentes. Os enfeites das ruas e avenidas nada têm de sagrado, mas apenas para atender aos anseios comerciais e as imagens das administrações. Para uma ideia do uso do Natal para outros fins, basta conhecer a decoração dos shoppings. Mais parece uma gigantesca árvore natalina, mas objetivando somente recordar que é preciso comprar - e comprar cada vez mais - para presentear os amigos.
Foi o consumismo - ao lado da pouca religiosidade do povo - que retirou do Natal o seu verdadeiro espírito, ou ainda o seu sentido de fraternidade, reflexão e humanitarismo. Ao invés de visitar um parente ou um enfermo, a pessoa geralmente prefere o caminho do shopping ou dos grandes centros comerciais E de lá sempre sai carregada de pacotes e embrulhos enfeitados, ainda que a conta do cartão deixe de ser paga já no começo do ano. Ninguém se reveste de realidade e afirma a si mesmo que dessa vez não pode comprar qualquer presente. Pelo contrário, se endivida como pode para satisfazer o ego e a vaidade. Do mesmo modo age em casa, quando enche a mesa pelo simples prazer de chamar uma vizinha para que assim a aviste.
Mas o que fazer agora, ante os tempos tão difíceis? Com toda população reclamando da crise, dos aumentos de tudo, da falta de dinheiro, do décimo-terceiro fatiado, da falta de qualquer perspectiva de melhoria financeira, então logo se imagina um refreamento do consumismo. E assim certamente será, mesmo que muita gente ainda insista em se endividar até o crédito acabar. Contudo, mesmo que forçadamente, grande parte da população haverá de se contentar com um Natal das vacas magras. Assim como aquela vaquinha ossuda ao lado da manjedoura. E será o começo do reencontro com aquele espírito natalidade imorredouro.
Serão estes tempos difíceis que farão com que o espírito natalino enfim retome um pouco de sua verdadeira feição. Sem a fartura da ceia, talvez as famílias reconheçam o valor de outro pão. Sem os presentes caríssimos, talvez as pessoas compreendam o valor de uma singela recordação. Sem tantos shoppings, centros comerciais e lojas em suas vidas, talvez as pessoas encontrem um tempinho para a igreja, para a eucaristia, para a oração. Sem uísque e champanhas importados, talvez muitos valorizem mais o diálogo sóbrio e fraternal.
O que talvez nunca mude são as esperanças de alguns. E que são tantos e por todo lugar: o menino pobre esperando que Papai Noel deixe qualquer presentinho na janela de seu barraco.


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Lá no meu sertão...


Gente do meu sertão...



Feliz felicidade (Poesia)



Feliz felicidade


Sou feliz
e não quero mais
que essa felicidade

amanheço
caminho
anoiteço
e ainda sonho

sobre o amor
que venha
no tempo certo
ou não

mas se vier
que seja apenas
para a felicidade.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – o passado mata



*Rangel Alves da Costa


Certas pessoas tudo fazem para não olhar pra trás e, no passado, avistar tudo o que foi feito. E avistando o presente, compreender que nada foge daquilo feito no passado. É que a história da pessoa não vai sendo apagada por desejo próprio. Tudo o que foi ressurgirá como prêmio, bom ou mal, pela ação. E mais: o bem-estar espiritual de hoje ou o mal tomando todo o ser, nada mais que consequência daquilo feito um dia. Não pode esperar nada bom na vida quem nunca fez nada bom na vida. Não pode esperar ter paz aquela pessoa que tirou a paz de muitos. Não pode ter verdadeira felicidade aquela pessoa que semeou a infelicidade em outras pessoas. Quem não espere um futuro bom quem tem prazer em trair, em viver mentindo, em viver com máscaras e com fingimentos. Não espero nada de bom aquela pessoa que outra coisa não fez e faz na vida senão dar uma de esperteza, e na esperteza viver dando rasteira em quem passar em sua vida. Mesmo que se ache acima de tudo, seu túmulo vai sendo aberto pelas próprias mãos, e assim porque o passado mata. E vai matando aos poucos, não só pela alma doentia, mas pelo remorso e pelo que não dá nada mias certo. A simples retribuição pelo mal feito. Desse modo, quando a pessoa sentir que tudo vai desandando ou que algum mal desconhecido lhe acomete incessantemente, basta olhar pra trás. Ao olhar terá a certeza de todo o mal que já praticou e que agora, na terra mesmo, está começando a pagar.


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