SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 31 de outubro de 2018

REVELAÇÕES AO ENTARDECER



*Rangel Alves da Costa


Estou desconhecendo a mim mesmo. Nunca mais caminhei pelas estradas e ruas, de pés descalços, pelo prazer de pisar na terra, sentir o calor do chão e estar mais aproximado do mais puro ventre.
Estou entristecido comigo mesmo. Nunca mais abri a janela para esperar borboletas, para a chegada de colibris nem pássaros do amanhecer. E sei que agora me falta aquele sorriso da flor e o beijo da brisa do amanhecer.
Estou me sentindo desumanizado demais. Chego a me perguntar se não perdi a sensibilidade, se não desacalantei o amor pelas coisas simples, se não reneguei o prazer pela jabuticaba e a sapoti de quintal.  E tão doce era beijar a boca do araçá.
Estou me distanciando de mim mesmo. Temo ter deixado ir embora a criança que sempre esteve em mim, o menino traquina que sempre gostou de brincar e de sorrir. Temo que até a memória e as doces lembranças e nostalgias tenham se distanciado de mim.
Estou me tornando cada vez mais insensível, e eis o medo maior que dá. Não desejo a lágrima petrificada nem o soluço preso, não quero olhos sem brilho nem coração que não pulse mais perante as situações de vida. E tudo parece simplesmente acontecer.
Estou sem tempo para as coisas boas da vida, estou sem encorajamento para reencontrar as coisas boas da vida. Nunca mais sentei na pedra, nunca mais conversei com a pedra, nunca mais deitei no colo da pedra e sonhei com um jardim florido e perfumado.
Estou envelhecendo demais sem ainda ter alcançado os portais da velhice. Imagino que os espelhos vão me negar o sorriso, penso que os espelhos vão acrescentar minhas rugas, imagino que de repente já serei outro, triste e alquebrado, num corpo apenas cansado.
Estou sem tempo de fazer o que sempre fiz mesmo sem ter tempo. Sempre encontrei um instante para subir à montanha, para sentar à beira das águas, para me aquecer com as brasas do pôr do sol. E sequer tenho tido tempo de olhar o horizonte e imaginar o que está além e mais além.
Estou sem tempo de pensar nas coisas boas da vida, de trazer ao pensamento o que sempre me confortou, ainda que com saudades. É como se o sabor do café torrado já não mais esteja na minha boca, é como se o perfume do café na chaleira já não estivesse ao meu alcance.
Estou sem auroras e entardeceres que realmente sejam auroras e entardeceres. Não adianta apenas acordar, levantar e caminhar pelo quarto, sem que pule a janela e vá logo beijar a primeira luz e o primeiro sol. Não adianta chegar ao fim da tarde e perante o pôr do sol apenas fingir que o avista.
Estou sem tempo para mim, sem tempo para ser eu mesmo, sem tempo para fazer o que gosto e o que me faz bem. Preciso conversar com o vizinho, falar com as pessoas que passem adiante, sentar na calçada e conversar sozinho. Preciso jogar pedrinhas no meio do nada e riscar o chão com uma varinha qualquer.
Preciso chupar picolé de graviola, de coco e mangaba. Preciso pedir um algodão doce e uma maçã do amor. Preciso de pipoca colorida e de cocada de rua. Preciso piscar o olho pra menina bonita que passa de flor vermelha no cabelo. Preciso beijar a palma da mão e depois lançar o beijar em qualquer direção.
Preciso riscar o tronco da madeira e nele desenhar coração. Preciso escrever versos rimando amor e bilhetinhos com letras miúdas e implorando ao menos um olhar. Preciso ler um livro do começo ao fim e depois reescrever o mesmo livro do fim ao começo. Preciso abrir a janela. Preciso abrir a porta.
Preciso também de um sorriso e de um espelho que não negue as verdades, mas que não doa tanto nas suas verdades.


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Lá no meu sertão...


Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, sertão sergipano



Meu presente (Poesia)



Meu presente


Quando segui pela estrada
pra ela levei dois beijos na boca
pedaço de bolo e cocada de feira
e também um pano de chita
vestido florido na moça bonita

é tudo o que posso presentear
ainda que sonhasse com anel
e um diadema bonito e brilhoso
quem dera um califon bem garboso

meu amor não vai reclamar
ela sabe muito bem o que posso dar
e sabe mais o que é de valor
bem mais precioso chamado amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - tempos difíceis



*Rangel Alves da Costa


Tempos difíceis são aqueles onde a luz do alvorecer não causa afago na alma nem o canto passarinheiro contagia o espírito. Tempos difíceis são aqueles onde a chuva da noite não causa saudade e a brisa soprando na causa enternecimento. Tempos difíceis são aqueles onde a poesia nada desperta e um livro bom não é lido até o final. Tempos difíceis são aqueles onde o silêncio já não pode silenciar e a palavra sempre prefere gritar. Tempos difíceis são aqueles onde velhos já não são mais avistados pelas praças dando milho aos pombos nem as folhas das amendoeiras formam tapetes dourados. Tempos difíceis são aqueles onde as descrenças tomam o lugar das esperanças e o direito de sonhar se vê com janelas e portas fechadas. Tempos, tempos. Que passem, que voem, mas que não sejam tão difíceis assim!


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terça-feira, 30 de outubro de 2018

NAQUELES TEMPOS (A VIDA E OS OFÍCIOS DE MINHA GENTE)



*Rangel Alves da Costa


Dona Alice Feitosa fazia sabão em pedra num fogão de lenha do quintal. Misturava sebo, cinzas e outras essências da terra, mexia e remexia o tacho grande com um pano amarrado na cabeça e o suor também virando sabão. E nas beiradas das fontes as seriemas, as nambus e as codornas, saciavam suas sedes ao entardecer. Um tempo de sertão ainda sertão...
Zé de Bela era alfaiate sem igual, com cortes, costuras e recortes, aprimorados no sul e trazidos para o seu ateliê num canto de casa humilde. Como um Clodovil sertanejo, a sua moda era refinada e exigente, bem costurada e alinhavada, pronta para ir aos salões, missas e procissões, da Festa de Agosto. E mais ao longe, pelas paisagens mistas de verdor e acinzentado, a bela flor do mandacaru deitava ao chão sertanejo o último respirar de sua beleza durada apenas uma noite, pois dura apenas uma noite a linda e sublime flor do mandacaru. Um tempo de sertão ainda sertão...
Maninho, ora pois pois, era o chef mais famoso e requisitado do lugar. Vindo das beiradas dor rio e depois alcançando larga experiência na gastronomia carioca, trouxe na bagagem os melhores cozidos, as melhores massas, as comidas de nome esquisito, mas de uma gostosura que só. Depois de preparados os pratos, e cheio de trejeitos e euforias, assenhorava-se de um pé de balcão e mandava botar mais uma. E de repente já estava dançando, dobrando os quartos, cantarolando um velho e apaixonado bolero: “Quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora...”. E pelos arredores, quando o tempo dava para ser assim, as mulheres na debulha do feijão de corda, os homens botando feijão pra secar, o milho seco sendo ensacado. Um tempo de sertão ainda sertão...
Chegava o tempo de festa e com a festa também o sapato novo pelas mãos do engraxate Manezinho Tem-tem, o tripé de retrato de Seu João Retratista, o parque ecoando no alto-falante O Milionário, de Os Incríveis. Tempo de festa também tempo de pintar a casa, de comprar corte de pano e flores de plástico novas. Panelas e louças lavadas nas águas do Tanque Velho, e depois os panos estendidos em cadeiras para tomar sol por cima das calçadas. Mas as más línguas diziam que era apenas para se amostrar. Eita povinho! Um tempo de sertão ainda sertão...
Delino tinha banana, Zé de Iaiá tinha farinha, Mané Azedinho e Joãozinho de Neusa o feijão. A cozinha sertaneja quase num lugar só, pois os vendeirim entrelaçados na vizinhança. Um jogo de sinuca na mercearia de Ermerindo, e de vez em quando também um encontro de repentistas. Um jogo de bilhar no salão de Angelino. Uma cachaça da terra no Bar de Zé de Lola. E de repente o sertão inteiro se enchia de graça com a forrozança que não faltava: Zé Aleixo, Dudu Ribeiro, Zé Goití, Dida, Agenor da Barra. E o forró comia no centro e só parava quando João Valentim virado em rato entrava pelos salões em fuzuê. E bem acima de todos aquele sol maior do mundo sol e a lua mais bela da vida, os horizontes de seca e de chuva, retratos tão sertanejos. Um tempo de sertão ainda sertão...
Maria do Piau Duro aparecia na esquina com rodilha na cabeça e um cesto de peixe miúdo salgado. Não dava pra quem queria. A bala de mel de Tonho Bioto era boa, mas era perigoso de um vendedor estar sem juízo na hora da venda e jogar na cabeça do comprador toda pirulitada. Mariá descambava pra beira do riacho com uma trouxa de roupas na cabeça. Quem vai querer arroz-doce de Baíta? Eu quero. Eu quero. Eu quero e não consigo afastar a saudade! Tudo num tempo diferenciado de sertão. Um tempo de sertão ainda sertão...
Hoje as memórias estão encharcadas nos lenços das saudades. Alguns ainda lacrimejam as ausências e as distâncias, mas outros desejam apenas estender os lenços nos varais e a tudo fazer esquecimento. E restará apenas um retrato na parede de uma vida e de um tempo, de um povo e de seu fazer, nalgum sertão do passado.


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Lá no meu sertão...


Ao lado de Manoel Severo - Cariri Cangaço São José de Belmonte 2018



Os bichos (Poesia)



Os bichos

Ah, os bichos podem tudo
eles cacarejam e rosnam
eles uivam e dão latidos
eles mordem e abocanham
eles ferem e saciam a fome
por que eles são bichos
e eles podem tudo

coisa feia, seu animal
humano mais bicho que bicho
bicho que envergonha a espécie
e por que não pode tudo fazer
tudo faz para se animalizar
e ferir e sangrar e matar
pelo vergonhoso prazer.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - o prazer de compartilhar amizade com Manuel Dantas Suassuna



*Rangel Alves da Costa


Conheci o filho de Ariano Suassuna agora no mês de outubro, em São José do Belmonte, Pernambuco, durante a realização do Cariri Cangaço. Artista visual, escritor, homem de muitas artes, Manuel Dantas Suassuna possui aparência diferenciada. Alto, claro, cabelos compridos e desgrenhados, barba longa e esbranquiçada, roupas largas e sempre trazendo uma imagem mística na camisa de pano fechada e de mangas compridas, logo se denota uma feição distinta. Também silencioso, ou de poucas palavras na voz ecoada com rouquidão. Contudo, também se percebe um ouvido atento, uma palavra boa, uma acessibilidade segura a quem dele se aproxima. Um bom amigo, um cordial amigo, na sua síntese interior, e interiorizada na pessoa que vai refletindo além da aparência. Pois bem. Depois do Cariri Cangaço nos despedimos. Ele vivendo entre Pernambuco e Paraíba, e eu no Sergipe. Mas de repente o reencontro pelas redes sociais. Enviei-lhe uma solicitação de amizade e fui prontamente atendido. Agora poderei compartilhar de sua arte e de sua escrita, e ele do meu proseado sertanejo.



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segunda-feira, 29 de outubro de 2018

PARA TODO O SEMPRE, ADEUS!



*Rangel Alves da Costa


Não adianta manter árvore frondosa com água de cuia. Ou a planta se sustenta com suas próprias forças ou jamais terá o mesmo viço e a mesma beleza.
Assim também no amor. Não adianta tentar manter uma relação, quando a outra parte quebrou seu contrato de respeito e fidelidade e fez da traição uma escolha.
Não existem primaveras eternas. Sim, o jardim é belo, as flores são belas, as borboletas também. Mas sempre chega um outono. As folhas caem, tudo seca e morre.
O amor não se sustenta no fingimento, na falsidade, na traição. Aquele que ama e que deve confiar, de repente se vê achincalhado pelo triste e lamentável comportamento do outro.
Como diz o Eclesiastes, tudo tem o seu tempo de existir. Nada aconteça de um só modo para sempre. A tristeza se vai e vem a alegria, um dia passa e outro vem. No amor também.
Só que no amor, o outro lado da moeda, ou o vencimento das fases ruins, deve ser suportado com mais amor. Quando dois realmente se amam, quando guardam fraterno compromisso, nenhuma ventania poderá separá-los.
Contudo, impossível que o amor continue vingando quando o desrespeito aflora. Na lógica da vida e do respeito ao outro, não é coisa do outro mundo que alguém termine um relacionamento para em seguida começar outro. Mas trair?
A traição, como já disse o poeta, é o mais feroz dos punhais, é a mais sedenta das armas, é o mais terrível instrumento de destruição. Nada mais agonizante que o mundo inteiro saber e o traído ser o último a ser certificado daquilo que lhe fizeram.
Adjetivos para quem trai? Inúmeros, infinitos, infindáveis. Vil, vulgar, abjeta, desleal, infiel, pérfida, traidora, falsa, injusta. Ou, num linguajar mais apropriado à espécie: quenga, rampeira, safada, vagabunda.
Mas nada de tão ruim assim. Árvore boa não vinga frutos bons em meio a frutos ruins. Os frutos apodrecidos devem cair para que nasçam espécies novas. Como uma serpente, deve ser expulsa do paraíso.
Triste é o destino dos traidores. Um cão sarnento terá melhor destino. Uma barata asquerosa possui melhor destino. Um bicho putrefato de esgoto possui melhor destino. O mais abjeto dos seres possui melhor destino. E por quê?
Simplesmente por que o preço que será pago será muito alto. Logo receberá o desprezo, logo receberá traição ainda maior, logo baterá portas e nada mais encontrará. Vai querer morrer e não terá quem vele seu corpo imundo.
O pão lhe faltará, a roupa lhe faltará, a dignidade lhe faltará, o mínimo de sobrevivência lhe faltará. Ora, tudo isso tinha exatamente com quem lhe confiava e amava. Tudo isso tinha com quem acreditou que valia a pena conviver a seu lado. Mas valeu?
Mas eis que chega o outono. As árvores entristecem e depois renascem. Merecem viver, merecem ser felizes. Contudo, a folha morta jamais do chão se levantará. E nesta folha morta, imprestável, que estará a face da traiçoeira.
Quando chegam os novos tempos e tudo começa a florir novamente, resta ao arvoredo, sem piedade, olhar para baixo e, perante a folha morta, dizer: Para todo o sempre, adeus!


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Lá no meu sertão...



Em Poço Redondo, na Praça Frei Damião. Praça nascida na terceira gestão do prefeito Alcino Alves Costa (que também construiu o Colégio Municipal Menino Deus, que fica logo ao lado) e batizada com o nome do frei capuchinho que - ao lado do Padim Ciço - é reverenciado e adorado como santo sertanejo. Frei Damião das Santas Missões e das esperanças boas ao povo de fé. E que bom novamente visitar este espaço público e a instituição de ensino construídos por meu pai. Aliás, por todo o Poço Redondo ainda há a viva presença do prefeito Alcino.




Verso triste (Poesia)



Verso triste

Uma caneta à mão
uma folha de papel adiante
mas ao fogo do entardecer
uma saudade sem fim

meu poema era de amor
meu verso era de contentamento
mas o que restou na escrita
foi versejo sofrido e de lamento

rasgo o papel e o poema
jogou lá fora toda desilusão
mas sei que de nada adianta
o verso triste continua no coração.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - odeio falsidades e fingimentos



*Rangel Alves da Costa


Odeio, sim, pessoas que acostumam no desrespeito. Abomino, sim, pessoas que acham que os outros são um nada e humilham sem piedade. Detesto, sim, pessoas que de repente passam a tratar os outros como palhaços. Mas vejam o que acontece. Envio uma mensagem pelo whatsapp, sei que a pessoa leu (ainda que não mostre o sinal da leitura, mas os dados mostram claramente quantos minutos se passaram desde a visualização), mas ainda assim ela faz de conta que não recebeu mensagem alguma. Se é uma pergunta, nada responde. Se pergunta novamente, insiste em não responder. Ora, por que faz isso? Simplesmente pelo desrespeito, pela má-educação, pela avacalhação e desmoralização com que trata o outro. Isso aconteceu algumas vezes comigo. Mas não acontecerá mais. Também não responderei mais nenhuma pergunta e, por fim, irei bloquear. Como diz o outro, respeito é bom e eu gosto.


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domingo, 28 de outubro de 2018

CASEBRES E SOLIDÕES



*Rangel Alves da Costa


Casebres e solidões. Nos casebres as solidões. As solidões avistadas do lado de fora e imaginadas do lado de dentro. E há um mundo que é assim. Conheço esse mundo, pois caminho pelos seus caminhos, visito os seus semblantes e me entristeço perante suas portas e janelas sempre fechadas.
Verdade que os sertanejos costumam manter suas portas fechadas em todos os instantes do dia. Somente ao entardecer, quando uma cadeira é colocada diante da porta ou quando o dono da casa se assenta num tamborete para ouvir seu radinho de pilha é que surgem sinais de vida, de presença daqueles moradores. Ao invés da porta da frente, é a porta dos fundos, que dá para o quintal ou cercados, que é utilizada como entrada e saída. Quanto muito, apenas um bicho de cria arreliando de canta a outro.
Pelos sertões o que se encontra, assim, são casas tristes, de feições abandonadas, de portas fechadas, de malhadas solitárias, num quase sem vida. Mesmo que lá dentro estejam muitas pessoas, mesmo que lá dentro a vida esteja correndo apressada, é como se nada assim existisse perante aquele que passa adiante e lança o seu olhar naquela direção. E não há quem não se aflija com aquela moldura tão aflitiva e melancólica. Imagina-se sempre estar apenas diante de um abandono, de vidas partidas, de vidas dali já distanciadas pelas intempéries da existência em mundo tão difícil de ser suportado perante as estiagens.
Sempre entristeço ante o silêncio melancólico das casas tristes nos beirais das estradas. Portas e janelas fechadas, sem cheiro de café torrado ou de tripa de porco torrando no fogão de lenha. Procuro pelo menino Zezim, procuro pela menina Joaninha. Mas nada. Nem um cachorro magro nem a voz de um papagaio falador. Murchou a bela flor que outrora era avistada no umbral da janela. Esturricou a planta que antes descia pelo caqueiro pendendo no pé de pau.
Tenho vontade de ir até lá e bater à porta. Oi de casa, oi de casa! Tenho vontade de ir até lá e bater na madeira como alguém que chaga para trazer uma notícia boa sobre um mundo novo. Ou apenas dizer: Oi de casa, oi de casa! Chamar assim. Mas desisto, enfim. E sigo pelos meus sertões em busca de portas abertas e daquilo que me dê alegria. Zezim, onde tá você? Joaninha, onde tá você? É o que pergunto em meu pensamento. E entristeço e choro. E silencioso pranteio a dor de todas as ausências do mundo!
Sigo adiante e aquele mundo solitário e triste para se eternizar logo atrás. Mas não posso esquecer aquela moldura ainda fixa no meu olhar. Zezim deveria estar ali na malhada, debaixo do umbuzeiro, reinando com ponta de vaca, correndo atrás de calango, atirando com peteca baleadeira. Zezim, Zezim, seu mundo está ali e por que você não estava? Joaninha também deveria estar pelos arredores da casa, levando consigo a boneca de pano descabelada e desenho círculos no chão aberto para brincar de pular. Joaninha, Joaninha, seu mundo está ali e por que você não estava?
Faltou-me sentir aquele aroma forte, encorpado, cheiroso, oloroso, do café fervendo em riba do fogão de lenha. Que festa ao olfato este perfume tão sertanejo, nascido desde o pilão para bater o café, à arupemba para separar o pó do restante dos grãos, e depois todo o negrume misturado à água fervente para a festa maior do sabor e da vida. Não senti tal cheiro ali e senti muita falta. Também não ouvi os barulhos do ofício na cozinha, com panela batendo, talher caindo, criança chorosa querendo comida. A mulher não abriu a porta para aguar a planta. Não havia planta, não havia nada. O homem não abriu a janela para avistar possíveis nuvens de chuva ao horizonte. Não há chuva num sertão assim.
Entristeci e chorei pela moldura de angústia e desilusão. Não pelo sertão em si, com seu sorriso triste e seu corpo esquelético, mas pelo seu povo que sequer parece existir naqueles casebres tristes de beirais de estrada. Talvez algum dia eu retorne e encontre tudo diferente. Talvez eu encontre a porta e a janela abertas, Zezim e Joaninha nos seus afazeres de criança e a sertaneja jogando água por riba da planta sedenta. O sertanejo certamente estará por ali, mexendo numa coisa e noutra, afiando uma enxada, dando lustre ao facão, remendando seu aió de caçador.
Talvez eu retorne e encontre a vida na sua vida, o homem sertanejo no seu lugar. Mas por enquanto, ainda choroso, ainda triste. Sou sertanejo também.


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Lá no meu sertão...


Sertão - Cultura, Fé, Tradição!



Sim, não (Poesia)



Sim, não

Às vezes
sento numa pedra
debaixo do sol
na solidão descampada
e fico pensando
sim, não
sim, não
sim, não

a pedra ouve
meu pensamento e diz
se é o não
não pense
sofra
chore
pala falta
do sim.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - passaram-se as eleições...



*Rangel Alves da Costa


Meus amigos, as eleições passaram e deixemos de ilusões. Somente eles ganham. Nós continuaremos sofrendo. Então venha cá e me dê um abraço! Que não se imagine que as promessas serão cumpridas. Mas não se cumpre promessa política. Acreditou por que quis, mas não deveria acreditar. Mas não fique assim não. Venha cá e me dê um abraço! Sim, as eleições passaram, Bolsonaro foi eleito e talvez o seu governador, mas e daí? Triste dizer, mas depois de votar, povo passa a ser simplesmente povo perante os políticos. E enquanto povo, novamente chutado, açoitado, tendo carregar nas costas todo o sofrimento do mundo. Sim, eu deveria estar muito feliz, contente demais, esfuziante, pois o meu candidato Bolsonaro ganhou. Mas sinto-me apenas com o dever cumprido. Apenas isso. Não, não tenho ilusões. Os castelos apregoados serão de areia, e com Bolsonaro ou qualquer outro que fosse eleito. Nada de novo acontecerá amanhã, nada de novo debaixo desse sol brasileiro. Apenas a vida que segue e cada um por si mesmo, entre dores e agonias, e tostões cada vez mais difíceis.


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sábado, 27 de outubro de 2018

EX-VOTOS (O CANGAÇO E OS MILAGRES SERTANEJOS)



*Rangel Alves da Costa


Difícil imaginar, mas na Estrada de Curralinho, nas distâncias sertanejas de Poço Redondo, um inusitado local de beirada de estrada serve como exemplificação maior de como a fé do povo transforma um cenário de vingança sangrenta em local de local de fé. Debaixo de um pé de pau estão fincadas duas cruzes de soldados mortos em agosto de 37 pelos homens comandados por Corisco numa vingança perpetrada contra a morte do cangaceiro Pau-Ferro.
Sisi e Tonho Vicente, soldados que serviam no destacamento policial do distrito de Poço Redondo (e que nada tinha a ver com a força policial que atirou contra o cangaceiro), foram emboscados e mortos. Depois disso, a concepção sertaneja de ”malvadeza cometida contra inocentes”, fez com que o local se tornasse em verdadeiro santuário de adoração e de pedido de curas. Segundo relatos, muitas curas já foram conseguidas através da intercessão das Cruzes dos Soldados.
Prova maior são os ex-votos deixados no local. Ex-votos (que significa “por força de uma promessa”) são oferendas deixadas no local como forma de agradecimento pelas graças alcançadas. E ali, ao redor das cruzes, mãos, pés, membros, tudo em madeira, mostrando que mãos foram curadas, pés foram salvos, membros retomaram suas forças. Assim a fé do povo. E não há como negar a crença pelo milagre.
 Como dito, tudo teve início com uma vingança cangaceira. A morte do cangaceiro Pau-Ferro gerou um revide tamanho que até hoje as cruzes da estrada de Curralinho testemunham aquele troco de sangue. Tudo começou na Fazenda Quiribas, em Poço Redondo. Um grupo de cangaceiros, dentre os quais Corisco, Mariano e Zé Sereno, repousa tranquilamente nos arredores de um riacho quando é avistado pelo soldado Miguel Feitosa, ali apenas de passagem. Retornando imediatamente, o militar avisa ao comando sobre o ocorrido.
Um pequeno agrupamento militar é formado e segue em direção ao coito. Ao chegar ao local, logo percebe que o pequeno número de soldados sequer pode assustar aquele grande numero de cangaceiros. Então decide recuar. Recuou, mas já distante - e fora do alcance da cangaceirama - dois soldados resolvem atirar na direção dos cangaceiros. Um tiro acaba acertando e matando o cangaceiro Pau-Ferro.
Foi a motivação para que a fogueira se tornasse em odiosa labareda. A cangaceirama correu no encalço da soldadesca, porém sem alcançar. Mas a vingança estava jurada, não demoraria muito para que os homens da caatinga farejassem os culpados pela morte do companheiro e dessem o troco merecido.
Mas a vingança foi feita em dois que sequer haviam participado daquele episódio. Os soldados Tonho Vicente e Sisi destacavam na povoação de Curralinho, naqueles idos de 1937 um lugarejo ribeirinho próspero e porto principal da chegada e partida de todo tipo de mercadoria daqueles sertões de Poço Redondo, então distrito de Porto da Folha, quando de lá partiram na companhia de outro soldado, Miguel Feitosa, aquele mesmo que havia informado sobre a presença do bando.
Chegando de canoa de Propriá, Miguel Feitosa certamente desembarcaria no porto de Curralinho e logo tomaria a estrada normal, sempre utilizada por todos, para chegar a Poço Redondo. Contudo, imediatamente foi avisado que daquela feita não fosse de jeito nenhum pela conhecida estrada, pois a cangaceirama estava por todo lugar. E foi por isso que buscou a companhia protetora dos soldados Tonho Vicente e Sisi.
No dia seguinte, segunda-feira, Tonho Vicente e Sisi se prepararam para retornar e, dessa feita junto com alguns feirantes, pela estrada normal. Após a feira na povoação, muitos feirantes seguiam aquela estrada para embarcar em Curralinho em busca de novas mercadorias. Os primeiros que foram passando foram logo presos pela cangaceirada à espreita. Não lhes interessavam estes, pois simples sertanejos, mas sim os soldados que pudessem aparecer.
E não demorou muito para que as expectativas dos cangaceiros se confirmassem. Logo surgem perante aqueles olhares ávidos por vingança. A confirmação de que se tratava de soldados surgiu da troca de sinais, mas de repente se percebe que um estranho está em meio aos dois militares. Este foi poupado, mas não Tonho Vicente e Sisi. O primeiro, baleado, correu e foi alcançado em seguida. Já o segundo, depois de preso, amarrado e interrogado, também não teve destino diferente.
Ainda hoje, duas cruzes marcam o local da emboscada e onde foram enterrados os dois soldados. Quem segue pela estrada de Curralinho, do lado direito de que vai em direção ao rio, facilmente avista o retrato póstumo daquela vingança cangaceira. E além das duas cruzes, também avistará outro retrato impressionante: a devoção atual pelos dois soldados mortos.
Com efeito, muitos moradores chegam ali adoentados, desesperançados, aturdidos pelas consequências da vida, e se entregam a orações e promessas. E os ex-votos estão ao redor das cruzes para ninguém duvidar. Cabeça em madeira, pé e mão, fitas, rosários, dádivas da crença de um povo, ainda que nem sempre saiba dos fatos que originaram a atual devoção.


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Lá no meu sertão...


O espanto do cangaceiro



O doce e o amargo (Poesia)



O doce e o amargo


Era manhã
era meio-dia
era todo dia

e eu brincava
e eu zanzava
e eu traquinava
e eu corria
e eu sorria

mas um dia
perdi o sorriso
e a alegria

e eu chorei
pelo adulto
que em mim vivia.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – quando a Sra. Maureen vai tomar chá



*Rangel Alves da Costa


Todos os dias, em horário pontual, a Sra. Maureen se apresenta perante o sua Sala de Flores para tomar chá. Ambiente requintado, uma pequena sala com parede envidraçada que se defronta com um florido jardim, quase sempre recebendo uma brisa boa e perfumada. Ao chegar, a velha senhora senta-se numa cadeira tendo adiante uma mesinha ornada de flores e enfeites rústicos, para logo receber a visita da serviçal. A empregada chega impecável, com roubas e lenço brancos, e sempre empurrando um carrinho com chá, café, leite, biscoitos, pedaços de bolos, pãezinhos, geleia, polvilhos, nata fresca e muito mais. Coloca tudo sobre a mesinha e se despede para que a velha senhora faça seu desfrute do entardecer. Comida que talvez desse para dez ou vinte pessoas. Logo a senhora coloca chá numa xícara e a leva até a boca, porém a recolhe em seguida. Nunca experimenta nada, nunca bebe um gole de nada. Em seguida, após colocar a xícara de chá sobre a mesa, põe-se com o seu olhar perdido sobre o jardim e os horizontes. Então começa a lacrimejar. Seus olhos imóveis, mirando sempre na mesma direção, deixam-se tomar de lágrimas. E os pãezinhos, os bolos, o café, o chá, todas as guloseimas entristecem também. Até que a noite caia. E todos os dias assim.


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sexta-feira, 26 de outubro de 2018

UM POVO-PRESA DAS RAPINANTES



*Rangel Alves da Costa


As aves de rapina ou rapinantes são muito perigosas. São vorazes, carnívoras, carnicentas, devoradoras, cruéis e insaciáveis. Basta saber o que fazem os abutres, os gaviões e os carcarás: pegam, matam e comem. Possuem bicos curvos, afiados, famintos e sedentos quanto os mais malvados punhais. E atacam precisamente perante as presas mais frágeis, mais desvalidas, já sem forças para reação ou defesa.
Pelos sertões, principalmente em tempos de seca grande, tais carnicentas possuem vítimas em fartura. Por todo lugar a um bicho só no couro e osso, há um animal caído, há um resto de sopro de vida para ser apagado de vez. Como exímias farejadoras, as rapinantes logo sentem o cheiro da morte e começam, lá do alto, a rondar suas presas. E num instante, em voos rasantes e velozes, já estarão enfiando suas garras, os seus bicos e seus punhais, pelos corpos estremecidos. O sangue jorra, as entranhas são abertas, o fim.
Um terrível e macabro festim, mas é assim que acontece. Quase um canibalismo animal. Ou será uma lei da sobrevivência levada ao extremo? A verdade é que depois do regabofe carnicento, e ainda com os bicos respingando vísceras, sangue e restos putrefatos, os voos são levantados para, muito acima das copas das árvores, os olhos de labaredas continuarem caçando outras vítimas. Insaciáveis, sempre querendo mais, de repente avançam umas sobre outras, e se matam e se devoram. E as que sobrevivem já estarão prontas para atacar novamente.
Sim, parece mesmo uma história macabra demais. Mas como já dito, é assim mesmo que acontece. Porém tudo pode ser visto de outra forma, com as rapinantes sendo transformadas em outras coisas e espécies muito conhecidas por todos. E também a presa, que deixa de ser o desvalido bicho para ser transformado em desvalido homem. Assim, de repente a própria seca pode ser a grande devoradora, o governante pode ser o grande predador, o político pode ser o mais terrível dos carnicentos. O sertão e o sertanejo como espécies fraquejantes que recebem os bicos afiados de tais visitas.
Sim, ser humilde, ser carente, ser empobrecido, ser necessitado, ser à desvalia, a presa está em ti. Sim, ser algoz, ser governante, ser do poder, ser mandante, ser político, ser poderoso, ser de desmedida voracidade, o predador está em ti. De um lado, o escravizado, o submetido, o subserviente, o enfraquecido, o fragilizado. E do outro, o senhor dono do mundo, o mandachuva, o carrasco, o capataz, o verdugo. E tantos bicos afiados, vorazes, ferozes, para estraçalhar vítimas que sequer podem se sustentar.
Há uma terrível selva. Seja nas relações político-eleitoreiras, empregatícias, de mando e autoridade, no cotidiano, há sempre um gavião querendo devorar um pobre trabalhador, há sempre um carcará querendo estraçalhar com um frágil humano, há sempre um gavião querendo abocanhar um desvalido, há sempre um urubu querendo destripar o que já não tem forças nem pra se sustentar.
Qual o valor que o do alto dá ao que está embaixo? Qual o respeito que o poderoso tem por aquele que vive à sua mercê? Qual a dignidade que o mandonismo oferece ao que vive como seu serviçal? São predadores devorando presas. Muitas vezes, não precisa ferir, sangrar, matar, mas tão somente tratar como escravo ou um reles aquele ser humano que deve, acima de tudo, ser valorizado e respeitado.
A verdade é que o desvalido sofre, padece, sangra. Mas a voracidade do predador nunca diminui.


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Lá no meu sertão...


Chegadas e partidas...



Anjo anjo (Poesia)



Anjo anjo


Anjo
meu anjo
anjo

carmim
querubim
jasmim

e eu
no teu céu
anjo sou

de amor
amor
amor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – o amor e o destino



*Rangel Alves da Costa


Sim, quero além do beijo. Coisa do destino. Sina, escrita nas páginas da vida e do mundo. Eu não te conhecia, mas te conheci. Por que fui ali e não noutro lugar? Por que dentre tantos você me olhou? Por que dentre tantas eu olhei somente você? Coisa de destino. Assim haveria de acontecer. E depois do olhar o desejo. Em mim e em você. Por que não sai e fui embora sem olhar pra trás? Por que você não foi embora sem sorrir pra mim? Mas te olhei. E você me sorriu. E depois me buscou. E depois me encontrou. E fui atrás de você. Até que surgiu a primeira palavra. Sim. Sim. Estava escrito no destino. Um olhar profundo, um abraço, um beijo profundo. E já te amava e já era teu. E você já me amava e já era minha. Não se podia negar, não se podia fugir, não se podia voltar atrás. Tudo destino. Sim, meu amor, destino, destino, destino. Nascemos um para outro. E por que agora rasgar a escrita, rasgar a folha sagrada, e me dizer não? Um não não estava escrito. Por que te amo. Te amo. Te amo. Te amo!


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quinta-feira, 25 de outubro de 2018

UMA HISTÓRIA DE POBREZA E SOLIDÃO



*Rangel Alves da Costa


Seria a pobreza condição humana capaz de afastar o reconhecimento do desvalido por outras pessoas, até mesmo em igual condição?
Seria o nada ter, o viver na miserabilidade, sobrevivendo apenas do mínimo necessário para se manter em pé, algo tão terrível e capaz de negar o auxílio na hora extrema?
Seria o viver sozinho, o ter poucos amigos, morar nas distâncias dos centros urbanos e nas ruas de areia e barro, a justificativa para o abandono?
Seria o abandono e a falta de reconhecimento as consequências da pobreza, ou seria a pobreza a causa de tudo ruim que possa acontecer?
Seria humanamente justo que alguém por ser pobre, morar nos cantos da cidade, venha a falecer e não ter ninguém que acorra para uma prece, para velar o morto?
Ou seria apenas consequência da crescente falta de cristandade no coração das pessoas, carência de senso humanitário ou pouco caso com quem morre ou deixa de morrer?
De qualquer modo que possa ser visto, verdade é que um velho, senhor de mais de oitenta anos, partiu dessa vida e na hora do velório não havia uma só pessoa velando o morto.
Era pobre, vivia numa casinha que mais parecia um barraco caindo aos pedaços, viúvo, sem filhos, morava sozinho. Mas havia muitos parentes seus no lugar.
Aparentemente tinha muitos amigos. Ao entardecer, quando deixava sua moradia e seguia até a praça principal da cidade, sentava sempre no mesmo banco de esquina e logo era cercado por muitos.
Sua pobreza e simplicidade não afastavam sua reconhecida sabedoria, seu dom para repassar aos mais jovens as mais diversas lições sobre a vida e ensinar os melhores caminhos perante as tortuosas estradas.
A um dizia sobre a importância de preservar uma vida justa e digna para ter sempre o reconhecimento da comunidade; a outro discorria sobre os malefícios dos vícios e da vida desregrada; e ainda a outro falava apenas sobre sua vida de tantas lutas e do nada que havia conseguido.
Sem medo nenhum, dizia sobre o tempo, ainda rapazote, quando se meteu a ser jagunço do coronel mais importante e poderoso da região. Nunca havia matado ninguém, mas já tinha visto muito sangue de inocente escorrer.
Contava também do tempo que inventou de ser cangaceiro do bando de Lampião e só não foi lutar debaixo do sol porque no dia que ia se apresentar a cangaceirada havia deixado às pressas o coito onde estava escondida.
E assim levava sua vida conversando com um e com outro, ensinando e ouvindo, repassando lições dos tempos antigos e da vida presente. Até sobre porções de ervas medicinais o velho dialogava.
Mas numa daquelas tardes não compareceu ao seu banco de todo entardecer. Nunca mais voltaria ali. Aqueles que o procuraram naquele dia não sabiam que o velho amigo havia falecido quase chegando ao meio-dia.
Morreu sentado diante do barraco, sentado num banquinho. Vizinhos avistaram e correram para acudir. Já era tarde demais. Um caixão de ripas foi providenciado pela assistência social e o corpo estendido por cima de dois tamboretes na saleta apertada da moradia.
Duas ou três pessoas passaram por ali, para o último adeus. Mas depois do entardecer não apareceu mais ninguém. Nem vizinhos, amigos da praça ou outros conhecidos. E quanto mais o tempo passava mais a solidão do falecido aumentava.
A noite chegou e nenhuma vela acesa. Nenhuma beata acorreu para a sentinela, nenhum canto de despedida foi entoado. Apenas o vento soprando pela porta aberta. E lá dentro a solidão da solitária morte.
Sem uma vela, sem uma prece, sem um adeus, apenas a morte velando o morto, apenas a morte…


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Lá no meu sertão...


Velho Chico - um rio que passa na minha aldeia




O pássaro e o sonho (Poesia)



O pássaro e o sonho


Lindo pássaro que me levou em voo
que me fez também ser passarinho
que me fez conhecer o chão da nuvem
que me fez viver a brandura dos espaços
que me fez sentir a beleza dos horizontes

mas triste pássaro que partiu ao alvorecer
que levou em voo os sonhos sonhados
que levou minha nuvem e meu entardecer
e me deixou assim tão solitário passarinho
desalentado da vida e de tão vazio ninho.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – é cada uma!



*Rangel Alves da Costa


É cada uma que dá duas, como se diz. Gente que não respeita ninguém e querendo ser respeitada. Mulher que só vive de traição e querendo se intrometer na vida dos outros. Pais que não educam os próprios filhos e metendo a colher no que os filhos dos outros fazem ou deixam de fazer. Menina nova que embucha e depois ainda tem a cara de pau de dizer que não sabe quem é o pai. Gente que se diz estudada, e até formada, mas só vive deturpando as realidades. Pais que entregam os filhos ao mundo e depois querem chorar o leite derramado. Gente que vive na aparência de bonança, de riqueza, mas só vive endividado. Não é dono do carro, do anel nem da carteira que usa. É cada uma!


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quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O SERTANEJO E SUA DOR MAIOR



*Rangel Alves da Costa


A seca avança cada vez mais, a falta de chuvas amedronta. Pelos campos, o verdor deu lugar ao acinzentado. A planta encolheu, morreu, virou pó. Paisagens tristes, desoladas, de um melancolismo angustiante.
Água lamacenta no fundo tanque. Um barreiro que ressecou de vez. O barro onde antes havia água empoçada. Uma carrada d’água? Ou os olhos da cara ou a humilhação. Dias de angústia e de sofrimento.
Por consequência, em diversas situações, o retrato de secura que se avoluma não está mais sendo suportável ao sertanejo, principalmente aquele sem recursos suficientes para manter o que lhe resta de rebanho de cria.
Nos fins de semana em meio ao sertão, de passo em passo eu ouço palavras de aflição e sofrimento. O estado agrava-se de tal modo que em muitas localidades não há mais sequer um resto seco de pastagem e que permita que a vaquinha magra vá iludindo a fome.
Triste é o momento chegado de ter de comprar palma, farelo ou outro alimento para o bicho. Até quando vai poder tirar do pouco que já tem para comprar ração para o bicho na pele e no osso?
Ora, o sertanejo já não tem além daquilo que pouco tem para sobreviver, e tirar do quase nada é sacrifício demais. Contudo, um sacrifício que insiste em se tornar prática no dia a dia. Mesmo sabendo que nada pode fazer ante a seca, insiste em se armar com todas as forças.
Mas existem outros sacrifícios. A pequena feira é reduzida ainda mais, a roupinha do menino fica pra depois, o remédio só se não houver mesmo jeito, nada além do necessário ao comer e beber. O cuscuz com ovos, de repente se transforma somente no pão.
O feijão com tiquinho de carne, de repente se transmuda apenas em qualquer coisa com ovo. E assim por que a vaquinha magrela também é vista como da família. O cavalo ossudo também é da família.
E não há verdadeiro sertanejo que se sinta bem colocando um pedaço de pão na boca ou bebendo uma caneca d’água e sabendo que o seu bicho está berrando de fome ou de sede. Há bem dizer, chora a mesma lágrima do bicho, sente a mesma dor de seu animal de cria.
Imenso é o amor sentido pelo sertanejo por aquilo que possui. Padece pelo bicho uma dor parecida com a sentida quando um filho seu está doente. Agoniza na magrez do anima, muge por dentro a mesma sangria do animal. E isso é fácil de ser percebido.
Por que o homem da terra gasta mais para manter sua vaca viva do que o valor que ela possua mesmo gorda? O amor sentido, só isso. A abnegação sentida por aquilo que lhe está presente desde o alvorecer ao anoitecer, e dia após dia numa relação de amizade sem fim.
No sertão, homem e terra são uma coisa só. E homem e bicho fazem parte da mesma família.


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Lá no meu sertão...



MINHA IMENSA CASA. E como gosto de bater à sua porta e nos braços da história deitar. Como me deleito conversando com os retratos antigos. Meus olhos viajam em reencontros e alegrias. Meus passos seguem por estradas por muitos já esquecidas. Mas não esqueço nada. Tudo busco e rebusco como se estivesse encontrando a mim mesmo. O sertão está aí. Meu pai está aí, minha mãe está aí. Benção!




O retrato (Poesia)



O retrato

Hoje o meu amor
tão linda e tão bela
um retrato me mandou
toda nua e singela
com pétala e sua flor
brilho do sol à janela

uma pele que já beijei
cabelos que já alisei
curvas que já passei
seios que já toquei
todo o corpo que amei
e quis mais e me fartei

e veio-me a fotografia
e pulsei forte o coração
tão distante neste dia
que deixo tudo ao desvão
e sigo e vou em correria
pegar o retrato com a mão
amar o amor que extasia.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - política e facebook, um triste retrato da inteligência brasileira



*Rangel Alves da Costa


Não tenho dúvidas: política e facebook, um triste retrato da inteligência brasileira. Ora, impossível pensar diferente. Será que o brasileiro regrediu na sua inteligência, se idiotizou a tal ponto de acreditar que política partidária é o bem maior de sua vida? Brigam, esculhambam, deturpam, divulgam mentiras, fazem inimizades, agem desrespeitosamente, e tudo em nome de um candidato. Mas que candidato, se depois a mesma ladainha da imprestabilidade vai surgir? Será tão difícil assim saber interpretar a realidade eleitoral? Será tão difícil assim conhecer a veracidade daquilo que surge em profusão? Será tão difícil de raciocinar sobre o lógico, o inegável? Parece que sim. A idiotização é tamanha que chegam a acreditar que de um dia para outro um candidato subiu vinte pontos. A idiotização é tamanha que acreditam e passam a divulgar coisas verdadeiras absurdas, que tal candidato vai tomar a casa de todo mundo, que tal candidato vai mandar prender todo mundo. Serão estes aqueles que o petismo tanto ser arroga de ter tirado da miséria e dado educação?


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