DESCONHECIDOS – 67
Rangel Alves da Costa*
Soniele imediatamente correu para ver o que estava acontecendo e encontrou a amiga tremendo dos pés à cabeça. “O que foi Carol, por que esse grito?”, perguntou. “Veja ali ancorado se não é aquele barquinho que dizem que vem para buscar os mortos ou pessoas que vão morrer!”. Respondeu, apontando em direção à beira do rio, logo adiante.
“Venha aqui menina, entre aqui e tome um copo de água com açúcar”, falava Soniele enquanto carregava a outra porta adentro. E continuou: “Deve ser outro barquinho desconhecido que ancorou ali, de alguém que deve estar por perto. Logo mais o pescador dono dele aparecerá...”.
“Não, de jeito nenhum, pois era esse mesmo barco que avistei meia noite quando saí para tomar um ventinho. Àquela hora só podia ser esse maldito barco que tanto falam. E quando abro a porta quase nesse instante a primeira coisa que encontro é essa maldição em minha frente. O que ele faz aqui até essa hora, qual aviso que ele quer dar, quem esse maldito pensa que vai levar?”.
“Calma, calma. Ali é outro barco, tenho certeza, pode ficar despreocupada. Agora deite aí e descanse um pouco”, tentou convencer sem conseguir, pois a outra cismou de ir até lá para ver de perto como era a embarcação, se tinha alguma coisa diferente, se havia alguma coisa misteriosa dentro dela.
Como não podia deter a amiga, Soniele acompanhou-a até a porta. Ao abri-la repetiu-se o espanto, pois não havia mais nem sombra de sua presença. Havia sumido num instante e sem deixar vestígio algum. Seguiram até lá para ver se encontravam marcas recentes de pisadas de alguém, mas conseguiram apenas enxergar uma trilha feita na água como se alguma coisa invisível estivesse navegando.
Soniele fez de tudo para se manter calma, contudo também estava intimamente muito nervosa e preocupada. Procurou a todo custo continuar acalmando a amiga, falando sobre uma série de possibilidades que sabia completamente descabidas. Fazia assim porque não tinha o que dizer sobre o barco, sob pena de transformar a existência ali num verdadeiro fim de mundo.
Tinha certeza que havia sido mesmo aquele objeto de aparição de tanto comentário e preocupação, mas não podia alimentar essa certeza diante da fragilidade da outra. Carol era quase de sua idade, um pouquinho mais nova, mas parecia uma criança perto de sua vivência. Não podia de jeito nenhum desestruturar emocional e psicologicamente a menina. Porém sabia que tinha de fazer alguma coisa urgente, conversar com Dona Pureza e relatar o ocorrido.
Fez um chá bem forte que a outra adormeceu num instante. Saiu devagarzinho e foi procurar Pureza nos arredores. Sabia que ou ela estaria no leito do rio jogando sua tarrafa ou nos fundos de seu barraco separando ervas e providenciando seus elementos de culto às noites enluaradas. Era seguidora de uma religião talvez somente conhecida e praticada por ela, onde os poderes mágicos para fazer encantamentos e solucionar mistérios estavam na junção da luz da lua, no reflexo da água e na quentura da terra na beira do rio.
Deu sorte de encontrá-la quando saía do seu barraco com um cesto de pilombetas salgadas para deixar secando ao sol. O cheiro forte do peixe miúdo subia pelos ares impregnando tudo que estivesse ao redor. Logo mais já estariam mais sequinhas, com o cheiro no ponto de frigideira e deliciosas que só. Mas era tudo à venda, logo enviadas para as feiras abertas em Mormaço e outras cidades. Ao avistar Soniele chegando falou:
“Por aqui essa hora filha de Deus? Vejo na sua feição que me traz um assunto de importância. O que será? Venha, se achegue mais e despeje tudo menina”. Então ouviu um relato minucioso de todo ocorrido naquela manhã. A seguir segurou no braço da mocinha e levou-a até o começo da água do rio e começou a falar:
“Esse negócio já tá indo longe demais. A história desse barquinho deixou de ser como uma lenda presente e vivenciada pelos moradores daqui para se transformar num mistério assustador. Antes era coisa de ser avistado passando à meia-noite, apenas com o seu vulto cortando as águas lá no meio do rio. Agora começou a aparecer a qualquer instante, passando pelo mesmo lugar e seguindo em sua direção. Por enquanto não tem levado ninguém daqui não, pois o último a morrer foi o finado Climério. Mas se a função dele é passar por aqui pra levar gente é porque vai levar, e disso não tenha dúvida. Anda passando demais sem que gente morra e isso é um triste e penoso aviso de que a qualquer momento mais de uma pessoa seja levada, e quem sabe até muitas de uma vez só. Mas como, se aqui não tem esse mundo todo de gente? E isso é preocupante também, pois a morte pode estar rondando não só a gente como aqueles homens que estão do outro lado do rio terminando aquelas obras, mas também outras pessoas que possam chegar por aqui. Ninguém sabe ao certo se ele tá rondando a gente ou esperando os desconhecidos, mas afinal de contas somos todos desconhecidos...”.
“E antes que tudo isso possa acontecer o que podemos fazer Dona Pureza?”, indagou a assustada Soniele, ao que a ribeirinha respondeu: “Diante de mistérios e desígnios como esses praticamente nada. Contudo, minha filha, diz o ditado popular que o mal não se manifesta com a maldade que quer se for logo sendo cortado pela raiz. E como a gente não sabe onde tá a raiz desse mal, então vamos fazer o que está ao nosso alcance, que é tentar prender essa raiz maldosa debaixo da terra, através de uma reunião de encantamento que a gente vai fazer ainda essa noite, logo que começar a escurecer e a lua brilhar. Você já tá convidada e tem de estar aqui, tento você como a outra. Tragam uma roupa usada e ainda não lavada...”.
“E por que só serve roupa assim Dona Pureza?”, Soniele quis logo matar a curiosidade. “Nada de respostas agora, apenas façam o que peço. Uma roupa usada e ainda não lavada, das duas”.
Quando Soniele começou a se afastar para retornar, a pescadora ainda falou: “E sobre o barquinho que a menina viu ancorado bem defronte de casa, não quer saber nada não?”. “Oh, meu Deus já tinha esquecido do principal. E aí Dona Pureza, o que a senhora tem a dizer?”.
“Ela não, pois o barquinho foi atrás de você. E ainda não foi embora não, ainda continua por lá. É um assunto sério demais e depois lhe conto porque, mas assim que chegar lá tome um banho completamente nua no lugar onde ele foi avistado na beira do rio. Mostre a beleza do seu corpo às águas do rio que o barco vai desaparecer, ao menos por uns tempos”.
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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