SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 31 de março de 2011

AS ÁGUAS DO MAR VIVO (Crônica)

AS ÀGUAS DO MAR VIVO

Rangel Alves da Costa*


É constatação científica que as águas do Mar Morto, que na verdade é um lago de água salgada localizado no Oriente Médio (na região interior da Palestina, banhando a Jordânia, Israel e Cisjordânia), faz flutuar todos os corpos que nele adentram e impossibilita o surgimento e procriação de qualquer forma de vida em suas águas. E tudo devido à sua excessiva salinidade.
Segundo os estudiosos, a característica mais marcante do Lago Asfaltite, como também é chamado, é a alta concentração de sal em suas águas, com cerca de 300 gramas de sais para cada litro de água. Esta característica impossibilita o desenvolvimento de peixes ou qualquer outra forma de vida. Os seres que nele procuram se banhar ficam boiando; os peixes, que chegam pelo rio Jordão, morrem instantaneamente ao entrarem no lago. Por isso, ele é chamado de Mar Morto.
Simbolicamente, o Mar Morto relaciona-se a tudo que é difícil de ser alcançado, tudo que é provisório, exaurível e esgotável, e tudo que vai se evaporando e se dilui, tornando de triste aparência aquilo que parecia abundante e florescente. Do mesmo modo, relaciona-se ao que aos olhos é deslumbramento e encanto, mas que na convivência é aflição e temor; e ainda ao poder mágico que possui aquilo que é aparentemente sem vida.
Mas o que é a salinidade do mar morto senão um exemplo de que a vida deve ser preservada mesmo diante das dificuldades impostas. Em muitos pontos daquela imensidão de águas salgadas o líquido evapora-se e em seu lugar surgem pedras cristalizadas de sal. E historicamente o sal significou preservação e perseverança, luta para manter a pureza dos seres.
Contudo, o Mar Morto que ao mesmo tempo impede o surgimento da vida e busca preservar aquela já existente, caminha por outros vales e fundas até desaguar noutros mares por nós todos conhecidos e navegados. Todos os dias nos banhamos nesse mar imenso de águas apenas salobras que surgem das nossas lágrimas e nossos suores. Experimentamos agora o medo de submergir nessas águas do Mar Vivo.
As águas desse Mar Vivo, contrariamente às águas do outro mar, possuem tamanha força atracional às suas profundezas que é muito difícil de nos manter na sua lâmina sem sermos constantemente puxados e empurrados para baixo. O peso do suor e das lágrimas atua sobre nossos corpos e de repente somos quase ninguém diante de qualquer dor ou sofrimento.
Nessas águas do Mar Vivo de pouca valia é a suposição da força física, poder material e o navegar em embarcações de infinitas riquezas. É mais fácil não naufragar o barquinho dos humildes do que o transatlântico que nunca soube enfrentar uma geleira formada de angústias e desilusões. O barquinho segue singrando, ainda que ameaçado por cada vento e norte, porque acostumado com as dores do cotidiano e as angústias que não causam mais nenhuma perplexidade.
Olhando o Mar Vivo que banha a vida inteira ninguém diria que apenas poucas gotas de suas águas têm o poder de naufragar pessoas e seus mundos. Quantas gotas de suor são derramadas na fuga e no medo do monstro terrível que está escondido em cada esquina? Quantas lágrimas são derramadas sem que os motivos tenham que dizer tanto da dor escondida, da solidão opressora, do abandono constante, das noites em claro em busca de qualquer razão para continuar vivendo?
Tem gente que aprendeu a caminhar sobre as águas do Mar Vivo ainda que saiba que vai submergir a qualquer instante. Caminha consciente de que pouco há a fazer diante o peso das ações humanas, estas mesmas ações que são como barras de ferro forçando a descida. Caminha apressadamente na esperança de encontrar o Mar Morto a qualquer instante.
Sabe que no Mar Morto a vida só subsiste por cima das águas, enquanto que no Mar Vivo é a vida que vai se afogando lentamente, pela força do suor, pelo peso da lágrima.





Poeta e cronista
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Tenho que dizer... (Poesia)

Tenho que dizer...



Se andar sofrendo demais
é certeza de felicidade amanhã
que a felicidade seja vã
porque não suporto mais

se sempre ser negado no amor
é sinal de que virá um sim
que continue esse não em mim
porque acostumei com a dor

se você sempre me joga e chuta
porque amanhã poderá acolher
que continue esse tanto sofrer
porque a vida é feita de luta

se pensa que o mundo é só teu
tenha também o sol e a lua
tenha o mar e toda essa rua
mas nunca será como eu

se aprender o que é humildade
respeito e consideração
respeitará o próprio coração
e o de quem sente amor de verdade.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 69 (Conto)

DESCONHECIDOS – 69

Rangel Alves da Costa*


Cada um foi chegando pouco a pouco. Um trazia uma calça velha, outro uma camisa rasgada; ali uma saia remendada, acolá um lenço de cabeça, pois servia também. Carol levou uma blusinha de malha e Soniele, quase sem agüentar se segurar em pé, levou o vestido que usava pela manhã.
Ninguém sabia como ele soube do encontro, quem o convidou, mas a verdade é que o profeta Aristeu chegou ao local, tirou o molambo que usava como camisa, depois se ajoelhou frente ao rio, fez alguma coisa que bem poderia ter sido uma prece e depois, após pronunciar poucas palavras para que Pureza ouvisse, se retirou e sumiu na noite. Certamente ficaria por cima das pedras ou dos montes observando tudo.
Pureza não quis acreditar no que ouviu, mas ouviu: “Amanhã ela chega, e depois mais ela e mais ele e mais ele. Todos os desconhecidos vão chegar e não haverá prece de lua cheia que impeça das coisas acontecerem. A profecia não nega. As pessoas é que se contentam em rezar para a salvação de hoje. E amanhã, quem salvará todo mundo amanhã?”.
Ainda bem que o povo não ouviu, ficou dizendo a si mesmo a pescadora. Os outros não ouviram, mas não deixaram de estranhar a presença dele ali. O comportamento estranho do profeta, seu aspecto de louco e sua presença injustificada, certamente que causava um certo temor entre todos. Tanto era assim que todos se benzeram quando ele se retirou.
Chegado o momento de iniciar o ritual, Pureza pediu que todos ficassem atrás da linha do círculo e só falassem quando ela pedisse para repetir algumas palavras. E assim foi feito. Todos em pé, em silêncio, ficavam observando a mulher ganhar um brilho diferente no rosto, levantar as mãos para o alto e em seguida fazer o sinal da cruz para todos os lados. Em seguida abaixou-se, acendeu a fogueira, derramou a água, espalhou a areia e jogou as roupas pelo ar. Então pediu: “Repitam bem alto comigo: fogo, água, terra e ar, toda maldade há de passar”.
Então pelos quatro cantos ecoou: “fogo, água, terra e ar, toda maldade há de passar”. E repetiram mais uma vez: “fogo, água, terra e ar, toda maldade há de passar”. E para espanto dos presentes, menos da ritualista, repentinamente chegou uma ventania de fazer barulho no ar, as águas se remexeram fortemente no rio e a lua desapareceu totalmente. Nessa escuridão tormentosa ela gritou: “Passe, pode passar, siga, pode seguir”. E disse mais duas vezes: “Passe, pode passar, siga, pode seguir”.
E quando a lua voltou a brilhar mais intensamente ainda, a fogueira havia apagado, as roupas estavam juntas novamente, a bacia estava cheia de água e a areia era como se não tivesse sido espalhada.
Contudo, não demorou muito e uma gargalhada horrenda e tenebrosa, surgida dos quatro cantos, se espalhou pelo ar e Pureza caiu ao chão desmaiada. Coisa de segundos e o sinistro barulho sumiu pelo ar. Todos correram para sacudir a mulher, jogar água pelo seu corpo, tentar reanimá-la, mas somente uns três minutos depois, quando Quelé teve a ideia de despejar cachaça na boca dela, é que os olhos começaram a se abrir.
Depois de ser levantada Dona Pureza começou a copiosamente chorar. E entre soluços e irresignações conseguia dizer: “Tudo já estava se fechando quando essa coisa ruim achou uma brecha pra sair. E deve tá aí por perto sorrindo da gente, pensando nas maldades que vai continuar fazendo. Mas minhas orações são mais fortes, a fé desse povo é mais forte, e você há de descer ainda hoje pras profundezas de onde saiu. Nossa força vai lhe derrotar, eu sei disso. Até hoje o mal nunca venceu o bem e não vai ser aqui que isso vai mudar. Vai-te pra lá coisa ruim...”.
O problema é que a preocupação com a mulher, com todo mundo correndo para ajudar, fez com que ninguém percebesse que Soniele estava estirada no chão, caída, desmaiada, mas pela doença que lhe afligia. Nem Carol percebeu quando a amiga levou a mão à cabeça e depois desabou ao chão.
Seu corpo parecia um braseiro, suava sem parar e gemia com dores pelas juntas e em cada fio do cabelo. João e Quelé a levaram nos braços até o casebre. As mulheres foram correndo na frente para providenciar remédios. Mesmo ainda desconsolada, Pureza se prontificou a ajudar e se mostrava como uma das mais preocupadas com a saúde da mocinha. O cheiro de chá subiu pelo ar, frascos de remédios foram abertos e começaram a fazer o que podiam com ela.
“Se não melhorar temo que levar ela pra Mormaço logo cedinho. Vamo de barco até Jacaré e de lá damo um jeito de levar até o hospital. O que num pode é ela ficar assim, correndo risco de morrer sem que ninguém preste socorro de médico. Mas vamo aguardar até de manhãzinha que é pra ver se tem melhora. Se num tiver aí eu mesmo pego meu barco e trago praqui”. Disse João, visivelmente entristecido.
Lá dentro, após dar chá forte e comprimidos, Pureza sentou ao lado dela na esteira e começou a passar um paninho no rosto para limpar o suor. Em seguida perguntou baixinho a Carol: “Ela tomou banho de rio hoje?”. E a outra respondeu que sim.
Então a pescadora falou com um olhar entristecido: “Então foi isso. Ela fez o bem e trouxe o mal pra dentro de si. Alguma coisa nas águas gostou tanto dela que tá tentando a todo custo levar ela de vez. Mas não vai conseguir não. A presença dela lá no rio também enfraqueceu ele. Agora já tá sem força nenhuma, tá sumindo de novo. Amanhã ela já vai ganhar força e ficar boa num pulo. Que Deus permita que seja assim”.


continua...






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quarta-feira, 30 de março de 2011

TER APENAS O QUE TENHO (Crônica)

TER APENAS O QUE TENHO

Rangel Alves da Costa*


Ser contente por ter apenas o que tenho e além disso ser eternamente agradecido por ter a vida e nela ter apenas o que tenho.
Ter apenas o que tenho, quando os outros dizem que tenho tão pouco ou quase nada, mas não sabem da minha felicidade por ter tanto nessa medida do que tenho.
Apenas ter o que tenho e querer sempre ter mais, porém sem sentir que é pouco o que tenho e não querer além do que realmente necessito ter.
Apenas ter o que tenho e espalhar pelo mundo essa alegria e satisfação por ter tanto no que tenho e desse tanto ainda ofertar ao próximo por não fazer falta ao que tanto tenho.
Ser imenso e tudo pelo que tanto tenho, humildemente orgulhoso pela riqueza que tanto tenho, com infinita riqueza no que tenho e mais posso ter, pois tudo que é acrescido ao ter de quem é agradecido pelo que tem é uma imensidão que se tem sem ter que ser vista por ninguém.
Ter apenas o que tenho como a planta que se farta no pingo e não na trovoada; como a rica manhã que surge num pontinho distante de luz; como o beija-flor que escolhe uma flor e não um jardim; como o faminto que agradece o pão e não exige o prato; como aquele que ouve a palavra e não o grito; como o amor imenso que se satisfaz na presença; como a dor que não aceita remédio e apenas um toque de mão.
Ter apenas o que tenho porque tenho demais e me satisfaço e me basto. Tenho paz, saúde, esperança, coragem e fé. Tenho Deus a meu lado, tenho santos e anjos, tenho crenças e realizações.
Ter tanto no que tenho e ter a certeza que terei aquilo que um dia possa me faltar. Se tenho fome me contento com o alimento que tenho; se tenho sede fico saciado com a água da moringa; se tenho frio me veste e acolhe qualquer roupa que tenha; se tenho falta de alguma coisa tenho onde buscar porque sei onde terei: dentro de mim mesmo, no meu esforço, no meu trabalho.
Ter apenas o que tenho porque também tenho as manhãs, os dias e as noites; minhas estações são iguais às outras estações que se tem; minhas plantas também adormecem e orvalham; minhas alegrias são desses poucos motivos que tanto tenho.
Tanto contentamento pelo que tanto tenho é porque não existe aquilo que não posso ter. Coisas existem que sei que tenho demais, como a certeza de tanto ter, tanto respeito ao outro que merecer, tanto amor ao ser que me queira ter.
Tenho muito e tenho na medida e mais porque tenho um nome e sobrenome que não desonram a honra que tenho nem outra raiz desse nome que eu possa fazer, pois se o homem é a medida do que é e a família que possa ter, então a máxima felicidade é o alcance desse tudo que se possa ter.
Ter apenas o que tenho e por isso mesmo não ter nada do que reclamar é ter a consciência de que nascemos sem ter para ter tudo aquilo que nos é designado ter, pois está escrito:
“Não seja o vosso adorno o que aparece externamente: cabelos trançados, ornamentos de ouro, vestidos elegantes; mas tende aquele ornato interior e oculto do coração, a pureza incorruptível de um espírito suave e pacífico, o que é tão precioso aos olhos de Deus” (I Pe 3 4,5).
“O fogo queima na proporção da lenha que há na floresta; a ira do homem inflama-se na medida de seu poder, e desenvolve-se em proporção de sua riqueza” (Ec 28,12).
“Se alguém tem ouvidos para ouvir, que ouça. Ele prosseguiu: Atendei ao que ouvis: com a medida com que medirdes, vos medirão a vós, e ainda se vos acrescentará. Pois, ao que tem, se lhe dará; e ao que não tem, se lhe tirará até o que tem” (Mc 4 23,28).
“Finalmente, tende todos um só coração e uma só alma, sentimentos de amor fraterno, de misericórdia, de humildade” (I Pe 3,7).





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Perguntas e respostas (Poesia)

Perguntas e respostas



Ou a tarde me chama
ou eu vou
ou o vento me açoita
ou me dou
ou me reconheço na dor
ou não sou

o pensamento me leva
num passo
a saudade me prende
num laço
a solidão vem me dá
um abraço
e só encontra em mim
um pedaço
desse tanto não ter
que me satisfaço

e do amor não sei
se vitória ou fracasso
se ainda te espero
ou se passo
o que faço para amar
ou me desfaço

só sei que
a tarde me chama
e eu vou
o vento me açoita
e me dou
e me reconheço no amor
pois tudo sou
e não sou.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 68 (Conto)

DESCONHECIDOS – 68

Rangel Alves da Costa*


Verdade é que Pureza havia tido uma visão de um moço chegando num barquinho de braços abertos e chamando apaixonadamente pelo nome de Soniele e misturava esse nome com outras expressões do tipo “a mim”, “jasmim”, coisa parecida.
E logo a velha conhecedora dos mistérios e encantamentos ribeirinhos chegou à conclusão de que alguém já falecido procurava desesperadamente abraçar sua amada. Se já havia falecido, os braços abertos no barquinho da morte significavam um convite para que ela o acompanhasse onde estivesse. Estava chamando a mocinha para a morte.
A verdade era essa. E se o amor era tanto de ele andar assim tão desesperado, ao menos que diante da presença da nudez do corpo tão querido e amado, aquele chamado aflito fosse transformado num prazer ilusório e momentâneo, vez que até os mortos desnorteiam de seus objetivos diante da beleza nua do corpo vivo ainda desejado.
Sem medo algum, completamente ciente do que iria fazer, e para o bem ou para o mal, seja lá o que fosse perante tanto mistério, Soniele atendeu ao pedido, fez como a sábia senhora mandou.
Assim, ali mesmo na beira do rio, sem se preocupar se os trabalhadores do outro lado pudessem enxergá-la ou não, se despiu totalmente e foi entrando nas águas com o seu corpo escultural. Uma prostitua com o corpo de deusa, talvez o sol tenha ficado imaginando, contente em poder se estender sobre aquela chama morena.
Deitou nas águas e deixou-se tomar completamente. Em seguida mergulhou muitas vezes e depois resolveu deitar novamente numa parte mais rasa, onde não ficava totalmente encoberta. De olhos fechados, sentindo apenas os sons da natureza, foi adormecendo até viajar num sonho distante. E foi sendo arrastada por mãos invisíveis para dentro do rio e assim ficou por uns dez minutos, totalmente encoberta, como se tivesse desaparecida.
E mais tarde foi flutuando, subindo novamente, com o corpo espalhado e ofegante, até a lâmina d’água e arrastada até onde estava anteriormente. E começou a despertar do sonho quando Carol chegou ali assustada e gritando, perguntando se tinha acontecido alguma coisa para estar assim toda nua deitada no rio.
E Soniele respondeu, ainda como se estivesse distante dali, ainda entre as nuvens ou noutro lugar: “Estava sonhando. E sonhei com alguém me possuindo, fazendo sexo comigo. Não consegui ver o rosto dele, mas era alguém conhecido. Aquelas mãos que me seguravam eram conhecidas, aquele cheiro, aquele perfume, tudo era conhecido. Fiz amor Carol, me entreguei apaixonadamente a um desconhecido...”.
“Vamos, minha amiga, levante já daí e vista a roupa. Seu corpo está todo vermelho, parece até que está suando dentro da água. Venha aqui”. Assim que vestiu a roupa Carol se aproximou um pouco mais e disse-lhe que estava com os olhos em brasa. Colocou a mão no seu pescoço e não teve dúvidas que a amiga estava queimando de febre.
“Vamos entrar pra tomar um remédio agora mesmo. Você levantou dessa água tomada de febre. Não bastasse a aparência de sua pele e esse braseiro nos seus olhos, bastou tocar em você pra sentir que está doentia. Vamos que além dos chás tenho remédio de farmácia que também vai servir muito. Garanto que mais tarde você já estará totalmente recuperada”. E começou a conduzir Soniele, toda enrolada como se estivesse com intenso frio embaixo de um calor de mil sóis e com o corpo visivelmente tremendo.
Soniele passou a tarde inteira enrolada e se queixando de dores na cabeça e pelo corpo. Tremia de não acabar mais. Pediu mais remédio porque não queria faltar ao encontro dos pescadores na beira do rio logo mais, sob o comando de Pureza, que prometia fazer um trabalho de afastamento das coisas negativas que vinham assombrando o lugar. Disse que a amiga a acompanharia e que levasse sem falta uma roupa suja. Ela mesma levaria a roupa que tinha usado pela manhã.
Na boquinha da noite, como se dizia por lá, e Pureza já estava fazendo a purificação do ambiente. Primeiro se ajoelhou e fez orações para os santos de sua devoção, pediu a intervenção divina para o acolhimento dos seus pedidos e a sua licença para invocar entidades das águas e da terra naquela noite de grande importância para a sobrevivência da paz no lugar.
Em seguida trouxe um cesto cheio de folhas e flores do campo e espalhou tudo ao redor num grande círculo, divisando com as águas do rio. Depois colocou troncos para acender uma fogueira mais tarde, trouxe uma bacia grande para logo mais encher de água, fez um pequeno monte com areia de vários pontos da região e deixou um lugar apropriado para serem colocadas as roupas dos ribeirinhos.
E depois de tudo colocado no seu devido lugar, posicionou-se no centro do círculo e levantou os braços para cima invocando os deuses da natureza e as forças positivas da noite. A lua, que já surgia encoberta pelas nuvens, rompeu o véu e se fez imensa e linda como jamais havia sido vista por ali. Nas águas, o brilho da lua formava um leve tapete brilhante e silencioso. Por enquanto tudo reinava maravilhosamente.
A não ser o corpo da mocinha Soniele, que parecia querer derreter de dores, febre e queimação.


continua...





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terça-feira, 29 de março de 2011

O VENTO E AS FOLHAS (Crônica)

O VENTO E AS FOLHAS

Rangel Alves da Costa*


Nada mais bonito e poético do que o vento que vem soprando e segura na mão da folha e saem voando por aí. Também nada mais triste do que uma folha morta sendo levada pelo ar e sem que ninguém saiba a direção que vai tomar mais adiante.
No outono, quando as folhas perdem o viço, a força e a cor e começam a despencar e a se espalhar pelo chão, num tapete multicor de cores sombrias e tristes, somente alguns olhares conseguem enxergar o significado dessa paisagem.
Sentado no chão da praça, o entristecido poeta sente-se como a própria folha e não vê a hora que o vento passe e o faça tristemente ser levado diante da janela da mulher amada. Se ela enxergar a folha, desse simples gesto haverá renascimento e a vida será para ele como um elo, pois sabe que ainda há esperança.
No meio da praça, o pintor de cavalete estendido não consegue pintar porque seus olhos marejados confundem as cores. Mas não se culpa, e sim o outono que deixa tudo assim tão angustiante e dolorosamente sentimental. Queria uma cor mais alegre, mas na paleta, estendido pelo chão e dentro de si somente o ocre, o marrom, o cinza, a cor já sem cor.
Recostado no banco da praça, o velho senhor conhece todas aquelas folhas caídas, conhece todas as estações da vida e os motivos que as fazem ficarem assim, mortas, jogadas, simplesmente espalhadas ao léu, à sorte de pés apressados e de qualquer vento faminto.
E por conhecer tanto já não fica tão entristecido a cada outono, mas não suporta ver a manhã seguinte, quando as folhas já sumiram e não se sabe pra onde. Eis a vida, bem assim é a vida, pensa ele.
E com razão. Bem assim é na vida. Firmes, verdejantes, fixos em seus suportes, suportam vendavais e tempestades, ventanias e vendavais, balançam mas não são fáceis de cair, sentem o impacto mas não se desmancham em pó tão facilmente. E aí vem o outono da vida e os homens se tornam apenas folhas temendo qualquer ventinho que não tarda chegar.
E de repente até mesma a brisa vai consumindo o rochedo e o pó começa a se espalhar pelo ar como um nada existente, como o absolutamente nada. E vai o ser vaidoso, egoísta, prepotente, arrogante, no passo da fuligem, da folha seca, de algo quase inexistente, tomando seu destino de ser nada. Absolutamente nada.
Porque sei que sou folha, porque não sei quantos outonos terei, quantas tardes no jardim ainda terei, qual força de vento suportarei, é que peço ao meu grande e imenso amor que jamais deixe a janela do seu quarto fechada.
Estranhamente, mas as folhas começam a perder suas forças no meio da tarde e quando chega ao entardecer já estão caindo para enfeitar o leito. E também estranhamente é ao entardecer que o trem da ventania vem soprando para levar consigo aquelas passageiras estendidas no meio do tempo.
Sei que um dia também serei passageiro desse trem ventania e pelo ar serei levado em direção à rua onde mora, à sua casa, à sua janela. Como não terei destino, quem sabe se o vento se perde na curva e sou arremessado e entro pela sua janela, me vejo no seu quarto, me estendo na sua cama.
E quando você chegar e antes de ir ver a lua, contar as estrelas e sonhar com os mistérios da noite, certamente deitará na cama para escrever qualquer coisa no seu querido diário.
Talvez escreva: “Somos iguais a folhas ao vento, cujos destinos são iguais às folhas ao vento, que são apenas folhas ao vento, porque somente folhas, porque não mais vento...”.
E eu estarei bem ao lado esperando que você me encontre, me segure e me pegue, e depois guarde dentro do seu diário, como uma folha sem vento.





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História mais linda (Poesia)

História mais linda



Era pobre de riqueza
só era rico de grandeza
espiritual e por natureza
e se mantinha na destreza
para ter o pão na pobreza
e vencer toda incerteza
e vivendo nessa aspereza
um dia fez a maior proeza
namorar com uma lindeza
moça de maior beleza
a mais bonita da redondeza
mulher de prato e sobremesa
e no coração maior certeza
no amor a maior firmeza
vencendo a dor e a tristeza
dando ao ser sua nobreza
e se fez água na correnteza
um pobre amante na realeza
tendo ao lado sua princesa.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 67 (Conto)

DESCONHECIDOS – 67

Rangel Alves da Costa*


Soniele imediatamente correu para ver o que estava acontecendo e encontrou a amiga tremendo dos pés à cabeça. “O que foi Carol, por que esse grito?”, perguntou. “Veja ali ancorado se não é aquele barquinho que dizem que vem para buscar os mortos ou pessoas que vão morrer!”. Respondeu, apontando em direção à beira do rio, logo adiante.
“Venha aqui menina, entre aqui e tome um copo de água com açúcar”, falava Soniele enquanto carregava a outra porta adentro. E continuou: “Deve ser outro barquinho desconhecido que ancorou ali, de alguém que deve estar por perto. Logo mais o pescador dono dele aparecerá...”.
“Não, de jeito nenhum, pois era esse mesmo barco que avistei meia noite quando saí para tomar um ventinho. Àquela hora só podia ser esse maldito barco que tanto falam. E quando abro a porta quase nesse instante a primeira coisa que encontro é essa maldição em minha frente. O que ele faz aqui até essa hora, qual aviso que ele quer dar, quem esse maldito pensa que vai levar?”.
“Calma, calma. Ali é outro barco, tenho certeza, pode ficar despreocupada. Agora deite aí e descanse um pouco”, tentou convencer sem conseguir, pois a outra cismou de ir até lá para ver de perto como era a embarcação, se tinha alguma coisa diferente, se havia alguma coisa misteriosa dentro dela.
Como não podia deter a amiga, Soniele acompanhou-a até a porta. Ao abri-la repetiu-se o espanto, pois não havia mais nem sombra de sua presença. Havia sumido num instante e sem deixar vestígio algum. Seguiram até lá para ver se encontravam marcas recentes de pisadas de alguém, mas conseguiram apenas enxergar uma trilha feita na água como se alguma coisa invisível estivesse navegando.
Soniele fez de tudo para se manter calma, contudo também estava intimamente muito nervosa e preocupada. Procurou a todo custo continuar acalmando a amiga, falando sobre uma série de possibilidades que sabia completamente descabidas. Fazia assim porque não tinha o que dizer sobre o barco, sob pena de transformar a existência ali num verdadeiro fim de mundo.
Tinha certeza que havia sido mesmo aquele objeto de aparição de tanto comentário e preocupação, mas não podia alimentar essa certeza diante da fragilidade da outra. Carol era quase de sua idade, um pouquinho mais nova, mas parecia uma criança perto de sua vivência. Não podia de jeito nenhum desestruturar emocional e psicologicamente a menina. Porém sabia que tinha de fazer alguma coisa urgente, conversar com Dona Pureza e relatar o ocorrido.
Fez um chá bem forte que a outra adormeceu num instante. Saiu devagarzinho e foi procurar Pureza nos arredores. Sabia que ou ela estaria no leito do rio jogando sua tarrafa ou nos fundos de seu barraco separando ervas e providenciando seus elementos de culto às noites enluaradas. Era seguidora de uma religião talvez somente conhecida e praticada por ela, onde os poderes mágicos para fazer encantamentos e solucionar mistérios estavam na junção da luz da lua, no reflexo da água e na quentura da terra na beira do rio.
Deu sorte de encontrá-la quando saía do seu barraco com um cesto de pilombetas salgadas para deixar secando ao sol. O cheiro forte do peixe miúdo subia pelos ares impregnando tudo que estivesse ao redor. Logo mais já estariam mais sequinhas, com o cheiro no ponto de frigideira e deliciosas que só. Mas era tudo à venda, logo enviadas para as feiras abertas em Mormaço e outras cidades. Ao avistar Soniele chegando falou:
“Por aqui essa hora filha de Deus? Vejo na sua feição que me traz um assunto de importância. O que será? Venha, se achegue mais e despeje tudo menina”. Então ouviu um relato minucioso de todo ocorrido naquela manhã. A seguir segurou no braço da mocinha e levou-a até o começo da água do rio e começou a falar:
“Esse negócio já tá indo longe demais. A história desse barquinho deixou de ser como uma lenda presente e vivenciada pelos moradores daqui para se transformar num mistério assustador. Antes era coisa de ser avistado passando à meia-noite, apenas com o seu vulto cortando as águas lá no meio do rio. Agora começou a aparecer a qualquer instante, passando pelo mesmo lugar e seguindo em sua direção. Por enquanto não tem levado ninguém daqui não, pois o último a morrer foi o finado Climério. Mas se a função dele é passar por aqui pra levar gente é porque vai levar, e disso não tenha dúvida. Anda passando demais sem que gente morra e isso é um triste e penoso aviso de que a qualquer momento mais de uma pessoa seja levada, e quem sabe até muitas de uma vez só. Mas como, se aqui não tem esse mundo todo de gente? E isso é preocupante também, pois a morte pode estar rondando não só a gente como aqueles homens que estão do outro lado do rio terminando aquelas obras, mas também outras pessoas que possam chegar por aqui. Ninguém sabe ao certo se ele tá rondando a gente ou esperando os desconhecidos, mas afinal de contas somos todos desconhecidos...”.
“E antes que tudo isso possa acontecer o que podemos fazer Dona Pureza?”, indagou a assustada Soniele, ao que a ribeirinha respondeu: “Diante de mistérios e desígnios como esses praticamente nada. Contudo, minha filha, diz o ditado popular que o mal não se manifesta com a maldade que quer se for logo sendo cortado pela raiz. E como a gente não sabe onde tá a raiz desse mal, então vamos fazer o que está ao nosso alcance, que é tentar prender essa raiz maldosa debaixo da terra, através de uma reunião de encantamento que a gente vai fazer ainda essa noite, logo que começar a escurecer e a lua brilhar. Você já tá convidada e tem de estar aqui, tento você como a outra. Tragam uma roupa usada e ainda não lavada...”.
“E por que só serve roupa assim Dona Pureza?”, Soniele quis logo matar a curiosidade. “Nada de respostas agora, apenas façam o que peço. Uma roupa usada e ainda não lavada, das duas”.
Quando Soniele começou a se afastar para retornar, a pescadora ainda falou: “E sobre o barquinho que a menina viu ancorado bem defronte de casa, não quer saber nada não?”. “Oh, meu Deus já tinha esquecido do principal. E aí Dona Pureza, o que a senhora tem a dizer?”.
“Ela não, pois o barquinho foi atrás de você. E ainda não foi embora não, ainda continua por lá. É um assunto sério demais e depois lhe conto porque, mas assim que chegar lá tome um banho completamente nua no lugar onde ele foi avistado na beira do rio. Mostre a beleza do seu corpo às águas do rio que o barco vai desaparecer, ao menos por uns tempos”.


continua...





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segunda-feira, 28 de março de 2011

UM VELHO E UMA VELHA (Crônica)

UM VELHO E UMA VELHA

Rangel Alves da Costa*


Seu Julião mora na rua da frente, sem gostar de sair de casa, muito menos para andar pela rua de trás, que acha sombria demais e esquisita com aquelas árvores centenárias e imensas quase se deitando sobre as casas.
Dona Júlia mora na rua de trás, também sem apreciar muito sair de casa para caminhar por aí, principalmente quando se trata da rua da frente, que segundo ela possui casas que parecem todas iguais, recuadas e com um murinho na frente, e talvez com moradores todos iguais também.
Se não fosse a rua do meio, as ruas da frente e de trás seriam paralelas, porém com algumas diferenças na disposição de suas casas e nas paisagens. Uma é apenas triste, a rua da frente, enquanto a outra, a de trás, é muito entristecida mesmo. Se uma é a lágrima, a outra é o choro.
O que não são diferentes são os seus dois mais velhos moradores. Tanto Seu Julião como Dona Júlia são pessoas de mais de oitenta anos, porém lúcidos feito adolescentes.
Brincalhões de não acabar mais, entretanto escondendo muito naqueles corpos envelhecidos, nas faces de tantos ventos sobre as janelas e olhos que já viajaram o mundo nas recordações, angústias e tristezas de não acabar.
Sentados ao entardecer nas suas cadeiras de balanço, só mesmo Deus para saber o que passa por aquelas cabeças. De repente um sorriso, uma lágrima que vem escorrendo lentamente, uma palavra sozinha e o olhar sempre adiante da janela tentando enxergar as paisagens e os momentos de um passado distante, de um mundo vivido e já ido.
Coincidentemente os dois são solteiros. Contudo, não se trata aqui de fazer o acaso juntar os dois num encontro para que o destino aplaque os sofrimentos da velhice. Não.
Cada um vive sua vida, sua solidão, carências e desejos, e assim viverá até que a morte estenda a mão educadamente. Ao menos é isso que se espera para dois velhinhos que não fazem mal a ninguém.
Ora, se os dois, já nessa idade e continuam solteiros e morando sozinhos, foi porque o destino achou melhor assim. E aqui não se trata de nenhum conto de fadas para num passe de mágica tudo mudar e eles passarem a viver felizes para sempre. Que se cumpra então o destino da solidão. E até porque os dois são os maiores culpados por estarem assim até hoje.
Culpados porque ninguém nunca mais amou na vida do que Seu Julião a Dona Julião e Dona Júlia a Seu Julião. Isso mesmo, dois namorados de antigamente que agora viviam pertinho e tão distantes.
Era amor realmente recíproco na mais bela imensidão dos apaixonados. Namorados desde criancinhas, quem os visse mais tarde até perguntava se já haviam casado. E realmente quase casam.
Já adultos e cada vez mais apaixonados, planejaram o casamento como se planeja o nascimento de um filho. Pensaram em tudo, começaram a organizar tudo nos menores detalhes, mas logo começou a mudar e a dificultar os planos quando chegou o momento de escolher o endereço da casa onde passariam a morar.
Os pais presentearam os pombinhos com uma casa na rua do meio, porém não teve jeito. Ele só aceitava casar se fosse morar numa casa na rua da frente, enquanto ela bateu o pé e disse que só diria sim ao padre se fosse para morar numa casa na rua de trás. E assim o impasse foi criado e gerou as consequencias que se vê até hoje.
Não chegando a qualquer acordo, até mesmo com a intervenção do padre, o casamento foi adiado para sempre. Desfeito o relacionamento, cada um foi morar sozinho, de modo a demonstrar que era mais forte e não estava nem aí para o outro. Ele na rua da frente e ela na rua de trás.
Uma amiga dos dois morava na rua do meio e se incumbia de falar mal de um para o outro e assim por diante. Mas verdade é que cada um passou a odiar a rua do outro e a fazer promessa para jamais colocar os pés no lugar.
Mas quando já era entardecer, de ruas desertas e vento soprando as folhagens, cada um saía de sua casinha e ia pé ante pé até a esquina da rua do outro somente para olhar as janelas por alguns instantes. Assim, no mesmo horário, Seu Julião olhava por uma ponta de rua, enquanto Dona Júlia ficava quase que escondida na ponta da outra rua.
Só que um dia, talvez pela idade já avançada demais, os dois caminharam na mesma direção. Ao se encontrarem no caminho, sem a exata noção do que estavam fazendo, os dois cordialmente se cumprimentaram.
“Boa tarde, Seu Julião”, “Boa tarde, Dona Júlia”. Dois passos adiante e já estavam pensando como puderam falar o nome de uma pessoa que não conhecia. Então pararam e olharam pra trás. E se reconheceram.




Poeta e cronista
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Ecologia do amor (Poesia)

Ecologia do amor



Se é forte a razão de amar
e o amor brota perenemente
sem que surja qualquer estação
que ameça a fluidez dos sentimentos
então basta que se conserve o amor
no ponto mais distante de sua nascente
que é nos corações que se descobriram

Se é ainda mais forte a razão de amar
e mais consistente ainda a razão
de preservar esse amor imenso
na eternidade dos dias e das horas
então que os amantes procurem
se conservar na pureza do amor concebido
para terem sempre o amor desejado

Se o tempo inesperadamente mudar
e o amor tão preservado for ameaçado
então somente restará aos amantes
recolher novamente do coração a semente
e semear com mais esperança na nascente
pois o leito que espera o amor verdadeiro
jamais deixará de brotar amor permanente.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 66 (Conto)

DESCONHECIDOS – 66

Rangel Alves da Costa*


Dito e feito, porém não tão apressadamente como afirmado, pois a viúva pediu à jornalista que a acompanhasse ao menos nos próximos cinco dias, que era tempo suficiente para saber se as ameaças continuariam. Se os pistoleiros dos políticos da região pretendessem fazer mais alguma coisa ela estaria ali ao menos para documentar.
Mas ao menos nos lugarejos seguintes visitados pela comitiva da viúva nenhum incidente maior ocorreu, a não ser o vexame de sempre em ver as pessoas praticamente querendo saquear as mercadorias prontas para distribuição. Mas era tudo compreensível, segundo a bondosa senhora, pois aquela agonia nada mais era do que o desespero do povo carente de tudo.
Enfim, chegou o instante em que Cristina tomou seu outro caminho, e praticamente voltando pelas estradas já percorridas, pois rumaria para Mormaço e de lá seguiria para a vila dos pescadores. Antes de partir, porém, a viúva chamou-lhe num canto e disse algumas palavras:
“Quando chegar a Mormaço procure o coronel e sua esposa e diga-lhes que não vejo a hora de ir descansar à beira do rio, na casa de veraneio que a essa altura já deve estar quase pronta. A igrejinha também já deve estar totalmente levantada. Quando eu for terei a oportunidade de acompanhar os últimos acabamentos e de participar da primeira missa. Por falar nisso, nem sei se já chegou um novo padre por lá. Mas diga a Dona Sofie que não demoro, basta que ela me telefone e avise que na casa já há lugar para descansar. O resto a gente ajeita como puder. E quanto a você não tenho nenhuma recomendação específica, pois já talhada nesses ofícios, mas peço-lhe encarecidamente que tenha muito cuidado, pois mesmo ali sendo um lugar paradisíaco como tanto comentam, verdade é que muitos mistérios continuam rondando aquelas margens. Vá, pode seguir e boa sorte”.
Dona Doranice mais uma vez estava com razão ao pedir que a jornalista tomasse cuidado com o desconhecido que iria encontrar. Eis que a vila dos pescadores e arredores estava cada vez mais instigante, misteriosa, cheia de acontecimentos que causavam enormes preocupações para os ribeirinhos, os trabalhadores e até para pessoas que estavam lá talvez de passagem, como Soniele e Carol. Até o profeta Aristeu, com sua loucura toda, talvez visse um tempo ruim e pressentisse dias piores ainda.
Para se ter uma ideia, quando os trabalhadores começaram a cavar na montanha para fazer o alicerce encontraram um veio escorrendo que todos disseram que ser sangue jorrando dali. Quanto mais cavavam mais surgiam poças com uma água vermelha e malcheirosa.
Procuraram Dona Pureza no outro lado do rio, que também tinha fama de rezadeira e chegada aos mistérios das noites enluaradas, e quando ela foi até o local para verificar quase desmaia na hora. Uma força estranha lhe tomou que quase derruba pra trás. Saiu de lá correndo, se benzendo toda, sem olhar pra trás de jeito nenhum.
Depois mandou um recado dizendo que os homens tinham que fazer um procedimento espiritual ali para ver se realmente era o que ela estava pensando. Então, com a intervenção do coronel que já estava cismado com aquilo tudo, conseguiram um frasco de água benta e foram pingando aqui e acolá por onde a vermelhidão jorrava.
E aconteceu um fato verdadeiramente espantoso: quando os pingos da água santa batiam nas poças estas começavam a borbulhar, soltando uma fumaça fétida pelo ar, e depois tudo ficava cristalino. Quando o último vermelho perdeu a cor um grito horrendo saiu debaixo da montanha e se espalhou pelo ar, assustando todo mundo nas redondezas.
Já na parte de baixo, onde a casa estava sendo construída, foi preciso montar vigilância noturna, pois quando os trabalhadores terminavam o trabalho do dia e se recolhiam, uma parte daquilo que havia sido construído desabava, mas caía como se houvesse sido derrubada por mãos humanas. Tiveram que colocar lampiões a gás iluminando o local e dois vigias bem acordados. Tinha que ser dois, pois somente um não aceitava fazer o trabalho. Era o medo rondando tudo. Ainda assim no dia seguinte faziam relatos assustadores.
Nas paredes não mexiam mais não, mas todas as noites ficavam assombrados com um pássaro de olhos vermelhos afogueados que sobrevoava pelos arredores onde eles estavam e quando sumia de repente aparecia em algum ponto perto deles com os olhos com uma terrível luminosidade, parecendo pequeninos farois vermelhos.
Contudo, mesmo com tantos imprevistos as duas construções já estavam quase prontas. A igrejinha toda majestosa e imponente bem no meio das duas elevações, com duas cruzes protetoras logo na chegada, sendo uma no alto da parte frontal e outra num pequeno cruzeiro uns três metros adiante. Já a casa, obra do querer do coronel como presente à esposa, estava que era esmero puro, misturando simplicidade e beleza bem pertinho das águas misteriosas que passavam apressadas.
E apressadas para voltar, fazer o mesmo percurso, pois aquelas águas eram talvez as únicas que voltavam para correr pelo mesmo lugar. Daí conhecer cada morador, cada peixe, cada estranho, cada barco e canoa, cada rede e tarrafa, cada mato que crescia às margens, cada visitante como se fosse uma pedra da sua própria nascente. Daí também que conhecia os caminhos para o bem e para o mal mais do que qualquer outro elemento da natureza. Mas era o São Pedrito, aquele rio cuja lâmina de água cortava por baixo.
Tendo saído lá fora à meia noite para se aliviar do calor que fazia dentro da tapera, Carol retornou assustada e fechou a porta rapidamente. Já conhecia aquela história do barquinho dos mortos e na sua visão tinha enxergado ele se dirigindo precisamente para a beirada de rio onde ela e Soniele estavam de moradia.
Ao levantar cedinho para desfazer da impressão, deu um espantoso grito.


continua...





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domingo, 27 de março de 2011

A FOTOGRAFIA (Crônica)

A FOTOGRAFIA

Rangel Alves da Costa*


Contam que um dia alguém partiu sem destino, ainda moço, quase menino, e deixou em casa por lembrança apenas uma fotografia.
Colocado numa parede do quarto, o retrato emoldurado tinha por cima um espelho e dos lados um bonito trabalho artesanal, num envernizamento escurecido que lhe dava uma bela aparência.
Sorridente, o fotografado mostrava sua felicidade e disposição na idade em torno dos quinze anos, como se fosse um ator de qualquer novela sorrindo para o seu público familiar.
Desde que o irmão viajou e deixou a fotografia na parede, a verdadeira fã de quase todos os dias era sua irmãzinha mais nova, filha única da família, uma lindeza que só. Assim, todas as vezes que lembrava corria para o quarto para olhar o irmão sorrindo e matar a saudade.
Contudo, a menina foi crescendo e os seus afazeres e preocupações de adolescente a afastavam cada vez mais do retrato. Raramente passou a passar por lá e quase não olhava direito o retrato que agora estava meio escondido.
Com efeito, como naquele quarto era colocado tudo que ia sendo dispensado das outras dependências da casa, acabaram colocando uma cortina bem diante da parede onde estava a fotografia.
Mas um dia que a saudade bateu mais forte, a mocinha correu para o quartinho e ao afastar a cortina para olhar o retrato sentiu algo diferente. Não sabia explicar porque, mas tinha certeza que o sorriso estava estranho e o olhar parecia um pouco mais distante.
Pensou que talvez a poeira estivesse turvando o espelho e modificando o jeito de ser do retrato. Limpou tudo com cuidado, até passou um pano úmido cuidadosamente, e depois o colocou novamente na parede, só que num lado onde pudesse ficar sempre visível.
Ela viajou com os pais e por quase um ano ficou sem ver o retrato. Assim que retornou e abriu a porta do quarto encontrou seu irmão quase sem nenhum sorriso. Não somente isto, pois tinha certeza que o rosto estava com muito mais seriedade e até as feições pareciam sem a jovialidade dos tempos passados.
Ficou imaginando o que poderia ter sido e pensou que talvez o tempo que ficou sem passar por ali tivesse feito com que esquecesse um pouquinho como eram as verdadeiras feições do irmão. Mas decidiu fazer um teste e passou mais de seis meses sem olhar novamente para o retrato.
Depois de uma noite de um sonho incompreensível com o irmão, assim que acordou correu até o quartinho e não encontrou mais sorriso algum. A aparência de menino estava sumindo e em seu lugar surgia um rosto mais sério e agora já sendo definido por marcas do tempo que davam uma nova feição.
Pensou muito sobre isso e não teve dúvidas do que estava ocorrendo. Procurou uma fotografia sua e ficou olhando por muito tempo e em seguida foi diretamente para o espelho da sala. A sua fotografia ainda era de criança, mas o seu rosto havia mudado muito. E então começou a chorar.
Descobriu que a fotografia do irmão estava substituindo a presença dele e que o retrato mudava à medida que o rosto também fosse mudando. Assim, cada vez que o olhasse na moldura e sentisse que estava um pouco mais envelhecido, certamente seria a mesma feição que estaria naquele momento onde ele estivesse.
Seus pais morreram sem ver novamente o filho de volta. Ela jamais havia contado esse segredo a eles e tal fato agora lhe magoava constantemente. Mas era a vida, pensava diante da janela vendo a vida passar numa correria danada.
Ela agora morava sozinha, já moça passada a idade de casar, tendo por companhia somente a fotografia do irmão na parede na sala, bem defronte à sua cadeira de balanço. O retrato agora estava muito mais envelhecido, cheio de rugas e triste. Ela sabia que ele também estava assim.
Um dia o rosto sumiu da fotografia. Então, sem poder fazer outra coisa, foi até a moldura e colocou flores ao lado. Depois acendeu uma vela e continuou a chorar.




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Sabor de fruta (Poesia)

Sabor de fruta



E se eu quiser
e se eu fizer
do seu corpo
uma salada de frutas
a mais saborosa
a mais gostosa
e somente
de morango e maçã?

toda dieta
se faz ou desfaz
com um beijo
ou mordida na fruta...

e se você quiser
se você vier
pode também
fazer do meu corpo
uma salada qualquer
ou mesmo pensar
que apenas é
picolé de fruta.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 65 (Conto)

DESCONHECIDOS – 65

Rangel Alves da Costa*


A instigante pergunta da viúva fez com que Cristina pensasse um pouco mais para tentar responder. Imaginava sim, que Soniele guardava importantes segredos, contudo era muito difícil citar algum. Mesmo assim procurou satisfazer a curiosidade da amiga:
“Não pretendo aqui misturar o que ela faz na vida com a seriedade de sua palavra. Soniele pode muito bem ter mentido o tempo todo para sustentar um doloroso ou inacreditável segredo. Conheço histórias de pessoas que colocaram uma coisa na cabeça e espalhou isso como verdade, que hoje parece mentir quem conhecer a verdade. Essa mocinha pode muito bem ter feito isso o tempo todo, de modo que todos acreditassem na história desejada e decorada que ela contava...”.
E Dona Doranice interrompeu para fazer uma observação: “Mas minha filha, se ela vive baseada numa invenção de sua cabeça, logicamente para não contar a realidade, então é porque realmente tem alguma coisa muito importante a esconder. O problema é saber qual segredo importante”.
Cristina prosseguiu: “Desse modo, infelizmente tenho que passar a acreditar com ressalvas tudo o que ouvi de Dona Sofie sobre ela. Outro fato muito estranho diz respeito ao exercício profissional dela, podemos dizer assim. Já imaginou que estranho ela deitar com qualquer homem e evitar o melhor partido da cidade, rapazinho novo e ainda por cima apaixonado. Não sei não, mas tem coisa que não me entra. Sem esquecer que ela fez com que as pessoas pensassem que tinha viajado para muito longe e apenas fez a volta e agora está por ali pertinho. E por que ela faria isso? Se todo mundo sabe que Gegeu morreu por causa dela, e sabendo ela o ódio que pode estar escondido no coronel, a sua permanência na região só demonstra que ela é completamente maluca ou está com bala na agulha para enfrentar qualquer parada...”.
“Nem uma coisa nem outra, minha filha, apenas inocência nessa pobre coitada de vida tão difícil. Convenhamos ou não, se mente ou não, mas não se pode deixar de reconhecer o pão amassado que essa menina tem comido. Ora, se dizem que ainda é mocinha, jovem e bonita, com quantos anos ela não começou a se deitar com homem por dinheiro?...”, disse a viúva.
“Só que muitas delas, muitas mulheres desse tipo, entram na prostituição, mas nunca se tornam prostitutas. Parece que é uma sina, um destino diferente, algo que está adormecido em cada uma para somente despertar quando já sofreram demais. Daí a força da superação, a importância para seguir por outros caminhos. Mas tudo isso é suposição, pois tudo o que se diga sobre essa mocinha continuará sendo uma incógnita”, complementou a jornalista.
Logo em seguida Dona Doranice enveredou por outros assuntos e perguntou sobre a vida da interlucutora. E a jornalista passou mais de vinte minutos resumindo sobre sua solteirice, seus empregos e despedidas, suas desilusões e esperanças, até ter resolvido dar um tempo em tudo e fazer essa viagem.
A viúva ficou verdadeiramente encantada com o que ouviu e disse que deveria ser muito interessante investigar caos e situações, muitas vezes coisas sem pé nem cabeça que atiçavam a curiosidade. Então se lembrou daquela história da igrejinha da beira do rio e dos fatos que culminaram na necessidade de sua construção.
“Desculpe Dona Doranice, mas tudo isso é verdade? Que história mais estranha mesmo. Então essa igrejinha teve de ser construída porque o falecido padre, bem como o também falecido Gegeu deram sinais de que ela não podia deixar de existir ali na beira do rio, protegendo a todos e talvez também suas almas. Mas protegendo contra o que, Dona Doranice? A senhora já pensou nisso?”, instigou a jornalista.
“Também queria saber minha filha, também queria saber. E outra vez nos vem o velho e bom Shakespeare, pois realmente há muito mais coisa entre o céu e a terra do que imagina nossa vã filosofia. Mas por outro lado, situações até simples justificam a iniciativa da construção, dentre elas a de que um templo cristão é sempre bem vindo em qualquer lugar para fortalecer a fé das comunidades e aumentar ao menos o sentido de proteção divina diante das tantas desgraças do mundo. Mas também uma homenagem àquelas duas almas que até clamaram pela sua construção. E se fizeram assim razões devem ter tido...”.
Então observou a jornalista: “Ou então porque a igreja construída deverá ser testemunha de algo que nem imaginamos...”. “Será, meu Deus?”, indagou com inesperado espanto a viúva. Depois de instantes de silêncio tormentoso continuou:
“Tive uma ideia. Você gostaria de ir conhecer aquela localidade de beira de rio e tomar pé de tudo que for possível? Indo até lá, logicamente sob as minhas custas, o que farei com a maior satisfação, você ao mesmo tempo estará passeando, fazendo turismo e exercendo sua atividade profissional de jornalista. E se encontrar por lá alguma história claro que mais tarde aproveitará, não é mesmo? Então, topa seguir até lá? E é bem pertinho de onde já estivemos em momentos distintos, que foi em Mormaço. Da cidade até a vila dos pescadores não deve ser caminho dos mais difíceis...”.
“Mas que maravilha Dona Doranice, que ideia mais genial. Na próxima cidade tomarei o transporte para Mormaço e de lá saberei encontrar a tal vila. E será a oportunidade de ir novamente ao encalço de Soniele”. “Já que ela está naquela região, quem sabe ela não estará escondida por lá?”, disse a viúva.
“É mesmo, quem sabe!...”. Completou Cristina.


continua...





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sábado, 26 de março de 2011

PEQUENO LIVRO DAS COISAS GRANDES (Crônica)

PEQUENO LIVRO DAS COISAS GRANDES

Rangel Alves da Costa*


Quando abrirem a porta pra mim e eu tenha de sair sem poder me despedir - porque é a vida que quer assim e não a gente -, partirei feliz porque não levarei comigo aquilo que quero que todos saibam e conheçam.
Tudo escrito num livro, igual bula inteligível, é só abrir página por página e ir lendo pequenas notas de um grande, de um imenso amor pela vida.
Após o folhear, será possível compreender que as coisas mais simples são as mais importantes e nos pequenos gestos estão os grandes significados para uma existência. Sendo assim, como amigo e conselheiro digo:
Deixem minha gaiola no lugar e de porta aberta. Gaiola foi feita para enfeitar a casa e passarinho para passarinhar. Deixe a janela de casa aberta que passarinho amigo sabe chegar e partir.
Quando chover nunca feche a casa toda. Ao menos a janela da frente tem de ficar aberta para a chuva entrar, para o vento bater e aquele cheiro de terra prenhe de sertão invadir todo lugar. Se a gente espera tanto a chuva, então deixe ela entrar um pouquinho.
Quer falar com os passarinhos e animais do mato logo cedinho? Então corte um mamão maduro em pedaços e espalhe pelo terreiro, eles também gostam de melancia e abacaxi. Esfarele pão e jogue no ar, pegue alpiste e água e coloque pelos cantos. Não espante ninguém, apenas converse...
Água de moringa fica geladinha e saborosa se dormir perto do vento da noite. Nunca sirva a ninguém água de moringa se a pessoa não estiver com bem sede e nem despeje o líquido em copo de vidro ou de plástico. Água de moringa só tem sabor e mata a sede se for servida em caneca de alumínio bem limpinha, daquelas que chegam a brilhar.
Pegue a água do pote, coe bem coada, depois despeje no filtro e deixe lá para anoitecer. No outro dia, assim que o barro do filtro estiver como que orvalhando nem se preocupe que a água não vai pingar, mas apenas dizendo que você coma um pouco de doce de leite cheio de bolas, depois sente na cadeira de balanço com a caneca de água na mão. Se quiser sonhar está na hora boa...
Nunca fui tão sozinho na vida, por isso todo carinho com tudo que faz parte da minha história: meu baú de cartas e fotografias; as roupas que não doei porque gosto, ainda que estejam sem uso; minha agenda, meu diário, meu caderninho de anotações; meu pequeno oratório, minha bíblia, os meus santos, minhas lembrancinhas religiosas, minha fé; meu ferro de engomar a brasa, meu pilão, meu pé de máquina pintado, meu candeeiro e minha lamparina; meu crucifixo e minha lua. Por favor, nunca deixem que sumam com minha lua...
Se não puderem visitar todas as maravilhas do mundo, ao menos tente visitar a igrejinha quando ela estiver toda silenciosa no barulho dos anjos; vá até a montanha e converse e pouquinho com Deus; vá até o rio que passa na sua aldeia e se banhe com as águas que são sua vida; coma frutas no mato, beba água da fonte, faça um ramalhete de flores do campo e converse sozinho quando estiver de braços abertos em meio ao milharal verdejante.
Deixe o cofrinho de barro com moedas antigas para o seu neto, deixe os livros que você mais gosta para o seu neto, deixe o cavalinho de pau e o carrinho de madeira para o seu neto, deixe um envelope cheio de selos antigos para o seu neto, deixe uma fotografia sorrindo para o seu neto, deixe pais para o seu neto, deixe as melhores lições para ele.
Não deixem que cortem a árvore que foi plantada no jardim, nem que rasguem os originais do livro que escrevi e que estão guardados numa dessas gavetas. Se cortarem a árvore e rasgarem o livro, é a prova que também não terei filhos para deixar, pois são os filhos que devem preservar a memória dos seus que se vão.
Agora quero uma xícara de café torrado e batido no pilão, bem quentinho e com açúcar da terra. Bolo só se for de macaxeira ou de leite, mas preferia mais tarde um pratinho de coalhada da fazenda. Depois coloquem a minha rede ali na varanda que preciso descansar.
Só me acordem se for para o bem; só me acordem se for para o bem. E faça antes uma oração bem bonita. Deus disse!




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Queira-me (Poesia)

Queira-me


Queira-me
não somente
porque te quero
não apenas
porque espero
não só
porque venero
mas porque
o meu querer
tão querer
carente
não impõe
não manda
não exige
mas apenas
pede
implora
e diz
por favor
por tudo
queira-me!


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 64 (Conto)

DESCONHECIDOS – 64

Rangel Alves da Costa*


Foi no carro que estava sendo utilizado pelos bandidos que Dona Doranice decidiu voltar à cidade com dois objetivos principais. Primeiro procuraria a delegacia para prestar informações sobre o ocorrido. Depois providenciaria mecânicos para irem, ainda àquela hora, com quase tudo já escurecido, reparar os danos causados no seu micro-ônibus.
A polícia foi rápida e imediatamente recolheu o corpo do bandido. Quanto ao que foi dito e as ameaças feitas, o delegado disse que era melhor deixar isso pra lá porque não queria mexer num vespeiro. Se havia político envolvido, até ele temia. Estava ali como autoridade policial, mas só era delegado para determinadas pessoas, vez que tinha ordens expressas para não mexer um só dedo nesse e naquele outro. Tudo político e sua corja. Foi o que disse. Acentuou ainda que seria bom não desconsiderar as ameaças, pois por ali só tinha pistoleiro a mando de político safado.
E disse mais, pois afirmou que eles, os grandolas, se resolviam entre eles mesmos, na base da traição e da falsidade. Pequeno ou estranho que quisesse pisar de bota naquele lamaçal corria risco de perder as botas e a vida. Eles eram assim porque não sabiam dar significado às suas ambições senão através da violência. Por isso é que procuravam manter seus rebanhos de gente num curral, que era pra ter tempo de colocar o ferro no fogo para depois ferrar cada um. E as marcas podiam ser vistas naqueles corpos alquebrados e famintos.
Dona Doranice quis dizer o que pensava disso tudo, porém achou melhor cuidar de sua vida. Sobre isso conhecia demais e era exatamente isso que sonhava que um dia acabasse naquelas terras e perante os seus conterrâneos. Mas sabia como tudo funcionava por ali. Era melhor seguir em frente, mesmo que os tais grandolas se sentissem pisados em seus calos.
Diante da exaustão, do medo e do nervosismo na maioria dos integrantes da comitiva, ainda assim seguiram viagem naquela mesma noite. A jornalista Cristina perguntou à viúva se poderia sentar um pouco a seu lado e ouviu: “Oh, minha filha, bem sei que ainda não tivemos tempo suficiente para conversar quase nada sobre nós duas e sobre esse trabalho de ajuda que estamos desenvolvendo. Mas acho que chegou a hora. Sente aqui”.
Assim que sentou, a jornalista fez uma observação: “Mesmo naqueles instantes de sufoco e agonia e deitada no chão, não pude deixar de ouvir a senhora falando no nome do coronel Demundo...”. “Demundo Apogeu, foi esse o nome que citei para amedrontar aqueles bandidos. E surtiu efeito. Você também conhece o coronel e sua esposa?”.
“Não muito Dona Doranice, quase nada, mas apenas o suficiente para ficar com uma impressão muito grande desse senhor. E impressão positiva e negativa, pois não se deve esquecer o porquê desses latifundiários serem chamados de coronéis. Porque dão flores às suas esposas certamente não será. Contudo, diante das cenas que presenciei passa a prevalecer a impressão até de uma pessoa lutadora, porém sofredora e amargurada. Foram cenas tão difíceis as que presenciei e que guardo registradas...”.
“Oh, minha filha, mas foi alguma coisa que eles não me disseram?”, perguntou a viúva. E Cristina procurou responder:
“Não sei Dona Doranice, mas o que presenciei diz respeito à morte do filho dele. Ele falou sobre isso? É uma história tão complicada e triste, já naquela idade e tendo de suportar velar o filho morto pelas próprias mãos. Uma história envolvendo juventude que faz o que não pensa bem e um amor não correspondido. E imagine só a senhora que o rapazinho se matou porque uma mocinha, uma prostituta chamada Soniele, não queria se entregar somente aos braços dele. Deitava quase de graça com outros homens e rejeitava-o. Num dia de mais uma bebedeira ele a agrediu ali mesmo no cabaré e foi a gota d’água, pois quando ela saiu do hospital arrumou as malas e partiu. Então ele fez a besteira, tirando a própria vida. Mas acho que tem muito coisa nessa história, tem coisa escondida no meio disso tudo que ainda não descobri, mas farei isso com certeza. Fui nos passos da Soniele e não consegui encontrá-la. Disse que ia para um lugar distante e não foi, preferindo ficar pelos arredores de Mormaço mesmo. Ela ainda está por lá, só que num lugar que ainda não descobri...”.
Ouvindo tudo atentamente, tentando juntar retalhos na cabeça para ver se compreendia melhor a história relatada, Dona Doranice indagou como a jornalista havia tomado conhecimento desses fatos todos, até com pormenores.
“Minha boa senhora, primeiro os olhos viram e depois os ouvidos ouviram. Tive a permissão do coronel para acompanhar o velório e tirar algumas fotografias daquela ocasião. De repente as pessoas da sala começaram a dar passagem a uma senhora que vinha chegando. Achei uma mulher bonita, ainda que muito entristecida e com sinais nos olhos vermelhos e inchados de quem havia chorado muito. Verdade que estava vestida um pouco espalhafatosamente para a situação, mas combinando para o que vim saber depois que ela empresariava. Aquela mulher bonita e estranha era a própria mãe do morto, o que fez com o coronel ficasse quase sem se conter. Mãe biológica do filho que foi criado pela esposa do coronel, que também era pai...”.
E a viúva interrompeu para perguntar se o nome daquela mulher era Sofie, pois já a conhecia. Cristina confirmou e prosseguiu: “Até aí tudo bem e acho que também contaram que Dona Sofie era dona do cabaré onde Soniele vivia. E tudo isso eu sei por que a própria Madame Sofie, à época chamavam assim, me contou. Ao menos foi isso que acreditei ter ouvido. Mas alguma coisa me diz que ela não me contou tudo não, que tá faltando alguma coisinha que pode mudar essa história toda...”.
“E isso só será possível encontrando a mocinha, a tal da Soniele, não é mesmo? Mas onde deverá estar essa menina?”, perguntou a viúva, tentando imaginar uma possível situação. Mas em seguida questionou novamente. “E o que você acha que ainda não descobriu?”.


continua...






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sexta-feira, 25 de março de 2011

A FÉ DOS HUMILDES (Crônica)

A FÉ DOS HUMILDES

Rangel Alves da Costa*


Pode até parecer estranho para muitos, mas na minha concepção a fé das pessoas mais empobrecidas da sociedade, mais carentes e humildes é muito mais verdadeira e consistente do que a existente em pessoas de classes sociais com maior poder aquisitivo.
Conceitualmente a fé pode se estender a todos igualmente, pois a crença será sempre no tamanho daquilo que se crê. Contudo, situações existem onde a fé é tamanha que aquilo que é acreditado reverentemente alcança proporções inimagináveis. No último contexto reside a fé dos humildes.
De um modo geral, tem-se por fé a firme convicção no poder divino e nos seus ensinamentos; é a plena convicção que verdadeiramente existem forças superiores que têm o poder de interceder na vida humana; é o conjunto de dogmas e doutrinas que constituem um culto; é a confiança em Deus; crença que Deus faz e fará o que promete. Em síntese, fé é a aliança entre o homem e a divindade.
Como observado, considerando-se que a fé dos humildes vai além de bases conceituais estabelecidas, tem-se então que esta pode ser vista como o último e mais alto estágio, verdadeiro apego sentimental, psicológico e religioso, de crença na força de Deus e no poder que possuem os santos, anjos e outras entidades.
Para os humildes não há um limite para crer no poder de intervenção divina na solução dos seus problemas. Ora, basta ter a certeza que são guiados por uma força maior, por uma entidade superior e que esta nunca os abandonará ou deixará ao desamparo, que tudo se transforma em convicção de que todos os seus atos são guiados, transformados e reformados pelo seu Deus de absoluta grandeza.
Haveria de se indagar, então, como se manifesta essa fé dos humildes, como ela pode ser observada no cotidiano dessas pessoas, como ela é visível no praticante e como é demonstrada como culto familiar.
Indubitavelmente que é no Nordeste brasileiro que a fé do povo mais se ressalta. A lavagem das escadarias das igrejas; as procissões interioranas com fiéis de velas em punho, fazendo todo o percurso descalças, carregando nas mãos imagens de santos, mostrando no rosto a lágrima de devoção e gratidão, subindo de joelhos as escadarias da igreja; as quermesses, as novenas, o sino que toca chamando para a missa; as irmandades, os rosários, as roupas enlutadas da semana santa, o xale negro na cabeça; a casa dos ex-votos, todos os votos de fervor e agradecimento.
Mas também a fitinha do Padre Cícero ou do Senhor do Bonfim, o lenço molhado de água benta, o ofertório, as lembrancinhas do Juazeiro, a bíblia na bolsa e em todo lugar, a corrente com a imagem divina, o crucifixo, a cruz pendurada no pescoço, o se benzer ao sair ou chegar, a hóstia, a missa das seis, das sete, quantas missas houver.
Contudo, a fé em toda sua extensão somente será mais bem percebida nas residências mais pobres, nos lugarejos mais longínquos, nas choupanas e casebres sertanejos, nos locais onde a riqueza maior é verdadeiramente acreditar em Deus muito mais do que em outros lugares e quaisquer outras pessoas.
Quem chegar num ranchinho caindo aos pedaços até pode não encontrar uma só parede em pé, mas por todos os lugares encontrará imagens de santos, fitinhas do Padre Cícero, pequenos oratórios e velas acesas. Na entrada da casa, na porta inexistente, estará escrito “Esta casa é abençoada por Deus!”.
Este povo que quase não tem o que comer, sobrevive de esmolas e de qualquer coisa que lhe chegue às mãos, é uma gente principalmente esperançosa e crente na força divina acima de tudo. É pobre hoje, mas com fé em Deus amanhã dias melhores virão. Não admite, sob qualquer hipótese, que na sua residência, no meio de sua pobreza, Deus e os santos e anjos sejam profanados. Ali ele apenas reside, mas a casa é de Deus, tudo é de Deus, porque Deus é tudo.
E na semana santa, até pelo costume, jejuam todos os dias, não varrem a casa até que chegue o sábado de aleluia, se vestem de preto de cima a baixo, não penteiam os cabelos, não ouvem rádio nem música, não ficam em meio festivo, não procuram fazer outra coisa senão rezar.
Se perguntarem o que seja fé não sabem responder. Mas se perguntarem se têm fé em Deus erguerão as mãos para o alto em agradecimento por tudo na vida. Até pela pobreza, pois há a inabalável fé que amanhã tudo poderá ser diferente.




Poeta e cronista
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Flor fala? (Poesia)

Flor fala?


O silêncio
da tua voz
dizendo tudo
tudo que talvez
ouvirei um dia
é som
que soa
num sonho
e saio de mim
para ouvir
no jardim
um sussurro
baixinho assim
assim como flor
como a flor fala
aos meus olhos
toda vez
que olho a rosa
e vejo você
e sinto você
silenciosamente falando
te amo!


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 63 (Conto)

DESCONHECIDOS – 63

Rangel Alves da Costa*


Arremessados de um lado para o outro, mas sem se desprenderem das cadeiras por causa dos cintos de segurança que a viúva exigia que todos usassem, quando o veículo parou restou o pânico, o medo, a indagação em cada face sobre o que poderia ter ocorrido.
A primeira coisa que fizeram foi se apressarem para ver como estava Dona Doranice. Contudo, ela já ia fazer o mesmo. Já estava levantando para ver como estavam os seus acompanhantes e procurar saber o que realmente tinha acontecido.
Alguns homens da comitiva reconheceram imediatamente aquele barulho como sendo de tiros, e disparos feitos com armas pesadas. Contudo, tal fato nem havia passado pela imaginação do restante, principalmente a viúva e os rapazinhos. A jornalista logo desconfiou, por isso mostrava-se como a mais nervosa e temente do que poderia acontecer agora.
Fortes barulhos surgiram nas laterais do veículo e em seguida vozes arrogantes mandaram que todos descessem com as mãos para cima. Como exigiram, um a um foi descendo e deitando no mato rasteiro. Era ordem da sob ameaça de armas de grosso calibre.
Eram três os indivíduos que perpetravam tais ações aterrorizantes. Cada um mais alto e mais forte do que o outro, todos usavam toucas descendo da cabeça até o rosto para não serem reconhecidos. A cada um que ia descendo tremendo, assustado, quase perdendo os sentidos diante daquelas armas apontadas, iam dizendo “Deita aí, deita aí!”.
Na vez da viúva descer eles tomaram por surpresa quando ela se negou colocar as mãos na cabeça e a não mostrar qualquer reação de medo ou espanto. Estava apenas assustada com o fato, e somente isso. Quando um deles apontou a arma mais de perto e exigiu que ela levantasse as mãos ouviu um pedido de respeito e algo que talvez não estivesse esperando ouvir naquele instante: “Coisa mais feia. Três homens desse tamanho, vão trabalhar!”.
Sabendo o que poderia acontecer diante dessas palavras, imediatamente o chefe dos bandidos disse que o outro nem pensasse em fazer o que estava pensando. Exigiu que se afastasse dela e baixasse a arma, contudo mandou que ela também deitasse no chão ao lado dos outros. O que ela se negou a fazer e ainda disse calmamente: “Pode atirar na avó dos seus filhos”.
Verdade é que os bandidos não entenderam nada e apenas se olharam por debaixo das toucas, pelas frestas abertas para que enxergassem. E ela prosseguiu:
“O que é que vocês querem, digam? Deram esses tiros para furar os pneus do ônibus para nos assaltar, foi? Digam afinal o que é que vocês querem, pois aqui não tem nenhum marginal nem inimigo que vocês estejam procurando não, viu! Estão vendo essas pessoas que estão aí nessa situação, todas estão rodando cada pedaço de chão para ajudar pessoas necessitadas, pessoas carentes, famílias que os governantes, os políticos e os prefeitinhos dessa região querem fazer de conta que não existem. Vocês sabem quantas casas caindo eu já mandei levantar, quantas cestas de alimentos eu já fiz doação, quantos milheiros de tijolos, sacos de cimento, sacos de cal, latas de tinta e tudo o mais eu já doei para esse povo pobre e honesto? Talvez até eu tenha ajudado algum parente de vocês, talvez até que vocês precisem de mim mais adiante. Eu não estou cortando as estradas dessa região para fazer o mal não, como estou vendo vocês fazendo agora, mas muito pelo contrário. Minha missão aqui é de caridade, de bondade, de ajuda aos meus conterrâneos mais necessitados. E se vocês estão necessitados também podem dizer. O que é que vocês querem?”.
A essa altura os bandidos haviam perdido totalmente aquele ímpeto arrogante e de violência inicial. O chefe mandou que as pessoas levantassem do chão e começou a falar, agora não mais com arma voltada para elas, mas apenas com o dedo em riste na direção da viúva.
“Não sei nem quero saber quem a senhora é ou que anda fazendo por aqui, Só sei que o que anda fazendo por aqui não está agradando nem um tiquinho a muita gente. Só quem é político é quem deve lidar com esse povo, quem tem que dar ou não a esmola que ele merece. O que a senhora tá fazendo é envergonhar as liderança política, que é quem manda na política daqui. A senhora tá é querendo botar o povo contra os prefeito, os vereador, contra toda gente que manda politicamente nessa região. E saiba que eles não tão gostando nem um pouquinho da senhora. Mandaram a gente fazer o que devia ser feito, que era matar todo mundo, mas vamo poupar dessa vez. Mas se a senhora continuar com essa história de ajudar eleitor dos outro, então não respondo mais por mim e vou fazer o que me pagam pra fazer. Tá avisada então. Dêm um jeito de sair dessa região e vão pra onde quiser, pois se quiser continuar aqui atrapalhando a política dos outros vão se ver...”.
Resoluta, a viúva imediatamente procurou argumentar: “Mas o coronel Demundo Apogeu não me falou que...”. Foi interrompida pelo chefe dos bandidos que já ia em direção ao veículo: “Quem a senhora falou, disse o nome do coronel Apogeu foi? A senhora conhece ele?”.
“Não só o conheço como vou telefonar para ele agora mesmo...”, mentiu astutamente Dona Doranice. “Não, não, não faça isso pelo amor de Deus. Se o coronel descobre quem mandou a gente fazer isso e principalmente quem é a gente vai ser uma desgraceira...”
“Alô, coronel Demundo? Aconteceu um probleminha...”, continuava mentindo porque discou um número qualquer, mas falava com uma seriedade de amedrontar. E amedrontava mesmo, pois os homens deixaram o carro onde estava e se danaram a correr enlouquecidos pela estrada.
Mesmo com a correria toda, parecendo que o mundo ia acabar pelo medo que o coronel ficasse sabendo quem eles eram, um incidente notável acabou acontecendo com aquele chefe dos bandidos. Eis que um pássaro de olhos vermelhos em brasa surgiu do nada e, com uma velocidade estonteante, alcançou o homem e acertou-lhe com o bico bem na parte de trás do pescoço. Quem visse depois, diria que ele havia sido atingido por uma bala.



continua...





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quinta-feira, 24 de março de 2011

NOITES MOLHADAS (Crônica)

NOITES MOLHADAS

Rangel Alves da Costa*


Há instantes saí no quintal, olhei para cima, abri os braços e me deixei levemente molhar por uma chuvinha fina que hoje cismou de cair sem cessar.
Há muito tempo não chovia uma gota de água sequer. O mundo parecia pegando fogo, tudo escaldando, fazendo os corpos agonizarem com uma sensação suada, fétida, pegajosa.
Nunca confiei em previsões meteorológicas, apenas me bastando em adivinhar as chuvas como bom sertanejo que sou: olhando a barra, sentindo o comportamento das folhagens, vendo os sinais das noites e madrugadas.
Como está quente demais, deito e adormeço numa área verde descoberta por onde entram a lua e os sonhos. Mas na madrugada entrou também um pingo de chuva, eu senti.
Daí em diante nem passou a chover forte nem o tempo abriu mais de vez durante todo o dia. Uma chuvinha aqui e outra ali, verdade é que o clima melhorou e as esperanças de dias melhores parecem também surgir.
Gosto quando chove porque a vida se banha, o mundo fica mais sentimental, as pessoas ficam docemente mais entristecidas e os pingos que caem fazem acender todos os tipos de chamas íntimas.
Surge então uma tristeza diferente, uma angústia que não é dolorosa, uma sensação de abandono e solidão que nos faz mais caminhantes à nossa própria procura. Dor que não doi, saudade de tudo, querer tudo de volta e ao redor, querer se molhar novamente...
A noite é mais negra quando chove. Os astros respeitam a imensidão que se lava, os pingos que lentamente vão caindo para alimentar a vida, trazer recordações, fustigar lembranças, lembrar ainda mais da solidão por causa do friozinho bom.
Na sala, no quarto, na varanda, em pé diante da porta aberta, encostado na janela molhada, o olhar busca tudo ao leve som que muitas vezes nem se ouve. É a chuvinha que cai mansa lá fora e faz um barulho ensurdecer por dentro e atiça e aguça tudo que for sentimento.
Olhando a vidraça molhada, tudo escurecido e embaçado lá fora, talvez caia bem um cálice de vinho, Strauss ajudando também a molhar os olhos, um corpo que valsa sem sair do lugar. E adiante o livro marcado com a folha seca, o diário de qualquer dor, uma velha máquina de escrever que quer ser tocada.
Não é Lobão dizendo que chove lá fora e aqui tá tão vazio; não é Jorge Ben dizendo que chove chuva e chove sem parar; não é Jobim lembrando que são as águas de março; não é Demetrius pedindo que chuva traga o meu benzinho. É o silêncio que canta e dança essa melodia única das noites molhadas, das noites chuvosas, dessas noites lavadas.
E saio novamente de braços abertos, cabeça erguida ao encontro dos pingos e encontro ainda uma réstia de lua escondida entre as nuvens. E é essa tênue luz que quase não aparece que pinta o verdadeiro cenário das noites chuvosas.
Basta olhar a rua e enxergar o brilho das pedras molhadas, do asfalto mais escurecido, das paredes que vão derramando suas cores ainda mais fortemente. É noite, mas a frágil luz do luar consegue impregnar cores novas, lavadas, molhadas, escorregadias, em tudo que se derrama noturnamente pela vida.
E eu queria que essa chuva tão leve caísse mais forte, mais enxurrada, mais trovoada. Nunca mais tomei banho de bica, experimentei caindo sobre a minha cabeça as águas velozes escorrendo pelas calhas. Quantos adultos se fazem criança e renascem em cada banho que se toma assim pelos quintais e calçadas?
Sei que ainda está chovendo. Um pouquinho quase nada, mas ainda está. Vou até lá novamente e não tem nada se quando eu chegar o tempo já tenha mudado, a chuva cessado. É noite e estou com saudade e os meus olhos me acompanham com todas as nuvens carregadas que possuem.





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Consequencias do adeus (Poesia)

Consequencias do adeus



Por tua causa
sou novamente criança
sou novamente sozinho
sou novamente selvagem
sou novamente caminho
sou novamente miragem

por tua causa
não sei mais beijar
não sei mais afagar
não sei mais amar
não sei mais abraçar
nada mais sei

ontem disseste adeus
e já há mil anos
uma eternidade
que nada mais sou
que nada mais sei
a não ser reaprender
tudo novamente
e talvez um dia
outra vez te conhecer.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 62 (Conto)

DESCONHECIDOS – 62

Rangel Alves da Costa*


Diante do inesperado problema, mais um dentre tantos que se somava por toda parte, a viúva tinha que pensar no jeito mais rápido de resolvê-lo. Não tinha tempo para ficar dias em um só lugar cuidando disso ou daquilo. Parece que o vento espalhava sua passagem e aonde chegava já tinha multidões com lágrimas nos olhos e mãos estendidas. Por isso que tinha de seguir logo adiante, mas somente após encontrar meios para diminuir aquela aflição familiar.
Oh, meu Deus, se biscoitos resolvessem o problema seria muito fácil, pensava ela. Se uma fábrica de biscoitos curasse uma dor de uma família que se via agora sem o seu guardião seria também muito fácil. Mas nada economicamente possível teria o poder de amenizar a dor até que a própria vida lançasse sobre aquelas pessoas os seus antídotos.
Saiu um pouco, chamou um dos seus assessores e deu algumas ordens ao ouvido. Mandou que providenciassem imediatamente comida farta para a mãe e os meninos, trouxessem alguns brinquedos e o restante resolveria mais tarde. Reuniu novamente a família e disse que por enquanto não lhes faltaria nada e logo mais daria uma boa notícia para diminuir um pouco a tristeza.
Chamou a mãe num canto e ao lado da jornalista disse baixinho:
“Vocês têm que sair imediatamente dessa casa. Não pelo lugar, pois as pessoas ao redor são honestas e boas, mas porque é impossível que você continue criando filhos ainda pequeninos nesse casebre sem ter praticamente nada. Os meninos não podem continuar vivendo dormindo pelo chão, pisando descalços em tudo que se espalha nesse chão de terra batida. Se der um vento mais forte corre o risco do que resta das paredes e do telhado caírem por cima de todos e provocar uma tragédia ainda maior. Por isso vou presentear vocês com uma casa melhor, maior e num local onde eles corram menos risco. Já mandei comprar a casa e só vou sair daqui quando passar a escritura em seu nome. Depois vou colocar as chaves em suas mãos e fazer com que vocês entrem nela tendo algum lugar pra sentar, deitar, comer. Por falar nisso, providenciarei comida por uns dias e deixarei uma quantia para outras necessidades mais urgentes. Sei que você não pode trabalhar por causa dos filhos pequenos, mas experimente produzir alguma coisa em casa mesmo, como doces, bordando toalhas, fazendo crochê, qualquer coisa que possa lhe ajudar no sustento. Quero o endereço de sua tia lá na capital que é pra ela providenciar a certidão de óbito de seu esposo, pois com esse documento você pode pedir aposentadoria. Vou ver se encontro o responsável pelo encaminhamento da aposentadoria que estiver mais próximo e já deixo tudo certo, só faltando que você vá até lá depois entregar os documentos. E tem só mais uma coisa. Você agora é viúva e viúva com cinco filhos pra criar. Se quiser arrumar outro marido não tem nada que impeça não, mas não esqueça do tipo de gente que você pode encontrar e principalmente dos seus filhos, pois tem homem que só quer a mãe e deixa os filhos dela pra lá. Por isso pense bem no que estou dizendo...”.
A mulher nem se fala, pois de cabeça baixa soluçava sem poder dizer uma só palavra, mas também chorosa estava a jornalista Cristina em ver uma mulher daquela idade tomar tantas atitudes benevolentes a um só tempo. Que coração o dessa mulher, ficava pensando enquanto a senhora falava, só Deus sabe como se sentindo por dentro.
Com a força e a agilidade que o dinheiro sempre proporciona, no dia seguinte a família já pôde entrar na nova casa. Dona Doranice, agora sempre acompanhada pela jornalista e os dois rapazinhos, passou por lá para se despedir e avisar que assim que o documento chegasse fosse procurar o responsável por determinada repartição que já estava aguardando. Tirou uma fotografia junto de todos e dessa vez aos prantos. Não se sabe de onde saiu, mas ganhou uma flor daquela pequenina dos biscoitos. Era de plástico, caindo aos pedaços. Mas que primavera mais plena!
Partiu já ao entardecer. Não havia pressa de partir, mas sim de chegar ao lugar mais próximo, sabendo que a mesma via dolorosa seria percorrida para ajudar seus conterrâneos. E que bom fazia isso ao seu coração, agora parecendo mais remoçado e pronto para as mais duras batalhas. Às vezes esquecia de tomar seus remédios e nem por isso sentia qualquer problema.
Não havia tido tempo ainda de ter uma conversa mais demorada com a jornalista. Todos compreendiam perfeitamente as razões. Mas dessa vez a aventureira Cristina seguia junto com o grupo como convidada. Como bem deixou claro a viúva ao fazer o convite, se sua intenção era viajar sem destino certo então deveria segui-los, ao menos até quando resolvesse tomar outro rumo.
Haviam deixado centenas de mãos acenando adeus e o veículo seguiu em frente por uma estrada de terra batida. Já estava escurecendo quando, a uns três quilômetros adiante, viram um carro pequeno sair de uma estradinha ao lado e colar na traseira do micro-ônibus. Pouco depois só ouviram tiros. Os pneus foram atingidos e o motorista perdeu a direção, pendendo para um lado e seguindo diretamente para uns labirintos de beira de estrada.


continua...






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quarta-feira, 23 de março de 2011

A GRANDE ORDEM DOS APROVEITADORES (Crônica)

A GRANDE ORDEM DOS APROVEITADORES

Rangel Alves da Costa*


Documentos encontrados na Biblioteca de Clancy apontam para a existência, durante o período mais efervescente da Europa medieval, de uma ordem bastante peculiar, denominada A Grande Ordem dos Aproveitadores.
Formada por cavaleiros desempregados, preguiçosos e adeptos do bon vivant, sem qualquer labuta honesta que justificasse a existência, a Grande Ordem tinha como lema “É sempre melhor o que é dos outros”. No estatuto elaborado por um tal Jacques Berón, logo no preâmbulo se lia:
“Somos parte de um povo bom e humanitário, trabalhador e honesto, mas sabemos que nem sempre teremos às nossas mãos tudo o que desejamos. Daí que são gestos louváveis tanto pedir como usufruir ao máximo daquilo que é dos outros, pois os outros, segundo as leis naturalistas e divinas, são nossos irmãos e têm de nos acolher”.
Para fazer parte dos quadros da Grande Ordem não havia exigências maiores, podendo ser rico, pobre ou remediado, mas tendo que comprovar que seguiria com fidelidade os objetivos e o estatuto. Contudo, era primeira exigência que o postulante passasse por um ritual de iniciação, consistindo este em provar que se aproveitou o máximo do maior número de pessoas em tempo razoável, como forma de demonstrar esperteza e malandrice.
O aproveitar-se do outro não tinha nenhum mistério, significando mesmo usar de todos os tipos de ludibriações para tirar do outro aquilo que ele dispunha no momento. E isto era feito, por exemplo, escondendo os charutos para pedi-los aos outros; aproveitar que estavam fumando e pedir que deixassem umas baforadas; chegar às tabernas e encostar-se àquele que estivesse bebendo e, após ganhar sua confiança, beber à vontade e por conta do outro; viver com a cara mais triste do mundo, reclamando de tudo na vida, de modo que os outros tivessem pena e fizessem alguma doação.
Mas outras safadezas ainda faziam parte desse rol de aproveitamentos. Muitos se aproveitavam da fragilidade das pessoas doentes, delas se aproximavam carinhosamente, cuidando e fazendo agrados, mas sempre encorajando o espírito frágil a incluí-los no testamento; se encontravam duas pessoas criando inimizades, logo puxavam o saco do mais rico, colocando-se à disposição, de modo que mais tarde pudessem cobrar a amizade sincera; se percebessem que estava havendo uma festança, procuravam logo entrar na surdina, às escondidas ou fingindo que foram convidadas e sempre eram vistas com copos de bebidas e pratos de comidas.
Segundo a Grande Ordem, era terminantemente proibido que os seus cavaleiros pretendessem se arrepender e procurar viver honestamente, trabalhando como todo mundo, esforçando-se nas labutas mais árduas, deixassem de mentir e de tirar proveito em tudo e contra todos, de repente esquecessem que o mundo é dos mais espertos e que a esperteza se constitui no meio mais eficaz de se obter o máximo com o mínimo de esforço. Seria crime os aproveitadores deixarem de aproveitar o máximo do que era alheio.
Contudo, até os mais corruptos, salafrários, desonestos, mentecaptos, preguiçosos, vagabundos, mentirosos e falsários se revoltaram quando uma nova classe de pessoas quis se associar como cavaleiros beneméritos da Grande Ordem. Não podiam aceitar, diziam eles, que pessoas desonestas demais quisessem fazer parte de uma Ordem que era apenas de aproveitadores, quando deveriam se associar a uma ordem voltada apenas para os corruptos.
Os aproveitadores defenderam então que a classe dos políticos, governantes e todos aqueles que faziam parte da elite estatal, deveria fundar uma associação de ladrões e correlatos e não fazer parte daquele núcleo da mais pura inocência diante deles. Se estas pessoas se misturassem aos praticamente inocentes, estes tenderiam a se enlamear eternamente. Aceitavam, contudo, pastores e bispos das igrejas ditas evangélicas, que segundo eles, em nada se diferenciavam dos mais qualificados aproveitadores.
Mas um dia, não se sabe como, foi admitido aos quadros um novo cavaleiro que ninguém sabia ao certo dizer qualquer coisa sobre a sua procedência. Mandaram investigar e descobriram que era um puxa-saco, um exímio bajulador de autoridade com poder. Pronto, Não houve mais discussão, e o homem foi eleito Venerável da Grande Ordem.
Não estou inventando nada. Tudo está lá na Biblioteca de Clancy para quem quiser comprovar o que digo. Sobre a existência dessa biblioteca aí é outra coisa.




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Nada mais (Poesia)

Nada mais



Mas não é só amor
é o verdadeiro amor
não é só o desejo
é o verdadeiro querer
não é só a felicidade
é o prazer em você

repetia tais palavras
todas as vezes
que você duvidava
de apenas te amar
ou apenas estar

um dia
antes que não adiantasse
mais dizer tanto em vão
tive que mentir uma vez
e disse que tinha outra
e amava menos que você

e você acreditou
e você se sentiu traída
porque não conhecia nada
porque você nunca me ouviu
dizer que te amava tanto
dizer que te amava demais.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 61 (Conto)

DESCONHECIDOS – 61

Rangel Alves da Costa*


A viúva demonstrou grande receptividade para com a jornalista, deixando Cristina à vontade para fazer o acompanhamento daquelas ações de caridade. Pediu, porém, que observasse e registrasse tudo direitinho porque mais tarde gostaria de discutir algumas coisas com ela. Disse que confiava na sua experiência de jornalista e acostumada a ver de perto dramas de todos os tipos. Daí sua opinião ser tão importante.
Mesmo que Dona Doranice quisesse estar à frente de tudo ao mesmo tempo, de vez em quando Carlinhos só faltava lhe dar uns puxões de orelhas. “Senta aí mulher de Deus, deixe que eu mando levar mais outra cesta de alimentos naquela casa”, “Não precisa ir até lá não que eu mesmo vou saber qual o doença do menino pra providenciar o médico e remédio”, “Se a senhora ao menos tentar pegar nessa caixa vai tomar umas palmadas, mas quem já se viu mulher mais teimosa!”.
Em muitas vilas, povoados, fazendas, lugarejos, logo quando chegavam Yula saía pelo meio do povo com um caderninho e aqui e ali fazia anotações, num verdadeiro diário de campo. Na verdade, eram dois caderninhos. Num ia anotando o que via que o povo estava mais precisando ou que chegava perto dele para pedir; no outro ia escrevendo suas impressões de viagem, descrevendo a vida daquela sociedade ainda tão estranha ao seu olhar. Procurava ser fiel ao máximo no registro do jeito de ser e do modo como vivia.
Tanto Carlinhos como Yula causavam os melhores elogios no coração materno da viúva. Gostava de vê-los ali ao seu lado interessados, felizes, contentes e brincalhões, mesmo sabendo a dor e o sofrimento experimentado por cada um diante dos quadros de miséria mais visivelmente alarmantes. Em Carlinhos sabia que o impacto era menor, vez que acostumado logo cedinho ao sofrimento dos abandonados.
Indagava se Yula apenas estranhava ou não compreendia se realmente aquilo estava existindo diante de si. Com certeza, até o instante em que foi levado por sua avó até a mansão da viúva, talvez muito pouco ou nada tivesse conhecimento sobre a realidade desse povo vivente nas distâncias agrestes de sol e sol. Agora era o menino se fazendo homem através da prova do olhar, do sentir, do ter que acreditar ainda que a indignação quisesse se impor.
Assim, após mais um dia de duro trabalho num desses lugarejos interioranos, onde o progresso se faz presente apenas em determinados comportamentos, a viúva olhou por entre a multidão se encontrava a jornalista Cristina e, não conseguindo avistá-la, pediu a Carlinhos que fosse procurá-la porque precisava conversar um pouco com a mesma. Já era o segundo dia que a moça acompanhava o trabalho da equipe e talvez já tivesse algumas considerações importantes a fazer.
Carlinhos sumiu e voltou correndo para dizer que ela estava numa casa mais adiante tentando fazer alguma coisa por uma família que se encontrava aos prantos e totalmente desesperada. “Mas o que houve meu Deus? Vamos depressa até lá”. E a viúva saiu apressada seguindo o menino e acompanhada de Yula, que também queria saber logo o que estava ocorrendo.
Assim que avistou a viúva, Cristina correu ao seu encontro dizendo: “Dona Doranice, minha filha, a senhora nem sabe o que acaba de acontecer com essa pobre mulher e seus cinco filhos. Rapazinho, por favor, leia aqui essa triste carta que essa pobre mulher acaba de receber, com mais de mês de atraso, enviada por uma parenta sua lá na metrópole de Lindo Horizonte”.
Então Yula levantou o papel de carta já molhado perto dos olhos e leu: “Querida sobrinha. Me adesculpe por não ter podido falar com você antes, pruque num tinha como. Mas se pegue com Deus pruque a notiça que vou dá num é boa não. Sebastião seu marido, que só falava em vortá praí e inté já tava arrumano um dinheirinho pra vortá, tem três dia que caiu dum andaime numa obra e morreu esbagaçado no chão. Num se sabe cuma mais a empresa já interrou ele num cimitero ninguém sabe adonde. Agora é só rezar pra Deus e cuidá dos seus filhinho. No fim do ano vou aí e vou ajudá no que puder. Meus pesame e força pra continuá lutando. Quano eu for vou levar umas boneca pras menina e uns carrinhos de prástico pros menino. De sua tia sofrida. Esmeralda”.
“Mas que tragédia, meu Deus. Onde está essa pobre família, vamos lá. Mais de mês e essa danada de notícia vem bater à porta da casa agora. Vamos lá todos juntos, por favor”, disse a viúva, visivelmente abalada e aflita.
Pleno desalento! Após uma porta de cortina uma família chorando a notícia da morte de um esposo e pai. Em meio a um cenário que se resumia a restos de quase tudo, e tudo pendurado caindo, jogado pelo chão, uma família envergonhada, baixando a cabeça e tentando esconder a face da pobreza e o sofrimento.
Soluçando baixinho, a mãe tinha ladeando o seu corpo magro e desnutrido os cinco filhinhos, parecendo uma escadinha, sendo três meninas e dois meninos. “Olá pessoal, sei bem porque estão assim. Tenham a certeza que todos nós estamos também muito tristes com o ocorrido. Mais de mês e só conseguiram receber a carta agora, mas é assim mesmo. Dessa vez os passos do sofrimento vinham muito devagar, e talvez porque estivessem esperando que eu chegasse aqui para acolher vocês nesse momento tão difícil. Por favor, ergam as cabeças e venham aqui perto de mim, pois quero dar um forte abraço em cada um e depois dizer uma coisa. Sei que é muito difícil, mas levantem as cabecinhas e venham...”. E Dona Doranice fazia de tudo para não deixar as lágrimas molhar as palavras.
A primeira a se aproximar foi a mais novinha de todas, ao menos no tamanho era a menor, e quando estava bem em frente à viúva levantou os olhos marejados e perguntou: “Papai não vai mais me dá biscoito. A senhora me dá um biscoito?”.


continua...





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terça-feira, 22 de março de 2011

O SILÊNCIO DO GRITO (Crônica)

O SILÊNCIO DO GRITO

Rangel Alves da Costa*


Após o grito, o silêncio ensurdecedor que surge é sinal de que tudo está na iminência de acontecer.
O grito foi aterrorizante, desesperador, única forma de pedir socorro diante do pânico, do medo, do ataque, da dor.
O grito não surgiu ao acaso, não foi ensaio para evento futuro, não saiu da garganta como brincadeira ou como gesto imotivado.
O grito nasceu, se fez e ecoou porque se fez necessário, porque os olhos não acreditaram, o corpo temeu e a própria vida correu perigo.
E quem ouve o grito ao longe conhece o que ele representa, sabe bem o seu significado, tem a certeza de que algo pesaroso está acontecendo.
Esteja onde estiver e sabe as causas e as consequencias de um grito, se for de bom sentimento, se tiver coragem ou se fizer valer o senso humanitário quer logo saber de onde ele surgiu.
Conhecida a direção de onde o gritou partiu, pode surgir outro grito, um aviso dizendo que já está indo ajudar, uma correria desenfreada para chegar.
Quanto mais se aproxima mais quer ouvir outros sinais do grito, que saber se está na direção certa e se a pessoa ainda corre perigo.
Quanto mais se aproxima mais há força e encorajamento, há uma vontade cega de enfrentar o desconhecido, há uma necessidade arrebatadora de sufocar o grito e a sua causa.
Não há mais um só sinal do grito, qualquer som, qualquer eco, mas ele partiu daquela direção, ele só poderia ter surgido dali.
E corre e avança, e vai para um lado e outro, olha pra perto e mais distante, por cima e por baixo e por todos os lugares, e somente encontra uma possibilidade de ter encontrado a boca de onde saiu o grito.
A pessoa está em pé, como quem apalermada, com olhar vazio e distante, rosto sem cor, parecendo ter o corpo estremecido, sem ação alguma, sem palavra alguma, apenas demonstrando as consequencias de haver gritado.
O silêncio agora toma conta de tudo, a boca está fechada, apenas o vento balança as folhagens. Talvez tenha tudo sumido com medo do grito ou do motivo deste.
Quem foi ajudar, quem se desesperou para socorrer, agora se vê diante do dono da boca que gritou e só pensa em perguntar o que foi, o que houve, qual o motivo daquele gesto desesperado.
Mas a pessoa parece não ouvir nada, não fala nada, não gesticula, não aponta pra qualquer direção nem demonstra se está sentindo alguma coisa.
De repente a pessoa, sem prestar a menor atenção à outra que veio lhe socorrer, simplesmente começa a se movimentar, olha para uma estrada ao redor e segue naquela direção.
Vai caminhando calmamente, tranquilamente, olhando para trás apenas uma vez e depois começa a entrar numa curva e sumir.
Tomando o lugar da pessoa que saiu, agora quem não sabe o que pensar nem o que fazer é a que chegou até ali desesperada, buscando respostas para um grito medonho ouvido.
Mas só um grito há dois minutos atrás e agora tudo como se não tivesse ocorrido nada, apenas o silêncio, o mais profundo silêncio. O que teria acontecido, então?
A pessoa ali em pé não sabe o que fazer, não sabe o que pensar de si mesma, não sabe mais de nada. E de repente pensa e se pergunta: Será que estou enlouquecendo?
E dá um grito ainda mais pavoroso!




Poeta e cronista
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