SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 30 de setembro de 2017

FERRO EM BRASA


*Rangel Alves da Costa


O braseiro vivo toma conta da fornalha. O calor incandescente se espalha entre os fumos enegrecidos dos espaços. As paredes enegrecidas parecem de lodo visguento. Dentro da fornalha um vulcão avermelhado. Ao lado, com panos encobrindo parte do rosto, os olhos tomados de pó mirram o pedaço de ferro.
Tim! Tim! Tim! O baque seco vai moldando o ferro retirado naquele instante do interior da fornalha, do vulcão avermelhado. Com uma das mãos, e esta recoberta de panos e segurando apenas a ponta não incandescente do ferro, com a outra o ferreiro dá mais um baque certeiro: Tim! E mais outro e mais outro, muitos. Tim! Tim! Tim!
Aos poucos, batida após batida, o ferro abrasado vai sendo moldado, cortado, recortado, tomando a medida do que se quer fazer: uma enxada, um enxadeco, uma foice, um facão, um chocalho, uma sineta, um ferro de ferrar bicho. E também gente. Sim, ferro de marcar bicho e gente, ou gente tratada como bicho pelo ferrador.
O ferreiro não tem culpa não. No seu ofício de artesão do amoldamento do ferro, ele apenas produz objetos de usos. E dentre tais objetos o ferro de fazer marcação nos bichos de cria. Recebe a encomenda com o molde desejado, com letras, símbolos ou outros motivos, e apenas faz valer sua maestria para produzir a contento. Os usos posteriores já não fazem parte de seu ofício.
Certamente que um ferreiro jamais imaginaria que alguém chegando para uma encomenda, depois de o ferro ser feito o mesmo vá ser utilizado para marcar outra coisa senão bicho do mato, mais precisamente boi, novilha, vaca, bezerro, até jegue, cavalo e burro. E assim sempre foi utilizado para deixar no lombo do bicho a identificação de seu dono. Mesmo podendo ser vista como maus-tratos, tal marcação é feita desde os antigamentes.
Maus-tratos com o bicho ferroado por que é na pele, adentrando a carne, que o ferro em brasa avança faminto e voraz. O ferrador coloca o ferro entre brasas e quando a vermelhidão do fogo toma conta da ponta da marcação então rapidamente a insígnia em brasa é direcionada à pele do animal, rompendo o pelo e muitas vezes deixando a marcação em carne viva. E um cheiro terrível de carne queimada vai tomando conta de tudo.
Depois de marcado, então o bicho poderá ser mais facilmente identificado. No seu lombo sempre estará a estrela, o sol ou a lua, o desenho, as iniciais do nome do dono. Acaso o animal se desgarre, tome sumiço ou seja levado de dentro do pasto por um larápio espertalhão, então a marca no lombo confirmará sua propriedade. Contudo, como dito, ao longo da história muita pele humana recebeu o impiedoso ferro em brasa.
As antigas fotografias da escravidão comprovam o quanto o negro era tratado e ferrado como se bicho fosse. Mas diferente do boi ou cavalo, marcado, ferrado em diversas partes do corpo, das pernas às costas, mas também no rosto e até na testa. E tal crueldade ocorria também pelo fato de que uma vez vendido o escravo já marcado, o senhor seguinte também impingia na pele negra o seu símbolo bestial.
Famoso é o JB do ferro utilizado pelo cangaceiro Zé Baiano para marcar o rosto daquelas mulheres de Canindé do São Francisco, no sertão sergipano. Conhecido como Carrasco Ferrador, o cangaceiro do bando de Lampião praticou, sem motivo algum e tão somente para seu deleite de sua bestial malvadeza, investiu contra inocentes e deixou-lhes a carne fumegando ante o queimor daquelas letras covardes e desumanas.
A primeira a ser ferrada foi Anízio do Forno, nos dois lados do rosto. Após ser marcada com ferro em brasa, teve ainda seus cabelos cortados pelo malvado cangaceiro. Não contente com a atrocidade cometida, mais adiante repete a malvadeza em Maria Marques, só que dessa vez, além do rosto, também nas nádegas e na vagina. E o mesmo ferro abrasado no vermelho-fogo também em Isaura de Birrinho. Quer dizer, Zé Baiano deixando naqueles rostos e corpos sertanejos as marcas maiores de sua insana perversidade. E sem que fosse sequer impedido por Lampião, seu comandante maior.
Como observado, o ferro em brasa já chamuscou, ferrou, lanhou, muita pele humana. Ferra-se o gado para que este leve aonde vá a identificação de sua propriedade. Nas letras e nos símbolos estão as marcas da serventia. Mas o ser humano é bicho para também ser ferrado na pele, marcado na alma. O senhor do escravo nutria prazer ao ouvir os gritos negros enquanto o ferro tostava a pele. O carrasco ferrador nutria o mesmo prazer enquanto as sertanejas gritavam e imploravam para serem poupadas da perversidade.
Mas os ferros ficaram perdidos no tempo e as marcas dos ferretes já não existem na pele humana. Ledo engano. Fala-se num tempo de açoite, de chibata, de grilhões, de ferros em brasa. Mas a escravidão e a submissão são ferros que permanecem em chamas devoradoras. Não precisa que o ferro alcance a pele quando as marcas da dor são impingidas de muitos outros modos de submissão.


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Lá no meu sertão...


Poço Redondo, sertão sergipano



Em dois (Poesia)


Em dois


Se me olha
eu olho
se me quer
eu quero
se me chama
eu vou
se quer amor
eu dou

e assim
alados
se é pássaro
sou voo.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – namorando no cemitério


*Rangel Alves da Costa


Jupira certa feita me revelou que depois de fumar um baseado, o que mais gostava de fazer era ir namorar no cemitério. Perguntei por que tinha essa tenebrosa opção e ela logo disse que sendo o sexo coisa do outro mundo, nada melhor que namorar logo onde as coisas não são mais deste mundo. Interessei-me pelo assunto e fui fazendo outras perguntas. Então Jupira revelou que tanto ela como o seu ficante tinha de estar muito doidão para pular aquele muro alto e depois procurar uma pedra de mármore aconchegante para fazer safadezas. Do contrário, não tinham coragem de jeito nenhum. O bom, segundo ela, é que ali ninguém chegava para importunar, para atrapalhar na hora do bem-bom. Só que numa noite de amor algo muito estranho aconteceu. Estavam nus se entregando um ao outro quando o seu ficante falou ao seu ouvido: “Gema mais baixinho”. Então ela sussurrou surpreendida: “Mas ainda não tô gemendo não”. “E que será, então?”. “Quem pode gemer assim num cemitério?”, fez ela outra pergunta enquanto se danavam a correr e a cair por entre os jazigos. E nunca mais fizeram o cemitério de motel.


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sexta-feira, 29 de setembro de 2017

AS NOVAS NOTÍCIAS


*Rangel Alves da Costa


O mundo precisa de novas e boas notícias. As pessoas necessitam de alvissareiras e esperançosas notícias. Os segundos, os dias, o relógio do tempo, todos necessitam que surjam fatos e acontecimentos que desencantem os desencantos da vida.
O que chega, contudo, são notícias requentadas ou reconstruídas através dos horrores e dos medos cotidianos. As máquinas tipográficas enferrujadas já não conseguem imprimir nada de alegre ou dadivoso. Então tudo surge como jornais velhos respingando os sofrimentos.
Nada de novo debaixo do sol, assim diria o profeta do Eclesiastes. Deveras lamentável, mas nada que seja novo e bom vai surgindo debaixo do sol. Nos jornais, as antigas receitas de bolos deram lugar às espantosas contundências de poderes nefastos e putrefatos, corrompidos e corruptores.
Quando os primeiros literatos do romantismo publicaram em jornais os seus folhetins, jamais imaginariam que suas tramas de dores e amores fossem mais tarde dar lugar à extravasão dos sentidos. Ora, impossível acreditar no que se lê a cada manhã. Aumento da violência, aumento da criminalidade, estatísticas lastreadas no sangue e no grito.
O desalento é tamanho que ninguém parece mais esperar uma notícia boa. Não que o povo esteja deitado pacificamente no leito da conformidade, mas simplesmente pelo fato de também já estar cansado de esperar que algo novo e bom aconteça. Mas o que acontece confirma sempre a preexistência da angústia.
Foram-se os tempos de os carteiros chegarem chamando pelo nome para entregar uma cartinha de amor. Já não se envia mais cartões de felicitações nem de saudades rasgadas. A mocinha que agora fica ao umbral da janela, entristecida se mostra por que sabe que não poderá ler mais poesia nos horizontes nem enrubescer toda a pele com a passagem do príncipe encantado.
Já disse Thomas More que "Os tempos nunca são ruins demais para que não possa um homem bom viver neles". Será? Creio haver um tempo onde distantes estarão as esperanças de tempos menos ruins. E este tempo é o tempo presente, infelizmente. Em sã consciência, o que dizer da esperança do amanhã se o homem de hoje, do agora, age intensamente para torná-lo em infortúnio?
Contrariamente ao que se possa imaginar, o dito não pode ser visto como mero exercício de pessimismo. Logicamente que tudo agora se confirma segundo as velhas sentenças de Nietzsche Schopenhauer: ao invés de buscar a felicidade, o homem vai traçando um caminho de dor e sofrimento, como se seu alimento maior fosse a vontade de viver no padecimento.
Sim, o carteiro não chama mais o nome de ninguém para entregar carta de amor. O jornal jogado na varanda já chega gritando de dor. A cada manchete uma notícia velha. A cada página a repetição das mesmas notícias de ontem, de ontem e de ontem. A diferença é que tudo num crescente, tudo de forma a espantar mais ainda uma consciência já diluída pela capacidade humana de agir para o mal, para o ilícito, para o pior que possa existir.
No idílio, na quimera poética, o sonho de abrir a janela para a vida nova. Quem dera se cada amanhecer realmente trouxesse o brilho da esperança. Contudo, além das flores do jardim, bem além das folhas caídas ao anoitecer, muito além da fruta derramada ao chão, sempre haverá um horizonte de homens agindo. Daí que toda a esperança do amanhecer será logo transformada pela notícia velha que vai sendo reconstruída.
Ao ser humano, ou ao simples homem que se tornou vitimado pelas nefastas ações do poder, dos partidos e dos políticos, das espertezas e ilicitudes engravatadas, deveria, ao menos, ser-lhe garantido o direito de viver o seu presente, o seu amanhecer e anoitecer sem ter o seu dia entrecortado pela aflição. Ou viver seu presente pelo que de melhor a vida possa lhe oferecer. Algo assim como o avistado na poesia “A Idade de Ser Feliz”, de Geraldo Eustáquio de Souza:

“Existe somente uma idade para a gente ser feliz
 somente uma época na vida de cada pessoa
 em que é possível sonhar e fazer planos
 e ter energia bastante para realizá-los
 a despeito de todas as dificuldades e obstáculos

 Uma só idade para a gente se encantar com a vida
 e viver apaixonadamente
 e desfrutar tudo com toda intensidade
 sem medo nem culpa de sentir prazer

 Fase dourada em que a gente pode criar e recriar a vida
 à nossa própria imagem e semelhança
 e sorrir e cantar e brincar e dançar
 e vestir-se com todas as cores
 e entregar-se a todos os amores
 experimentando a vida em todos os seus sabores
 sem preconceito ou pudor

 Tempo de entusiasmo e de coragem
 em que todo desafio é mais um convite à luta
 que a gente enfrenta com toda a disposição de tentar algo novo,
 de novo e de novo, e quantas vezes for preciso

 Essa idade, tão fugaz na vida da gente,
 chama-se presente,
 e tem apenas a duração do instante que passa ...
 ... doce pássaro do aqui e agora
 que quando se dá por ele já partiu para nunca mais!”.


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Lá no meu sertão...


Bonsucesso, às margens do Velho Chico, no município de Poço Redondo/SE









Meu bem (Poesia)


Meu bem

Num tempo de além
eu fui o alguém
a você prometido
e hoje se tem
o mesmo alguém
chegando no trem
em busca do bem

quem?
quem?
apita o trem
quem?
quem?
apita o trem
chamando
meu bem

quem?
quem?
apita o trem
e você vem
e vem
meu bem
só você
é meu bem.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - meninos nus


*Rangel Alves da Costa


Houve um tempo de meninos nus. Um tempo de meninos pelados, contentes, felizes, correndo pelas ruas sem vergonha de sua nudez. E nudez completa, dos pés à cabeça, e sem ninguém para olhar com olhos safados ou para querer tirar proveito daquelas inocências. Meninos nus, felizes, contentes, irradiando a idade, espelhando a vida. Assim que chovia, de repente um batalhão de meninos era avistado embaixo das biqueiras, das goteiras ou simplesmente pulando debaixo dos pingos d’água, e todos nus. Meninos que ainda molhados, encharcados de lama, corriam atrás de bolas pelos arredores interioranos. Eu mesmo já fui um menino nu, de nudez total. E jamais me esquecerei daqueles tempos onde a meninice era sinônimo de inocência e a inocência era vista sem maldade e apenas pelos olhos da compreensão. Hoje não há mais meninos nus, e pelas óbvias e degradantes razões. Os olhos adultos de hoje já não avistam crianças nuas em sua inocência, mas tão somente pelas doentias depravações. Lamentável que assim aconteça. A evolução humana foi tal que fez prosperar no ser humano o seu senso maior de decrescimento moral.


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quinta-feira, 28 de setembro de 2017

IMPRENSA MEDÍOCRE


*Rangel Alves da Costa


Há setores da imprensa que não se enxergam. Ainda há uma imprensa que tenta, a todo custo, fazer partidarismos através de suas páginas. Em Sergipe, onde os jornais tupiniquins ainda não despertaram para a boa e útil prática de apenas informar, sem partidarismos ou vendendo suas páginas às ideologias esfaceladas, ainda se tem o desprazer de folhear verdadeiros ataques à moralidade, à ética e até à justiça.
Ora, toda vez que um jornal impresso deixa de publicar artigos, resenhas e crônicas, que estejam além das nauseabundas politicagens, e prefere mostrar defesas do indefensável, então logo se tem que a liberdade de imprensa e de expressão não está sendo exercida honestamente. Todos os dias chega aqui um jornal que só falta mudar de nome e passar a “A defesa de Lula, do PT e da roubalheira”. E assim por que inconcebível que um jornal se preste a todo dia publicar textos e mais textos de ideólogos esquerdistas buscando destripar o judiciário, desqualificar as provas criminais dos processos envolvendo petistas e, acima de tudo, endeusar Lula e tratá-lo como se fosse um injustiçado e o mais honesto dos homens.
De repente, vem um texto dizendo que ou Lula volta ao governo ou o Brasil está fadado ao empobrecimento total. Esquecem, contudo, que foi Lula e através dele que o país chegou a esse estado de miserabilidade de agora. Vem outro texto dizendo sobre a tentativa de condenação de um homem justo. E há de se indagar, como é que o homem presumidamente íntegro como Leonardo Boff (“A tentativa de condenação de um homem justo”), se presta a escrever uma besteira dessas, tentando tirar da lama aquilo que nem o esgoto suporta mais. E vem outro texto dizendo que qualquer tentativa de golpe militar é para afastar a certeza da vitória lulista no pleito presidenciável vindouro. Há de saber que se há golpe ou se houver golpe, será se não houver a devida e condenação daquele já sentenciado e denunciado em não menos que seis processos criminais, e apontado como coautor em mais outros.
Golpe haverá se deixar que as instituições jurídicas sejam absorvidas pela pessoalidade degradante, através de julgamentos que menosprezem as leis para abraçar a impunidade pelo nome. Aí sim, aí haverá golpe contra as esperanças do brasileiro honesto, íntegro, trabalhador, que deseja, ao menos, ter a desfeita à sua vida retribuída por meio da condenação final dos culpados. É assim que anda agindo a imprensa sergipana. Certamente que não todos os jornais de circulação diária, mas aqueles que se acham no direito de negar as realidades, de não se impor eticamente e principalmente de não respeitar o seu leitor.
Mas é esse mesmo tipo de imprensa que se vende em épocas eleitorais. É esse tipo de imprensa que vende suas páginas a políticos e a pretensos candidatos. É esse tipo de jornal que informa segundo a conveniência e procura fazer caixa pela desinformação ou pela manipulação dos dados. Lamentável que assim ocorra, pois tentar manipular a informação ou informar contrariamente à realidade dos fatos soa como uma cegueira moral inaceitável nos dias atuais de notícias atualizadas e repassadas a cada instante.
Tarefa mais que vil, desabridamente vergonhosa, é essa de, a cada dia, publicar fatos e contextos que se distanciam da realidade, no intuito único de jogar desinfetantes em podridões. Não que se defenda Lula, não que se defenda o PT e sua corja, mas já será abusiva toda e qualquer tentativa de dizer que Moro não presta, que o judiciário não presta, que a força-tarefa da Lava jato não presta, que toda condenação será injusta por que se trata de um santo, de um deus, de um ser dotado das maiores virtudes.
Quem está mentindo, então? Nos autos os reflexos da realidade, nas provas a contundência das nefastas práticas, nos testemunhos e delações todo o desvendamento dessa infame Caixa de Pandora petista. Que a imprensa se respeite, que o jornal impresso sergipano chame para si a responsabilidade de ser honesto e íntegro, e não agir como meio de propagação de ideologias mortas e de políticos igualmente afundados pela corrupção.


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Lá no meu sertão...


Às vezes eu não preciso escrever poesia. Às vezes basta encontrar Bruninha...




Do amor que sinto (Poesia)


Do amor que sinto

Sou tantos
e quantos
eu deseje
ser e ter
em mim

mas sou mais
muito mais
quando ela
chega assim
e entra em mim

sou muito mais
quando ela
minha amada
chega assim
e entra em mim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - o amigo Geno Vito


*Rangel Alves da Costa


GENO VITO, valoroso sertanejo, sempre um imenso prazer em receber a visita desse grande amigo. E quem não sentiria prazer em ter verdadeira e longínqua amizade com o representante maior dos Pífanos da Família Vito, com o maior aboiador dos sertões nordestinos, com um ser iluminado pela arte sertaneja, pela voz esplendorosa e pelo carisma? Não há um só evento no Memorial Alcino Alves Costa que a Família Vito não esteja presente. E de vez em quando Geno chega por lá “para uma visitinha que no verso e no reverso da vida inteirinha...”, acaba soltando a voz exclusivamente para o amigo: “Fui visitar o sertão que nasci e me criei, achei muito diferente, parei um pouco e pensei, em vez de ter alegria, tive saudade e chorei. Chegando ali não achei nada que eu tinha deixado, botei a culpa no tempo por ter sido encarregado de destruir as origens do sertão que eu fui criado. Fiquei impressionado com tanta transformação, em uma mesa moderna vi uma televisão, no lugar do oratório que mãe fazia oração. Não vi mais o lampião que pai a noite acendia, a lata de querosene também estava vazia, deram fim a lamparina por causa da energia. O pote de água fria trocaram por geladeira, mas falta aquele gostinho da aguinha da biqueira...”. 



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quarta-feira, 27 de setembro de 2017

MATUTICE E SABEDORIA


*Rangel Alves da Costa


Menciono o termo matutice sem preconceito ou discriminação ao sertanejo, ao homem da terra, ao caboclo da aridez nordestina. Não se tenha, pois, como termo pejorativo, no intuito de macular a imagem de tão primoroso cidadão. Ora, também sou sertanejo, tenho-me como matuto e muito me honra ter nascido nas lonjuras sergipanas do São Francisco, em meio a um mundo de secas e sofrimentos, debaixo do sol e tendo a lua grande como alento bom depois da refrega do dia.
Homem da terra, da enxada e da foice, do arado e do machado, de uma simplicidade sem igual, mas também de inteligência sem par. Reconhecida é a sabedoria matuta, de lições e livros abertos desde os tempos primeiros, folheados de geração a geração através da palavra, do exemplo, dos costumes na vida. O homem da terra é sábio, é profeta, é adivinho, é professor, é conhecedor dos mistérios do tempo e de todos os mistérios. E quando mais envelhecido mais alçado ao panteão dos glorificados pela sabedoria.
Ninguém conhece mais de remédio caseiro que a velha senhora. Ninguém conhece mais de tempo chuvoso ou não do que o sertanejo. Ninguém tem poder igual ao caboclo matuto de adivinhar o que há nas entranhas da mata. Ninguém cura melhor todo tipo de enfermidade, utilizando somente de rezas e benzimento, do que a senhorinha agrestina. Ninguém além do sertanejo traz na palma da mão um livro escrito no calejamento dos dias, traz no sangue e na pele a lição maior de uma vida. De sua boca não sai senão aquilo cuja valia é maior que qualquer sentença de magistrado ou jurisprudência de tribunal.
Ademais, sempre fui do entendimento que o conhecimento popular possui igual – ou mesmo maior valor - aos demais tipos de conhecimentos, principalmente o científico. Não se esquecendo do fato que a Ciência, mesmo com seus títulos e honrarias, pode ser refutada e jogada ao esgoto em qualquer instante, desde que um novo conhecimento surja que lhe tire a validade de primado irrefutável. E o mesmo não ocorre com o conhecimento autenticamente popular, aquele passado de geração a geração, enraizado desde os primeiros tempos e repassado ao longo do tempo.
Daí que eu prezo muito mais um bom proseado entre matutos, entre homens do campo, entre sertanejos catingueiros, a qualquer conclave, reunião, discussão acadêmica, debate aflorado nos honoris causa. As teorias, por vezes, são incompreensíveis até mesmo aos teóricos. Os tecnicismos e os academicismos impedem as mínimas compreensões dos postulados. Não somente isso, pois existe uma filosofia insuportável, pedante, incompreensível, que tudo diz e nada diz, chegando a conclusão nenhuma, e aquela que chega aos ouvidos como verdadeiro livro aberto.
Vamos aos exemplos. A ciência meteorológica diz que vai chover tal dia e tal hora em determinado lugar. E se não chove, logo vem a desculpa que uma frente fria ou uma precipitação qualquer desviou a nuvem noutra direção. Mas com o homem do mato é diferente. Quando ele olha para a barra do horizonte logo vem a sentença de chuva ou não. E não há quem prove o contrário. Conhece a chuva pelo balançado das folhagens, conhece o prolongamento da seca pelo voo dos passarinhos. Conhece o tempo bom e o tempo ruim pelo simples olhar da experiência.
E então vai a medicina cobrando milhões para o mesmo serviço que as mãos de uma boa e velha parteira faz por amor ao ofício. E vem a psicologia dizendo que a vida é assim ou assada, enquanto o pai de família responsável chama seu filho num canto e lhe dá toda a psicologia da vida. Enquanto o médico passa uma receita com tarja preta, caríssima e dificílima de ser despachada, a senhorinha vai lá ao quintal e traz na mão a farmácia pronta e a cura perfeita. Ou o velho alquebrado chega ao pé do balcão e pede o remédio da hora. E acabou-se o reumatismo.
Mas o forasteiro que nada disso conhece e avista o sertanejo na sua matutice, na sua pouca palavra e no seu jeito humilde ser, logo tende a dizer que ali apenas mais um vivente dos sofrimentos impostos pelo homem e pelas securas da terra. Desconhece, pois, da raiz que brota a verdadeira sabedoria. Nada conhece de um saber tão profundamente original que até mesmo o silêncio é lição. O homem da terra sabe que nenhuma valia possui a palavra se da boca não sair a verdade a ser ouvida e acredita.
Recordo, por fim, o que disse o chapéu velho de couro ao anel dourado do doutor imponente: O brilho maior é o do sol mais quente e trago ele por cima e por dentro de mim.


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Lá no meu sertão...


Povoação ribeirinha de Bonsucesso, Poço Redondo, sertão sergipano




A folha (Poesia)


A folha

Voa folha
no sopro
vai

mas a folha
desfolha
e cai

o sopro
da vida
sai

quer ser pó
e renascer
a vida dai.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - tanto faz


*Rangel Alves da Costa


Dias existem que tanto faz. Tanto faz o amanhecer como o anoitecer. O cigarro falta e a dor por dentro faz entorpecer. Cai o vinho por cima do cálice, cai a chuva por cima do pingo, cai a nuvem por cima do céu. Tanto faz. Dias existem que tanto faz. Vontade de voar, vontade de não existir, vontade de entrar na terra. Conversar sozinho já não adiante. Sequer ouço o que digo a mim mesmo. Caminhar sem rumo já não adianta. Já não sei seguir por qualquer destino. Tanto faz que o pássaro cante dentro do ninho ou que a borboleta pouse no umbral. Os olhos não enxergam as belezas da vida nem as tristezas da vida, não enxergam nada. É como se a cegueira tornasse em noite o sol, como se a mudez calasse o grito. Tanto faz como tanto fez. Uma saudade bateu e eu nem senti. Uma saudade veio e eu nem chorei. Meus olhos molharam e eu nem encharquei.


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terça-feira, 26 de setembro de 2017

AMOR MERCADORIA


*Rangel Alves da Costa


O que dizer de um amor que ao invés de se situar na esfera do sentimento, transborda para o domínio da mercadoria, de objeto, de algo palpável, vendável, permutável?
O que dizer daquilo que ao invés de ser construído e fortalecido no coração, passa a ser avistado num prateleira à espera de quem mais pague pela sua retribuição?
Para muitos, o amor sentimento continua sendo uma verdadeira abnegação da alma, do espírito, do aparato comportamental. Mas para outros não. Tanto faz amar como fingir amor.
O amor se tornaria, assim, uma reles mercadoria. Em algo que nas relações humanas passa a ter um valor não sentimental, mas simplesmente de uso para outros objetivos na vida.
O amor vendável, negociável, permutável, passa um negócio da própria existência. Como o olhar amoroso envolve a beleza, o corpo, as formas, o aparato sexual, então o produto amor passa a ter sua cotação.
Aquele que tem muito dinheiro compra quase tudo o que desejar, até o amor. Não compra o amor da pessoa que se resguarda nos sentimentos, valorizando suas aspirações e seus desejos, mas compra outros amores.
Compra outros amores por que pessoas se vendem mesmo. Não se fala aqui em prostituição, em mera comercialização da carne nos bordéis e cabarés, nos programas e nos escritórios, mas noutros contextos sociais.
Pessoas que não se valorizam dão um preço ao próprio corpo, ao próprio sexo. Passam a utilizar seu sexo como algo que, pagando em moeda o valor, possa ser usufruído e descartado. Não como prostituição enquanto hábito, mas pelo brilho social.
E também os sonhos transformados em venda pelas aspirações de dias melhores, de um futuro mais promissor perante a força do dinheiro. Mesmo que não sinta qualquer atração, a pessoa de repente vai sendo atraída pelo que o outro possa oferecer.
Por que bilionários já envelhecidos demais recebem juras de amor de novinhas? Por que ricaços carcomidos de tempo de repente são avistados colocando alianças naquelas com idade de serem suas netas? O dinheiro. A única explicação.
O dinheiro transforma o amor em mercadoria toda vez que o dito amor se expressa de outro modo que não o do sentimento verdadeiramente amoroso. Já não há amor, mas puro ato negociável, a perspectiva de união pelo que o outro possa oferecer.
Enquanto mercadoria, o amor nada mais seria que uma das expressões capitalistas, vez que sai da pessoalidade íntima para transmudar em algo que pode ser comercializado.
No contexto da conceituação de mercadoria proposta por Karl Marx, onde esta é o que se produz para o mercado e não para o desfrute pessoal, o amor seria possível de aquisição. E hoje possui a feição de mera aquisição.
Sendo possível de aquisição, logicamente que é colocado à venda, podendo ser trocado pelo valor que a pessoa sinta como equivalente ao seu produto amoroso. E valor este que é sempre acima do valor que a própria pessoa se dá.
Mas por que assim ocorre? Assim por que as relações humanas assumem um valor de mercadoria. Quanto mais importante for uma pessoa mais valor ela terá no mercado social. É que as pessoas são geralmente avistadas apenas pelo aparato externo ou pelo bolso.
No mundo materialista, as relações de troca vão além dos objetos para assumirem a feição de relacionamentos pessoais. Há um poder econômico que se impõe às escolhas. Quando se escolhe, reserva-se para si o direito de amar, o que está cada vez mais difícil acontecer.
Tenha-se como exemplo o fato de que se diz amar um feio desprezível, porém rico, a um jovem belo e empobrecido. O amor se torna apenas uma questão de conveniência. Não é conveniente apenas amar, mas usufruir em nome desse amor.
Mas nunca será justo o preço pago pelo amor. Aquele que se vende se negocia bem abaixo do que vale. Aquele que compra, paga sempre acima do merecido no outro, ainda que este seja apenas objeto de uso e descarte.
Não há nada imune ao preço. Tudo se compra e tudo se vende. Nas sociedades do passado, os casamentos eram arranjados entre famílias igualmente poderosas. Havia um preço. O mesmo se diga com relação aos dotes e outros usos tradicionais.
Ante o amor tornado mercadoria, o capital age para descaracterizar a própria essência humana e, desconfigurando-a, amolda segundo os seus objetivos de mera utilidade ou de simples uso. E tudo num comércio cada vez mais crescente.
Lamentável que os sentimentos íntimos, pessoais e verdadeiros, deixem-se embrulhar para serem colocados em prateleiras. Porém sem etiqueta, pois o preço sempre dado pela conveniência da escolha. Enquanto um deseja, o outro se deixa apenas levar.
E ao fim da feira a verdade. E é quando se percebe quanto lixo social vai restando entre ratos e urubus. E honras e personalidades sendo devoradas com a avidez da fome. Mas justo que assim aconteça perante os epitáfios: Não amarás!


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Lá no meu sertão...


As Cruzes dos Soldados - Estrada do Curralinho, Poço Redondo/SE






Lua e sol (Poesia)


Lua e sol

Era noite
e a lua
caiu na bacia
derramou a água
e fez enchente
de luz

era dia
e o sol
caiu na água
secou a enchente
e encheu a vida
de calor

era noite
e era dia
e o sol e a lua
caindo e enchendo
de luz e calor
a existência.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - um padre diferente


*Rangel Alves da Costa


Padre Mário, pároco da Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, no sertão sergipano, é realmente um padre diferente. Tão diferente que de repente causa espanto em muitos. É alegre, brincalhão, até farrista. Mas até aí tudo bem. O de estranhar mesmo são suas postagens no facebook de vez em quando. Apaixonado por esportes, principalmente pelo tênis, sempre comenta os resultados das finais dos grandes torneios. Sem omitir ou esconder nada, também costuma falar sobre música e outro dia se mostrou face pela banda The Who, no Rock in Rio. E também já postou fotografia de mulher bonita, tecendo os devidos elogios. E lembro bem quando alguém comentou: “Padre Mário, Padre Mário, hum...”. Mas ele não está nem aí para insinuações. Liga sua televisão, assiste seus shows, toma o seu vinho, compartilha as alegrias e felicidades da vida. Depois se reúne com fiéis, celebra missas, participa dos ofícios religiosos, faz as honras do bom pastor. E que maravilhoso ser humano é o Padre Mário.


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segunda-feira, 25 de setembro de 2017

A HORA E A VEZ DOS GRILOS


*Rangel Alves da Costa


Para publicar em jornal, acresci o presente texto, anteriormente publicado como “Os grilos de Poço Redondo”. E para dizer que em determinados períodos do ano os bichos, principalmente insetos, costumam fazer seus festins. Há mosca o ano inteiro, há grilo o tempo inteiro, há inseto a cada instante, mas de vez em quando cada um resolve deixar a vida do ser humano insuportável.
As moscas aparecem aos montões nas proximidades da semana santa. Mesmo antes que os restos dos peixes sirvam como atrativos, o mosqueiro é tamanho que mais parece que o mundo humano vai se tornar em mundo de moscas. Igualmente nas proximidades dos tempos mais chuvosos, de trovoadas ou invernadas, quando insetos com asas passam a tomar conta de todos os espaços, principalmente ao redor de luzes acesas.
Os sapos, mesmo de outra espécie animal, também se avolumam depois das chuvas, ganham as ruas, entram nas residências, criam um enojamento terrível. As muriçocas também escolhem estações para surgirem em tropas, em batalhões, em imensas e ameaçadoras quantidades. E agora é a hora e a vez dos grilos.
Em Poço redondo, sertão sergipano, os grilos chegaram e tomaram conta de tudo sem dó nem piedade. O mundo é deles, a vida é deles, tudo agora é deles. Durante o dia, escondem-se aos montes pelos cantos e frestas, em buracos e nos monturos, para reaparecerem em profusão depois do entardecer. Aos montes, milhares, milhões.
A única diferença desses grilos de agora para os outros de tocos de paus é a ausência de repetitiva e enfadonha cantoria. Mas seria o fim do mundo se o enxame fosse acompanhado daquele cricricri insuportável. Ter uma cidade inteira tomada por cricricris, e na maior altura do mundo, seria realmente de enlouquecer. Mas ao invés da cantoria se contentam em arremeter furiosamente sobre as pessoas. Muitas lentes de óculos já foram espatifadas pelas brutais investidas dos grilos.
Como bem postou o amigo Alisson Lucas no facebook, “esses grilos em Poço Redondo estão iguais à corrupção no Brasil, não têm limites. Se tirar as asas eles pulam, se tirar as pernas eles voam. Indestrutíveis”. A mais pura verdade. Estão por todos os lugares, muito mais à noite, porém avistados também a qualquer hora do dia, já prontos para alçar voo, dar rasantes, importunar a vida de todo mundo.
Os grilos, insetos da família dos gafanhotos, são comuns em todas as regiões brasileiras. Nas fazendas, matas e lugares mais afastados, é muito comum se ouvir o seu ruído escondido, constante. Aparecem também nas cidades, principalmente nas casas de paredes de barro. Mas agora estão em profusão por todo lugar.
Comumente se diz que mesmo tendo asas os grilos não voam. Ora, voam sim. Voam e dão rasantes, arremetem em fúria em direção às pessoas, entram pelos cabelos, pelas roupas, debaixo das saias, causam um problema danado. Outro dia, em Poço Redondo, eu conversava com uma mulher quando esta repentinamente pareceu possuída.
E estava possuída sim, mas de um grilo que de repente entrou por debaixo de suas saias e causou um rebuliço danado. De início, a mulher enrubesceu, tremeu, remexeu as pernas, quis dar pulinhos. Em seguida se apavorou, pulou, quis levantar a saia, e enfim correu em direção à primeira porta que encontrou.
Sem saber de nada, sem imaginar que se tratava de um grilo açoitando entre as pernas da mulher, apenas estranhei aquela situação. Quando ela correu desembestada, com as pernas meio abertas, até pensei que uma vontade incontrolável de urinar havia causado aquela cena toda. Fiquei esperando resposta para o ocorrido.
Não demorou e já voltou sorridente. Foi um grilo, disse. E ajuntou: Foi um grilo que não tinha o que fazer e entrou bem debaixo de minha saia. Dada a explicação, continuamos a conversa, o que não demorou muito, pois logo ela correu novamente, mas não sem antes dizer: De novo. E dois, agora parece que são dois.
E não é raro que pelas ruas a gente imagine que as pessoas estão endoidando. Pessoas balançando a cabeça, desgrenhando os cabelos, só faltando arrancar tudo. Pessoas pulando, querendo tirar as roupas no meio da rua. Pessoas mantendo a boca fechada por medo de engolir grilos. E engole mesmo. Teve um que não só engoliu como teve de passar a noite toda ouvido o cricricri do grilo na barriga.
Assim a vida perante a presença desses grilos insuportáveis. A acreditar na crença dizendo que os grilos trazem boa sorte, não haveria lugar mais afortunado que Poço Redondo. Contudo, não parece ser essa a realidade. Acaso houvesse a tradição de juntar grilos para fritar e comer, ainda ia, mas no prato sertanejo só vai o que é encontrado no suor da luta.
E dizer ainda que sábado encontrei aquela mesma mulher toda vestida de macacão e com touca envolvendo todo o cabelo. E com um pedaço de pau de mais de metro à mão. Nem perguntei o motivo daquilo tudo.


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Lá no meu sertão...


Curralinho, Poço Redondo/SE - Igreja de Nossa Senhora da Conceição




Coisa boa (Poesia)


Coisa boa

Coisa boa
é a festa do olhar
do querer e namorar

e é tão bom beijar
que hoje
eu nem quis araçá

é tão bom abraçar
que hoje
eu nem quis voar

é tão bom amar
que hoje
eu nem quis sonhar

é tão bom viver
que hoje
vivo em mim e você.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - falsas perfeições


*Rangel Alves da Costa


Nunca vi alguém com rosto de nuvem ou pele de seda. Mas aqui no facebook muito rosto é de anjo e muita pele é de algodão. Fingir pra que, iludir a quem? O espelho mente quando o brilho é falso, mas a realidade espelha aquilo que se é. As fotografias retratam o que somos em nós. E de nós não podemos afastar as marcas do tempo, as rugas que surgem e os semblantes tristes. Não há retrato retocado que mude a essência, não há transformação que engane a idade. Não há como viver sem as cicatrizes, não há como fingir ser a perfeição. A vida, a realidade e o mundo lá fora, conhecem a pessoa sem montagem ou retoque algum. Não adianta iludir e se esconder na ilusão. A não ser que a pessoa, ao invés do rosto, ande pela rua com um computador.


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domingo, 24 de setembro de 2017

UM BARCO NO MEU OLHAR


*Rangel Alves da Costa


Ao meu lado, bem em cima da mesa onde escrevo agora, há um pequeno cacto, um filtro de aguardente e um carro-de-bois de enfeite. Todos esses objetos de feição sertaneja, e que servem tanto de adoração como inspiração, agora foram acrescidos de um pequeno barco.
O barco chegou-me ontem às mãos. Foi feito artesanalmente por um conhecido. Possui pouco menos de um metro de cumprimento e de largura estreita, afinando nas pontas, ou na proa e na popa, como dizem os ribeirinhos canoeiros. Os mastros são de madeira fina e os panos de um tecido grosso e parecendo envelhecido
Geralmente os barcos, mesmo os artesanais e de enfeite, possuem nomes nas laterais da madeira: Beiradeiro, São-Franciscano, Rei das Águas, Carranca, Moxotó, Vaporzinho. Mas esse não. Nas laterais pintadas nas cores azul e dourado não há nenhuma identificação. Talvez eu mesmo encontre um nome ajustado ao que o meu olhar avista: Porto Solidão.
Sim, pois Porto Solidão, mesmo sendo um nome um tanto melancólico, creio ser um nome bonito a uma embarcação, principalmente sendo um barco que doravante permanecerá solitário num porto entre quatro paredes, numa estrutura de ferro logo adiante da mesa onde escrevo agora.
Agora mesmo o meu olhar avista o Porto Solidão. Quieto, silencioso, impávido. Não se balança nas águas do cais, não se embalança pelas ondas do porto, não dança no festim das águas que chegam e que voltam. Seus panos também não tremulam, não são soprados por qualquer vento ou ventania. Tudo o que se tem é uma calmaria sem gaivotas.
Também um Porto Solidão que homenageia a grande música de Jessé: Se um veleiro repousasse na palma da minha mão, eu sopraria com sentimento e deixaria seguir sempre rumo ao meu coração. Meu coração a calma de um mar que guarda tamanhos segredos de versos naufragados e sem tempo. Rimas, de ventos e velas, vida que vem e que vai, a solidão que fica e entra me arremessando contra o cais...
Um barco que é veleiro, que é nau, que é escuna, que é canoa. Ele está perante o meu olhar, em cima de ferro ao invés de águas, então o transformo na embarcação que quiser. Igualmente imagine em qualquer rio, em qualquer mar, em qualquer leito d’água. Ele está ali, imóvel, parado, mas de repente eu posso subir nele e seguir ao porto que desejar.
As coisas da vida são assim. Não será sempre necessário que estejamos na materialidade das situações para que façamos do sonho ou da imaginação o que desejamos. Aqui ao lado um pequeno carro-de-bois que posso imaginar estar ouvindo o seu rangido, avistando a poeira da estrada, sentindo o mugido e o cansaço dos bois. Assim também com o meu Porto Solidão.
É um barco apenas de enfeite, mas é um barco que posso viajar no instante que desejar. Ora, se ao olhá-lo me vejo subindo no seu leito, se ao olhá-lo posso me avistar singrando as águas, se ao olhá-lo posso me sentir nas distâncias do porto, então é um barco que não está somente aqui, ali, perante o meu olhar, mas também nas águas de minha imaginação.
Talvez eu viaje mesmo. Fico imaginando uma distância azul e sem norte. Apenas seguindo e seguindo, rumando pelo destino das águas até um porto qualquer. Mas talvez jamais queira encontrar um porto, um cais, um pedaço de chão. Como seria viver tendo como norte os horizontes, sentido a presença das gaivotas, adormecendo e acordando na valsa das ondas, no bailado das calmarias.
Apenas um sonho. Não rio nem mar adiante. Apenas um barco. Ele está tão solitário quanto eu. Ele é um Porto Solidão. E eu sou eu na solidão. Por hoje não viajaremos, não seguiremos a lugar algum. Talvez amanhã ou quando seus panos soprarem a felicidade.


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Lá no meu sertão...


Cores do sertão



Laranjeira flor (Poesia)


Laranjeira flor


A flor da laranjeira
tem perfume e sabor
menina bonita faceira
a flor do meu amor

eu beijei um pomar
fruta de mel e frescor
menina laranjeira
laranjeira flor

eu amei todo o fruto
laranja sumo de amor
na menina laranjeira
laranjeira flor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – um grilo, dois grilos, milhões de grilos


*Rangel Alves da Costa


Parece até obra de ficção, mas a pura realidade: está em curso uma verdadeira invasão de grilos pelos sertões sergipanos. Em Poço Redondo, por exemplo, a situação está insuportável por causa desses insetos que chegaram em batalhões, em armadas, numa profusão sem medida. E são dezenas, centenas, milhões, trilhões, quatrilhões de grilos. Durante o dia se amontoam pelos cantos, fogem para os escondidos da mataria, mas da boca da noite em diante retomam seus poderes sobre a vida das pessoas, causando um tormento indescritível. E são grilos voadores, ferozes, arremetendo contra tudo e todos. Tomam conta das ruas, das calçadas, das casas, dos quartos, das panelas, de todo lugar. Onde houver uma brecha haverá um grilo, onde houver uma mesa estarão cem grilos, onde houver uma lâmpada acesa estarão milhões de grilos. Onde mesmo, peguei um sapato para calçar e dentro dele havia mais de dez grilos. Na meia encontrei mais uns cinco. Quando coloquei a mão no bolso da calça, lá dentro percebi uma verdadeira moradia de grilos. Pessoas existem que estão evitando falar para não abrir a boca e os tais bichos avançarem. Pelas ruas, pessoas de macacão, de toucas, com espanadores à mão. Os grilos já quebraram muitas lentes de óculos e dizem até nocauteiam pessoas. Agora mesmo, enquanto escrevo, a todo instante me vejo atacado pelos insetos. E fico imaginando como seria se todos esses grilos ecoassem seus cricricris. Seria realmente o fim do mundo. O fim da vida pela praga dos grilos.


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sábado, 23 de setembro de 2017

LIVROS, MEMÓRIAS E TESTEMUNHOS


*Rangel Alves da Costa


Vou logo ao ponto. Quando o livreiro, editor e estudioso do cangaço Francisco Pereira Lima, o tão conhecido Professor Pereira, publicou uma nota nos grupos de estudos dos fenômenos sociais nordestinos, conclamando a família do escritor Luis Wilson para a necessidade da reedição de uma obra de sua autoria, o fez exatamente pela compreensão de sua importância no contexto nordestino e, mais de perto, para o conhecimento daqueles testemunhos pelos novos pesquisadores.
Remetendo ao livro “Vila Bela, os pereiras e outras histórias”, de Luis Wilson, eis a íntegra da nota do Professor Pereira: “Seria ótimo que este livro fosse reeditado. Ótimos conteúdos de Genealogia, Coronelismo, Cangaço e lutas de Família. Mas não encontramos para atender a demanda, que é grande. Espero que a Família do autor tome essa iniciativa”. Acentua-se aí a importante observação: “Ótimos conteúdos de Genealogia, Coronelismo, Cangaço e lutas de Família”.
E mais adiante, o comentarista Francisco Cartaxo faz importante observação. Diz Cartaxo que alguns livros importantes já foram reeditados, tais como os de Ulysses Lins de Albuquerque e outro de Luiz Wilson, sendo este “Roteiro de velhos e grandes sertanejos". Os livros de Ulysses Lins de Albuquerque citados por Cartaxo foram “Um Sertanejo e o Sertão (memórias)”, “Moxotó Brabo” e “Três Ribeiras”. De qualquer modo, a reedição mostra-se de fundamental importância. Ora, qual pesquisador de hoje não deseja ter um Maria Isaura Pereira de Queiroz, um Nertan Macêdo, um João Gomes de Lira, um Ranulpho Prata, dentre tantos outros?
O memorialismo ganha particular importância neste contexto. Se uma obra é de cunho memorialista, buscando retratar um contexto familiar ou social, de forma mais ampla ou não, sua importância não pode ser menosprezada pelo pesquisador. E assim pelo fato de que, por exemplo, um livro não necessita tratar especificamente sobre o cangaço ou sobre o coronelismo, o beatismo ou a genealogia familiar, para dele ser possível extrair elementos essenciais para a compreensão de fenômenos mais abrangentes. Mesmo uma obra de diversificado conteúdo, pode muito bem conter retalhos essenciais que precisam ser conhecidos.
Considerando-se ainda que as velhas memórias publicadas contêm quase que verdadeiros testemunhos presenciais, logo se verifica a sua proximidade com a veracidade dos fatos. Ao se debruçar sobre a própria história ou de seu contexto familiar, ao escrever sobre realidades vivenciadas ou extraídas de fatos conhecidos, o autor vai além de ser mero escritor-pesquisador para se afeiçoar ao próprio personagem.
Desse modo, quando um livro de memórias inclui nas suas páginas feições vívidas de algum tipo de coronelismo, a abordagem feita corresponde não à generalidade coronelista, mas sobre a atuação específica de determinado coronel. Daí ser possível entender com maior profundidade o funcionamento daquele clã comandado pelo seu senhor e até mesmo sua exteriorização de poder.
O mesmo se diga com relação ao cangaço. Quando o memorialista conta causos cangaceiros, situando sua família, ele próprio ou sua povoação, transcreve a realidade – ao menos aproximada – e não o que foi extraído de pesquisas ou de outras páginas. Ao fazer isso, pormenoriza situações nem sempre conhecidas ou abrangidas em outros livros de temática geral. Há no memorialismo esse dom da transcrição visual dos fatos, da aproximação do fato à realidade, permitindo uma compreensão sem enfeites ou disfarces.
Acrescento que o ofício do memorialismo é exatamente tirar do caderno da memória o que foi vivenciado ou conhecido proximamente. Neste aspecto a sua importância maior como retrato fidedigno ou aproximado de contextos sociais. Assim, quando da memória surge o relato de um episódio cangaceiro, vivenciado ou testemunhado pelo calor da hora, logo se presume com maior veracidade que qualquer outro. Nada faz crer que a memória apenas minta ou invente para agradar ou inverter a realidade.
Daí razão na preocupação do Professor Pereira. Os livros atualmente publicados não passam, em grande parte, de compilações das abordagens de outros livros. Há o embrulho, mas não o cheiro do suor da luta, da fumaça da pólvora, do sertão marcado pelas tantas vinditas de sangue. É preciso, pois, buscar naquelas memórias antigas os seus testemunhos de um tempo emoldurado na veracidade.
Tais autores nunca envelhecem. É a importância do conteúdo, ainda que apenas em retalhos, que os tornam essenciais para a compreensão de recortes históricos tão importantes para, num remendo aqui e acolá, permitir o que hoje chamamos historiografia.


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Lá no meu sertão...


Nos rastros da história...




Todo o amor que sinto (Poesia)


Todo o amor que sinto


As verdades vão surgindo
e tenho que reconhecer
um horizonte se abrindo
e não sou nada sem você

não imaginei tanto te amar
pensei ser tudo passageiro
apenas onda em um mar
e a leveza de um veleiro

mas agora eu compreendi
a maior razão do meu viver
sempre é contigo prosseguir
e nada eu serei sem ter você

e do amor que é tanto e mais
ter bem além eu tanto clamo
sem teu amor sou incapaz
e grito tanto que eu te amo

e repito o grito que eu te amo
canção é o grito se eu te amo.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - odiando “Unha Pintada”


*Rangel Alves da Costa


Até que eu acostumei a gostar do cantor Unha Pintada. E por várias razões. Pelo fato de ser um verdadeiro xodó em Poço Redondo, onde faz gente chorar, se embebedar e até delirar, mas principalmente por ser um artista de raiz sergipana, de origem humilde, e que só depois de muita luta vem conseguindo seu lugar ao sol musical. Contudo, desde alguns dias que estou sendo forçando a odiá-lo, verdadeiramente enojá-lo. Sei que ele não merecia isso, mas há que se compreender que ninguém suporta estar ouvindo, através dos outros, Unha Pintada desde as oito da manhã às dez da noite. E a todo instante, o dia inteiro, e as mesmas músicas. “É só você me chamar. É só você me chamar. É só você me chamar...”. Sem parar. Quando para é para ecoar “Desculpe amor, desculpa. Não foi minha culpa, simplesmente acabou uô uô. Eu vou embora, vou, eu vou embora, a mala já está lá fora, o nosso amor já acabou...”. E de novo, de novo, de novo. Por que assim ocorre? Ora, há um bar bem na esquina do trecho onde fica localizado meu escritório. E tudo o que é tocado por lá eu tenho de ouvir, queira ou não. E o que ouço o dia inteiro? Unha Pintada, Unha Pintada e mais Unha Pintada. Dá tanta raiva que se possível fosse arrancava de vez essa unha com esmalte e tudo. Mas não tem jeito, se estou escrevendo ouço “É só você me chamar...”, se estou com cliente, então “a mala já está lá fora, que vai embora, pois o amor já acabou”. E quando penso que viajando ao sertão vou me livrar um pouco de tudo isso, eis que chegando a Poço Redondo é pior. Em cada passo, em cada esquina, em cada casa, Unha Pintada, Unha Pintada, Unha Pintada. Não tem outro cantor não, não tem outra unha não, é só essa pintada?


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sexta-feira, 22 de setembro de 2017

ENTERREM O BRASIL NA CURVA DO RIO


*Rangel Alves da Costa


Triste destino de uma nação que nasce usurpada na sua raiz. Desde os tempos coloniais, a partir do primeiro instante que o dito descobridor às suas margens aportou, que o Brasil vem sendo dizimado por exploradores, usurpadores, ladrões de todas as riquezas e esperanças.
A farsa da descoberta foi o álibi para o apossamento sem fim. Chegados em terra de ninguém, vez que o índio sempre considerado como um nada, então lançaram mão de tudo o que pudessem encontrar. Primeiro, a dignidade de um povo. Depois, a dignidade de uma população. E ainda depois, perante as riquezas ainda existentes, simplesmente às mãos dos corsários modernos.
Um triste percurso, o brasileiro. O governo colonial, sob o jugo e ordem do reinado lusitano, logo cuidou de se apoderar das terras, dividi-las entre os seus, distribuir deveres e obrigações, resguardando para si todos os proveitos. A terra nada, tudo ao donatário, ao governo colonial, ao império. Governado de cima para baixo, abaixo as opressões e os mandos e desmandos dos donos do poder.
Nada a terra senão o uso e o abuso. O nativo explorado, dizimado, logrado na sua identidade. O mero sobrevivente destes tristes trópicos, apenas o contínuo esforço para manter o esfomeado saco de tributações. Taxas, impostos, obrigações estapafúrdias, tudo objetivando lustrar de riqueza os brilhos da famigerada coroa. O poder destripando o indigente para se arvorar de ser senhorio.
E desde então o calvário de um povo em busca dos dias melhores que nunca chegam. E não chegam por que lutas, sacrifícios e sonhos usurpados pelo poder opressor. Aquele primeiro que oprimiu o índio continuou oprimindo a sociedade colonial e depois toda a população brasileira. Ora, o poder muda de mãos mas continua com a mesma feição. Vão-se os escudos e os brasões e continuam as siglas partidárias e as enlameadas bandeiras políticas.
Desde aqueles tempos primeiros que o coração do Brasil foi sendo continuamente dizimado pelo usurpador. Tomaram a terra do seu primeiro habitante e depois tomaram tudo dos demais habitantes. Ora, a partir de então, apenas o direito de nascer e de à míngua sobreviver, pois o restante tudo nas mãos dos exploradores, usurpadores, dos políticos e governantes. E jamais houve limites para os saqueadores da nação brasileira.
Como no livro de Dee Brown, talvez algum velho cacique tenha igualmente dito que enterrassem seu coração na curva do rio. Com efeito, o livro de Brown (Enterrem meu coração na curva do rio) conta a saga dos massacres contra tribos indígenas das nações Dakota, Ute, Sioux, Cheyenne e outras, pelos colonizadores do velho oeste norte-americano. No caso brasileiro, toda uma nação de coração enterrado na curva de qualquer rio.
O que resta, então, de uma pátria ser ter coração? E já não ter coração pelo fato de que os que os gananciosos simplesmente usurparam toda a sua seiva, todo seu pulsar de vida. E já não ter coração pulsando por que toda a alegria foi esbulhada, toda a esperança foi abarcada, todo o futuro foi espoliado e extorquido. Não tem mais coração a pulsar uma pátria transformada em jogo de interesses, em manipulações de poder, em meio de ilicitudes, em cofres esvaziados pelos poderosos da nação. Um festim de ladroeiras, de ladroices, de corrupções.
Uma nação subjugada, ajoelhada e aviltada, por todo aquele que se disse com poder sobre a terra, sobre o povo e suas riquezas. Quando mais se arvora do poder de governar mais faz o povo brasileiro padecer como se o seu destino fosse de desvalia e de sofrimento. Submeteu o índio, açoitou o escravo, em seguida colocou o povo em curral, sob rédeas, ordenando apenas que tirasse do corpo o suor de sangue para alimentar a vileza do poder. E nada modificou daí em diante.
O que faz o brasileiro atual senão viver submetido à escravidão? Não há o mesmo tronco, não há a mesma chibata, mas os grilhões continuam dilacerantes, os senhores-do-mato continuam fazendo vítimas. Será que não é escravo um povo que tem de pagar na pele e no estômago pelas mazelas dos outros, pelas roubalheiras desenfreadas e pelas corrupções desmedidas? É o mesmo algoz da nação o político, o poderoso ou o mandatário, que tira, através da ilicitude, a sua seiva de sobrevivência.
Quando o velho cacique ao longe avistou a frota chegando, então olhou aos céus para dizer seu adeus. E viu as águas apodrecidas, e viu as matas devastadas, e viu a terra carcomida pelo solado do explorador. Olhou para o pequeno piá desnudo e disse que não adiantava mais encobrir o corpo, pois dali em diante a nudez seria avistada até por cima dos panos. A nudez da pobreza, da fome, do sofrimento, da desolação e da desesperança. Então repetiu: enterrem meu coração na curva do rio.
E com o coração do velho cacique também toda uma nação. Não apenas a indígena, mas também essa de um povo que chora sua crescente pobreza.


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