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sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

ESCREVER COM SENTIMENTO (Crônica)

ESCREVER COM SENTIMENTO

Rangel Alves da Costa*


Ora, eu sei que lá fora há um mundo e ele me chama, mas tenho outro mundo e este me inflama, me faz realizado, angustiado, feliz muito triste, num turbilhão voraz que me diz para ficar, pensar, imaginar, conceber a ideia e escrever, como se o papel estivesse agonizante e precisasse de minha pena para sobreviver.
E dentro de mim tantos gritos, rogos, murmúrios e silêncios, e brisas e tempestades alucinantes para serem transformados, muitas vezes, numa única frase, na palavra, na luz enfim! E porque até instantes atrás tudo era disformidade e escuridão, um vazio sem nenhum vivente nas minhas linhas, num mar profundo de lágrimas e medo de que não nascesse o verbo.
E fez-se a luz! Luz da criação que chega cansada depois de caminhar pelas brumas, vencer labirintos e matar a sede na pedra bruta. E só foi chegando porque ouviu os meus gritos, sentiu minha tristeza, conheceu a minha dor, ouviu o meu silêncio angustiado e viu que não haveria mais vida sem as vidas artesanalmente criadas no papel.
Não pense, luz que se fez e que vem desejando ser claridade, que irá encontrar o poeta, o escritor, o trovador, o mais humilde rabiscador, esfuziante porque enfim lhe veio a ideia, nasceu uma ideia boa, e dessa ideia se costura uma trama , um enredo, uma estrofe, uma rima. Não venha com tal pensamento, pois poderá encontrar o inverso de todo inverso.
Todo esse grito, espanto, salto, balbúrdia, algazarra do espírito, voo barulhento da mente, bater ensurdecedor da mão do artista, não é produzido senão pelo escritor que está mudo, pelo silêncio da sala ou do quarto, pela chama da lamparina que dança uma valsa de contentamento, pela música das coisas da noite que entra pela janela.
Ouve-se claramente apenas um toque-toque da máquina, um soar do teclado que está tecendo uma cronologia, uma genética, uma paixão, uma história de amor e desilusão! Ouve-se baixinho o fósforo que é riscado, o vinho sendo derramado na taça, uma cigarra que apareceu no jardim. É verdade também que muito se ouve de choros baixinhos, soluços sufocados, da boca que abre instintivamente para pronunciar certo nome.
Como conseguirá o escritor viver com esse alarido na sua cabeça e ainda assim ter que buscar no silêncio a ideia, o passo, a curva da estrada, as tantas idas e a responsabilidade do ponto, do último ponto, do ponto final?
Ah! Que martírio é esse ponto final, essa conclusão, esse fim, que parece ser imortal e descontente, pois nunca aceita ser aquilo que foi escrito como definitivamente. Haverá de levantar da pedra e colocar outro em seu lugar, haverá de perdoar quando já disse que ia embora, haverá de trocar a lágrima por um sorriso ao final.
Imagino que mundo igual ao nosso, tão cheio de desilusões e esperanças, amores e desamores, seria o mundo formado por todas as lixeiras dos escritores. Recolhendo-se e desamassando cada folha raivosamente lançada, colhendo e dando vida às histórias e estórias que foram abortadas, que mil vezes não vingaram porque o próprio escritor esqueceu que o personagem era outro e não ele.
E dessas folhas rasgadas, desses papéis amassados, desses cadernos triturados, surgiriam famílias, surgiriam pessoas com os mesmos problemas daquelas que estão nas estantes e na vida, nasceriam e morreriam impérios, haveria destruições e renascimentos, como se o lixo não fosse consumir aquele que, mesmo erroneamente, não pediu para nascer.
Por isso mesmo que todo escritor parece viver fora dessa realidade, absolutamente ausente da pedra que fura o seu pé. Ora, não é mais ele. São os mundos criados que passam a possuir o criador, tornando-o esse monstro incapaz, tantas vezes incompreendido.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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