SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 30 de junho de 2014

POR QUE OS PÁSSAROS NÃO CANTAM MAIS


Rangel Alves da Costa*


Em muitos lugares os pássaros não cantam mais. Mas principalmente no sertão os pássaros não cantam mais. Não há como ouvir canto daquilo inexistente, não há mais como ouvir trinado passarinheiro se as aves arribaram de vez, sumiram das galhagens e deixaram a mataria sertaneja em doloroso silêncio. E também os ninhos, restando somente as gaiolas com seus prisioneiros tristonhos. Triste sina viver chorando e o seu dono pensar que está cantando.
Rolinha fogo-pagô, coleirinho, curió, sabiá, sofrê, cabeça, azulão, pintassilgo, toda uma passarinhada voava de galho em galho em cada palmo daquele chão. E também o caboclinho, o tiziu, o tico-tico, a lavandeira, o sanhaço, numa festança de vida por cima das catingueiras, baraúnas e quixabeiras. E ainda o lamento rouco do carcará, do gavião, do anum, da coruja e do caburé. Cadê o piar da nambu e o palrar do periquito?
Passarinho pousava na mão, cantarolava em plena janela, fazia ninho na cumeeira e pelas vagas das coberturas de palha ou telha. O menino era amigo do passarinho, conversava com ele e prometia que jamais iria puxar seu pescoço mesmo que a fome apertasse demais. Pelo seu voo e pela escolha do local do ninho, logo o sertanejo sabia se a chuvarada se aproximava. Eis que passarinho em alvoroçado voo ou quando faz moradia rente ao chão é porque pingo grosso vai cair. Todo bom sertanejo sabe que é assim.
Os ouvidos atentos do sertanejo não precisavam ir muito longe na mataria para sentir a presença da orquestra passarinheira. Nas margens das estradas, nas malhadas das fazendas, nas beiradas de riachos, tanques e açudes, onde houvesse proximidade com mato e água, ali sobressaía a plangência da cantoria. Muitas vezes difícil de avistar o cantor, eis que pequenino e escondido na copa da grande árvore, mas a certeza de sua presença.
Mas também um tempo diferente, um passado até recente onde as aves possuíam garantia de moradia e de pouso e repouso. Não precisavam voar muito para encontrar uma galhagem segura para construir seu ninho e procriar. Por todo lugar os arvoredos, ainda que nem sempre grandiosos e imponentes, permitindo o aconchego da passarada. Os viveiros se formavam entre os galhos, enquanto que os troncos e arredores acolhiam outras espécies da fauna sertaneja.
O sertão era assim, tomado de uma vegetação rica e adaptada às condições climáticas, sem ter que se curvar ressequida todas as vezes que a seca do dia a dia chegasse querendo a tudo devorar. Em meio ao xiquexique, facheiro, mandacaru, ao cipó e à macambira, as árvores amigas da catingueira se espalhando de canto a outro. Juazeiros, angicos, cedros, umburanas e bonomes dividiam espaço com plantas que trocavam folhas por espinhos. Paisagem tão conhecida, e muitas vezes entristecida, retratava a pujança e a fragilidade de uma terra.
Fragilidade sim, pois mesmo que o sertão seja visto como a Fênix que sempre renasce das cinzas e o seu habitante, o sertanejo, um forte, na expressão euclidiana, não há pedra fincada no tempo que resista à brabeza da seca maior. E tudo se curva e se dobra, esmorece e definha, se prostra esperando a gota d’água. Até mesmo o mandacaru, tido como imortal diante das inclemências, mantém seus braços ossudos e espinhentos em direção aos céus. E dizem que chora, dizem que implora.
Mesmo com as plantas ressequidas, com a nudez marrom-acinzentada, e mais tarde embranquecida, enfeando toda a paisagem, e o homem tudo fazendo pra manter água barrenta no fundo da moringa, ainda assim se ouvia o canto da passarada ao amanhecer. Cantoria que ia diminuindo quando os galhos já estavam nus e não restava nem lama no fundo do poço. Era o instante de a asa branca arribar para outras distâncias e lá permanecer até a invernada chegar. E toda a revoada passarinheira fazia o percurso de volta, enchendo de canto bonito toda aquela vida sertaneja.
Mas hoje não há mais passarinho nem quando os tanques estão cheios e as plantas rasteiras florescem verdejantes. E não há mais passarinho porque a vegetação nativa foi completamente destruída e a desertificação e os descampados tomaram o lugar das moradias e pontos de apoio dos animais. O bioma caatinga perdeu suas crias imponentes, as grandes árvores penderam de morte pela incúria do homem, onde havia pé de pau, tronco e galhagem, agora parece um deserto espinhento.
Aconteceu exatamente aquilo que os mais velhos já previam desde muito: onde se tira e não se põe um dia nada restará. Impossível haver canto passarinheiro se quase não resta pé de pau nem para o ninho nem cantoria. Aquele que levanta voo vai ter de pousar na terra esturricada. E mesmo na chuva não há mais retorno. As tantas aves que um dia se foram não conseguiriam mais avistar o lar de outrora.
Soa contraditório às políticas agrárias atuais, mas quando os latifúndios se estendiam por muitas léguas e a vegetação permanecia intocada em grandes extensões, havia lar para o bicho e sequer se falava em extinção daquelas espécies próprias do sertão. Mas bastou que a imensidão das terras sertanejas começasse a ser loteada e toda a vegetação nativa foi sendo devastada. E na devastação o silêncio de morte.


Poeta e cronista
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Um dia feliz (Poesia)


Um dia feliz

Um dia feliz
é qualquer dia
que seja feliz
e feliz é o dia
que seja um dia
de felicidade

mas qual o dia
que é feliz
e de felicidade?

é o dia de hoje
o agora vivido
se há vida viva
se há vivo viver
e força no ser
a vida nada maldiz
por ser feliz
feliz de verdade
e com felicidade.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 656


Rangel Alves da Costa*


“Esperava tudo...”.
“Mas a lua não veio...”.
“A estrela não veio...”.
“A poesia não veio...”.
“A saudade não veio...”.
“A nostalgia não veio...”.
“Entristeceu...”.
“Mas continuou a esperar...”.
“Esperou e esperou...”.
“E a brisa não veio...”.
“A ventania não veio...”.
“A cantiga não veio...”.
“O medo não veio...”.
“A alegria não veio...”.
“O vulto não veio...”.
“Então fechou a porta...”.
“Quis adormecer...”.
“Mas o sono não veio...”.
“A lágrima não veio...”.
“A angústia não veio...”.
“O sofrimento não veio...”.
“O pesadelo não veio...”.
“Assim rompeu a noite...”.
“Varou a madrugada...”.
“E abriu a janela...”.
“Mas o canto do galo não veio...”.
“A aurora não veio...”.
“A alva não veio...”.
“A paisagem não veio...”.
“A estrada não veio...”.
“A borboleta não veio...”.
“Então quis chorar...”.
“Mas a lágrima não veio...”.
“O rio não veio...”.
“O mar não veio...”.
“A correnteza não veio...”.
“O lenço não veio...”.
“Nada veio...”.
“Então quis sumir...”.
“Mas a coragem não veio...”.
“Então quis correr...”.
“Mas a força não veio...”.
“Então quis gritar...”.
“Mas o grito não veio...”.
“Então quis morrer...”.
“E a morte veio...”.
“E a morte levou...”.


Poeta e cronista
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domingo, 29 de junho de 2014

QUE SORTE, HEIN SELECINHA?!


Rangel Alves da Costa*


O jogo de ontem, quando a nossa selecinha brasileira conseguiu afastar um vexame histórico ainda nas oitavas, pode ser muito bem analisado através da partícula ou  pronome reflexivo “se”.
Se o Neymar não tomar cartão daqui em diante, certamente o Brasil será campeão, eis que será invencível. E assim porque impossível que jogue pior do que o fez contra o Chile. Não há como apresentar um futebol tão apático, ridículo e improdutivo. E se venceu sendo tão ruim, no mínimo poderá manter o mesmo nível, jamais pior.
Se, já no último minuto do segundo tempo da prorrogação, aquela bola sequer batesse no travessão superior ou, mesmo tocando, entrasse no gol, ainda hoje Felipão estaria dando explicações. Mas jamais conseguiria justificar o vergonhoso futebol apresentado pela selecinha.
Se aquela bola entrasse e a seleção chilena tivesse mandado o Brasil “de volta pra casa” teria sido feito justiça ao grupo de guerreiros frente a um punhado de jogadores medíocres. Indubitavelmente, não passa de um monte de farsantes atentando contra a integridade física e emocional do fiel e abnegado torcedor.
Se aquela bola chutada pelo chileno Pinilla entra no gol não só a selecinha estaria eliminada como muita gente teria ido também mais cedo pro beleléu, eis que certamente os torcedores se empenham mais e sofrem muito mais que os próprios jogadores. E muitos corações não suportariam o gol adversário já no último minuto da partida.
Se aquela bola de Pinilla entrasse não se estaria agora, errônea e descabidamente, endeusando o goleiro Júlio César. Ora, goleiro é pra defender mesmo, possui tal missão no ofício. O que não pode, e jamais deverá ser esquecida, é aquela falha de principiante contra a Holanda, na copa passada, quando o Brasil foi eliminado por culpa sua.
Se houvesse uma verdadeira seleção, nisto implicando os melhores jogadores do país, não estaríamos sofrendo tanto, quase morrendo a cada jogo - de tensão e de raiva - por culpa de um perna de pau igual a Fred, de um jogador de várzea igual a Jô e de um jogadorzinho apenas esforçado igual a Hulk.
Se Felipão fosse mais humilde, se soubesse ouvir quem entende do assunto - fora, logicamente, toda a torcida brasileira - desde muito já saberia que Fred, Jô e Hulk não são jogadores merecedores de uma seleção do quilate da brasileira. Ao menos assim noutros tempos.
Se esta seleçãozinha que está aí realmente estivesse capacitada para ganhar uma copa do mundo, certamente não teria que contar com tanta sorte, não seria tão encurralada pelos adversários e não deixaria seus torcedores tão aflitos. Noutros tempos, verdadeiros adversários eram Alemanha, Argentina e Holanda, e não um México ou um Chile.
Se estes canarinhos sem canto e asas fossem realmente os melhores ou ao menos estivessem num nível de confiabilidade futebolística, jogos como aqueles contra a Croácia, o México e Camarões seriam tidos apenas como treinos de luxo para os embates mais importantes. Mas não, penou diante da Croácia e quase se ajoelha perante o México. E a vaca quase vai pro brejo contra o Chile.
Se aquela bola entra, não quero nem pensar se aquela bola entrasse. As manifestações violentas voltariam no instante seguinte, a arrogante e prepotente Dilma estaria com a derrota selada, muito ainda teriam de prestar conta ao povo mais uma vez enganado.
Mas também se aquele juiz da partida estivesse realmente gabaritado para uma Copa do Mundo não teria falhado tanto. Hulk ajeitou a bola um pouco abaixo do ombro e não com a mão. Portanto, aquele gol teria de ser validado.
E se aquele gol, legítimo e sem qualquer incerteza, tivesse sido validado e naquela altura o Brasil retomasse novamente a frente do placar, indubitavelmente que não haveria tanta letargia, um desânimo tão grande e tanta mediocridade futebolística, e em todos os jogadores.
Se o endeusaso Neymar cismar que aquele não é o seu dia, então não será o dia de mais ninguém. Incrível como a equipe se vale de apenas um jogador, de sua estrela naqueles momentos. Tudo depende dele, tudo só dá certo através de suas jogadas. E quando ele não joga não há futebol na equipe inteira.
E se Neymar tomar outro cartão amarelo antes da final? Aí tudo estará acabado, findado, terminado. E assim porque todo o restante da seleção não vale um só jogador. E basta um cartão. Cartão não, lenço de lágrima e de adeus.
Por fim, se por maldade, merecimento ou “arrumação”, Neymar tomar um simples cartão amarelo na próxima partida contra a Colômbia, mesmo que haja vitória, a derrota na semifinal já é dada como certa, pois ele não estará em campo. E sem ele...
Sem ele não há trave ou sorte que dê jeito.


Poeta e cronista
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Janela da noite (Poesia)


Janela da noite


Sempre após a tarde
e me vem a saudade
revejo a fotografia
e logo vem a nostalgia
não quero entristecer
mas na alma o padecer
não quero mais chorar
mas já não posso negar

sempre assim o açoite
ao abrir a janela da noite
penso que está aqui
sinto adiante a sorrir
face no brilho da lua
melodia cantada na rua
e a boca ávida de beijo
no corpo todo desejo
mas sempre falta você
e nada existe sem você.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 655


Rangel Alves da Costa*


“Um quarto escuro...”.
“Janela fechada...”.
“Silêncio ao redor...”.
“Mas estarei ali...”.
“Dentro desse quarto...”.
“No meio do escuro...”.
“Caçando por mim...”.
“Ou me encontrando...”.
“No silêncio das horas...”.
“Na vida que passa...”.
“E eu ali...”.
“Quando havia luz...”.
“Havia livro aberto...”.
“Havia poesia...”.
“Um verso riscado...”.
“Um esboço de amor...”.
“Na escuridão...”.
“Ninguém enxerga não...”.
“Mas ali há cálice...”.
“Um vinho aberto...”.
“Cinzas de cigarro...”.
“Um lenço molhado...”.
“Uma fotografia...”.
“Uma carta beijada...”.
“Um segredo em bilhete...”.
“Está escuridão...”.
“E não dá pra enxergar...”.
“Meus olhos molhados...”.
“Minha face tristonha...”.
“O cálice à mão...”.
“Vinho pelo corpo...”.
“E a boca trêmula...”.
“Querendo gritar...”.
“Sei que lá fora há vida...”.
“Uma noite serena...”.
“Uma lua imensa...”.
“Uma estrela caindo...”.
“Mistério e segredo...”.
“E lobos uivando...”.
“Solidão nas estepes...”.
“Mas também tenho a noite...”.
“A noite que é minha...”.
“De quarto fechado...”.
“Janela cerrada...”.
“No breu do silêncio...”.
“No esconderijo da alma...”.
“Quando havia luz...”.
“Eu mesmo apaguei...”.
“Para não ver a saudade...”.
“E o amor que dei...”.


Poeta e cronista
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sábado, 28 de junho de 2014

A SOLIDÃO E A ANGÚSTIA DA VELHICE


Rangel Alves da Costa*


Já dizia o velho pensador que a infância faz correr, a adolescência faz apressar, a idade adulta faz caminhar e a velhice faz ir devagar. Mas a vagareza da idade, da velhice que chega, nem sempre garante a movimentação, ainda que de modo muito curto e lento.
Tantas vezes, por fraqueza óssea, por problemas os mais diversos possíveis e tão propensos ao surgimento quando a velhice chega, o idoso se prostra de vez, cessa para sempre seu caminhar. As pernas não têm mais forças, os passos não mais conseguem sair do lugar.
Daí em diante, numa cama ou de cadeira de rodas, geralmente fica entregue ao forçoso recolhimento, com o mundo lá fora e ele amargando a dolorosa permanência entre quatro paredes, muitas vezes numa sala fria, num quarto escuro ou no mais sofrível esquecimento.
O neto vai e vem, passa apressado, começa a correr, e o idoso apenas no seu cantinho, sem ser percebido, sem ter nenhuma importância sequer como moldura velha. Os filhos chegam, entram e saem, dizem qualquer coisa, mas não têm tempo para a palavra carinhosa, para o afago.
Mas nem tudo é esquecimento. De vez em quando uma olhada naquela direção, uma pergunta para saber se está precisando de alguma coisa, se está sentindo alguma indisposição. Contudo, apenas protocolos, apenas o mesmo de sempre, sem nada que seja com maior calor, maior proximidade, que seja mais cativante.
Noutros tempos, quando o jardim florescia diante de seu olhar e do muro avistava pessoas, conversava com vizinhos, sentia o mundo ao redor e a vida acontecer, tudo era muito diferente. Não está distante do jardim nem do muro, não está longe da rua e das pessoas que por ela passam, mas é como se uma ilha fosse o seu lar e o adiante a impossível fronteira de ser ultrapassada.
Conhecia vizinhos, mantinha amizade com pessoas das proximidades, recorda de uma gorda, lembra de uma magra, não pode esquecer a fofoqueira de janela e muro. O mesmo gato passava miando pelo mesmo lugar, o cachorro em busca do sombreado do entardecer. Tantos velhos amigos, e talvez tão próximos e tão distantes companheiros de outras jornadas.
Talvez muitos já não existam mais. Alguns já tinham sua idade ou mais. Não sabe se continuam vivos ou se foram rezar suas ladainhas lá pelos lados do céu. Também não faz muita diferença continuar existindo, respirando a vida, mas tendo de viver no aprisionamento de quatro paredes, sem poder sequer caminhar até a janela para receber o primeiro sol da manhã.
Que cruel é o tempo. Terrível é a velhice sem que possa ser vivida nas suas últimas forças. O calendário amarela e continua indo adiante, o relógio envelhece e continua seguindo seu passo, tudo passa, segue, vai, mas nem toda velhice consegue se mover de seu destino final. E o pior é ter ainda mente para reconhecer que ali está seu agora e seu amanhã, e que dali somente sairá quando a noite mais escura chegar.
Ouve o mundo lá fora, a vida é barulhenta, principalmente com a meninada que grita, brinca, se dana de canto a outro. Como gostaria de encontrar ao menos uma fresta para avistá-los assim tão felizes, tão cheios de vida. Mas não, pois consegue somente lançar o olhar cansado ao redor para avistar o velho retrato na parede.
Ali no quadro, na moldura antiga, de madeira de lei escurecida, um retrato e um sorriso. Dois sorrisos, um casal. Um chapéu panamá e um penteado forjado na brilhantina. Por cima do vidro empoeirado ainda se avista aquelas feições. E como queria que aquela boca se abrisse para dizer que venha.
Para dizer que venha. Venha que a morte não é ruim, eis que mais digna que uma existência na desvalia, no esquecimento. Então venha, pois aqui há um anjo esperando com uma canção e um Deus que já coloca flores à porta de sua morada. Então venha.
Uma lágrima se derrama cansada. Os olhos se fecham. E vai.


Poeta e cronista
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Pensamento (Poesia)


Pensamento


Queria as brancas nuvens
queria o silêncio do coqueiral
queria o passo da revoada
queria apenas avistar o mundo
queria apenas enxergar a vida
sem tudo ter de transformar
na sua face e na sua feição
assim como o doce desenho
na moldura de um coração

eis que toda face e verso
o lado que vejo e seu anverso
tanto faz o olhar escolher
mas tudo vai mostrando você
assim meiga pétala de flor
num jardim de sublime albor.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 654


Rangel Alves da Costa*


“Aqui o pão...”.
“E adiante a fome...”.
“Ali a picanha...”.
“E além o prato vazio...”.
“Um pote de mel...”.
“Um punhado de fel...”.
“Uns com tanto sabor...”.
“Outros no dissabor...”.
“Aqui a etiqueta...”.
“E adiante a nudez...”.
“O conforto da roupa...”.
“E o frio nos ossos...”.
“Um terno de linho...”.
“Um corpo sozinho...”.
“E tanto retalho...”.
“E ali o frangalho...”.
“Adiante a elegância...”.
“Ao lado da nudez...”.
“A face da riqueza...”.
“A esqualidez da pobreza...”.
“Aqui o luxo e a bonança...”.
“E adiante a miséria...”.
“Um carro importado...”.
“E um pedaço de pau...”.
“Uma joia no dedo...”.
“E um lanho na mão...”.
“Um perfume de marca...”.
“E o sol escorrendo...”.
“Um prato de entrada...”.
“Um grão encardido...”.
“O prato principal...”.
“E a boca faminta...”.
“A conta bancária...”.
“E a moeda da vida...”.
“Vaidade e egoísmo...”.
“Humildade e esperança...”.
“A frente...”.
“E o verso...”.
“A vida em progresso...”.
“Em meio ao retrocesso...”.
“Ali o hospital...”.
“E adiante a dor...”.
“Ali o remédio...”.
“E adiante a espera...”.
“Ali a vida...”.
“E adiante a morte...”.
“Ali estão os outros...”.
“E aqui estamos nós...”.
“Escravos libertos...”.
“Nas mãos do algoz...”.


Poeta e cronista
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sexta-feira, 27 de junho de 2014

ASSIM COMO OS POMBOS


Rangel Alves da Costa*


Não há simbologia mais contraditória que a existente nos pombos. Mas não que as aves sejam culpadas de serem inversamente transgredidas nos seus significados. A culpa é do homem, que as simbolizam de um modo e as tratam de forma totalmente diferente. Talvez como o próprio ser humano, que se expressa de um jeito e sempre age pelo avesso.
Não é difícil constatar o que afirmo. Os livros e outros escritos - principalmente bíblicos - não deixam mentir, pois neles se contem diversas faces simbólicas com relação ao pombo. E todas de forma sublime, angelical, de um humanismo tal que mais parece ave sagrada ou com laços divinais.
Aliás, quem assistiu a abertura da Copa do Mundo pôde observar que antes do início da partida três crianças entraram em campo levando três pombas brancas. E foram soltas bem no meio do circulo formado pelos jogadores das duas seleções. Representavam a paz, a ideia de que é necessário um convívio harmonioso não só no futebol como em todas as relações da vida.
Assim o pombo está na paz, na sacralidade, no matrimônio, em tudo que envolva pureza e inocência. Mas também está no seu inverso, eis que igualmente rejeitada pela sociedade como um verdadeiro mal que deva ser duramente combatido. E a ele é reputado uma série de problemas que o afasta de vez daquele sentimento de candura existente na outra face. Mas por que assim acontece?
No catolicismo, a pomba branca simboliza a paz. Noé viu que as águas haviam baixado e a paz havia retornado após soltar um pombo e este retornar trazendo no bico um ramo de oliveira:  E a pomba voltou a ele à tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico; e conheceu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra (Gênesis 8:11). Era sinal que o castigo de Deus havia terminado e a paz voltava a reinar.
Segundo o Novo Testamento, o pombo também simboliza o batismo. Após o batismo de Jesus, uma pomba desceu sobre ele como simbologia da presença do Espírito de Deus: E, sendo Jesus batizado, saiu logo da água, e eis que se lhe abriram os céus, e viu o Espírito de Deus descendo como pomba e vindo sobre ele (Mateus 3:16).
Na Santíssima Trindade também se observa a pomba simbolizando o próprio Espírito Santo. Acima do Pai e do Filho a pomba branca, que é o mesmo simbólico Espírito de Deus como surgido após o batismo de Jesus. Ademais, na Bíblia pomba representa também o perdão de Deus sobre a terra.
Nos enlaces matrimoniais o pombo passa a ter dupla representatividade, não só como comunhão de amor e paz como na união havida entre os dois pombinhos: o noivo e a noiva, ou esposo e esposa. Eis que se pressupõe a união conjugal como entrelaçamento entre os dois pombinhos que viverão eternamente enlaçados num ninho de amor. Logicamente muito mais fantasia que realidade.
A pomba ou o pombo também está estampado nas bandeiras e emblemas de uma infinidade de instituições assistenciais, de órgãos de caridade e onde se pretenda representar ações humanitárias. E é tão forte e representativo tal símbolo que se expressa pela própria imagem, não necessitando de nenhuma palavra que a defina. Basta que se aviste a pomba branca tremulando e ali estará uma expressão de bondade.
Contudo, o mesmo pombo, ou a mesma pomba da paz, de repente parece transmudada em algo abjeto, repugnante, detestável. E por que assim acontece, vez que não se justifica odiar aquilo que tanto se preza e se respeita? Assim acontece porque o ser humano acostumou a desrespeitar todas as simbologias perante as situações reais.
E com o pombinho não é diferente. Se numa praça existir uma bandeira com uma pomba estampada, quem passe adiante compreenderá  seu significado, mas aquela simbologia se transformará em rancor, em algo detestável, se por acaso alguma pombinha de verdade tentar se aproximar. Eis que diferentemente do símbolo, a ave representará a proximidade de doenças, de uma infinidade de parasitas.
É difícil compreender, mas a pomba da paz, do amor e da solidariedade, das passagens bíblicas, logo é vista como potencial assassina, como hospedeira de doenças terríveis e verdadeira ameaça para a humanidade. Tida como mais perigosa que arsenais de guerra, não raro é afligida por armas e pedradas e ali mesmo deixa seu sangue escorrer. O sangue e a morte na pomba, nesta que simboliza a candura da vida.
É verdadeiro o perigo que representa, e desde suas fezes à carícia nas penugens. Em cada uma há potencial ameaça à saúde do ser humano. Mas será mais fácil o homem destruir todas as bandeiras de paz que dizimá-la completamente. A poesia não deixaria, eis que também representa a perfeição singela do verso.


Poeta e cronista
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Uma estrela (Poesia)


Uma estrela


Noite negra
negrume chuvoso
sem sombra de lua
sem luz no espaço
mas vejo estrela
um brilho estrelado
se olho acima
e a saudade tanta
traz sua feição
como uma luz
na noite tempestuosa

a chuva caindo
o céu encoberto
tudo triste e deserto
e mesmo sem a lua
encontro a estrela
que vagueia além
e descendo vem
diante do olhar
trazendo esperança
de ter a seu lado
noites inteiras
de céu estrelado.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 653


Rangel Alves da Costa*


“Olha o vento...”.
“Olha o vento no varal...”.
“O varal é a vida...”.
“É a dança dos dias...”.
“É o sopro do ser...”.
“É o balanço de tudo...”.
“É o desalento...”.
“É a solidão...”.
“Uma roupa que seca...”.
“E vai sendo esquecida...”.
“E vai sendo levada...”.
“Na poeira do tempo...”.
“Olha o tempo...”.
“Olha o vento...”.
“Olha a brisa...”.
“Olha a ventania...”.
“Tudo soprando...”.
“Tudo tão vida...”.
“Tudo tão morte...”.
“Assim num instante...”.
“No outro tão diferente...”.
“Uma face em verso...”.
“E um verso de frente...”.
“Pois assim quer o vento...”.
“Assim faz a ventania...”.
“Num tempo de dor...”.
“Num tempo de agonia...”.
“Então olha ao redor...”.
“E avista o destino...”.
“Tudo tão desatino...”.
“Tudo tão temeroso...”.
“Por isso olhe a folha...”.
“A folha de outono...”.
“A folha frágil...”.
“A folha esquálida...”.
“A folha da morte...”.
“A morte sem rumo...”.
“E o vento na folha...”.
“A folha ao vento...”.
“Tristeza e solidão...”.
“Abandono e angústia...”.
“Lamento sem lágrima...”.
“O vento levando...”.
“E a folha seguindo...”.
“Sem saber aonde vai...”.
“Assim como nós...”.
“Pois somos a folha...”.
“A folha ao vento...”.
“Um varal da tarde...”.
“Que na manhã seguinte...”.
“Não existe mais...”.


Poeta e cronista
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quinta-feira, 26 de junho de 2014

O DOIDO E A LUA


Rangel Alves da Costa*


Toda loucura é amiga da imaginação, do voo sem asas, dos espaços etéreos, do mistério e da magia, daquilo que é impossível alcançar. Impossível ao ser humano de mente sadia, principalmente porque este mal sabe caminhar rente ao chão.
Mas para o louco tudo possui uma ponta de possibilidade. E não é à toa que o doido conversa com a pedra, faz amizade com qualquer pedaço de pau, sente verdadeiro encantamento por seres inanimados. E também admira a noite, ama as estrelas e é verdadeiramente apaixonado pela lua.
A verdade é que o doido tem uma relação das mais instigantes, misteriosas e profundas com a lua. A esfera lunar lhe causa um efeito tão profundo que nem a ciência ainda foi capaz de apontar os motivos e a dimensão de tudo assim acontecer. Talvez a lua esteja para o louco assim como o sol está para o sertão: um sempre está no outro.
Mas nem só laivos amorosos a lua provoca no doido, eis que também tem o dom de acentuar-lhe a loucura, de provocar sensações indescritíveis, de fazê-lo querer alcançá-la a todo custo. A lua o atrai, o chama, escraviza, aumenta a loucura e a paixão pelo seu mistério.
Segundo o conhecimento popular, quando a lua está cheia, esplendorosamente iluminada no céu, o louco alcança um estágio que vai desde a letargia à insanidade total. A lua cheia faz o louco ficar mais louco, mais arredio, mais perigoso, mais revelador de suas propensões mais escondidas.
A ficção sempre gosta de mostrar a estranha relação entre a loucura e a lua cheia. Numa novela, por exemplo, um personagem vivia verdadeiramente ameaçado pela chegada da lua cheia. Sua situação ficava tão deplorável que a irmã tinha de mantê-lo trancado numa jaula, sob pena de ser levado pela claridão da noite. Mas acaba não resistindo e é levado pelo feitiço da lua.
Muito tenta se explicar acerca dessa estranha e poderosa atratividade. Na ficção, a lua tem o dom de enfeitiçar, mas a realidade aponta outras possibilidades. Seria amor, seria o despertar de um desejo escondido, ou seria simplesmente a atratividade da lua penetrando e transformando uma mente já fragilizada? Ou seria um daqueles mistérios cuja compreensão humana seria também reputada como loucura? Talvez apenas uma força magnética agindo sobre as fendas cerebrais do louco. Apenas talvez.
Parece que o doido adivinha sua breve transformação. Igualmente ao cágado que sai da toca assim que uma trovoada se aproxima, ou como o cavalo que risca na estrada e não segue adiante quando pressente ameaça na beira da estrada, assim também o louco ante a chegada da lua cheia.
É doido, maluco, insano, mas acentua ainda mais sua loucura. Geralmente fica mais entristecido, cabisbaixo, dialogando consigo mesmo, andando de lado a outro como alguém que ansioso espera um acontecimento. Mas nada mais que a lua, que mesmo ainda escondida no céu já começa a provocar reações. E aos poucos tais reações se transformam em verdadeira agonia.
Quando a noite chega e a janela é aberta, logo o louco será avistado olhando pra cima, aflito, nervoso, tomando de espanto e de desejos estranhos. E a lua impiedosa, talvez percebendo aquela dolorosa situação, parece se avolumar ainda mais e se aproximar imensa, toda inteira, daquela janela.
Ninguém sabe o que se passa na mente do louco nestes momentos terrivelmente misteriosos. Ninguém sabe se o magnetismo da luz do luar penetra e torna em rodopios a mente frágil ou se aquela auréola dourada vai trazendo um encantamento arrebatador. Talvez nem o próprio doido saiba distinguir o que realmente sente naquele momento.
Mas a verdade é que se espanta, se encanta, delira, extravasa. E no ápice da transformação, talvez o amor esteja misturado à dor, talvez a paixão venha misturada à angústia de tanto querer e não poder alcançar.
E é por isso que grita, que ergue os braços, que quer voar. E voa. Não sai do lugar, mas voa. E passa a noite inteira voando, até que a manhã o encontra sorridente. Ou mesmo com feições crispadas de sofrimento. Ninguém sabe. Somente a lua.


Poeta e cronista
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Naquele tempo (Poesia)


Naquele tempo


Sou do tempo
de versos e flores
de olhares sedutores
sou do tempo
de amor verdadeiro
de chama e braseiro
um tempo
de terno querer
no peito o padecer
se o amor distante
não me chega radiante

tempo do tempo
que fui e que sou
um poeta apaixonado
eterno enamorado
de um tempo
de passeio abraçado
de passo desapressado
colhendo flores do campo
ecoando o belo canto
do amor e da paixão
um tempo de devoção
às virtudes do coração.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 652


Rangel Alves da Costa*


“Maria Bonita...”.
“Maria do sertão...”.
“Uma bela flor...”.
“A flor do Capitão...”.
“Açucena agreste...”.
“Mulher de Lampião...”.
“Quem dera Maria...”.
“Conhecer sua história...”.
“Avistar seus passos...”.
“Guardar sua memória...”.
“Saber da emboscada...”.
“E tanta vitória...”.
“De todo sofrimento...”.
“Da luta inglória...”.
“Maria, Maria...”.
“Conte-me sobre aquele dia...”.
“Que avistou Lampião...”.
“E sentiu alegria...”.
“Por sair de seu mundo...”.
“Ao mundo da rebeldia...”.
“Tudo pelo amor...”.
“Sem qualquer covardia...”.
“Amansando a fera...”.
“Na noite e no dia...”.
“Pois Maria foi mulher de coragem...”.
“Partiu porque quis...”.
“Preferiu a viagem...”.
“Pelos caminhos espinhentos...”.
“De vertigem e voragem...”.
“Em meio à emboscada...”.
“Em cada passagem...”.
“Maria tão Bonita...”.
“Dengo do Capitão...”.
“Carinhosa Maria...”.
“Da lua o clarão...”.
“Flor de mandacaru...”.
“Boa semente do chão...”.
“Maria cortando caatinga...”.
“De cartucheira e mosquetão...”.
“Que sina maldita...”.
“É matar sem perdão...”.
“Maria que nasceu para amar...”.
“E o amor era sua razão...”.
“Sem esperar morrer...”.
“Ao lado de seu Lampião...”.
“Mas dormiu nos braços do amor...”.
“Mas logo cedinho quando levantou...”.
“A bala assassina o seu peito varou...”.
“E em seguida chegou Lampião...”.
“Para o sangue explodir num clarão...”.
“E foi o fim naquele sertão...”.


Poeta e cronista
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quarta-feira, 25 de junho de 2014

CUIDADOS


Rangel Alves da Costa*


Nenhuma ação humana se exaure em si mesma. Tudo, mesmo sem causa ou justificação, possui consequências. Por isso é preciso muito cuidado em cada passo, em cada ação, vez que a mais simples das atitudes pode provocar conseq inusitadas.
A flor é bela, atraente, perfumada, mas o jardim tem dono. Ir além de apreciá-la pode não ser a melhor atitude. Não apenas pela planta e o jardim que perdem aquela presença, mas também pelo dono do jardim que vai sentir sua ausência. E assim também acontece quando ultrapassam o seu muro para dar fim às pequenas flores cotidianas que você tanta luta para manter.
A resposta precisa ser dada e não pode ser diferente. O não tem de ser não, o sim tem de ser sim, sem meio-termos. Contudo, diferentemente da resposta positiva, que geralmente causa alegria e satisfação, a resposta negativa pode ir muito além da mera tomada de posicionamento. Ouvir um não pode ser algo tão desagradável quanto a rejeição do próprio ser. Por isso cuidado ao ter de dizer não. Existem muitas outras maneiras de negar sem que a palavra seja tida como um punhal afiado na pele.
Cuidado, não alimente em si nem perante os outros nada além daquilo que sempre pode provar que possui. Não adianta o enfeite momentâneo se o adorno será inexistente em outras situações. Não adianta manter aparências se a realidade se mostra totalmente diferente. Não adianta pretender ser além do que realmente é, e sob pena de sempre ser menos do que gostaria de ser. Não adianta oferecer mares, paraísos e horizontes e se a realidade é terrena e não há asas para fingir que está voando. Cuidado, muito cuidado.
A não ser por esforço próprio, pelo suor derramado e pela luta de todo dia, nada será conquistado de forma fácil nem chegará como que por encanto ou milagre. Tudo é fruto da busca e do sacrifício, do dar tudo de si para garantir ao menos o mínimo de sobrevivência. Por isso muito cuidado com as facilidades inexplicavelmente surgidas e com as graciosidades oferecidas.  Nada simplesmente cai do céu ou surge como dádiva da terra sem que seja com uma contrapartida embutida, ainda que invisível. E tudo faz compreender que somente aquilo conquistado pelo próprio ser vem com a garantia de que lhe foi justo receber.
Confiar em que, em quem, e até onde? O próprio ser humano está propenso a ser traído pelas próprias atitudes. Não raro que as promessas íntimas são quebradas pela própria fragilidade do ser. Por mais que o indivíduo se comprometa a não errar, a não reincidir numa atitude tomada ou jamais fazer aquilo que no outro é tão deplorável, ainda assim estará fadado a ser seu próprio algoz. E assim porque ao homem é difícil demais ponderar cautelosamente entre o erro e o acerto diante de determinadas situações. Daí ser inevitável o erro humano, mas também um meio eficaz para experimentar daquilo que não deveria e assim aprender a não repetir.
A roupa estendida no varal não demora muito para receber a primeira bolada da meninada que brinca no descampado ao redor. Não há como evitar que as mangas mais bonitas do vistoso pomar do quintal tenham sumido ao amanhecer. Não há como impedir que a criançada tenha seus momentos de diversão, de soltar pipas, correr pelos campos, jogar bola, passar correndo em cavalo de pau. Cada idade possui seu sentido e sua razão de ser. Compreender que criança chuta bola no varal, que leva a fruta do quintal e gosta mesmo de brincar, apresenta-se como igual compreensão que o adulto possui práticas próprias e não gosta de estas serem vistas como infundadas ou desregradas.   
Por isso cuidado, tenha muito cuidado. O louco é visto como tal porque é portador de uma enfermidade mental, e não porque age contrariamente ao que é tido por normalidade entre os que se imaginam sãos. A pedra dura, silenciosa e inerte, nem sempre transparece assim para muitos. E, não raro, tardes inteiras são passadas no convívio amigável e no diálogo fortalecedor com a pedra. Eis que as pedras ouvem e também falam. Não duvide dessa certeza. Dizem que os botões também são do mesmo jeito, duros e insensíveis, mas os momentos mais interessantes da vida são vivenciados conversando com eles.
Por isso cuidado. Cuidado com o que pensa, com o que vê, com o que faz. Cuidado com tudo, pois tudo pode ser de forma muito diferente do que se imagina como verdade única.


Poeta e cronista
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O coração diz... (Poesia)


O coração diz...


Ouça com cuidado
o que diz o coração
como grito silenciado
do amor a confissão

e o coração diz
sempre buscar a razão
se o desejo é ser feliz
e não se perder na paixão

o coração diz
que há segredo no amor
linha riscada a giz
espinho escondendo flor

o coração diz
da medida para amar
não querer ser a raiz
se o grão não frutificar

o coração diz
que ouça a outra voz
aquilo que contradiz
o desejo tão algoz.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 651


Rangel Alves da Costa*


“As sombras de repente aparecem...”.
“As nuvens tomam conta do céu...”.
“Raios faiscantes vão chispando fagulhas...”.
“Os trovões começam a roncar...”.
“As chuvas irrompem vorazes...”.
“A tempestade toma conta de tudo...”.
“As ruas alagam e a vida transborda...”.
“E tudo de repente, como tudo acontece...”.
“De um estágio a outro...”.
“Sem anúncios ou premeditações...”.
“Assim também na existência...”.
“No imaginado que possa acontecer...”.
“Pois do sorriso se faz a tristeza...”.
“Da tristeza transborda a alegria...”.
“Da estiagem feroz aos campos floridos...”.
“Das flores ao outono tristonho...”.
“Da felicidade ao padecimento...”.
“Da angústia ao renascimento espiritual...”.
“Da brisa à ventania...”.
“Do vendaval a mais terna calmaria...”.
“Tudo assim, tudo transformado...”.
“Frente e verso numa só feição...”.
“O mesmo sendo de outra maneira...”.
“Apenas sendo de modo diverso...”.
“Assim como a partida e o retorno...”.
“O lenço de adeus e o lenço de aceno...”.
“A força e o encorajamento na alma...”.
“E o fraquejamento prostrando o ser...”.
“Uma escada que parece sem fim...”.
“Mas que tomba e deixa tudo cair...”.
“Um império que indestrutível parece...”.
“Mas cujas portas não sustentam o inimigo...”.
“Tudo ter e o acúmulo de mais...”.
“E de repente a cuia na mão...”.
“A firmeza que se transmuda em ruína...”.
“A fragilidade que se alicerça em si mesma...”.
“As páginas que amarelam com o tempo...”.
“As traças que vão roendo as vidas...”.
“O que era e o que não é mais...”.
“Como um sol que surge no meio da noite...”.
“Ou a voz no silêncio profundo...”.
“Tudo a dizer o que somos e o que temos...”.
“Como somos e como seremos...”.
“Apenas um modo de ser num instante...”.
“Para ser outro no momento seguinte...”.
“Por isso que não apresse a boa colheita...”.
“Nem siga adiante sem olhar adiante...”.
“Tudo tem o tempo de acontecer...”.
“Mas inevitavelmente acontecerá...”.
“Seja pelo homem ou pelo destino...”.


Poeta e cronista
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terça-feira, 24 de junho de 2014

CLEMILDA, GUERREIRA ALAGOANA DE NOBREZA SERGIPANA


Rangel Alves da Costa*


Parece que ela está presente naquelas fotografias antigas onde Benjamin Abrahão retratava as mulheres cangaceiras. Não pelas armas empunhadas nem pelas inglórias na sina, mas pelos sorrisos sempre presentes, pelos vestidos enfeitados, pelas feições tão próprias das nordestinas: amorenadas, bonitas, felizes diante de quaisquer circunstâncias. Mas falo de Clemilda, sim senhor, dessa guerreira alagoana que se fez rainha sergipana e ainda hoje orgulha não só o salão forrozeiro como toda cultura popular.
De baixa estatura, rosto arredondado, feições trigueiras, cabelos negros encaracolados, usando preferencialmente vestidos rodados e floridos, com maquiagem que acentue sua feição sorridente, assim é aquela batizada como Cremilda Ferreira da Silva, e depois Clemilda. Verdade que hoje, perto dos 78 anos e mais de 50 anos de carreira artística, já traz as marcas de múltiplas enfermidades pelo corpo. Infelizmente, já foi acometida por osteoporose e agora se recupera do segundo acidente vascular cerebral. E entristece demais não ter a presença da forrozeira maior ecoando pelos arraiás.
 A nossa guerreira está combalida, mas não vencida. Desde alguns anos que não viaja para apresentações, também está impossibilitada de receber e divulgar os artistas locais no seu Forró no Asfalto, programa dominical da TV Aperipê com mais de 25 anos de sucesso absoluto. Internada, ainda em recuperação, certamente doeu-lhe muito estar ausente dos forrós aracajuanos dessa época junina. Ainda assim as homenagens são muitas, desde exibição de documentário, exposições a apresentações artísticas, e todas num justíssimo reconhecimento.

Pelas raízes que possui em Sergipe, onde vingou e se espalhou como a melhor e mais autêntica representante da música de feição junina, até que se poderia imaginar ser a forrozeira sergipana de folha e flor. Mas não, ainda que tenha escolhido Aracaju como seu verdadeiro lar e toda essa terra sergipana como sua irmandade, Clemilda nasceu em São José da Laje, no estado das Alagoas, e lá pelos idos de 1936. Ter nascido lá e vindo pra cá é outra história, e esta só pode ser contada trazendo a lume outra presença marcante na musicalidade nordestina: Gerson Filho.
Nasceu, pois, em São José da Laje, mas acabou passando a infância e adolescência em Palmeira dos Índios. A vida sem oportunidades no lugar, certamente aliada ao destino que lhe acenava outras possibilidades, de repente se viu seguindo para o Rio de Janeiro. Era década de 60. Na capital fluminense, trabalhou como garçonete até conseguir, em 1965, se apresentar como caloura na Rádio Mayrink Veiga. Foi nesta emissora que conheceu Gerson Filho, também alagoano do município de Penedo, então artista já contratado. Assim, o destino unia a voz com a sanfona de oito baixos.
Inicialmente gravou ao lado daquele que viria se tornar seu esposo e a acompanharia pelas estradas forrozeiras até 1994, quando faleceu. Mas seu primeiro disco, “Gerson Filho apresenta Clemilda”, só foi gravado em 1967. Daí em diante o sucesso lhe abriria cada vez mais as portas. Não somente pela artista talentosa que já demonstrava ser, com sua voz afinadamente peculiar, mas principalmente pelo seu jeito único de interpretar: a alegria da música se expressava com toda pujança no gestual da cantora, no seu bailado segundo as exigências de cada canção.
Mas o casal sabia que era na própria região nordestina, berço do forró, que estava o seu público maior. E assim arribou do sul do país para shows e apresentações junto ao seu povo, morando primeiro em Palmeira dos Índios e depois vindo fixar residência na capital sergipana. Sergipe logo acolheu carinhosamente o casal. Famosos, porém simples, humildes e verdadeiramente artistas, viviam de canto a outro realizando shows, numa agenda sempre cheia e onde não havia escolha para as apresentações. Participavam de programas de rádio, de auditório, se apresentavam em grandes e pequenos circos, touradas, grandes eventos; enfim, onde o público apreciador do autêntico forró estivesse.
Foi numa dessas incursões pelo interior sergipano que Clemilda e Gerson Filho foram parar na distante Poço Redondo, localidade que passou a ser uma constância na agenda dos forrozeiros. Na cidade tornaram-se amigos do saudoso Alcino Alves Costa, tantas vezes prefeito do lugar, que não somente os contratava como os acolhia na própria residência. Era ali que sentado à mesa com garfadas na galinha de capoeira que Gerson Filho mastigava pimenta malagueta inteira como se estivesse mordendo um doce.
Foi também em Poço Redondo que surgiu uma parceria entre Clemilda e Alcino Alves. Numa das ocasiões, Alcino mostrou à forrozeira alguns versos sertanejos que havia escrito. E num destes estava “Seca Desalmada”, que após a feitura da melodia pela própria cantora, em 1973 foi gravada num disco de mesmo nome, alcançando retumbante sucesso. “Visitei o Juazeiro que fica lá no sertão, havia muitos romeiros escutando um sermão...”. O próprio Gerson compôs um forró em homenagem ao lugar que tanto apreciava, intitulado Forró em Poço Redondo (LP Ingazeira do Norte, de 1969).
Anos mais tarde, numa homenagem prestada à amiga, Alcino Alves Costa escreveu um “Tributo a Clemilda”, cujo texto, dentre outras passagens, diz: “Sergipe tem uma dívida grandiosa com uma celebridade de seu mundo artístico. Fabulosa intérprete que durante décadas vem oferecendo aos sergipanos a sua extraordinária capacidade e competência na arte de cantar a terna e meiga cantiga que tanto glorificou a essência e singeleza da fonte musical sertaneja e nordestina. Estou falando de Clemilda Ferreira da Silva, a nossa querida e amada Clemilda, que com sua maravilhosa voz enterneceu e enternece o sentimento e a alma daqueles que tiveram a felicidade e o prazer de conhecer e ouvir as suas incomparáveis canções, especialmente aqueles de seus primeiros tempos; aqueles que não possuíam o recurso condenável do duplo sentido.
Em quais arquivos da cultura sergipana estão cuidadosamente guardadas as imortais melodias interpretadas pela inesquecível companheira de Gerson Filho? Será que Sergipe sabe da existência das majestosas "Saudade vai me matar", "Sete meninas", "Morena dos olhos pretos", "Guerreiro alagoano", "Meu guerreiro", "Beata mocinha" e "Siricora"? Será que Sergipe reconhece, agradece e louva o altíssimo desempenho e valor dessa sua guerreira e uma das maiores representantes do cenário musical brasileiro? Não. Com certeza que não. O povo sergipano não se lembra, ou talvez nem conheça, maravilhas como estas: "Fazenda Taquari", "Rosa branca da serra", "Recordação de vaqueiro", "Recado a Propriá", "Console ela papai", "Leva eu benzinho", "Tiro o lírio", "Estou chorando por você" e tantas outras beldades musicais que seria impossível enumerá-las, mas que elas tanto mereciam.
Não podemos desconhecer as tremendas dificuldades e provações que os intérpretes da verdadeira música sertaneja nordestina, aquela do fole, do pandeiro e do ganzá, vêm passando por anos seguidos. Sabemos perfeitamente da luta insana dos poucos abnegados que tentam sobreviver em meio à tão medonha borrasca. Clemilda é parte importantíssima desse reduzido grupo que vive numa inglória luta que tem como principal objetivo preservar essa tão desprezada cultura musical nascida nos recônditos mais escondidos e distantes dos campos, ribeiras e pés de serras de nosso sertão caboclo”.
Por fim, arremata Alcino, fazendo referência ao programa Forró no Asfalto (sucesso também na Rádio Aperipê), “Ali a nossa deusa do forró canta e propaga a cantiga de sua terra de adoção e coração, a terra sergipana e nordestina. Tudo que se fizer por essa invulgar artista ainda é pouco. Clemilda é patrimônio cultural de Sergipe. Deus lhe abençoe, minha querida heroína e amiga. Deusa e rainha do forró!”.
Tais palavras resumiriam tudo, mas Clemilda merece mais. Inegável que o sucesso alcançado foi também fruto de sua obstinação. Poucas artistas nordestinas conseguiram levar o forró aos grandes espaços radiofônicos e televisivos como ela o fez, pois se tornou presença constante em programas como Cassino do Chacrinha, Clube do Bolinha e Faustão, dentre outros. Sua discografia é vasta, incluindo desde os primeiros discos gravados com Gerson Filho (É pra valer e Forró sem Briga), aos lançados como artista principal a partir de 1967 (Gerson Filho apresenta Clemilda, Fazenda Taquari, Morena Dos Olhos Pretos, Seca Desalmada, Guerreiro Alagoano, Coqueiro da Bahia, Prenda o Tadeu e Forró Bom Demais, só para citar alguns).
De voz aguda, porém delicada, impondo a cada canção um acorde melodioso dos mais afinados, Clemilda foi além da mera interpretação para também se firmar como compositora famosa, de grande sucesso, mas geralmente em parceria com outros compositores nordestinos. Ao lado do artista, tecia a letra, remendava, modificava, e tudo para ficar em conformidade com sua voz. Daí que gostava de pincelar as letras já prontas, fazendo os arranjos necessários para o alcance da melodia desejada.
E foi nesse acuido que a grande artista foi se firmando no meio forrozeiro até alcançar a fama tão difícil e até impensável para uma mulher já de longa estrada musical. Contudo, se por um lado a genialidade artística de Clemilda pode ser mais observada na sua fase de melodias tipicamente nordestinas, por vezes de plangência romântica, seu sucesso maior ocorreu exatamente quando passou a apimentar as letras de suas canções. Quando a música Prenda o Tadeu foi lançada em 1985, logo se tornou em estrondoso sucesso. A partir daí emprestou duplo sentido a outras canções, como Forró Cheiroso (Talco no Salão). Os dois Discos de Ouro, e também de Platina, vieram dessa época.
Ainda que o sucesso absoluto somente chegasse com maior força na fase do duplo sentido, ainda assim estava na artista a destreza pela aceitação popular. Eis que não apenas com letra apelativa, mas tendo por fundo a genial interpretação, e assim porque Clemilda, com seu gingado e seu rebolado caipira, sempre foi uma atração à parte. Por isso tanto e duradouro sucesso. E assim sempre será pela eterna gratidão que lhe guarda o povo nordestino, principalmente sergipano, por ter a honra e glória de acolher tão bela flor agrestina.


Poeta e cronista
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