A BELEZA NAS COISAS FEIAS
Rangel Alves da Costa*
Um amigo me alerta sempre sobre a importância das coisas tidas e reconhecidas como feias, como se o conceito de feio não fosse meramente relativo. Porém ele insiste em dizer que não se trata de achar que uma coisa pode parecer horrorosa a alguém e a outra sugerir beleza, mas a feiúra pronta e acabada e sem contestação.
E acrescenta que a falta de contestação sobre a feiúra de algo é que, após a realização de uma análise mais aprofundada, pode demonstrar totalmente o contrário daquilo que se vê e se pensa, pois no considerado esquisito pode estar escondida uma imensa beleza.
Então certa vez pedi-lhe exemplos de coisas incontestavelmente feias. Então ele me respondeu que dependia da forma como eu queria encarar a feiúra, se de forma concreta ou abstrata. E novamente pedi que explicasse melhor.
É lógico, disse ele, que a feiúra concreta está naquilo visivelmente estabelecido, que está diante dos olhos e é a perfeita antítese do belo. Assim, nada mais feio do que uma cara sisuda num rosto fora dos padrões de simpatia, do que uma mulher gorda de minissaia, do que um velho andando todo tatuado e cheio de gírias ou um barrigudo de calça, camisa e cinto apertados demais.
Quanto à feiúra abstrata, disse-me que ela só existe na medida do que o observador quer proporcionar existência, ou seja, ela só existe dentro do conceito de feio adotado pela pessoa. Nem todos são capazes de enxergar o que é abstratamente feio, pois traz consigo uma carga muito grande de sentimentalismo, humanismo e envolvimento com aquele mundo em que o feio está inserido.
O abstratamente feio existe, mas é preciso querer enxergá-lo; está muito mais presente na vida do que aquilo considerado belo, ainda que somente a beleza seja vista; se esconde através de um tênue véu, sempre a espera que um olhar mais atento o descubra, desperte e traga para a realidade mais visível; quando despertada do seu esconderijo pode assumir feições agonizantes e terrivelmente dolorosas.
Pedi-lhe então exemplos desse feio abstrato e fui imediatamente informado que pode ser visto na fome, nas guerras, nas tragédias, na violência, nos comportamentos desumanos, nas ações absurdas de certas pessoas, em tudo na vida onde haja dor, tristeza e sofrimento.
Ora, disse-me ele, ninguém enxerga a fome e ainda assim sente e imagina a sua cara medonha, esquisita, absolutamente trágica; quem não está nas trincheiras de uma guerra ainda assim sabe o quanto tudo aquilo é extremamente feio e horripilante; basta pensar nas tragédias que ocorrem a cada instante e situações feias e desagradáveis chegam logo aos olhos e à mente das pessoas. Com tais exemplos já se pode ter a noção do que seja o feio abstrato.
Contudo, fiquei impressionado mesmo quando ele me falou sobre a beleza nas coisas feias. Disse-me então que bastava tentar imaginar a feiúra de uma seca inclemente no sertão para ter a exata noção do feio como ideia de esquisito e do feio que é belo. E citou “Vidas secas”, de Graciliano Ramos.
E lá vai Fabiano com a família e a cachorra Baleia cortando caminhos ásperos para fugir da seca e da fome que estão expulsando o sertanejo da terra e jogando-o sem destino no meio do mundo. E quanto dor e tristeza a gente sente diante de uma situação tão terrível, transformada numa beleza literária sem igual.
O mesmo ocorre com a feiúra desumana, trágica e sangrenta descrito por Euclides da Cunha em “Os Sertões”. Imaginar aquele povo sofrido, parecendo zumbis, correndo pelas matas para matar e morrer é como se ter diante do olhar a situação mais feia do mundo. E tudo isso descrito pela pena euclidiana se torna no outro lado da feiúra, que é o horripilante extremamente belo.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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