SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

BONECA DE PANO, CAVALO DE PAU (Crônica)

BONECA DE PANO, CAVALO DE PAU

Rangel Alves da Costa*


Hoje em dia quase não se vê mais criança se divertindo com brinquedos artesanalmente construídos. Iguais aos pais que são guiados pelas inovações tecnológicas, os pequeninos agora só querem brinquedos importados, robôs miniaturizados, carrinhos elétricos, bonecas que falam e andam, uma série de invencionices caríssimas que tanto aguçam os desejos.
Esses mesmo pais que passeiam pelos shoppings e lojas especializadas mandando que os seus filhos escolham os brinquedos mais modernos, talvez se lembrem de um tempo já distante, onde muitos deles foram protagonistas das mesmas brincadeiras infantis, com brinquedos igualmente infantis, só que noutros formatos e meios de fabricação.
Talvez os pais sintam saudades daqueles tempos, principalmente quando não sabem manejar o brinquedo novo que comprou para o filho. E então haverá de lembrar que no lugar da bola importada, o que se podia dispor era de uma meia velha que era enchida de molambos e passava a servir perfeitamente como bola de jogar futebol.
As comparações seriam muitas se pudessem ser levadas adiante. Para se ter uma ideia, no lugar do carro mecanizado o que se tinha, quando muito, era um carrinho construído em madeira e vendido aos montes em qualquer feirinha. Com esse carrinho, o moleque montava e desmontava, colocando uma lata de óleo vazia por cima e dizendo que era um caminhão transportando água.
Naqueles tempos essas tais Susie e Barbie e outras mais, bonecas importadas que são o sonho de consumo das meninas, não faziam tanto sucesso como a boneca de pano feita pela velha Sinhá, pela tia solteirona ou mesmo comprada nas feiras livres. Perfeitas nas costuras, no preenchimento e nas feições de gente que tomavam, essa bonecas logo ganhavam nomes e um guarda-roupa verdadeiramente rico, pois todo retalho da mãe servia para fazer uma roupinha nova.
As meninas, nos momentos próprios para brincar, não faziam outra coisa senão pegar suas bonecas – muitas vezes possuíam uma família inteira – e ir para o canto da casa, principalmente na varanda, onde estavam armadas suas casinhas de bonecas. Casinhas feitas de ripa e pano, de madeira ou papelão, muitas vezes cabiam dentro a menina e suas crias.
Menino que não gostava de brincar com bola de gude, soltando pipa, de fazendeiro com ponta de vaca, levando pra cima e pra baixo seu carrinho de madeira ou jogando bola no campinho de quintal, ainda podia contar com uma série de opções de brinquedos e brincadeiras. Não gostavam muito de ter boizinhos de barro em casa, contudo gostavam muito de vaquejar, de brincar de pega de boi e fazer correria em cavalos de pau.
Cavalo de pau era brinquedo que dava dignidade ao cavaleiro menino e podia ser montado a qualquer instante, principalmente em noites de lua cheia quando os molecotes saíam escondidos de casa e seguiam em direção às esquinas mais distantes onde se reuniam e davam início às correrias pelas matarias ao redor.
Uns três dos participantes eram logo escolhidos para serem os bois daquela noite. Corriam para se esconder pelos matos e uns cinco minutos após um grito anunciava que os cavaleiros já poderiam sair em correria para fazer a caçada. Quem conseguisse pegar mais rapidamente qualquer dos bois ia namorar com Ceicinha, a menina mais bonita do lugar.
Ceicinha nunca soube dessa história, mas um dia se apaixonou por um cavaleiro sim. Sentada na varanda ajeitando suas bonecas dentro da casinha, viu quando Zezinho passou todo contente montado num cavalo de pau tirado do mato naquele mesmo instante. Foi amor à primeira vista. E um dia ele prometeu a ela que quando tivesse um cavalo alazão de verdade iria colocar ela na garupa e sairiam os dois apaixonados pelo mundo em busca da felicidade.
E Deus não esquece dos que se prometem amar. Ceicinha e Zezinho foram vistos um dia, já adultos, galopando na nuvem mais bela que existia.




Poeta e cronista
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Amanhã (Poesia)

Amanhã


Porque no passado
conhecemos o temor
depois do combate enfrentado
da luta sair perdedor
e tanto querer esfacelado
sem nada restar no amor
e nessa certeza vã
ser incerto o amanhã

porque hoje
o amor nos dá proteção
e continuamos amando
com o destino em cada mão
o passado vive lembrando
da fragilidade da paixão
e por isso nos chamando
a fazer da vida tecelã
e construir o amanhã

porque o amanhã
reflexo do que merecemos
será amor renovado
na força que ainda teremos
sem esquecer do passado
pois nada somos e seremos
se não puder ser recordado
que só haverá amanhã
se agora for sua irmã.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 10 (Conto)

DESCONHECIDOS – 10

Rangel Alves da Costa*


Na metrópole de Nova Paulo, a caridosa milionária Doranice se preparava para deitar após ter realizado uma grande e demorada reunião com empregados e assessores, adiantando os preparativos para a expedição que faria à região mais pobre do país.
Por vontade dela já havia partido há uns cinco dias, mas sempre atrasando seu embarque diante das inúmeras providências que eram tomadas pelas pessoas responsáveis pela organização da viagem. Segundo afirmavam, nada, mas nada mesmo poderia dar errado, de modo que a velha senhora não sentisse nenhum desconforto ou passasse qualquer tipo de vexame em terras tão distantes.
Acompanhariam a viúva duas experientes secretárias particulares, um cozinheiro, dois ajudantes-de-ordem e um responsável por toda a logística da viagem, bem como pelo pagamento de todas as despesas feitas na expedição. Dinheiro certamente não faltaria, principalmente porque cartões de crédito e cheques eram ilimitados.
Ficou então acertado que partiriam, sem nenhum atraso, dali a dois dias. E como fazia sempre, antes de se recolher para dormir, Doranice se dirigiu até o solar diante do jardim e foi passear um pouco por entre os canteiros iluminados e as belíssimas espécies da flora ainda acordadas, com flores de todas as cores que exalavam suaves perfumes e ainda brilhavam àquela hora da noite.
E ela ficou pensando qual sentido teria viver rodeada de tanto luxo e riqueza, com imensos jardins, pratarias, ourivesarias, candelabros de czares e cristais do oriente, num mundo de puro poder e brilho, ainda que a riqueza desse certo conforto ao espírito, não pelo ter, mas sim pelo poder dispor para ajudar ao próximo, como ela fazia.
E ficava imaginando como seria a vida naquelas distâncias que iria visitar, colocando os pés novamente na região onde havia nascido, mas que agora retornava de um modo totalmente diferente do que se poderia imaginar. Ao invés de jardins resplandecentes, talvez a terra árida e faminta; ao invés de pessoas que se preocupam com etiquetas, formalismos e aversões, um povo com identidade verdadeira, humano, com atitudes que refletem suas necessidades.
Certamente fariam tudo para impedir, mas desejaria beber água de moringa, matar a sede com água vinda diretamente do pote novinho, suado, de um vermelho escurecido do barro queimado na olaria. Depois de um doce de leite com bolas grandes, nada melhor do que pegar uma caneca de alumínio limpinha e beber água da moringa fresquinha, pois sempre colocada perto da janela onde o vento bate.
Mas como sabia disso tudo? Ora, mesmo depois de tantos anos não poderia jamais esquecer suas raízes nordestinas, pois o sangue que corria nas suas veias era matuto, caipira, do mato, com muito orgulho. E então por que não voltar até lá, e não somente ao seu berço de nascimento, mas pelas vastidões nordestinas e oferecer àquele povo mais carente um pouco do muito que tinha?
Estava ainda caminhando pelo jardim e pensando esse montão de coisas bonitas e angustiantes quando avistou lá longe, bem distante, por trás de um dos portões dos muros altos que cercavam a mansão, uma figura em pé, segurando nas grades do portão e talvez olhando para o jardim e a sua dona. Não tinha dúvidas que era uma pessoa, pois as luzes transformavam a noite em dia, e pelo que avistava era um menino que estava diante do portão.
Sem medo, sem pretender chamar nenhum guarda para lhe acompanhar, foi caminhando e se aproximando cada vez mais da pessoa. Ali em pé, o desconhecido nem se mexia ao ver a velha senhora se aproximar. Pelo contrário, quando ela estava mais perto falou em bom tom: “Boa noite senhora, que belo jardim a senhora tem?”.
Então ela respondeu: “Mas quem é você e o que faz aqui numa hora dessas?”. “Não se assuste senhora, não tenha medo, sou de paz, não roubo casa de ninguém nem faço mal a ninguém. O meu nome é Carlinhos. Estava caminhando pelas ruas e então enxerguei esse jardim maravilhoso e vim dar uma olhadinha. Mas já estou indo embora. Desculpe senhora. Tenha uma boa noite...”. Foi o que menino falou antes de fazer menção de partir.
“Não, não, espere aí. Você disse Carlinhos, disse que seu nome é Carlinhos? Então você é o menino do sonho de ontem à noite...”.


continua...




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domingo, 30 de janeiro de 2011

FAZENDO GUERRAS E REVOLUÇÕES (Crônica)

FAZENDO GUERRAS E REVOLUÇÕES

Rangel Alves da Costa*


Do jeito que estou, indignado com meio mundo de situações que vejo ao redor, revoltado com esse estado insuportável de coisas, enojado com esse lamaçal que se avoluma e todos pensam que é uma nevasca da estação, a qualquer instante deflagro uma guerra ou uma revolução.
Não me contentarei com motins, inconformismos momentâneos, subversões, desordens ou agitações, pois levarei adiante um conflito de tão grandes proporções que a história dirá amanhã que a vida na terra jamais esteve em situação tão próxima de ser completamente extinta, e tudo motivado por meu rancor, minha força e minha ira.
Creio piamente no meu estado de lucidez. Meus atos e atitudes são coerentes com a necessidade. Nada além do necessário para confrontar o que silenciosamente age como o maior inimigo, como o mais cruel traidor e como o mais desumano dos vilões. Assim, não pense que é a guerra pelo simples combate, a revolução pela mera predisposição. Ora, se me declaro inimigo e vou pegar em armas, que vença o mais forte.
Diante do que penso e pretendo fazer, nem o infame do alemão nascido na Polônia teve coragem de levar adiante; Napoleão seria certamente aprendiz, como seriam também Alexandre, Genghis Khan, Aquiles, Brancaleone e Átila, dentre outros fantasmas e fantasias. Com bem mais encorajamento e estratégia do que Lampião e seus cabras, do que o Conselheiro e seus fanáticos, do que Bento Gonçalves e seus farrapos, do que Zumbi e seus foragidos, do que muitos outros.
Mais, muito mais explosiva e destruidora do que balaiadas, baianadas, alfaiatadas, sabinadas, dezoitos do forte, revoltas tenentistas, beckimadas, contestadas, constitucionalistas, colunas pretistas, revoltas araguaístas, tocaiadas e emboscadas. E mais dedestruidora do que todas as guerras mundiais, do que as conquistas sangrentas, do que as vilanias cruzadistas.
Do mesmo jeito que tenho assegurado o direito de ir e vir, de pensar e de agir, também tenho assegurado o meu dever de fazer minha guerra. Ora, não estarei pegando em armas para assaltar ou matar nas esquinas, ameaçar ninguém, mas apenas para destruir o mundo. Querer destruir o mundo é fazer justiça contra os que nele vivem sem merecê-lo.
Não há legislação alguma, seja penal ou constitucional, que diga que o indivíduo revoltado com o estado de caos e barbárie que se assoma por todos os setores da sociedade, não possa fazer guerra, declarar estado beligerante contra todos e avisá-los que os ataques irão começar.
Crime mesmo seria deixar sorrindo da cara dos outros essa verdadeira corja que se denomina políticos, mandatários, chefes, governantes. Por que se autodenominam autoridades se jamais tiveram a preocupação de buscar mecanismos que assegurem a paz no mundo? Pelo contrário, do horror se alimentam, vivem das tragédias, se purificam nas mortandades causadas por eles mesmos.
Nem venham me perguntar quais armas usarei para fazer guerra contra o mundo, para combater perante todos e destruir um por um, sem dó nem piedade. Já disseram que o inocente paga pelo culpado, se aquele que se acha inocente não diz quem é o culpado. Será, pois, destruição por extensão.
Porém, fato é que dificilmente será possível encontrar um só inocente se a maioria da população vota nos mesmos políticos, aplaudem aqueles que roubam descaradamente e defendem os desonestos e ladrões como se a própria honra estivesse sendo aviltada. Se todos não agem assim não será culpa minha, mas prevalece aqui o princípio da maioria. Então, todos, indistintamente, serão vítimas dessa minha guerra cruel.
Estou apenas esperando o melhor lugar para começar a destruição. Talvez comece afundando o satanismo iraniano. Não. Acho melhor começar por Brasília. Sorte do povo que será salvo, representado que será pelo martírio dos seus representantes. Mas de qualquer sorte o povo será destruído também, pois onde houver um corruPTo haverá um votante para lhe dar sustentação.




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No amor e na vida (Poesia)

No amor e na vida


Não lamento nada da vida
nada do seu suporte
nada sobre a existência
nada acerca da morte
nada sobre a essência
nada da pouca sorte
pois tudo um dia dado
aos poucos é confirmado
menos as coisas do amor
que se constrói do inesperado
lançando um dia um olhar
e no outro a namorar
e de repente a paixão
o amar como ilusão
para a qualquer instante
o destino ter seu rompante
e o amor tão extremado
aos poucos ser definhado
surgindo a cruel realidade
no coração abandonado.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 9 (Conto)

DESCONHECIDOS – 9

Rangel Alves da Costa*


Como observado, as pessoas envolvidas nessa história nada tinham a ver umas com as outras. Cada um vivia o seu mundo, ao seu modo, em lugares totalmente diferentes. Aristeu, profetizando na sua distância; Soniele fazendo vida no cabaré de Madame Sofie e desejando mudar de vida todas as vezes que abria as pernas; a viúva e milionária Doranice na grande metrópole pensando em fazer o bem para o próximo; João Pescador jogando sua rede, esperando a sereia e subindo na pedra para cantar e chorar ao entardecer; Carlinhos sentindo fome e sede, dando vontade de levar um pão da padaria, mas recuando por uma força instintiva; a jornalista Cristina pensando em novas denúncias e se preparando para viajar sem destino; e a patricinha Carol, esbanjando da riqueza da família, continuava pensando apenas em se divertir sem pensar em nada mais sério na vida.
Naquela manhã, Aristeu, o profeta, sentiu algo diferente no ar. Vivendo numa caverna no alto da montanha, sabia muito bem que ali o ar era praticamente constante, com o vento soprando do lado de fora numa normalidade das horas.
Contudo, surgiu mais forte, começou a soprar com mais voracidade, chegando mesmo a agitar o interior da caverna. E sem compreender como poderia tal fato acontecer, verdade é que o profeta viu surgir uma folha amassada de papel sendo trazida pela ventania, zanzando pelo ar como se estivesse à procura de um lugar para cair.
Temeroso que era das coisas estranhas e inesperadas, Aristeu largou imediatamente seu já envelhecido Livro das Horas e dos Tempos e foi em direção ao papel que já havia caído em cima de uma mesinha de pedras. Como a luz do lugar era pouca, segurou o papel e correu para a entrada da caverna, percebendo nesse instante que a surpreendente ventania já havia se dissipado.
Com a claridade do tempo, o profeta levantou o papel até a altura dos olhos e começou a ler, sentindo o corpo inteiro estremecer pelo que estava escrito:
“Somente o menino Carlinhos sabe o segredo que tanto procura. Os livros estão cegos e mudos, seus pensamentos também, mas o menino não. O segredo que tanto procura está num lugar bem distante, numa rua de uma cidade grande, num menino de rua de uma cidade grande. Desça da montanha e vá procurar. Qualquer caminho será estrada, então desça a montanha e vá procurar. Se queres encontrar o segredo, lá o segredo estará”.
Perplexo, totalmente tomado de espantado pelo acontecido, ao levantar novamente o papel para ler mais uma vez, eis que repentinamente sopra a ventania e leva pra longe o escrito. Não poderia tentar ir atrás sob pena de despencar montanha abaixo, tendo que se contentar com a lembrança do que havia lido e cada palavra contida ali.
Ainda diante da entrada da caverna, se ajoelhou, colocou as mãos na cabeça e começou a murmurar palavras desconexas, dando muros no chão em seguida, para depois chorar copiosamente, batendo no peito nu e puxando com força os cabelos bastante crescidos, como se quisesse arrancá-los de vez.
Cinco minutos após e estava adormecido no mesmo lugar, jogado na terra, com o corpo tocado pelo sol que brilhava mais forte ali no alto da montanha. As horas passavam e o profeta ainda estendido ao relento, num adormecimento que mais parecia de morte. Somente quanto o por do sol iniciou seu processo de arrumação dos restos do dia para dar lugar a novos astros, é que o homem se mexeu. Cinco minutos depois começou a levantar assustado, querendo correr, querendo voar, querendo sumir, porém sem sair do lugar.
Nesse mesmo dia, antes que a luz do sol desaparecesse totalmente, Aristeu já havia, depois de muitos anos, deixado sua caverna entregue à sorte dos mistérios e descido a montanha rumo ao desconhecido, a qualquer lugar, aonde o bilhete mandava que fosse. Mas por onde seguir e para onde ir?


continua...




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sábado, 29 de janeiro de 2011

DE CORAÇÃO (Crônica)

DE CORAÇÃO

Rangel Alves da Costa*


Acredite, meu amor, como eu gostaria de expressar aos olhos da riqueza o valor desse tão profundo sentimento, mas humilde como sou, pobre sem tostão a mais, fico até envergonhado em algum dia chegar na frente de sua casa, que não sei se é mansão ou castelo.
Não sei nem se teria uma roupa adequada para que os outros satisfaçam seus desejos de riqueza nos outros. Esperam sempre uma roupa comprada em loja cara e com uma marca que nem sei pronunciar. Gosto mesmo é de vestir o que tenho, a calça e a camisa que gosto, o sapato que não me aperta o pé.
Com certeza vão dizer que sou do mato, da roça, caipira ou seja lá o que for, apenas porque não sei ser diferente do que sou, não me enfeito e nem perfumo com loção estrangeira para satisfazer nariz de ninguém. Gosto mesmo é de lavanda, um perfume que cheira bem longe escondido e pronto. Às vezes fico pensando se esse povo rico alguma vez suou.
A porta de sua casa é grande demais pra eu entrar e lá dentro deve haver outro mundo em cada sala que há. Gosto disso não porque me perco em casa que não tenha quatro paredes. Duas salas, dois quartos, uma varanda, uma cozinha e um banheiro já está bom demais, já é coisa de rico. Ouvi dizer que a casa de sua família cabe uma favela inteirinha, só que sem morar gente.
Não me peça nunca para ir ter com sua família naquele ambiente. Sei que nunca entrarei por aquele portão nem atravessarei aquela porta, pois tenho certeza que se vou um dia encontrar com seu pai será em outro lugar, quando ele estiver passando no seu carro e baixar o vidro traseiro do carro e olhar com cara de poucos amigos e dizer que precisa falar comigo.
Então já deu o recado, já disse tudo. E com essa frase disse, por exemplo, que não sei em qual terreno estou pisando. Não dirá assim, mas com certeza terá uma ameaça velada nisso tudo. E tudo fará para que eu, medrosamente, me afaste de você, arranje uma desculpa para não te ver mais, como se essas pessoas frias soubessem o que é um verdadeiro amor.
A coisa que menos desejo é confrontar sua família por causa do nosso namoro. Pelo que eu saiba, o seu pai namorou com sua mãe e ainda namora com outras por aí, e isso bem sei. O que eles parecem que nunca tiveram foi namoro com amor, foi estar numa relação amorosa porque se gosta e não porque é preciso dar satisfação à sociedade.
Contudo, que eles vivam o seu mundo que eu me contento com o nosso. E o meu lindo mundo é tão lindo ao seu lado que duvido que outra existência na vida possa ser melhor. Você nem imagina o quanto isso é verdadeiro em mim, como é capaz de me tornar a pessoa mais feliz e amada do mundo.
E acredito no seu amor não somente porque estamos juntos, mas pela opção que você faz de estar ao meu lado, quando todos sinceramente desejam nos ver distantes, cada um no seu devido lugar, sendo que você no seu mundo de luxo e riqueza e eu no que tenho e posso subsistir e sobreviver.
E dizem que no castelo da princesa não cabe a tapera do plebeu. Não sabendo que onde mora a humildade o luxo sente vergonha de tanta humanidade.
Mas se é este nosso destino que cumpramos a sina dos que amam. Entrarei por aquela porta majestosa e eu, com meu jeito de rei de mim mesmo, pedirei sua mão e a graça de poder sonhar desposá-la um dia. Tanto faz como os seus pais me recebam, se com cordialidade ou com o mesmo gelo que usa para beber uísque.
E nesse momento puxarei do bolso um anel de madeira de lei, todo trabalhado artesanalmente, envernizado com o suor dos meus dias e tendo por cima uma jóia sertaneja sem igual, que é uma pedrinha de riacho.
Depois de beijar sua mão, colocarei no seu cabelo um ramo de lírio do campo e ainda colocarei sobre a mesa um cesto com flores de manhã e sol. E chamarei para valsar uma música que me venha em pensamento, coisa parecida como um Danúbio Agreste. E seremos felizes, meu amor, seremos felizes para sempre!




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Sertão família (Poesia)

Sertão família


Tão longe o meu lugar
uma estrada distante
um caminho de errante
com bichos e mataria
com aboio e berrante
e uma vontade danada
de voltar nesse instante
pra rever um povo bom
uma família que é minha
abraçar Maria e Lurdinha
pedir uma lágrima emprestado
de quem não tenha chorado
pra derramar no meu pai
molhar minha mãe todinha
satisfazer alma minha
enterrar tanta aflição
cadê meu sobrinho?
cadê meu irmão?
ou será que esqueci
que minha imensa família
é esse imenso sertão?
meu avó sempre dizia
e nisso tinha razão
que depois de toda guerra
no mundo pra ganhar pão
só descansa pisando a terra
só descansa no sertão.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 8 (Conto)

DESCONHECIDOS – 8

Rangel Alves da Costa*


Cristina, a jornalista desempregada, antes de sair viajando por aí bem que poderia se voltar para a história de uma mocinha rica que caberia em extensa narrativa e transformada em grande sucesso de vendas.
Mas a jornalista nunca que iria sonhar com a existência de Carol, uma filhinha de papai que parecia realmente querer jogar pelo ralo uma das fases mais bonitas e importantes da vida, que é a adolescência.
A menina Carol, sem ser Carolina, mas Carol mesmo, nasceu em berço de ouro, como o povo diz em relação àquelas pessoas que já vêm ao mundo sob um manto de suntuosidade, luxo e riqueza familiar.
Verdade é que ninguém tem culpa por nascer num jardim e não numa roça, por ter vindo ao mundo sob os auspícios cuidadosos das luvas da medicina e não pelas mãos enrugadas de uma parteira num rincão distante deste país.
Como consequencia, no luxo nasceu e nele foi sendo criada por criadas e criadagens, numa situação em que a pequenina parecia ser mais um enfeite da mãe do que sua cria. Remedinho tal hora, papinha tal hora, banhinho com água morna só em determinado momento, visitas somente em tais instantes do dia. Que coisa mais fofinha era ela chorando, bem diferente do berreiro rasgado das outras crianças.
Mas era realmente linda a criança, principalmente porque bem cuidada e sendo desenvolvida como se fosse uma invenção tecnológica da tradicionalíssima família Alberoni. Desse modo, passou a infância ainda nos braços de um e de outro profissional, com cuidados extremos em tudo que ia fazer; cheia de limites, bulas e prescrições até mesmo para estudar.
Podia apenas dizer oi aos coleguinhas, porém jamais se aproximar demais ou brincar nos momentos de recreação, mesmo que todos da escola fosse da mesma estirpe e poderio econômico.
Chegou à adolescência assim, sem ter amigos, sem conhecer praticamente ninguém, toda mecanizada nos gestos e atitudes. Até que um dia chutou o pau da barraca e, se olhando num imenso espelho que tinha no seu quarto, disse que a vida que levava não era de gente e que dali em diante caminharia por seu próprio caminho.
Até que tentou conversar com sua mãe sobre o que pretendia fazer e como desejava viver, mas jamais conseguiu diante da agenda sempre cheia dela para os problemas internos. Só tinha tempo para receber as amigas, para viagens ao exterior em passeios de qualquer dia, para a vida lá fora e não para a própria filha.
O mesmo quis fazer com o pai, tentando chamá-lo para um diálogo, mas o seu tempo era curto demais para falar sobre problemas familiares, voltado totalmente que era para as empresas e o mundo dos negócios. A menina até percebia que a família passava dias e mais sem sentar para almoçar, praticamente sem se falar. Cada um tinha os seus cheques, os muitos cartões de créditos, influências onde chegavam, então parecia que isso bastava.
Verdade é que tudo começou a desandar na vida de Carol. De início, ir estudar era apenas uma desculpa para não querer estudar. Chegava à escola e não estava nem aí pra nada, zanzando de um lado para o outro e se juntando a grupinhos na mesma situação. Um tempo depois passou a desviar o caminho da escola e ir para outros locais, encontrar amigos e curtir a vida.
Não era difícil encontrá-la nos shoppings rodeada por amigos e gastando pesadas quantias de um dinheiro que nem sabia de onde vinha. Somente quando a diretoria da escola resolveu comunicar pessoalmente à família o que estava ocorrendo é que as culpas recíprocas começaram a surgir, com o pai culpando a mãe e esta fazendo o mesmo com relação ao pai.
Como não tiveram tempo para enfrentar o problema, Carol continuou fazendo o que bem entendia, e só não começou a enfrentar situações perigosas porque desconhecidos, muito distantes do seu mundo e talvez bem longe de onde ela estava, intercederam para fazer valer o destino.


continua...




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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

ESCREVER COM SENTIMENTO (Crônica)

ESCREVER COM SENTIMENTO

Rangel Alves da Costa*


Ora, eu sei que lá fora há um mundo e ele me chama, mas tenho outro mundo e este me inflama, me faz realizado, angustiado, feliz muito triste, num turbilhão voraz que me diz para ficar, pensar, imaginar, conceber a ideia e escrever, como se o papel estivesse agonizante e precisasse de minha pena para sobreviver.
E dentro de mim tantos gritos, rogos, murmúrios e silêncios, e brisas e tempestades alucinantes para serem transformados, muitas vezes, numa única frase, na palavra, na luz enfim! E porque até instantes atrás tudo era disformidade e escuridão, um vazio sem nenhum vivente nas minhas linhas, num mar profundo de lágrimas e medo de que não nascesse o verbo.
E fez-se a luz! Luz da criação que chega cansada depois de caminhar pelas brumas, vencer labirintos e matar a sede na pedra bruta. E só foi chegando porque ouviu os meus gritos, sentiu minha tristeza, conheceu a minha dor, ouviu o meu silêncio angustiado e viu que não haveria mais vida sem as vidas artesanalmente criadas no papel.
Não pense, luz que se fez e que vem desejando ser claridade, que irá encontrar o poeta, o escritor, o trovador, o mais humilde rabiscador, esfuziante porque enfim lhe veio a ideia, nasceu uma ideia boa, e dessa ideia se costura uma trama , um enredo, uma estrofe, uma rima. Não venha com tal pensamento, pois poderá encontrar o inverso de todo inverso.
Todo esse grito, espanto, salto, balbúrdia, algazarra do espírito, voo barulhento da mente, bater ensurdecedor da mão do artista, não é produzido senão pelo escritor que está mudo, pelo silêncio da sala ou do quarto, pela chama da lamparina que dança uma valsa de contentamento, pela música das coisas da noite que entra pela janela.
Ouve-se claramente apenas um toque-toque da máquina, um soar do teclado que está tecendo uma cronologia, uma genética, uma paixão, uma história de amor e desilusão! Ouve-se baixinho o fósforo que é riscado, o vinho sendo derramado na taça, uma cigarra que apareceu no jardim. É verdade também que muito se ouve de choros baixinhos, soluços sufocados, da boca que abre instintivamente para pronunciar certo nome.
Como conseguirá o escritor viver com esse alarido na sua cabeça e ainda assim ter que buscar no silêncio a ideia, o passo, a curva da estrada, as tantas idas e a responsabilidade do ponto, do último ponto, do ponto final?
Ah! Que martírio é esse ponto final, essa conclusão, esse fim, que parece ser imortal e descontente, pois nunca aceita ser aquilo que foi escrito como definitivamente. Haverá de levantar da pedra e colocar outro em seu lugar, haverá de perdoar quando já disse que ia embora, haverá de trocar a lágrima por um sorriso ao final.
Imagino que mundo igual ao nosso, tão cheio de desilusões e esperanças, amores e desamores, seria o mundo formado por todas as lixeiras dos escritores. Recolhendo-se e desamassando cada folha raivosamente lançada, colhendo e dando vida às histórias e estórias que foram abortadas, que mil vezes não vingaram porque o próprio escritor esqueceu que o personagem era outro e não ele.
E dessas folhas rasgadas, desses papéis amassados, desses cadernos triturados, surgiriam famílias, surgiriam pessoas com os mesmos problemas daquelas que estão nas estantes e na vida, nasceriam e morreriam impérios, haveria destruições e renascimentos, como se o lixo não fosse consumir aquele que, mesmo erroneamente, não pediu para nascer.
Por isso mesmo que todo escritor parece viver fora dessa realidade, absolutamente ausente da pedra que fura o seu pé. Ora, não é mais ele. São os mundos criados que passam a possuir o criador, tornando-o esse monstro incapaz, tantas vezes incompreendido.




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Poesia pra poesia (Poesia)

Poesia pra poesia


Minha poesia
nem falou ao poeta
mas está toda contente
arranjou uma namorada
diz que está apaixonada
e namora é com você
e eu nem sabia

e eu nem sabia
que a minha poesia
diferentemente do poeta
tem olhos e mãos
tem coração e boca
e beija com doçura
e nada disso eu sabia

mas lembro que um dia
pediu-me a minha poesia
que escrevesse um canto
de poesia apaixonada
como se fosse para você
e sem nada perceber
caprichei ao escrever
a poesia de te perder.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 7 (Conto)

DESCONHECIDOS – 7

Rangel Alves da Costa*


Certa feita um jornal impresso de renome publicou uma série de reportagens especiais com o sugestivo título “Meninos com Rua”. Vencedor de diversos prêmios, tal trabalho jornalístico abordou os aspectos comportamentais próprios da idade infantil sob a perspectiva dos meninos de rua.
Para conhecer um pouco mais da realidade da infância vivenciada pelos meninos de rua, vez que no geral salta aos olhos essa vida e esse cotidiano, a jornalista Cristina passou dois meses perambulando pelas ruas, encontrando e desencontrando com toda sorte de situações perigosas, entrevistando os seres próprios desse mundo, interagindo com eles, tecendo u uma sincera amizade que lhe valeu confidências essenciais.
Após algum tempo, a jornalista Cristina relataria a amigos que o aspecto mais marcante na realização dessa reportagem havia sido o fato de ter conhecido um menino de rua de nome Carlinhos, que ela descreveu como sendo aquele que apenas está pelas ruas, mas não pertence a esse mundo de tantos outros meninos.
E justificou o que havia dito afirmando que Carlinhos, pela sua inteligente e criatividade para vencer os maiores obstáculos, se mais tarde conseguisse sair ileso dessa sina de lua sob marquises, certamente que se transformaria num jovem promissor. Tinha o tino dos grandes, a mente apta e capacitada para vencer os maiores desafios.
Verdade é que depois de algumas semanas que as reportagens foram publicadas, a jornalista voltou a perambular pelas ruas em busca daquele menino bonito e astuto chamado Carlinhos. Dessa vez não faria nenhuma entrevista, não gravaria nada, não procuraria esmiuçar e desvendar parte daquele mundo aflitivo, mas tão-somente para lhe pedir ajuda.
Isso mesmo, voltou ao local para saber se Carlinhos poderia lhe falar o que motiva as pessoas a serem tão ingratas com quem lhes ajuda a alcançar sucesso. De fato, a jornalista Cristina estava numa situação angustiante, pois havia perdido o emprego mesmo com todo furor e sucesso causado pelo seu trabalho jornalístico. Contudo, não foi possível encontrá-lo dessa vez.
Assim, num desses dias encontrou um bilhetinho na sua mesa de trabalho com os seguintes dizeres: “Cristina, não tenho nem coragem de dizer isso pessoalmente, pois acho uma grande injustiça o que estão fazendo com você, mas está despedida. Aquele do andar lá de cima disse que não pode mantê-la no jornal porque entidades governamentais que cuidam do amparo à criança e adolescente não gostaram nem um pouco do que você escreveu. Pediram sua cabeça, e pra não perder a dele, o homem tem que lhe despedir. Você já conhece os procedimentos daqui por diante. Por favor, passe sem olhar pra mim. Diretor de redação”.
Seus escrotos, vagabundos, filhos de uma mãe. Dou reconhecimento a esse jornal e esses filhos da puta me dão o troco desse jeito. Brevemente vou ter de escrever uma reportagem mediúnica sobre o meu suicídio jornalístico, e tudo por causa dessa corja que vive com rabo preso com qualquer chefezinho. Disse consigo mesma, indignada.
Mas já era o quinto emprego que perdia assim. Lutava, trabalhava incessantemente para produzir reportagens importantes e que causavam grande impacto, rendendo bons frutos ao jornal, e depois o reconhecimento chegava sempre com um “desculpa, mas você está despedida”.
Verdade é que agora estava desempregada, porém com a maior vontade do mundo de dar um tempo naqueles idas e vindas das redações. Ia dar uma parada, talvez viajar por aí sem destino e conhecer outras realidades, outras pessoas, outros costumes, outra vida. Se desse, escreveria um livro.
E foi essa ideia de se aventurar pelo mundo que a aproximou dos desconhecidos.


continua...




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quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

COMO VENCER O BBB (Crônica)

COMO VENCER O BBB

Rangel Alves da Costa*


Alicerçado no poder midiático da Rede Globo, erguido sobre uma estrutura inatacável de apelações eróticas e sensacionalismo e suportado e aplaudido por grande parte da população, ainda assim esse repugnante e imoral reality show global não é invencível.
Ora, mas como vencer o BBB se ele, de repente, se torna onipotente e onisciente, todo mundo fala, todo mundo fala mal de quem falar mal dele? Como as pessoas que estão do lado de fora da casa do Bial e, dentro de uma casa muita mais respeitosa, se negam a assistir as inserções e ao show de safadezas, podem vencê-lo ainda que lutando contra a Globo, parentes e conhecidos?
É tão difícil quanto colocar na cabeça dessa multidão que antes de viver da fantasia nociva ao espírito e aos bons costumes seria bem melhor pensar, por exemplo, se as roupas já estão muito tempo sem ser lavadas, se a calça que mais gosta poderá ser recuperada ou doada, se a casa não está caindo aos pedaços, como está indo, enfim, a vida.
Muitas pessoas – e isso é fato – sequer entendem o que seja o programa, suas motivações comerciais, o que as pessoas realmente fazem ali dentro, o porquê de a Globo repetir sempre essa formatação apelativa, o que está por trás dessa exuberante fantasia. Talvez nem precisem porque a forma é o que menos importa diante de um conteúdo bem aos moldes de um povo que não está nem aí pra nada, apenas para viver de ilusões e babaquices.
Logicamente que todo mundo tem o direito de viver cada temporada do reality em perfeita comunhão com aquilo que acha maravilhoso e encantador; todo mundo tem o direito de gastar todos os seus impulsos telefônicos para votar no participante que quiser; não há que se negar a coerência comportamental de quem ri, chora, sonha e vive todo o seu dia para o programa.
Tem gente que faz promessas para que um ou outro vença, e isso também é bom porque assim demonstra que não estão apenas erotizados, mas guardam ainda um pouco de fervor religioso. Ouvi dizer de alguém que mesmo morando em barraco e tendo que lavar roupa fora para sobreviver, ainda assim lascou todas as economias numa antena parabólica e resolveu não sair mais de casa de jeito nenhum enquanto não terminar a temporada.
Outro dia Johnny me falou que é melhor ser apaixonado explicitamente pelo BBB do que viver sendo falso moralista e ter a honra indesejada até pela lama. Já outro me falou que é um entretenimento qualquer e que o povo tem o direito de se divertir com aquilo que estiver a seu alcance.
Concordo com os dois. Concordo com tudo. Entretanto, acedo apenas na medida do que Voltaire falou um dia: “Posso não concordar com uma só palavra do que dizes, mas respeito até a morte o seu direito de dizê-las”. Mas peço que citem um só, apenas um aspecto positivo existente nas exibições desse programa.
Justificar com base na ideia de entretenimento esta não será válida, pois conceitualmente entretenimento “é o conjunto de atividades que o ser humano pratica sem outra utilidade senão o prazer. É o desvio do espírito para coisas diferentes das que preocupam”. E qual o prazer proporcionado em saber se alguém é ou não transexual? Ora, até os grandes jornais do país não falam de outra coisa.
Contudo, para tristeza e repulsa dos apaixonados pelo programa, passo a citar três pedras de Davi para que o tal hábito nocivo advindo com esse monstro criado pela Globo, possa enfim ser vencido:
Em primeiro lugar, se perguntar se não há alguma coisa mais útil para fazer, assim como passear, ler alguma coisa, telefonar para saber como vai a família, assistir um bom filme, ir conversar com os passarinhos ou olhar a lua cada vez mais bonita.
Em segundo lugar, que tal desligar a televisão e valorizar um pouco mais o silêncio? No silêncio a pessoa viaja por situações que nem imagina.
Em terceiro lugar, fazer o que sempre faz, que é não pensar em nada, não ter senso crítico sobre nada, ser totalmente passivo diante de tudo que ocorre ao redor e além. E assim, assistir o BBB o dia inteiro, votar nesses políticos, dizer que o Brasil é o país de melhor qualidade de vida do mundo e que tudo é uma maravilha. Pronto.
Mas então o BBB não seria totalmente vencido, poderia indagar o outro. Negativo. Se o reality show é a cara do povo brasileiro, e este se contenta em ser perdedor, então haverá um vencedor nessa história: a ignorância.




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Constatações (Poesia)

Constatações


Não sou dia, manhã
não sou fruta, maçã
não sou noite, nem nada
não sou passo, caminhada
não sou aquilo que sou
pois não sou eu
que caminha na estrada
e se imagino que sou
me espanto, assombro
com o que vejo que sou
pois sou aquilo
que não imaginava ser
porque não cabe viver
não existir nem ser
ser o que sou
se o ser não existe
se não existe você.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 6 (Conto)

DESCONHECIDOS – 6

Rangel Alves da Costa*


Quem dera o mundo de Carlinhos tivesse por paisagem aquele que João, o pescador, cotidianamente vivia. Ao redor do pescador havia um rio caudaloso e maravilhoso molhando as margens e a vida daquele povo ribeirinho, havia boniteza em todo lugar, no barco de pesca, na montanha adiante, na aldeia abandonada, até na solidão da vida por ali.
Mas o mundo de Carlinhos era outro, bem outro, e assustadoramente diferente. Era o mundo da lua sob marquises, das esquinas perigosas da cidade grande, da prática de pequenos furtos, da fome e do pedir esmolas.
Já gritou pelo mundo vendendo jornal, levou nas costas um caixote de engraxate, se ofereceu para capinar jardim, para lavar o carro, para fazer um monte de coisas. Contudo, nunca fez a mesma coisa por muito tempo, pois parecia predestinado a viver nas incertezas de cada momento.
E como era incerto esse mundo. Negava-se a usar droga, porém convivia com ela diariamente, pois os seus amigos de rua eram viciados. Não em drogas pesadas, já que não podiam adquirir, mas aquelas tão conhecidas e cuja existência a sociedade parece não querer enxergar, tais como cola de sapateiro, gasolina, benzeno e éter.
Via que de repente muitos amigos sumiam de uma hora para outra, sem deixar nenhum sinal. Somente depois ficava sabendo de mais um destino trágico, de mais uma tragédia para se transformar apenas em estatística. E muito fez e fazia para não se transformar em mais um número a ser acrescido.
Na guerra do mundo que vivia tinha ainda que lutar para sobreviver em pequenas batalhas. De repente os traficantes queriam porque queriam que servissem de entregadores de drogas, pagando uma ninharia qualquer e dizendo que se fosse pego pela polícia a primeira coisa que deveriam fazer era silenciar de vez sobre o nome dos envolvidos.
Outras vezes lhe chegavam propostas para praticar pequenos furtos e depois entregar os objetos adquiridos a uma pessoa que gerenciasse tais atividades criminosas. O lucro diário estaria garantido, mas tinha que furtar muito, se arriscar cada vez mais para garantir o seu, pois o negócio proposto era por produtividade. Quando mais roubasse e furtasse mais ganharia.
Mesmo pequeno já tinha o tino suficiente para saber até onde chegaria isso tudo. Muitos amigos sumiram desse jeito, acabaram morrendo porque citaram nomes e deram localizações. Outros tiveram que se esconder para não ter o mesmo destino. Mas como e onde um menino de rua pode se esconder de seus vilões?
Esse negócio de droga era um perigo, sabia muito bem. Quando ainda estava morando na favela, na casa de um e de outro, lhe contavam sempre a história de seus pais, envolvidos que eram com esse mundo perigoso.
Pobre, sem ter muita coragem para trabalhar e sempre de olho num dinheiro fácil, o seu pai começou entregando drogas nas esquinas e depois já era nome forte do tráfico na comunidade. Uma bala certeira o derrubou, espalhando pelas vielas imundas outras imundícies embrulhadas e em papelotes.
A mãe, conivente com as práticas do esposo e também já começando a se envolver além da conta, logo começou a ser procurada pela polícia e fugiu do lugar sem levar o seu filho junto. Desapareceu e nunca mais deu sinal se estava viva ou não. A salvação de Carlinhos foi um vizinho ter ouvido o seu choro no barraco abandonado.
Foi crescendo e se fez molecote por ali, na casa de um de outro, como se muitos pais quisessem ajudar o menor por um dia e no outro já o estava colocando na porta da rua. E ao crescer tomando consciência dessa situação instável de vida, não deu outra. Antes que fosse mais uma vez para a casa de um e depois despejado, resolveu ele mesmo tomar seu destino e desceu o morro.
O menino pobre, sujo, com a roupa do corpo, porém muito bem apessoado para quem havia sido sempre maltratado, desceu o morro e ganhou as ruas. Era nesse outro mundo que vivia agora, vagando com a sorte dos abandonados até que um dia o destino lhe mostrasse seu real lugar na vida.
Ou até que desconhecidos surgissem para transformar repentinamente essa história toda.


continua...




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quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O DIÁRIO SECRETO DA PROSTITUTA (Crônica)

O DIÁRIO SECRETO DA PROSTITUTA

Rangel Alves da Costa*


Os diários são as vozes escritas das pessoas que não querem expressar verbalmente suas confidências, segredos e pensamentos mais intimistas, relacionados aos sonhos, tristezas, alegrias, frustrações, desejos escondidos e o desvendar de todo o sentimentalismo existente.
Próprios dos adolescentes e colegiais, os diários estão permeados não só das rotinas existencialmente conflitantes de uma mente em formação, mas também de verdades que vão além dos simples relatos de anseios e desejos, constituindo-se na única fonte de interlocução da pessoa consigo mesma.
Muitas vezes, é somente no diário que a pessoa tem coragem de se expressar, verdadeira e corajosamente, sem medo das vozes de reprimenda e espanto. Outras vezes, só o caderninho deve saber porque ele sabe silenciar, porque ele é amigo.
O diário de uma mocinha todo mundo imagina o que poderá conter, logo se imaginando confidências próprias de adolescentes. Do mesmo modo da meninha que ainda brinca de boneca e já sabe escrever, mantendo um caderninho que chama de meu querido diário cheio de luas, sóis, nuvens, desenhos de pessoas que conhece e pequenas e encantadoras frases.
Agora, e sobre o diário de uma prostituta, o que será que os outros imaginam que o mesmo contém? Seria bom perguntar a Ismélia, de codinome Lua de Cetim, o que tanto escreve e guarda a sete chaves no seu diário secreto.
E poderia perguntar ainda porque ela fica tão entristecida, com lágrimas caídas e angústia incontida, tremulando a pequenina mão que escreve talvez uma sentença de morte ou uma vida sem sorte.
Somente ela poderia responder, é verdade. Se além da porta era reconhecida como a mocinha bonita e delicada que fugiu do altar para fazer vida, para se prostituir porque parecia gostar de estar envolvida nessa profissão mais antiga do mundo, parecia muito diferente quando entrava em casa e fechava a porta.
Afinal, realizado o trabalho diário, tendo conseguido clientes ou não, verdade é que a mocinha não se prostitui em tudo na vida. Ali em casa, muito mais um quartinho apertado do tudo, era simplesmente mulher, simplesmente Ismélia e como tal possuidora de sonhos, anseios, desejos e frustrações.
Porque que quando começava a escrever no diário era a voz da mulher que gritava na escrita, que se enraivecia e se alegrava em cada página. Eram as lágrimas, as angústias e as esperanças da mulher que prevaleciam.
Um dia, talvez por descuido, colocou o diário dentro da bolsa e assim ele deixou o seu lugar secreto para caminhar pelas noites, se expor ao luar e sentir o cheiro de outros suores. O diário que era mantido escondido foi conhecer o mundo. E talvez por outro descuido, a mocinha subiu para um quarto com um acompanhante e esqueceu o seu maior segredo em cima da mesa do bar.
Uma colega de profissão que a acompanhava não pensou duas vezes ao avistar o diário ali esquecido e se pôs imediatamente a abri-lo para ler o que estava escrito. Passou uma página e mais uma página, e mais outra e mais outra e ficou espantada com o que lia, pois tudo era repetido página a página, dizendo simplesmente o seguinte:
“Durante as noites, no meu leito, busquei aquele que meu coração ama; procurei-o, sem o encontrar. Vou levantar-me e percorrer a cidade, as ruas e as praças, em busca daquele que meu coração ama; procurei-o, sem o encontrar. Os guardas encontraram-me quando faziam sua ronda na cidade. Vistes acaso aquele que meu coração ama? Mal passara por eles, encontrei aquele que meu coração ama (Cântico dos Cânticos, 3, 1-4).
Por que não nasci para essa vida e ainda vou encontrar aquele que meu coração ama”.




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A ilha (Poesia)

A ilha


Sou só
tão sozinho e só
mas tenho família
imensa família
uma descendência
cercada de sobrenomes
por todos os lados
imensa família
ao redor e tudo
e eu só feito ilha
porque sou
e não sou família
se prefiro ser só
e ser ilha
água/sangue que
na veia fervilha.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 5 (Conto)

DESCONHECIDOS – 5

Rangel Alves da Costa*


Se a milionária e benevolente Doranice ia mesmo percorrer o sertão para sentir de perto suas mazelas e angústias, para sofrer por vontade própria com situações de dor e sofrimento naquele povo bom e desfavorecido, e se algum dia cortasse as águas do velho Rio São Pedrito, talvez encontrasse o pescador João nas suas margens.
Sob o sol de uma manhã ainda há pouco amanhecida, João, o pescador, o triste, o apaixonado, o tudo talvez, certamente estaria se arrumando para mais um dia de pescaria. Rodeado de apetrechos próprios de pescador, com uma tarrafa remendada mil vezes, linhas e cordéis, agulhas e facas, uma garrafa de pinga pra depois e muitas outras coisas pequeninas que eram sua vida.
Sua casinha ficava ali mesmo às margens, bem ao lado, mas sem ser pegada, da velha e abandonada aldeia de pescadores, num local mais solitário e convidativo para um moço também solitário viver. Mas como gostava de viver essa vida, de estar ali no seu mundo e no meio daquela natureza encantadora, mesmo que o seu apego ao lugar tivesse outros motivos.
Sozinho era; era sozinho. João vivia solitário desde que sua flor de todos os dias subiu aos céus muito antes do acordado. Mocinha linda, morando há pouco com ele, apaixonado pelo seu homem e pela vida de ribeirinha que levava, morreu enquanto paria o seu primeiro filho. Morreram os dois, e quase João morre junto.
Foram os dois embora numa tristeza só. E João ficou ali a assuntar coisas da vida e sem compreender certas coisas da vida. Quase não volta ao batente, quase não suporta se erguer para os dias. No moço calado de olhar distante e triste, que mergulhava nas águas, subia nas serras e viajava sem destino, estava o desalento para ser vencido antes que a feia levasse mais um a qualquer instante.
Tinha vontade sim, tinha muita vontade de colocar outra trigueira dentro do seu barraco e fazê-la de lua e estrela ao anoitecer. Queria amar novamente, mas um amor presente e de carinho e suor. Um desses amores que o pescador pensa que é sereia e depois não pensa mais nada porque enlouqueceu de vez.
Um dia encontraria outro amor, talvez surgido das águas ao entardecer; talvez aparecendo caminhando pela beira do rio e chegando até ele de braços abertos; talvez simplesmente aportando no seu porto de solidão e de tanto amor para dar.
Antes que a felicidade retornasse tecia os seus dias com o encorajamento dos homens valentes e trabalhadores. Levantava ainda quase escurecido, saía do barraco, olhava a barra adiante, passava a conhecer como seria o dia, mexia numa coisa e noutra e depois ia mergulhar nas águas vizinhas. Água de rio é muito fria ao amanhecer, e como aquelas águas doces despertavam outro João a cada nova manhã.
E daí em diante era o corre-corre da sobrevivência, a luta pela subsistência, a força para conseguir colocar na panela coisas diferentes dos pescados de sempre. Gostava de todo tipo de peixe, grande ou pequeno, com ou sem espinha, mas também todo dia enjoava. De vez em quando uma feijoadinha ou um ensopado de carneiro gordo não fazia mal a ninguém.
Por isso mesmo que era tanto corre-corre, tanto vai ali, sobe no barco e desembarca para saber se o dia de pesca tinha valido a pena. Tantas vezes um dia inteiro sem aparecer peixe algum, mas tantas vezes também que com a venda do pescado dava pra um feira grande, comprar uma roupa nova e um perfume cheiroso. Era também vaidoso esse moço João.
Mas o moço João era principalmente um atormentado pela saudade da companheira, pescada injustamente pela rede de São Pedro, aquele lá de cima, talvez. E quando chegava certa hora da tarde, feito um relógio que desperta para o sofrimento, lá ia ele subir na sua montanha para conversar com sua amada.
E foi numa dessas tardes de montanhas e palavras silenciosas que ele sentiu ela se aproximando e dizer que se aprontasse, que tomasse cuidado porque desconhecidos iriam transformar totalmente sua vida.


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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

A BELEZA NAS COISAS FEIAS (Crônica)

A BELEZA NAS COISAS FEIAS

Rangel Alves da Costa*


Um amigo me alerta sempre sobre a importância das coisas tidas e reconhecidas como feias, como se o conceito de feio não fosse meramente relativo. Porém ele insiste em dizer que não se trata de achar que uma coisa pode parecer horrorosa a alguém e a outra sugerir beleza, mas a feiúra pronta e acabada e sem contestação.
E acrescenta que a falta de contestação sobre a feiúra de algo é que, após a realização de uma análise mais aprofundada, pode demonstrar totalmente o contrário daquilo que se vê e se pensa, pois no considerado esquisito pode estar escondida uma imensa beleza.
Então certa vez pedi-lhe exemplos de coisas incontestavelmente feias. Então ele me respondeu que dependia da forma como eu queria encarar a feiúra, se de forma concreta ou abstrata. E novamente pedi que explicasse melhor.
É lógico, disse ele, que a feiúra concreta está naquilo visivelmente estabelecido, que está diante dos olhos e é a perfeita antítese do belo. Assim, nada mais feio do que uma cara sisuda num rosto fora dos padrões de simpatia, do que uma mulher gorda de minissaia, do que um velho andando todo tatuado e cheio de gírias ou um barrigudo de calça, camisa e cinto apertados demais.
Quanto à feiúra abstrata, disse-me que ela só existe na medida do que o observador quer proporcionar existência, ou seja, ela só existe dentro do conceito de feio adotado pela pessoa. Nem todos são capazes de enxergar o que é abstratamente feio, pois traz consigo uma carga muito grande de sentimentalismo, humanismo e envolvimento com aquele mundo em que o feio está inserido.
O abstratamente feio existe, mas é preciso querer enxergá-lo; está muito mais presente na vida do que aquilo considerado belo, ainda que somente a beleza seja vista; se esconde através de um tênue véu, sempre a espera que um olhar mais atento o descubra, desperte e traga para a realidade mais visível; quando despertada do seu esconderijo pode assumir feições agonizantes e terrivelmente dolorosas.
Pedi-lhe então exemplos desse feio abstrato e fui imediatamente informado que pode ser visto na fome, nas guerras, nas tragédias, na violência, nos comportamentos desumanos, nas ações absurdas de certas pessoas, em tudo na vida onde haja dor, tristeza e sofrimento.
Ora, disse-me ele, ninguém enxerga a fome e ainda assim sente e imagina a sua cara medonha, esquisita, absolutamente trágica; quem não está nas trincheiras de uma guerra ainda assim sabe o quanto tudo aquilo é extremamente feio e horripilante; basta pensar nas tragédias que ocorrem a cada instante e situações feias e desagradáveis chegam logo aos olhos e à mente das pessoas. Com tais exemplos já se pode ter a noção do que seja o feio abstrato.
Contudo, fiquei impressionado mesmo quando ele me falou sobre a beleza nas coisas feias. Disse-me então que bastava tentar imaginar a feiúra de uma seca inclemente no sertão para ter a exata noção do feio como ideia de esquisito e do feio que é belo. E citou “Vidas secas”, de Graciliano Ramos.
E lá vai Fabiano com a família e a cachorra Baleia cortando caminhos ásperos para fugir da seca e da fome que estão expulsando o sertanejo da terra e jogando-o sem destino no meio do mundo. E quanto dor e tristeza a gente sente diante de uma situação tão terrível, transformada numa beleza literária sem igual.
O mesmo ocorre com a feiúra desumana, trágica e sangrenta descrito por Euclides da Cunha em “Os Sertões”. Imaginar aquele povo sofrido, parecendo zumbis, correndo pelas matas para matar e morrer é como se ter diante do olhar a situação mais feia do mundo. E tudo isso descrito pela pena euclidiana se torna no outro lado da feiúra, que é o horripilante extremamente belo.



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Amar como ofício e arte (Poesia)

Amar como ofício e arte


O amor não nasce bruto na natureza
não pode ser recolhido e transformado
como a madeira em sua aspereza
senão colhido onde é encontrado
em estado de limpidez e pureza

o olhar que recolhe o amor
sem que mãos possam ainda tocar
logo imagina a forma que vai dar
nessa arte do coração a moldar
para a obra-prima se revelar

a criação transformada em amar
e depois que minha mão de artesão
se prepara para o ato de criação
passeia com o cinzel que manejo
talhando a boca querendo um beijo
obra de arte de puro desejo.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 4 (Conto)

DESCONHECIDOS – 4

Rangel Alves da Costa*


Mesmo vivendo na e da prostituição, fato que enoja alguns imorais moralistas, Soniele certamente cairia nas graças da milionária Doranice, uma viúva herdeira de um patrimônio a se perder de vista. A viúva gostava de ajudar pessoas decididas.
Quando Soniele largou a função no cabaré da Madame Sofie lá pelas oito horas da manhã, entristecida porque durante a noite tomou apenas duas doses de vodka aguada e não arrumou nenhum cliente, estando, portanto, sem nada no bolso, nem imaginava o que se passava bem distante dali, na metrópole Nova Paulo.
Diferentemente da mocinha do cabaré que estava sem tostão pra nada naquela manhã, a viúva Doranice estava sentada no solar de sua mansão, defronte ao imenso jardim, pensando em como ajudar pessoas realmente necessitadas. Queria ajudar meninos de rua, prostitutas, drogados, todos aqueles que quisessem sair da vida difícil que levavam.
Dinheiro não faltava para a viúva. Para se ter uma ideia, aquela mansão era a menor das muitas mansões que ela possuía naquela metrópole e até no exterior. Os velhos amigos até brincavam dizendo que uma mulher tão rica morava naquilo que possuía de menos valor.
Esta senhora de idade já bastante avançada, mãe de dois homens já casados e com netos, primava pela lucidez e pela condução altiva dos seus negócios, mesmo tendo os filhos como administradores. Nada poderia ser feito sem o aval e anuência dela, e os herdeiros respeitavam e temiam suas ordens.
Com tanto poder em mãos, logo se poderia imaginar que ela seria uma velha ranzinza, chata, vivendo somente da riqueza para riqueza, sem amigos e fechada no seu maior de luxo e fartura. Nada disso. Dona Doranice era pessoa simples, amigueira, sempre atenta às dores sociais que tanto lhe afligiam.
Morava sozinha por opção, mesmo que rodeada de mais de dez empregados. Morava sozinha e gostava de ficar assim ao amanhecer e entardecer, no tão querido solar onde sentava tantas vezes com o querido e falecido esposo. Era lá que os pensamentos fluíam e as ideias surgiam.
Foi o coração bondoso dela que amoleceu o coração petrificado dele, tornando-o um homem sensível e caridoso. Daí que dessa união para fazer o bem foram surgindo hospitais, bibliotecas, centros de recuperação e muitas outras obras sociais. Agora que estava viúva procurava continuar doando uma ínfima parcela do muito que tinha para os que mais precisavam.
Esse coração de ouro era nordestino. Nascida na região do Coité, seu nome era uma junção dos nomes da mãe Auxiliadora com o pai Aniceto, daí Doranice. Moça bonita na juventude, continuava uma bela mulher de olhar distante e ainda sonhador.
Veio para sul quando a família arribou com medo da seca. E um dia, já mocinha, trabalhando numa fábrica da família do falecido esposo, o destino fez com que o rico encontrasse a pobre e foi amor à primeira vista. Casaram assim que venceram a batalha do preconceito da tradicional família dele com relação a ela.
Planejava agora fazer uma longa viagem, uma espécie de expedição, ao interior nordestino. Com esse percurso objetivava conhecer mais de perto aquela dura realidade que a imprensa tanto falava e mostrava, e assim tecer estratégias para ajudar mais de perto seus irmãos conterrâneos.
Não acreditava, por exemplo, que famílias continuassem bebendo lama por falta de cisternas nos seus terrenos, que crianças tivessem de comer palma para matar a fome, que as pessoas continuassem morando em casas de taipas caindo aos pedaços. Pensava nisso tudo e ficava entristecida, sentia uma lágrima se derramar.
Talvez realizasse logo seu plano. Talvez não. Mas alguma coisa iria acontecer mais depressa do que ela imaginava. Eis que um desconhecido, ali tão próximo ou muito distante, vai interferir inesperadamente diante dessa realidade.



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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A NÓS, QUE AINDA ESCREVEMOS (Crônica)

A NÓS, QUE AINDA ESCREVEMOS

Rangel Alves da Costa*


Não tenho dúvidas de que a grande maioria dos escritores desse país – artesanais como eu ou profissionais como outros – vive num crescente descontentamento com a desvalorização e a falta de reconhecimento impostos pelas entidades governamentais de fomento à cultura.
Escrever poesias, crônicas, romances e outros tipos de literatura, se não for por pura expressão de prazer de nada valerá a pena. E não vale nem a outra pena que se gasta ou o tempo de criação se o escritor terá a certeza que sua obra, mesmo esmerada e com rico valor literário, vai servir somente para consumo próprio, ficar depois guardada numa gaveta qualquer e em seguida entregue ao mais voraz dos leitores, que é o tempo.
Ora, se é verdade que um país se faz com homens e livros, como já disse Monteiro Lobato, também é verdade que países existem, como o nosso, cujas realizações maiores de incentivo à cultura resumem-se na destinação de verbas orçamentárias para os respectivos órgãos culturais e daí tudo sumir misteriosamente nas brumas dos conchavos.
Ninguém há de ignorar que muitas pessoas enriquecem com o dinheiro da cultura sem jamais escrever um só verso. Dos gabinetes e suas listas de pseudos literatos saem listas e mais listas com nomes cujas verbas serão destinadas. Para publicar o que? Ora, é corriqueiro pessoas receberem vultosas verbas sob a justificativa de que farão uma pesquisa sobre a vida e obra de não sei quem.
E os que estão efetivamente produzindo literatura, escrevendo no dia a dia, fazendo uma genial obra ainda que não reconhecida, terão algum apoio financeiro para publicar seu romance, por exemplo? Logicamente que não porque a bacia da cultura se derrama rapidamente e o seu precioso caldo já tem destinação certa.
Nesse passo, não há dinheiro para apoiar os novos autores simplesmente porque não querem, acham melhor ficar como está: cada um escreve o que quiser e publica por conta própria se tiver condições, senão faça das traças assíduas leitoras.
É aquela velha questão de saber dividir o bolo. Acabando com a voracidade de determinadas pessoas bem que se poderia incentivar a publicação de novos livros assegurando, por exemplo, 10% do valor de impressão. E isto apenas para provar que o governo doa pouco, mas doa. Não é quase nada, é verdade, mas ao menos não permaneceria essa vergonhosa ausência do Estado.
Não seria o fim do mundo se em cada estado da federação houvesse um órgão específico, vinculado diretamente ao governo federal, para receber e analisar as produções literárias de qualquer gênero e espécie trabalhadas por qualquer pessoa, por qualquer um que ache que aquilo que escreveu merece ser publicado.
Contudo, não séria uma análise burocrática do conteúdo ou valor literário da obra, vez que a crítica só é merecida quando o livro é publicado. Tal análise se voltaria tão-somente para verificar se o que foi apresentado pode ser considerado como literatura. Somente isso, sem fazer presunções ou classificações. Como já afirmado, somente o leitor poderá julgar o valor da obra.
Então, uma vez constatado que alguém escreveu alguma coisa que se enquadra como literatura, o passo seguinte é garantir logo 10% do valor dos custos gráficos apresentados em orçamento e que deverão ser comprovados posteriormente. Valor este que poderá ser acrescido e chegar aos 100% se o autor apresentar, junto com o texto, um projeto de viabilidade cultural de sua obra.
Quer dizer, basta o autor apresentar o orçamento gráfico e o livro que pretende ver publicado se caracterizar como literatura e os 10% já estaria garantido. Se o autor pretender obter uma verba maior, então junto com sua obra apresentará um projeto de viabilidade cultural. Quando – aí sim – o texto será analisado mais minuciosamente e poderá receber verbas adicionais, podendo cobrir todas as despesas.
Qual o rombo que seria para a União essa verdadeira esmola cultural? Tal iniciativa não traria qualquer tipo de aumento nas despesas ou qualquer custo adicional, vez que tais verbas já são mais que disponibilizadas a cada ano, mas que ganham as mais esdrúxulas destinações e as mais vergonhosas utilizações. Bastaria saber gerenciar tais verbas orçamentárias e cada pessoa que escrevesse um livro poderia ter realizado o sonho de vê-lo publicado.
Na verdade, considerando-se que o Brasil é um país que historicamente não incentiva a produção literária, a não ser com a criação de prêmios que já possuem ganhadores “de nome” garantidos, não há que se esperar nada diferente daqui pra frente. Livros famosos da nossa literatura foram escritos em folhetins semanais, publicados pelos jornais da época, vez que os seus autores também eram negados artisticamente pelos governantes.
Quantos talentos existem por esse país que guardam seus originais nas gavetas porque não têm a menor chance de arcar com os custos da publicação? Quantos cupins já leram, choraram e se encantaram com personagens adormecidos em folhas amareladas e carcomidas de papel? Quantos maravilhosos e anônimos autores continuam produzindo obras certamente de melhor qualidade do que esses ganhadores de sempre do Jabuti e outras laureações?
Hoje em dia, quem usa o computador para escrever certamente vai perdendo aquele senso de amizade que possuía com o personagem criado no toque-toque da velha Remington ou rabiscando na própria folha e que estava ali ao lado esperando pelo seu destino. Mas uma coisa é certa: de uma hora pra outra fica com raiva disso tudo e deleta para sempre o velho capitão, a mocinha, o animal falante que criou.




Poeta e cronista
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Sofrimento e retorno (Poesia)

Sofrimento e retorno


O que não faz um amor
meu amor?
quando a vida exigiu
que eu provasse na luta
o merecimento de retornar
para viver a felicidade
fui ferido ajudando Aquiles
sem querer combati nas Cruzadas
sofri no penhasco ao lado de Prometeu
chorei quando Ícaro despencou
fui chamuscado no fogo da Inquisição
aconselhei Napoleão a retornar
fui também ferido ao lado de Gandhi
Madre Teresa me alimentou
Irmã Dulce curou-me feridas
tentei impedir todas as guerras
fui acorrentado e padeci
não sei se morri ou estou aqui
mas sabendo que cumpri
o destino do oráculo que profetizou
que não há fortalecimento no coração
e construção de verdadeiro amor
sem o sabor do sofrimento
e por tanto padecimento
dá-me, então, amor, tua mão!


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 3 (Conto)

DESCONHECIDOS – 3

Rangel Alves da Costa*


Escondido em sua caverna na montanha, Aristeu, o profeta, desconhecia totalmente a existência de Soniele, a bela prostituta que “fazia vida” no cabaré de Madame Sofie numa cidade muito distante dali.
Registrada em cartório com um nome religioso, não revelado neste momento simplesmente porque sua dona não quer expor sua verdadeira identidade de jeito nenhum, verdade é que esta é conhecida no metiê como Soniele, de codinome Jasmim de Fogo, a prostituta novinha que dá de dez em muita patricinha.
Vivendo atualmente na cidade de Mormaço, nasceu num lugar bem distante, em outra região, cerca de dezoito anos atrás, talvez menos um pouco do que isso. Fazia de tudo para ter uma aparência mais velha, mas não tinha jeito. Parecia uma adolescente indecisa na vida.
Mas ela não era assim de jeito nenhum, pois sabia muito bem o que queria. E o que queria era estar abrindo as pernas pra um e pra outro no cabaré mais chique da cidade, por vontade própria e se entregando a qualquer um desconhecido como se fosse o maior amor de sua vida.
Às colegas de profissão dizia que tinha certeza de ser muito diferente de todas elas, pois não se prostituía por necessidade ou dinheiro, mas simplesmente porque gostava de quengar, de trepar com qualquer um que tivesse uma aparência jovial.
Já havia acontecido de, ali mesmo no cabaré de Sofie, ir para o quarto de graça com quem tivesse se engraçado e pagar do próprio bolso pela utilização do ambiente. Tinha medo de se apaixonar por ser assim tão “absolutamente amorosa”, como segredava às mais íntimas.
O seu encontro com o mundo da prostituição, diferentemente das histórias que tanto se ouve, falando em acasos e circunstâncias, foi por puro desejo, por vontade própria, pois tinha certeza que se fizesse o que pretendia há algum tempo atrás ia acabar dando nisso.
Eis que Soniele, a Jasmim de Fogo, após ultrapassar as quinze primaveras resolveu chegar para um primo uns dez anos mais velho e dizer que queria que ele tirasse a sua virgindade, e naquele mesmo instante, no local mais próximo e confortável que encontrassem.
Então, mesmo sendo casado e pai de dois filhos, o rapaz nem pensou duas vezes diante daquela agradável surpresa e levou a priminha para as pedras de um riachinho de água corrente que havia nas proximidades do lugarejo. Ali, no entardecer bonito da vida interiorana, Soniele se entregou sem amor e devassidão.
Sem amor porque não queria tê-lo como amante, não era apaixonada pelo primo nem nada, apenas porque decidiu e escolheu-o para ser seu primeiro homem. A intenção era outra sim, a de provar se o sexo era bom mesmo como tanto comentavam e daí em diante fruir com assiduidade de suas delícias.
O coitado do primo gostou tanto da inusitada experiência familiar que se apaixonou perdidamente pela mocinha, mas sem jamais conseguir arrastá-la novamente para as pedras do riachinho ou outro lugar. E ela foi sincera ao negar os seus rogos ao dizer que tinha sido somente aquela vez e pronto, que esquecesse do que tinha acontecido.
O problema é que ela não queria mais o primo, contudo não deixou de dar continuidade à experiência sexual. E assim foi sendo passada por meio mundo da molecada do lugar e sentindo cada vez mais voracidade pelo sexo, e com prazer. Quando o rapaz soube que ela não queria mais ele, porém dava a sicrano e beltrano se virou num cão.
Ainda apaixonado, resolveu usar a estratégia da chantagem e foi procurá-la dizendo que se ela não transasse com ele o seu pai, o famoso Antonho Cabrunco, iria saber de tudinho o que a filhinha dele andava fazendo com um e outro.
“Vá, pode ir, mas aqui só come quem eu quiser. E você foi o primeiro a comer e já devia se dar por satisfeito. Agora é a vez dos outros aproveitarem também. Não acha não? Se quiser ir contar a ele pode ir agora mesmo, só assim vou fazer logo o que estou pensando”. Foi a resposta sorridente da mocinha.
Não naquele momento, mas o rapaz acabou contando ao ignorante pai o que estava ocorrendo, omitindo logicamente que ele tinha sido o primeiro. Ao retornar para casa, depois de ter visitado o cemitério com Julinho, ela encontrou sua roupas jogadas na frente da casa.
Já sabia do que se tratava. Dali mesmo seguiu sua vida.


continua...




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domingo, 23 de janeiro de 2011

SEM TERRA OU SEM RESPEITO? – A MARGINALIDADE ACIMA DA LEI (Artigo)

SEM TERRA OU SEM RESPEITO? – A MARGINALIDADE ACIMA DA LEI

Rangel Alves da Costa*


Não gosto de utilizar o termo “sem terra” para caracterizar as pessoas que utilizam as vias do movimento de reforma agrária para invadir terras alheias, sob duas justificativas mentirosas: tornar produtivo o latifúndio improdutivo e proporcionar meios de produção aos que não possuem terras para trabalhar.
“Sem terra”, efetivamente, é aquele que se vê despojado de sua propriedade através de injustificáveis meios de violência, ameaças e práticas próprias da bandidagem explícita, só que oficialmente consideradas e até aplaudidas pelos organismos estatais.
Ora, quantas tipificações contidas no Código Penal e leis esparsas poderiam ser aplicadas, até mesmo em situações de flagrância, a estas pessoas que violam as leis do Estado e demonstram as feridas abertas desse mesmo Estado que não tem pulso para fazer cumprir suas próprias leis?
Vejamos, só para exemplificar:
Crime de furto, art. 155 do Código Penal: “Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel”. Cada sujeito tem o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e aquele que, por exemplo, entra na propriedade do outro para furtar coisas para fazer a manutenção do acampamento ao lado estará incorrendo em delito.
Crime de roubo, art. 157 do Código Penal: “Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência”. Quantos sem terra não subtraem violentamente cargas de alimentos de veículos, invadem mercadinhos e supermercados e de lá saem com o que bem entenderem?
O Estatuto do Desarmamento não revogou e o art. 19 da Lei das Contravenções Penais diz textualmente que é crime “Trazer consigo arma fora de casa ou de dependência desta, sem licença da autoridade”. Ora, e como esses arruaceiros vivem em desavergonhada procissão levando nas mãos facas, foices, enxadas e tudo aquilo que corta, fere e mata?
E por que as autoridades policiais não prendem esses baderneiros e arruaceiros? Será que é por medo da revolta dos bandidos com as armas em punho? Aos olhos de todos é visível e constrangedor as situações de flagrante; somente aos olhos da polícia é que tudo caminha dentro da normalidade. Contudo, é sabido por todos que essa turma que age em bando não é presa em estado de flagrância porque tal ação somente com ordem superior. E como esta nunca chega...
Há, por parte das autoridades policiais, nítida conivência nas ações perpetradas pelo movimento e omissão dos seus deveres funcionais, quiçá no procedimento previsto para a prisão em flagrante. Com efeito, diz art. 301 do Código de Processo Penal que “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito”. Há de se dizer que nenhum “qualquer do povo” vai se meter a besta para flagrantear indivíduos de alta periculosidade, como são esses sem terra.
A incitação ao crime, promovida pelos dirigentes do movimento, é outro fato indiscutível. Cursos são oferecidos para que lideranças aprendam como praticar todos os tipos de atrocidades e desrespeito ao pacífico convívio social. Aprendem não só como preparar invasões e efetivamente esbulhar agressivamente, mas também roubar, ameaçar, matar animais, destruir tudo que encontrarem pela frente.
Átila, o flagelo de Deus, o maior bandido e saqueador da história, seria considerado fichinha perto desses falsos campesinos. Ora, o rei dos hunos vivia num mundo sem leis, mas o que dizer da vida num Estado Democrático de Direito? Se a lei recaísse sobre eles, toda e qualquer prática de incitação ou induzimento estaria prevista no art. 286 do Código Penal, afirmando que é ilícito penal “Incitar, publicamente, a prática de crime”.
Ora, quando as lideranças convocam os supostos trabalhadores para invadir órgãos públicos, como costumeiramente se faz, estão claramente incitando à prática de crime. E crime em dobro, pois além do induzimento criminoso também estarão ferindo o próprio Estado, através dos seus órgãos de atuação.
Qualquer sindicalizado que, mesmo levantando uma bandeira de luta, faça menção de invadir prédio público será imediatamente preso e rigorosamente punido. Contudo, esses vagabundos podem tudo. Podem invadir, fazer quebra-quebra, esculhambar com tudo e ainda assim não acontecerá nada. O que pode acontecer é que o governante vai atender as imposições desse movimento criminoso.
Nas ações tanto dos dirigentes do movimento como de lideranças localizadas e todos que se juntam no conceito de sem terra, é manifestamente reconhecível a formação de quadrilha ou bando. Neste sentido, dispõe o art. 288 do Código Penal que é crime “Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de cometer crimes”.
Com relação às invasões de propriedade em si, que no Brasil são crimes que só alcançam pessoas comuns, tais práticas criminosas estão previstas em diversos dispositivos legais. Por exemplo, o artigo 161, inciso II, do Código Penal, tipifica a conduta de quem invade, com violência à pessoa ou grave ameaça, ou mediante concurso de mais de duas pessoas, terreno ou edifício alheio, para fim de esbulho possessório. Esbulho é o ato pelo qual o legítimo dono do imóvel se vê privado da sua posse, de forma violenta e clandestina, ou ainda por abuso de confiança. Alguma coincidência com os atos praticados pelos ditos sem terra?
No artigo “Flagrante violação ao Estado Democrático de Direito: insegurança pública e jurídica, omissão e prevaricação” (http://www.faep.com.br/boletim/bi909/bi909pag11.htm), o promotor de justiça Cândido Furtado Maia Neto, sintetiza bem essa junção de práticas criminosas levadas a efeito pelos integrantes desse famigerado movimento.
Afirma o autor: “Os chamados “sem-terra” estão praticando diária e impunemente, aos olhos das autoridades, o delito de invasão de propriedade privada, juntamente com outros crimes, a exemplo dos ilícitos penais de dano à coisa particular, destruindo, inutilizando e deteriorando coisa alheia (art. 163 CP); contra a fauna e a flora, ao meio ambiente em geral (lei nº. 9.605/98), ademais de confiscarem ilegitimamente tratores, caminhões, veículos e implementos agrícolas, ofendem ainda a integridade corporal e a saúde das pessoas (art. 129 CP), ameaçam com gestos e palavras causando mal injusto e grave (art. 147 CP), cerceiam a liberdade restringindo o direito de ir e vir – o ius libertatis da cidadania -, como se autorizados estivessem para o encarceramento privado (art. 148 CP), se associam em bandos e quadrilhas para os fins de cometer crimes (art. 288CP), num movimento que se constitui em verdadeira organização criminosa (lei n.º 9.034/95) de alta preocupação e de alta periculosidade”.
Assim, quando afirmo da falência do Estado frente a uma situação que ele mesmo criou e alimenta, o faço no sentido de reconhecer que num país não pode haver lugar para um Estado protetor de bandidos e outro Estado que pretende a todo custo fazer prevalecer a pacificação social através da manutenção da ordem pública. O Estado só é um, é uno, e não pode ser conivente com o crime. Ou é um Estado de direito ou usurpador de suas próprias atribuições.



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Iluminados (Poesia)

Iluminados


O mundo nos cerca
aprisionando-nos pelas imperfeições
esquecendo que a vida
nos liberta pelas nossas perfeições
e somos perfeitamente perfeitos
porque não aceitamos do mundo
viver da dor e do sofrimento
aceitar a derrota depois da luta
e nos fragilizar a cada momento
e somos tão completamente perfeitos
porque nos nossos erros e defeitos
não procuramos senão aprender
que somos à nossa medida
e quanto maior for nossos desejos
mas perfeitamente viveremos
completamente amantes e felizes.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 2 (Conto)

DESCONHECIDOS – 2

Rangel Alves da Costa*


Aristeu, o profeta, foi batizado um dia com o nome de Febrônio Melênio dos Santos. Nunca soube da origem deste nome e nem porque os seus pais o haviam escolhido para colocar no único filho homem nascido.
Não sabia das motivações desse nome, contudo a estranheza e até feiúra dele foi o que motivou a primeira revolta do filho em relação aos pais. O pior é que colocaram o nome num composto de Febrônio e Melênio e depois só chamavam o pequenino de Nonon. Ao ouvir esse Nonon sendo pronunciado, o menino só faltava correr e arrancar as tripas dos pais. Arrancar e comer, lógico.
Foi crescendo sem aceitar de jeito nenhum essa identificação pessoal e se perguntavam qual o seu nome dizia que era Aristeu. Certa vez um indivíduo disse que Aristeu era nome feio demais, então o menino avançou sobre a pessoa e quebrou-lhe três dentes.
Sentia-se completamente perdido no meio em que vivia, achando-se muito acima da mentalidade interiorana daquelas pessoas. Tinha que sair das escolas onde era matriculado porque passou a querer ensinar aos professores, contestar todas as lições conservadoras que eram repassadas e de vez em quando obrigar que a coitada da professora sentasse em seu lugar para ouvi-lo falar sobre a realidade do mundo.
Daí que nem os professores nem os colegas suportavam tal situação e assim Aristeu, como se autodenominava, ia sendo expulso de escola em escola. E de todas elas saiu sendo conhecido como o rapazinho maluco, o doido varrido, o profeta do impossível. Disso tudo só gostou do profeta, pois quanto ao restante fez muito menino comer terra, sofrer grandes hematomas e as meninas ficarem sem boa parte dos cabelos.
Como consequencia de tais proezas, reclamações de toda sorte e acrescentando-se o fato de que ele cismou expulsar o padre e os políticos do lugar com uma velha garruncha, alegando que todos eles faziam parte de uma corja que só pensava em enganar o povo através do desvirtuamento das palavras divinas e das promessas políticas nunca cumpridas, verdade é que o pai decidiu interná-lo num centro psiquiátrico.
No momento que o pai, na companhia de mais cinco amigos que pareciam gigantes, tentou agarrá-lo às escondidas para amarrá-lo e encaminhar para tratamento, astutamente ele se desvencilhou e propôs um acordo amigável. E disse que só estava propondo aquilo porque queria, senão duvidava que a cidade inteira, que só tinha frouxos, conseguisse lhe botar as mãos. Ao menos uns vinte eu mato, prometeu, mostrando uma gilete que carregava atrás da orelha.
O acordo amigável consistia em cortar de uma vez por todas as relações familiares. A partir daquele momento era como se Febrônio Melênio jamais tivesse nascido naquela família, pois um novo homem, chamado Aristeu, o profeta, ia seguir seu destino.
E qual o destino dos grandes profetas? Manejar multidões e tê-las a seus pés, convertidas que estarão pela força da palavra, segundo ele mesmo dizia com olhos brilhando mais que tudo e mãos alvoroçadas cortando os ares.
Mas disse que ninguém pensasse que ao sair de casa fosse viver perambulando pelas ruas, como errante ou vagabundo. De jeito nenhum, pois se desejava ser o profeta que atrai multidões deveria primeiro se preparar para tal. Desse modo, ofereceria a si mesmo um longo período de preparação em algum mosteiro que o quisesse receber como oficiante leigo, onde adentraria no mundo do conhecimento das mais altas questões religiosas, filosóficas e do interesse geral da humanidade.
Foi aceito por um velho religioso que gostou do seu discurso à primeira vista. Talvez seja uma ovelha que o bom Deus enviou para se juntar ao nosso rebanho, pensou. E assim Aristeu conviveu com os velhos livros, dogmas e preceitos durante três anos, até que começou a querer ensinar ao superior do mosteiro, pregar sobre pecados velados que havia dentro daquelas paredes, querer revirar o mosteiro de pernas pro ar.
“Mas esse homem está completamente louco, doido de pedra, vergonhosamente insano. Quero-o fora daqui imediatamente. Joguem-no das alturas até que caia para sempre nas funduras!”. Foi a ordem dada pelo superior.
Como o mosteiro ficava em cima de uma montanha bem alta e num dos lados havia um penhasco que descia como verdadeiramente abismo em direção às águas de um rio, o pobre do Aristeu foi jogado lá de cima.
Conseguiu sobreviver e após querer fazer mil revoluções pelo mundo recolheu-se solitariamente numa caverna encravada numa montanha num lugar bem distante. Ali não queria ser visto nem receber ninguém. Mas logo passaria a ter a mente atormentada por outros desconhecidos.


continua...




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sábado, 22 de janeiro de 2011

ENQUANTO BALANÇAVA O BERÇO (Crônica)

ENQUANTO BALANÇAVA O BERÇO

Rangel Alves da Costa*


Hoje ninguém lembra disso não. Muitas pessoas até esquecem que um dia nasceram, que foram crianças, que receberam os cuidados atentos e tantos mimos de mãos generosas, das inesquecíveis mãos de mães. Se derem sorte e chegarem à velhice, talvez sejam acolhidas pelas mãos retributivas dos filhos.
E nem poderia lembrar, pois a época do berço, da chupeta e do brinquedinho tilintando por cima é a da mais pura inocência, quando ainda não se está nem aí para a vida e os seus problemas. Não diz nada, não pede nada, mas se expressa coerentemente através do choro ou do sorriso.
A mãe é que nunca esquece daqueles passos e compassos, sem dormir durante o dia e passando a noite em claro para cuidar do seu filho, numa rotina que nunca parecia cansativa. Assim, após dar um banho, encher de talco e perfume, trocar a fralda e amamentar, ela seguia em direção ao berço e colocava a criancinha lá dentro, ajeitando aqui e ali, de modo a garantir o conforto do seu pequenino.
Então ela senta numa cadeira que fica sempre ao lado, olha-o mais uma vez com renovada ternura e amor e tem vontade de conversar com ele enquanto balança levemente o berço e canta conhecidas cantigas de ninar:
“Boi, boi, boi da cara preta, pega essa criança que tem medo de careta. Boi, boi, boi, boi do mandaqui, pega essa criança que não gosta de dormir...”.
“Dorme neném que a cuca vai pegar, mamãe foi na feira e papai foi trabalhar. Dorme neném que a mamãe tem o que fazer, vai lavar e passar as fraldinhas pra você...”.
“Nesta rua, nesta rua, tem um bosque, que se chama, que se chama solidão, dentro dele, dentro dele mora um anjo, que roubou, que roubou meu coração. Se roubei, se roubei seu coração, tu roubaste, tu roubaste o meu também. Se roubei, se roubei seu coração, é porque, é porque te quero bem...”.
E o pequenino, de olhos voltados para o brinquedinho que se sacode por cima do berço, vive apenas o seu mundo, mexe as perninhas e parece nem querer saber das suaves palavras que sua mãe começa a falar:
Que bom filhinho, que bom se você crescesse e nunca perdesse essa doce feição de pureza e sua inocência não fosse corrompida pelas circunstâncias da vida nem pela maldade dos homens.
Olhando agora nos seus olhos lembro dos olhinhos dos seus irmãos, dos olhos que um dia eu e seu pai tivemos e me vem a certeza do quanto o tempo faz a gente perder o nosso brilho no olhar. Chega um tempo, meu filhinho, que nossos olhos nem parecem espelhos para a vida, mas sim depósitos de lágrimas que começam a jorrar por motivos que você não queira nem saber.
Esses pezinhos aqui, tão fofinhos e pequeninos, que a gente acaricia e beija, mais tarde terão que caminhar por caminhos que a gente nem imagina meu filho. Por tantas estradas boas haverão de passar, por tantos lugares macios poderão se assentar, mas também por outras veredas sortidas de pedras e espinhos. Então, meu filho, somente Deus para colocar a melhor proteção nos seus pés quando for andar por aí.
Mais tarde você vai estar com fome chorar e sua mãe está aqui para ouvir o seu choro e correr para alimentar. Quando crescer tudo começa a mudar. Muita gente não tem nem quem venha em seu socorro, pois não haverá mais mãe e poderá até faltar comida. Por isso é preciso ter sorte para que os motivos do choro da criança fiquem apenas nos motivos da idade da criança. E do mesmo modo ocorre com o sorriso.
Agora durma meu filho. Sua mãe agora vai fazer comida para os seus outros irmãozinhos, lavar suas roupas, coser umas calças do seu pai e depois passar ferro. Um dia ela descansa um pouquinho...



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Introdução geral ao amor (Poesia)

Introdução geral ao amor


Na prece
que o amor seja sempre abençoado
na fé
que seja iluminado e que nos ilumine
na poesia
“que seja eterno enquanto dure”
na macumba
que as sete águas lavem as imperfeições
no budismo
que a sublime perfeição se faça luz
no curandeirismo
que as ervas maceradas curem as feridas
no pensamento
que sua chama nunca possa se apagar
na vida
que possamos vivê-lo em plenitude
em nós
que aprendamos com os nossos erros.


Rangel Alves da Costa

DESCONHECIDOS - 1 (Conto)

DESCONHECIDOS – 1

Rangel Alves da Costa*


As pessoas envolvidas nessa história não possuem nenhum parentesco entre si, não são amigas, não se conhecem, nunca se viram.
Os locais onde essas pessoas moram, com raras exceções, são totalmente diferentes geográfica, histórica e economicamente.
Quando muito, algumas moram nas proximidades ou em regiões próximas umas das outras, porém sem nunca manter qualquer tipo de relacionamento.
Como se observa, são indivíduos que se desconhecem, e por isso mesmo desconhecidos.
Aristeu, também conhecido como profeta, morava há mais de vinte anos numa caverna encravada numa montanha num lugar tão distante, mas tão distante mesmo, que se poderia dizer que era no fim do mundo.
Vivia na reclusão dos eremitas por escolha própria, em obediência à sua própria vontade e desejo, vez que, ao menos pelo que se sabe, não tinha nenhuma motivação filosófica ou religiosa tal aptidão para a solidão reflexiva.
Soniele – o nome dela era outro, porém guardado a sete chaves -, também conhecida como Jasmim de Fogo, se dividia entre um pequeno quarto de vila alugado num conjunto de bairro interiorano e o já não tão requisitado bordel da Madame Sofie, o segundo mais famoso do lugar. O primeiro era em qualquer lugar que as pessoas se prostituam. Tais ambientes localizados no município de Mormaço.
Muitas vezes merecidamente reconhecida pelos visitantes como a moça mais bonita do lugar, começou a se prostituir ainda adolescente, fato que não fazia muito tempo, e até hoje mantinha esse antigo hábito como única profissão.
Doranice, uma viúva milionária e solitária, pessoa de bom coração e com hábitos de fazer muitas caridades a instituições que cuidam dos mais necessitados. Dona de um patrimônio invejável, incluindo muitas fazendas, empresas e imóveis, contudo morava na menor de suas propriedades imobiliárias na grande metrópole chamada Nova Paulo.
João, pescador e apaixonado, pelo peixe e pelas mocinhas ribeirinhas. Morava às margens do Rio São Pedrito. Já havia sido casado, porém enviuvou logo cedo, assim que a sua amada deu à luz o primeiro filho, que também não resistiu.
Contam que João pescador é avistado todos os dias ao entardecer, esteja de tempo bom ou ruim, caindo chuva ou trovoada, em cima de uma imensa pedra às margens do rio. Fica ali por muito tempo, às vezes silencioso a mirar as águas, outras vezes cantando uma cantiga tristonha e que só ele mesmo sabe a letra e cantar. Dizem que sempre chora nesses momentos, ainda que esteja cantando.
Carlinhos, menino bonito, assanhado, esperto, correndo de um lado pro outro e sem parar num só canto. Menino de rua. De rua mesmo, sem casa, sem barraco, sem teto firme para dormir. O pai foi morto pela polícia num episódio envolvendo drogas. A mãe desabou no mundo deixando ele sozinho dentro do barraco.
Foi criado por um e por outro, mas quando olhou para a vida e viu adiante um caminho nem pensou duas vezes. Saiu por aí somente de calção e até hoje mora pelas ruas e dorme embaixo de marquises. Se fosse de família rica e vivesse arrumadinho todo mundo dizia: mas que menino bonito!
Cristina, uma jornalista destemida e desempregada. Quase tudo que escrevia e conseguia publicar continha denúncias graves, por isso mesmo que não ficava muito tempo em jornal algum, pois os poderosos que se sentiam atingidos logo exigiam a sua despedida.
Carol, uma verdadeira patricinha rica e se fingindo de estudante. Não queria outra vida senão estar curtindo loucamente a vida, fazendo compras e frequentando baladas.
O pai, mesmo estando mais preocupado com os negócios do que com a filha, vivia alertando a esposa sobre ela, exigindo que agisse para mudar rapidamente aquele comportamento de quem não quer nada com a vida. Mas emperra sempre na mãe que dizia: É a idade, são coisas da idade, depois tudo isso muda!
Mas o que estas pessoas podem ter umas com as outras? Aparentemente nada, pois são todos desconhecidos entre si. Mas...




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sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

UM TEMPO DE CARTAS E DE SAUDADES (Crônica)

UM TEMPO DE CARTAS E DE SAUDADES

Rangel Alves da Costa*


Ninguém mais escreve carta, bilhete, deixa um recadinho no papel. Aliás, ninguém envia mais cartões de natal, manda calendários de bolso para os amigos e nem remete telegrama de felicitações. Posso até dizer que parece que ninguém sente mais saudades, não tem mais amigos, não possui amores distantes a serem lembrados.
Não sou de um tempo de ontem não, sou de um tempo de hoje mesmo, do agora, mas não posso deixar de entristecer com esse distanciamento cada vez maior que as pessoas andam se impondo. A doçura do encontro através da palavra escrita ou rabiscada se perdeu na voragem do tempo.
Podem até dizer que os contatos estão muito mais rápidos e as comunicações são instantâneas, porém ainda não conseguiram colocar na tecnologia o sublime prazer de se tocar naquilo que vai ser enviado, escrito com letra bonita possível e extremo esmero, versificando para o coração do outro e depois colocando o selinho na carta. Pra não esquecer, a boca que quer beijar dentro da cartinha é a mesma que passa a língua para fechar o pequeno envelope.
As noites de velas e candeeiros, lamparinas e luz fraquejante foram testemunhas desses imensos amores derramados em lágrimas e pulsar de corações sobre as folha já molhadas e amassadas do papel. As mãos estremecidas procuravam entre tantas a melhor palavra para dizer tudo, e dizia sempre “eu te amo”.
Se as pessoas ainda lembrassem do significado de se escrever uma carta, seja familiar, de amor ou de amizade, talvez soubessem também o significado de sentimentos verdadeiros. Ora, as cartas eram escritas de tal modo que a própria pessoa parecia querer entrar no papel e falar em cada linha. Fazer trampolim das vírgulas e dos pontos e pular para abraçar e beijar incontidamente.
Do outro lado dessa vida que verdadeiramente tinha sentimentos, a outra pessoa ficava aguardando aflita que a carta chegasse. No interior, às terças e quintas a salinha dos correios se enchia de gente com o coração que só faltava sair pela boca. Ai meu Deus, será que chegou no malote de hoje? Basta que a mocinha despeje as cartas na mesinha que eu logo conheço a carta dele. É que o danado do meu José desenha um coração bem no cantinho de cima!
Quando é o próprio carteiro que entrega os envelopes de casa em casa, ai deste que passar mais de um mês sem levar a cartinha que Joaninha tanto espera. Na sua ingenuidade, até ofereceu um bolo de leite se o rapaz trouxesse a sua missiva na próxima vez que passasse ali. Coitado, pediu pelo amor de Deus que o colocassem noutros logradouros, para fazer a entrega em outro lugar.
Não porque tivesse medo da mocinha se tornar violenta a qualquer instante, mas pela angústia e sofrimento que também sentia por não poder ajudá-la. Só mesmo Deus para saber o contentamento que ele sentia ao ver sorrisos e lágrimas nos olhos de pessoas tão simples, humildes e sempre cheias de esperanças. Certa vez virou a cabeça e saiu rapidamente para não chorar quando entregou uma carta e uma meninha disse à mãe: “Papai só manda carta. Eu queria tanto que ele viesse também!”.
Todas essas cartas de antigamente eram marcadas por palavras singelas e tão verdadeiras quanto os sentimentos de quem as escrevia. Conversa muita é bom, enfeite também engana, mas nada que se compare ao “Como vai, tudo bem?”, “Estou com saudade de você, então resolvi escrever essa cartinha”, “Antes de tudo, meu amor, aceite um beijo de quem não suporta mais viver longe de você”, “Não arrepare não, mas essas mal traçadas linhas são só pra dizer que te amor, que gosto de você mais do que tudo na vida”. E assim se escrevia, e assim se lia tanto amor e tanto amar.
Escrevo tudo isso na maior solidão. Se tivesse uma namorada certamente escreveria: “Tanta saudade Maria, mas juro que volto um dia...”.




Poeta e cronista
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