*Rangel Alves da Costa
No mundo masculinizado pelas convenções
sociais, ou perante o meio onde o feminino continua sendo o lado oculto do lar
e da existência, o fazer mulher se contrapõe a todo preconceito e
discriminação, ao injusto desconhecimento da luta e à negação de sua força,
para se reafirmar como o fermento sem o qual nada vinga e nada cresce. O homem
deveria saber disso: na mulher a sua própria raiz, na companheira o seu próprio
passo.
Mas nem sempre a luta feminina é reconhecida.
Até mesmo perante os seus, quanto mais esforço e sacrifício mais a simplista
noção de ser assim mesmo. E não é não. Do barro feminino que foi feita
humanidade, certamente que o visgo continua sendo a tessitura de toda caminhada
da vida. Dizer que o macho faz o trabalho pesado para sustentar o seu lar, é
não reconhecer o peso de cada dia que é suportado pela mulher para cuidar desde
o quintal à porta da rua e mais adiante. Tudo feito de maneira incansável.
É, pois, num mundo assim que ecoa a Canção de
Mariazinha. Um canto mulher, uma canção feminino, uma melodia senhora, esposa e
filha. Ou mesmo uma poesia torta, rasgada, lanhada de tempo e de sol. Talvez um
verso descalço e de mãos espinhentas, calejado de luta e respingando suor. Quem
ouvir tal canção ou lançar o olhar sobre os seus versos, certamente estará
perante a mulher em toda sua inteireza, sertaneja ou não, mas sempre se
afeiçoando àquela mulher bíblica vestida de sol.
Mariazinha parece com Maria, que parece com
Joana, que se afeiçoa a Bastiana. Ou a Marta, a Clemência, a Lurdes, a Paula, a
Sônia, a Gorete. Não precisa um nome específico, pois todas Mariazinhas no seu
dia a dia e no seu percurso de vida. Tantos caminhos desiguais, tantas alegrias
e dores diferentes, mas no mesmo compasso da existência. Uma mulher, mulheres,
de raças e feições diferentes, de pele tingida de cores diferentes, de
vivências e sobrevivências em meios diferentes. Um só nome em todas: mulher.
No barraco ela está, mas também no casarão.
Vestido de chita ela está, mas também pode usar roupa de grife. Chinelo aos pedaços,
pés descalços, ou nas alturas do salto alto. São todas mulheres. Contudo, há
uma feição mais pujante e mais autêntica numa Mariazinha que vive num mundo bem
além do urbano capitalizado, que se faz presente num meio onde ainda é possível
sentir o aguerrimento labutador feminino. Nas entranhas de um mundo distante e
empobrecido, no contexto de um mundo esquecido e solitário, eis que ela grita
seu nome desde, ou mesmo antes, do primeiro cantar do galo.
Antes de deitar para descansar, muito já fez
durante cada instante do dia. Não é tarefa fácil reinventar a vida quando a
própria vida se vê ausente de muito daquilo que sem ele se faz até impossível
viver. Mas faz, cria, reinventa. Onde há panela vazia há o esforço maior para
juntar um tiquinho de qualquer coisa. Onde há falta de remédio há a catação no
quintal para fazer o chá, a infusão, a mistura milagrosa. Onde a esperança já
perece desesperançada, eis que as mãos se juntam em oração, os lábios trêmulos
conversam com anjos e santos, a fé incontida chama a providência sagrada.
O pote, o balde ou a lata na cabeça, no
caminho de todo dia até uma fonte qualquer, nunca foi troféu de submissão.
Igualmente o trabalho pesado da lenha, do catar graveto, do juntar feixe seco
para alimentar o fogão de caixão. Muito menos a lavagem de roupa, o esfregar, o
bater, o estender em varal. Apenas ofícios de luta na divisão dos afazeres da
sobrevivência. Não tem vergonha de ir para o mato levando enxada, enxadeco,
foice, facão. Revira e remove a terra, cava, semeia, cuida e sempre cuida.
Colhe e debulha o feijão de corda, divide a melancia com a família, coloca à
mesa a abóbora com leite.
Nunca foi feio lutar, trabalhar, desde dentro
de casa à estrada adiante. Há sempre um compromisso com a existência que
permite a abnegação até mesmo com as durezas da vida. A partir do instante em
que os joelhos, após o primeiro ofício de fé aos pés do velho oratório num
canto de sala, levantam-se para os demais afazeres, é como não desejasse se
dobrar mais a nada, numa luta incansável e num passo que sempre segue adiante.
Tanto faz se na cozinha, se no roçado, se no caminho da feira ou em qualquer
outra situação do dia a dia.
Assim a Mariazinha, assim tantas Mariazinhas.
Tão alegre e tão triste. Gosta de ouvir o sino da igrejinha tocar e recordar os
seus. Mãe e mulher, filha e senhora do mundo, nunca desaparta dos seus. Seus
filhos são como crianças para toda vida. Mesmo adultos ou já envelhecidos, todos
continuam sendo aquelas crias de berço e de peito. Por isso sofre tanto, por
isso chora tanto. Mas também não há quem seja mais feliz com os bons frutos que
vão vingando de seu eterno berço. Que sorria sempre Mariazinha. As durezas da
vida precisam de seu sorriso.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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