SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 31 de maio de 2017

LAMPIÃO LEVAVA NO EMBORNAL UMA FOTO DO TENENTE JOÃO BEZERRA?


*Rangel Alves da Costa


Vasculhando baús antigos, rebuscando na poeira dos tempos algum conhecimento escondido, eis que encontro um retrato ilustrando uma notícia que me chamou bastante atenção. Retrato antigo, em preto e branco, com uma senhora e seus dois filhos, um menino uma menina. Pelas vestes, gente importante, de relevo social. Contudo, o mais instigante está na inscrição baixo da fotografia, onde se lê:
“Nos bolsos de ‘Lampeão’, depois do combate de Angicos, foi encontrado um maço de fotografias, entre elas um retrato do tenente João Bezerra, cuja tropa o abateria. A fotografia acima estava em meio aqueles documentos e é de pessoas que não foram identificadas por nenhum dos oficiais ou civis que a viram detidamente. A divulgação provavelmente resultará nessa identificação”.
Acaso seja verdadeira tal informação, ou seja, que Lampião levava consigo um maço de retratos e dentre os quais o de João Bezerra, fato que, desde já, pessoalmente reputo como duvidosa, muita indagação ainda há de surgir daquelas antigas veredas.
Por que Lampião levaria consigo um retrato de seu algoz, do comandante responsável pela sua morte? E ainda: Qual o interesse de Lampião em levar consigo fotografias de pessoas inusitadas ao contexto histórico? Por que logo uma fotografia de seu perseguidor? Por que um retrato dessa mulher com seus dois filhos?
Antes de me permitir algumas possíveis respostas, atento para uma reportagem divulgada à época do massacre de Angico, onde o Jornal O Povo, de 3 de agosto de 1938, relata acerca dos objetos conhecidos, mas que não foram encontrados com o Capitão Virgulino. Eis a manchete: “Desapareceu um anel de alto custo roubado por Lampeão”, e no subtítulo: “Também não foi encontrado o colar que o bandido trazia ao pescoço”.
Quer dizer, o jornal menciona acerca do roubo dos objetos pessoais de Lampião, porém em nenhum momento se refere ao achado tão importante e historicamente significativo nos seus bolsos ou no seu embornal. E tais fotografias certamente logo despertariam a atenção dos jornalistas. Então surgiria uma manchete do tipo: “Ao ser morto, Lampeão levava no bolso fotografia de seu algoz”.
Mas se tais fotos existiram mesmo, então outras perguntas logo surgirão, por exemplo: Lampião mantinha consigo o retrato do tenente Bezerra para reconhecê-lo melhor assim que o encontrasse? A confirmação de tal hipótese logo refuta a ideia de que eram conhecidos, até amigos, já tendo se encontrado diversas vezes.
Ora, se eram amigos, se se conheciam, não havia motivação alguma para que o líder cangaceiro carregasse no seu bolso ou embornal um retrato de um comandante da polícia volante que vivia em seu encalço. Certamente não seria por recordação de amizade ou por que alguém o teria presenteado com aquela foto.
Mas por quê? Não me recordo ter lido nada neste sentido. Comumente, quando um inimigo está no encalço de outro e não o conhece, é normal que leve um retrato. E assim será mais fácil confirmar quando do encontro. Mas se, como alguns ainda insistem em dizer, Lampião e Bezerra mantinham conluios, então por que o saudoso retrato junto ao Capitão?
E sobre o retrato daquela mulher e seus filhos? Será que Lampião estava na intenção de, como fizera em 1922 com a Baronesa de Água Branca, tomar de assalto a residência de tão proeminente figura? Ou mantinha o retrato consigo por ser uma recordação familiar ou de uma amizade distante? Nada disso pode ser confirmar.
Também muito difícil de confirmar a veracidade dos fatos envolvendo a presença de tais retratos junto ao Capitão Lampião. Acaso se confirme, há muito mais mistérios envolvendo Lampião e João Bezerra do que imagina nossa matuta filosofia.


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Lá no meu sertão...


                    O sertão começando a verdejar...




Feliz assim (Poesia)


Feliz assim


Eu sou feliz
assim
de tudo
apenas
pedacim

a paz
em mim
a vida
em mim
imensidão
em mim

tão feliz
assim
do muito
apenas
um tiquim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - tempo bom


*Rangel Alves da Costa


O passado é geralmente visto como um tempo bom. Quando alguém a ele se refere, então logo diz que nada igual a antigamente, que aquilo é que era bom de se viver, que noutros tempos não havia nem isso nem aquilo. E sempre para remeter a um saudosismo melancólico, a uma saudade boa, a relembranças do que ficou para trás e não volta mais. Eu mesmo me recordo de muito, desde a infância à adolescência, porém com maior nostalgia das peraltices da criancice. Um tempo verdadeiramente bom seja em que tempo for, pois a infância sempre uma fase da vida ainda descompromissada com as agruras futuras, voltada somente para o regozijo dos dias, das horas, dos segundos. Sim, recordo-me brincando de ponta de vaca pelos quintais, correndo solto de pés descalços, caçando passarinho com peteca baleadeira, voando pelos ares em cavalo de pau, roubando goiaba no quintal do vizinho. Mas, principalmente, a doce recordação dos cafunés de minha avó, aquelas palavras doces que jamais ouvirei novamente.

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terça-feira, 30 de maio de 2017

MARIZETE, REZAS E REZADEIRAS DE POÇO REDONDO


*Rangel Alves da Costa


“Acorda, Marizete!”. De seu altar ou de onde estiver, eis que o Padre Mário alegremente brada como a despertar aquela que desde muito vem simbolizando a voz de fé da religiosidade católica de Poço Redondo, município dos sertões sergipanos. Mas Marizete nunca dorme, pois sempre pronta a entoar mais um canto de fé. Ela e tantas outras cujas vozes representam a presença da Igreja na vida do humilde e religioso povo sertanejo.
Mas Marizete não é somente uma das “passarinhas” de Padre Mário (as outras são Geovanete e Mazé de Iracema), e sim a própria abnegação religiosa em pessoa. Não se importa ser chamada de beata, de zeladora, do que quer que seja. Sua única preocupação é com a igreja em si, sua limpeza, seus ofícios, como se ali fosse um seu segundo e sagrado lar. E só Deus sabe a sua tristeza - e de tantos - com a casa sagrada sem telhado, sob sol e chuva.
“As passarinhas do Padre Mário” bem poderiam descansar suas vozes até que o telhado da matriz fosse refeito. Porém, como bem disse o bom pastor, ali como uma barca nua, aberta no meio do tempo, a fé navega sem medo de tormentas. Daí que tanto Padre Mário como Marizete e as demais vozes da igreja, persistem nos seus ofícios de inabalável fé.
Tanto assim que ainda cedo do dia, enquanto a cidade apenas desperta, a Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo já está de portas abertas para ecoar os cantos de fé, os hinos religiosos, as orações e as rezas do povo sertanejo: “Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria Mãe de Deus, rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte. Amém”.
Durante as missas e outros ofícios religiosos, quando a igreja está tomada de fiéis e as devoções pulsam nos corações com maior intensidade, um grupo de senhoras nas proximidades do altar, com feições contritas e olhares voltados à Cruz do Senhor, entoam: “Dai-nos a bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Dai-nos a bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Vós sois a rosa de puro amor, encheis a terra de puro odor...”.
Em Poço Redondo, mais de perto na Matriz de Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, ouvir os cantos de fé é também ouvir as plangências de vozes desde muito conhecidas por todos, algumas já partidas para a eternidade e outras ainda em pleno vigor de oração: Marizete, Mazé de Iracema, Geovanete, Idilane, Irlade e tantas outras. É como se a igreja tristemente silenciasse se tais vozes não forem ouvidas e seus timbres não sejam reconhecidos. Como que sonolenta, de cabeça baixa, vai Marizete em máxima devoção: “A nós descei divina luz, a nós descei divina luz, em nossas almas acendei o amor, o amor de Jesus, em nossas almas acendei o amor, o amor de Jesus...”.
De suas vozes, e todas as vozes sertanejas, as canções e os hinos tão sublimemente enaltecedores como tristonhos, eis que também ecoados nos ofícios de despedidas, nas sentinelas e incelenças, como se aquelas vozes fossem ecos de um além tão próximo de nós e a nos chamar à reflexão da vida, da morte, da fé, da valorização das verdades cristãs. Assim como o Ofício da Imaculada Conceição tão belamente cantado pela saudosa Maria José de Zé Preto:
“Agora, lábios meus, dizei e anunciai os grandes louvores da Virgem Mãe de Deus. Sede em meu favor, Virgem Soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor também, que é um só Deus em Pessoas três, agora e sempre, e sem fim. Amém... Ouvi Mãe de Deus, minha oração. Toquem vosso peito os clamores meus... Sede em meu favor, Virgem Soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor...”.
Jamais poderei esquecer-me de tais vozes durante uma missa em homenagem a meu pai Alcino, realizada defronte ao memorial que leva o seu nome. Ali o Padre Mário, ali suas “passarinhas”, e quanto beleza na interpretação de “Tu és a razão da jornada”: “Um dia escutei teu chamado, divino recado, batendo no coração. Deixei desta vida as promessas e fui bem depressa no rumo da tua mão. Tu és a razão da jornada, Tu és minha estrada, meu guia e meu fim. No grito que vem do teu povo, Te escuto de novo chamando por mim...”.
Por isso, nunca cale essa voz. Nunca calem essas vozes. Por isso, “acorda, Marizete!”.


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Lá no meu sertão...


              Belo, simplesmente...




Dá-me...


Dá-me...


Estou faminto
e sedento

e na devoção
e louvor

peço um grão
de amor

peço um pão
de amor

peço a mão
do amor

não diga não
a mim

ao coração
tão triste assim.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - pedaço de lua


*Rangel Alves da Costa


A noite chegou. E do meu sertão somente a lembrança. Ainda é noite menina, nova, festeira. Mas recordo bem que pelas distâncias matutas já é noite alta, velha, cansada. Lá no mato, a noite nova vem no entardecer. Quando a lua surge já é noite envelhecida e sonolenta. O café chega antes da boca da noite, o proseado até um pouquinho depois disso. Quando há feijão para debulhar ou calça a remendar, espera-se somente o candeeiro começar a queimar mais o pavio, a deixar o gás em tiquinho. Quando chega algum amigo ou vizinho para o proseado, a demora é curta, nada além de uma talagada de pinga e da queimação de cigarro de palha. Mais adiante, vinda de entre serras e montes, uma fresca vai soprando boa para aliviar o calor do dia. A lua ainda passeia entre nuvens. Um grilo faz seu canto num oco qualquer de pau. Um vaga-lume procura ser avistado de qualquer jeito. O menino pede ao pai um pedaço de lua. Ele promete. Que o menino vá dormir que ele vai colocar o pedaço de lua ao lado de seu travesseiro. E o menino vai todo contente. Depois o pai vai devagarzinho e coloca o prometido pedaço de lua. Quando ele acorda não encontra nada. Mas o pai não tem culpa. Já é manhã e a lua já foi embora. Sorte que o filhinho sempre se esquece de pedir um pedaço de sol. É dessa ilusão bonita que também se vive nos rincões empobrecidos desses sertões de meu Deus.


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segunda-feira, 29 de maio de 2017

JUREMINHA, O CANGACEIRO QUE NUNCA EXISTIU


*Rangel Alves da Costa


Ainda hoje muito se conta sobre Jureminha, o cangaceiro que nunca existiu. Nunca existiu por acasos da vida, pois vivente naqueles sertões cangaceiros dos idos de 1920 em diante, quando os homens das caatingas já tomavam espaços pelos carrascais nordestinos. Ademais, vivendo numa região onde outra coisa não se falava senão da presença tanto do bando de Virgulino Ferreira, o Capitão Lampião, como das volantes, que eram as forças policiais nas suas investidas contra os cangaceiros.
A povoação onde Jureminha havia nascido era, por assim dizer, caminho de cangaceiros e volantes por excelência. Mata fechada por todos os lados, veredas quase impenetráveis, tufos de mato que davam para um bando inteiro se amoitar em repouso ou de tocaia para esperar inimigos. Além de ser um lugar onde qualquer cangaceiro era mais respeitado e querido que qualquer comandante de volante. Ante as atrocidades cometidas pela soldadesca, criava-se até ódio pela sua presença. Bastava a simples passagem da volante para algum mal ser cometido contra inocentes.
Já com a aproximação do bando cangaceiro era diferente. Ainda que muitos temessem perder a vida pela chegada daqueles homens surgidos do nada, assim num segundo, e por isso mesmo arribassem até de ceroulas pelas portas do mundo, a maioria até acolhia com agrados a Lampião e seus rebeldes matutos. Tanto assim que nenhum outro lugar deu tanto coiteiro ao bando como aquele em que vivia Jureminha. Mas coiteiro o cabra nunca quis ser, pois seu negócio mesmo era ser o mais valente do bando. Mas como, se Jureminha era o mais medroso de todos?
Mas pelo que dizia e espalhava aos quatro cantos, Jureminha tudo tinha para enveredar no cangaço, pois sempre se alardeando injustiçado, perseguido pelos poderosos, carregando nas costas a sina das desvalias. E também nascido numa povoação onde muitos de seus conhecidos já haviam partido rumo às lutas debaixo da lua e do sol. Mas como já dito, e a verdade seja repetida, um cabra medroso igual a Jureminha não levantava na mão sequer um estilingue ou uma baleadeira de acertar rabo de calango, muito menos um rifle ou qualquer arma potente.

O homem era tão medroso que bastava ouvir falar que o bando se aproximava que se metia debaixo da cama ou saía correndo pela mata adentro de bater o pé na bunda. Ainda assim se dizia valentão, o mais destemido dos sertanejos, e por isso mesmo nascido para não só ser cangaceiro como para tomar o lugar de Lampião quando este se cansasse da luta. E fazia planos e mais planos, de vez em quando até dizendo que ao se tornar líder do bando a primeira coisa a fazer era contratar uma cozinheira que soubesse fazer guisado de palma e de cabeça-de-frade.
O tempo foi passando e o futuro cangaceiro Jureminha nada de enveredar no cangaço. Quando o bando riscava por ali e sumia de vez, alguns imaginavam que daquela vez o amigo já havia se decidido. Mas não. Jureminha estava mesmo era escondido, tremendo feito vara verde, todo mijado na loca onde estivesse entocado. Depois aparecia dizendo que já havia acertado tudo, conversado com o próprio Lampião e que da próxima vez daria seu adeus ao lugar. Depois disso somente sua fama chegaria naqueles recantos.
Mas um dia, enquanto lorotava debaixo de pé de pau sobre suas estratégias logo que se tornasse cangaceiro, eis que Jureminha ouviu uma inesperada notícia: Lampião e parte de seu bando haviam morrido. Alentado por dentro, mas esbravejante por fora, o homem levantou a voz raivoso, parecendo que queria acabar com o mundo. E dizia: Mai num pode ser verdade. Noutro dia eu mermo dixe a Lampião que num fosse se acoitar no Angico. Avisei a ele que ali era perigoso demais pra cangaceirada se esconder. E agora, se for mermo verdade a nutiça, entonce só me resta me ajuntá aos que num morrero e vingá o capitão. E é o que eu vou fazê agorinha mermo”.
Depois disso sumiu durante três dias, mas não estava noutro lugar senão num terreno de seu sogro. Ao retornar, logo começou a espalhar que Corisco já havia aceitado ele, o próprio Jureminha, ser o líder dos vingadores, e por isso mesmo não tinha dia nem hora pra que o restante do bando aparecesse por ali para seguirem no encalço dos matadores. E dar o troco bem dado.
Desacreditado, mas não menos mentiroso, até muitos anos depois ainda lhe caçoavam perguntando: Cangaceiro Jureminha, cadê Corisco que nunca chega? E ele ainda respondia, com a maior seriedade do mundo: “Mataro tomem. Agora só resta eu pra vingar os dois. Só tô esperano uns armamento que encomendei”.
Um dia, quando bateu as botas, fizeram-lhe uma homenagem. Um chapéu cangaceiro foi colocado sobre o caixão. E no epitáfio que dizia: Aqui jaz Jureminha, o cangaceiro sem nunca ter sido.


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Lá no meu sertão...


  E então te abraço e onde houver espinhos eu faço flor, onde houver aspereza eu torno amor...







Frio (Poesia)


Frio


Tá frio
água
de rio

tremo
a pele
gemo

quero
você
espero

venha
e me
tenha

abrace
apertado
enlace

o calor
e todo
amor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – Creuzina, a aluada


*Rangel Alves da Costa


Coitada de Creuzina, que sina mais triste a de nascer boa da cabeça e do juízo e a desdita da vida lhe fazer aluada, doida varrida. Moça bonita, alegre, sempre uma boa companhia, uma decente, como se dizia. Mas tudo desandou na sua vida depois que se apaixonou por Leotério. Amor e repentino e noivado também em pouco tempo. Mas de vez em quando uma e outra chegavam pra dizer que tivesse cuidado com Leotério, pois um conhecido enganador de corações e até com raparigagem noutras cidades. Ela não acreditava, contudo. O amor era demais, já de cegueira total. Ele prometeu casamento para breve, fez ela gastar o que não tinha com o enxoval, mas falando poucos dias para subirem ao altar, o safado desapareceu de vez. Desapareceu de nunca mais dar notícia. Depois disso ela endoidou de vez, numa situação tal que fazia pena somente em avistá-la. À noite, principalmente de lua cheia, ela se enfeitava toda, vestia sua roupa de noiva e subia numa pedra grande, onde ficava por horas e horas chamando um nome: Leotério, Leotério, venha logo meu Leotério. Envelheceu assim, cada vez mais doidinha. E por causa de sua loucura debaixo da lua cheia, comumente chamada Creuzina, a aluada.


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domingo, 28 de maio de 2017

O LADRÃO DE IDADE


*Rangel Alves da Costa


Depois do cinquenta anos ele decidiu modificar seu calendário de aniversários. Daí em diante não mais seria a cada ano, na mesma data, sempre ficando um ano mais velho a cada ano.
Decidiu então que depois dos cinquenta e um, o seu próximo aniversário seria somente dois anos depois. Quer dizer, ao chegar a data era como se nada tivesse acontecido. Somente no ano seguinte é que completaria mais um ano de vida.
Significa dizer ainda que continuaria com cinquenta e um anos até dois anos depois. Somente a partir a partir de então é que comemoraria cinquenta e dois anos. O problema é que havia outras previsões um tanto estranhas no calendário imposto a si mesmo e aos demais.
E assim porque, dois anos após, assim que completasse cinquenta e dois anos, somente três anos depois é que completaria cinquenta e três anos. No calendário normal, já estaria com cinquenta e seis quando alegasse haver completado os cinquenta e dois anos.
Mas não parou aí não, pois ao completar cinquenta e três anos, já decidido estava que o seu próximo aniversário seria somente dali a quatro anos. Então, na soma dos anos ocultados por conta própria, ao chegar aos cinquenta e três já estava com setenta anos.
Quando completou cinquenta e quatro anos, igualmente resolvido estava que somente dali a cinco anos o seu próximo aniversário seria comemorado. Comemorado não, somado à sua idade, eis que, simplesmente negando ou não aceitando os anos passados, era como se cada ano se alongasse, por três, quatro, cinco ou mais anos.
A verdade é que chegou aos cem anos sem passar dos sessenta. Todo mundo achava estranho demais ele afirmar que só tinha cinquenta e cinco ou cinquenta e sete, quando claramente já demonstrava ter mais de noventa. “Acredite ou não, mas essa é minha idade. Quer ver meu documento?”. Mas nunca mostrava nada.
Não obstante isso, o velho (que ele não me leia) era metido a namorador. Vivia dando psiu às mocinhas, com o bolso cheio de bombons, piscando o olho e prometendo mundos e fundos. De vez em quando aparecia com uma rosa vermelha à mão para deixar numa janela.
Mas um dia, não suportando mais esse descaramento, eis que um seu sobrinho gaiato lançou mão de seu documento de identidade e saiu mostrando a um e a outro a verdadeira idade do tio. Espantos e mais espantos com a verdadeira idade do homem. E também risadas de não acabar mais.
Assim que soube do acontecido, que sua verdadeira idade já não podia ser negada perante todos, principalmente das mocinhas, o homem deu um piripaqui que morreu na hora. Caiu tão duro que mais parecia um jovem mesmo. Mas se alguém chegava junto á família para perguntar com quantos anos ele havia batido as botas, a resposta era a mesma: sei lá!
Na missa de corpo presente, o velho sacerdote foi do elogio ao escárnio: “Morreu tão jovem, na flor da idade, ainda cheio de vida. Quer dizer, morreu querendo ter a juventude que não tinha mais, como uma flor murcha que ainda pensa que perfuma, já no anoitecer de sua longa vida. E saber que os jovens morrem quanto mais alguém cuja juventude não era mais avistada nem de binóculo”.
Para evitar achincalhes, a família resolveu não colocar as datas de nascimento e de morte na cruz da sepultura. Que se fosse para dar conta, que desse lá em cima, perante o julgamento de seus merecimentos. Só não sabiam o que ele estava passando por causa disso exatamente lá em cima.
Lá em cima, logo no portão de entrada lhe veio a pergunta indesejada: Quantos anos o senhor tem? Antes de falar, olhou rapidamente pelos arredores e avistou umas defuntas novinhas, então respondeu: uns sessenta, ainda sou jovem, prafrentex, com tudo em cima.
Então foi devidamente encaminhado para outro portão, onde nem a sua velhice foi respeitada, pois logo jogado na fogueira eterna dos mentirosos e ladrões de idade.


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Lá no meu sertão...


            Neste sábado 28/05, MESTRE TONHO, o maior artesão do Brasil, cidadão poço-redondense, em cordial visita ao Memorial Alcino Alves Costa, em Poço Redondo, sertão sergipano.






Sem flores (Poesia)


Sem flores


Nem tudo é amor ou é doce paixão
se do querer só vem a dor da desilusão

coragem de jogar ao chão e pisar as flores
e de rasgar retratos sem sentir as dores

não ouvir mais a canção que faça relembrar
se tudo está assim que fique como está

renegar de vez a lágrima e o sofrimento
pois quem fere o peito não merece lamento

sim, não era pra ser assim agora ou jamais
mas tem que ser assim ou será incapaz

de dar logo um fim no que nem começou
e por cruel engano ainda chamou de amor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – abraçado ao mandacaru


*Rangel Alves da Costa


A lógica poderia dizer que é impensável abraçar um mandacaru. Ora, o mandacaru é cacto sertanejo espinhento, de espinhos longos, agressivos, pontudos, famintos por pinicação. Gente há que sequer passa por perto de qualquer cacto, e muito menos do mandacaru. Mas não sei por que assim, vez que alongo meus braços e a ele me abraço com gosto, prazer e até devoção, numa desmedida entrega. E assim faço pela alma sertaneja que tenho, pelo sangue sertanejo que há em mim. Ora, em meio a tanto sofrimentos sertões adentro, em meio a tantas secas e estiagens, em meio a tantos sois e gravetos secos, em meio a tanto berro faminto e tanto mugido de desolação, abraçar o mandacaru é como se postar perante um altar de oração. E assim, nesse altar de espinhos e asperezas, pedir às alturas os auxílios de chuva, os auxílios de esperança, os auxílios de paz. E não impossível de ser atendido. O mandacaru tem braços grandes, sempre estendidos em direção ao céu, em diuturna oração. Por isso que vive assim como um candelabro de velas acesas à espera de milagres. Por isso que a ele me abraço na mesma fé.


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sábado, 27 de maio de 2017

QUANDO JOVENS SERTANEJOS ABRAÇAM TRANSFORMAÇÕES


*Rangel Alves da Costa


Recordo-me muito bem os dias tristes ao reencontrar a Igrejinha do Poço de Cima em verdadeiro estado de abandono. Completamente deteriorada, de portas em frangalhos, abertas pelo homem e pela ventania, visitada por animais, quase sem telhado, com cupins tomando todos os espaços, uma tristeza danada somente em avistar.
Não menos diferente era a realidade ao redor, com sepulturas igualmente abandonadas, o capim e o mato envolvendo tudo, a investida dos bichos por cima e entre os jazigos, apenas a desolação e o esquecimento. Ora, os que chegavam ali para acender velas sobre os túmulos de seus falecidos parentes sentiam que, sozinhos, não conseguiriam mudar aquela lastimosa situação.
Mesmo com a importância histórica, religiosa e familiar, aquela igrejinha e seu cemitério passaram longos anos à margem do esquecimento, senão do completo abandono. Todo mundo falava na Igrejinha do Poço de Cima, mas poucos sabiam ou conheciam o seu verdadeiro estado. Missas, novenas e outros ofícios e manifestações religiosas, sequer pensar no local. A serventia era apenas da lembrança, da triste recordação.
Um dia, contudo, a partir do descontentamento, da tristeza e da revolta de Padre Mário com aquela situação, vez que o bom pastor das almas sertanejas sentia que sem a participação do poder público aquele quadro estarrecedor não seria modificado, principalmente pela falta de condições da paróquia em fazer os devidos reparos, lançou suas esperanças em qualquer ajuda que chegasse. Contudo, quem chegou para abraçar a causa foi um grupo de jovens da comunidade.
Este grupo, nascido da perseverança e tenacidade de jovens sertanejos como Enoque, João Vitor e tantos outros, então iniciou aquilo que por muito tempo foi visto como impensável, que foi fazer renascer aquela igrejinha abandonada e novamente colocá-la no seu altar maior de reconhecimento e valorização: Capela de Santo Antônio do Poço de Cima. E, desde então, com árduo e constante trabalho, a Igreja do Poço de Cima foi novamente retomando sua verdadeira feição de templo primeiro e de importância fundamental na vida religiosa de Poço Redondo.
Foi a partir da missão abraçada por estes jovens que a capela foi praticamente refeita, pintada, recebendo um novo telhado e tudo o mais necessário aos ofícios religiosos. Foi a partir do denodo e da perseverança destes jovens que as sepulturas ao lado da igreja foram cuidadas, que os matos deixaram a constância da paisagem, que as pessoas passaram a visitar com menos sofrimentos os seus entes ali sepultados. Hoje há até um pórtico dando as boas-vindas aos visitantes.
Foi assim, a partir desses jovens, que a Capela de Santo Antônio do Poço de Cima, ou apenas a comumente chamada Igrejinha do Poço de Cima, renasceu das cinzas e dos escombros do abandono. Atualmente, missas são celebradas, procissões saem da matriz em sua direção, novenas são realizadas, há, enfim, o renascimento tão merecido daquele histórico e tão nosso templo cristão, todo perpassado pela história e pela religiosidade de um povo.
Ontem mesmo recebi a cordial visita de João Vitor no Memorial Alcino Alves Costa, em Poço Redondo. Relatou-me sobre os preparativos para o Trezenário de Santo Antônio em junho próximo, culminando com um grande evento religioso na Igreja do Poço de Cima, com procissão, missa, queima de fogos, os Pífanos da Família Vito e acompanhamento de cavaleiros, dentre outras manifestações. Tal fato demonstra que estes jovens continuam irmanados e constantemente se esforçando para que nosso primeiro templo continue orgulhando a todos.
Mas não é diferente com os jovens de Bonsucesso, povoação ribeirinha de Poço Redondo. Os jovens ribeirinhos parecem chamar para si as responsabilidades maiores sobre a manutenção, preservação e disseminação, de seus bens históricos, culturais e artísticos. São eles que se reúnem para limpar cemitérios, para limpar as beiradas do rio, para cuidar de tudo que diga respeito à sua povoação. E ainda por cima se expressam magistralmente em Reisados, na Dança de São Gonçalo, nos Cordões das Pastorinhas, nas Cavalhadas Mirins, dentre tantas outras manifestações.
Não se pode esquecer também da juventude que ajuda no dia a dia da paróquia de Poço Redondo. Quem dera mais jovens assim, mais grupos de jovens assim, unidos e irmanados no objetivo maior da preservação de sua religiosidade e de suas raízes.


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Lá no meu sertão...


                   Paraíso em Bonsucesso, povoação ribeirinha no município de Poço Redondo, sertão sergipano.







Em dias de chuva (Poesia)


Em dias de chuva


O amor é tão tristonho e triste
distante do outro em dias de chuva
com a saudade que tanto persiste
e a vidraça de coração que se turva

a chuva cai em friozinho de abraço
as águas ecoando a sua canção
e dá um desejo de deitar ao regaço
e acalantar a noite de calor e paixão

em dias de chuva me sinto assim
pássaro sem ninho de asas molhadas
noites e dias que não chegam ao fim
nas solidões de saudades encharcadas.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta – chuvinha boa de molhar a terra


*Rangel Alves da Costa


O sertão sergipano amanheceu todo molhado. Desde a madrugada que uma chuvinha fina, porém constante, cai sobre os quadrantes antes esturricados de sol e de seca. No mundo sertanejo, principalmente os mais velhos sabem que a chove forte, pesada, desabada de uma vez, serve apenas para encher tanques, fontes e açudes, e depois escorrer por cima da terra, sem beijar o seu ventre, sem adentrar às suas raízes mais profundas. Somente a chuva mais fraca, mais fina, de modo demorado, tem o dono de verdadeiramente molhar, de encharcar, de tornar a terra alimentada de viço e de esperança. É a chuva fina que alimenta o grão lançado, que faz germinar a semente fincada no chão, que faz verdejar as plantinhas miúdas e os capinzais ressequidos. Por isso que toda vez que cai chuva assim, miúda, apenas chuvisquenta, porém constante e demorada, o sertanejo se anima e se alegra todo. Os horizontes tomam outros ares, as pastagens parecem sorridentes, os bichos lentamente recebendo nas costas os sinais de renascimento. Com a terra prenhe, amolecida do pingo, também a certeza de dias melhores, de contentamentos em semblantes acostumados com as tristezas das sequidões. Todo amanhecer é uma nova moldura ao sertão, um novo retrato que se impõe na esperança. E que continue caindo a chuva fininha e tão milagrosa ao homem do campo.


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sexta-feira, 26 de maio de 2017

A INSUSTENTÁVEL VIOLÊNCIA NO SERTÃO SERGIPANO: UMA ROTINA DE SANGUE E DOR


*Rangel Alves da Costa


Ninguém suporta mais. Somente no município sertanejo de Poço Redondo, todos os dias ocorrem homicídios, e às vezes mais de um. E assim também por todo o sertão, como se a rotina agora fosse de morrer e não de viver. Um verdadeiro absurdo. Um caos definitivamente instalado em cidades e povoações de pessoas humildes e trabalhadoras. Não há, pois, um só dia, onde não se confirmem os boatos de mais uma vida que foi dizimada pela desenfreada criminalidade.
Nos últimos dias tudo parece ter desandado de vez. Os noticiários, os sites informativos e a imprensa escrita, repetem sempre a mesma manchete: Mais um assassinato no sertão sergipano! E mais um por que os dias anteriores foram também de mortes, numa soma de assassinatos que mais parece uma guerra aberta contra todos. Se toda a população sergipana se espanta ante estatísticas tão alarmantes, que se imagine a pacata população sertaneja. Tais fatos demonstram os motivos de o estado de Sergipe figurar como o terceiro mais violento do país.
Mas a realidade é esta, e de forma incontestável. Mesmo que as estatísticas governamentais façam malabarismos para dar outra feição aos fatos, as provas maiores estão nas famílias que todos os dias enterram os seus, no pranto derramado por esposas e filhos, por todos aqueles que choram seus próprios medos. E tudo geralmente acontecendo por meio de homens encapuzados em motos sem placas ou pelos ataques às próprias residências. Significa dizer que nem dentro de casa a pessoa está livre de ser alvejada a qualquer hora do dia ou da noite.
Triste de um povo que vive à mercê da violência pela violência. O sertanejo, já tão sofrido pelo próprio meio de difícil sobrevivência, tem agora de suportar as ameaças contínuas e de forçosamente conviver com a criminalidade a todo instante e por todo lugar, como se não pudesse mais encontrar um só instante de paz e sossego. Nas cidades, nas povoações, nos caminhos e veredas, e de repente a ação de violência extremada da bandidagem.
Num percurso histórico, verifica-se que a criminalidade sempre esteve atuante no sertão sergipano, porém uma criminalidade dentro do contexto próprio das violências e das ilicitudes cotidianas, como em qualquer lugar. Neste sentido é que as ocorrências de assassinatos eram bem caracterizadas, sendo mais em situações de rixas, vinganças e outras vinditas de sangue, e não como agora, onde se mata até sem motivação. Ciúmes, bebedeiras, um olhar mais feio em direção ao outro, agora tudo é motivo para o disparo da arma.
O autêntico sertanejo é cabra forte, valente, destemido, mas nunca foi de violência como a que se tem agora. A violência de outros tempos sempre envolvia questões de honra, de revides às agressões, de rixas alimentadas no ódio, de disputas por terras ou pelo nome de uma mocinha da família que havia sido desonrado pelo rapaz da outra família. Assim chegavam às raias de verdadeiras guerras particulares. Mas agora tudo se banalizou. Nem no tempo de Lampião e suas refregas contra as volantes, o sangue jorrava tão farto assim.
Ainda assim a fama de um sertão violento correu mundo. Até hoje o citadino olha com reserva para o sertanejo e o seu mundo, sempre enxergando nestes resquícios de um tempo de contendas, vinganças, juras de morte, perseguições, guerras cangaceiras e crimes de mando. Mas agora a fama se confirma pelas rotineiras tragédias. Diante dos fatos, não há mais como negar que a terra sertaneja virou palco do banditismo mais vil e mais covarde que possa existir.
O sangue então jorrado não é mais na vermelhidão abjeta das tocaias e emboscadas, mas numa covardia igualmente abominável, que é a da violência barata, pela simples violência. Verdade é que não há violência maior do que um sertanejo viver de porta fechada, tremendo lá dentro, por medo de bandidos que possam chegar a qualquer instante. Outro dia, ainda em Poço Redondo, chegaram de moto para matar um rapaz e acabaram também matando sua mãe. Quer dizer, até pessoas inocentes estão sendo vitimadas pelo terror.
Quais as motivações para tamanho aumento da criminalidade, o que está permitindo que o crime tenha alcançado total descontrole na terra sertaneja? Muitos fatores poderiam ser descritos em busca de uma resposta. Contudo, está na feição da segurança pública, ou na sua carência de efetividade naquela região, que tudo pode ser explicado. Para se ter uma noção dessa ausência, muitas delegacias não contam com mais de três policiais. Povoações existem onde os postos policiais ou estão desativados ou não possuem efetivo suficiente para garantir qualquer tipo de segurança à população.
Em Poço Redondo, onde até pouco tempo estava instalada uma guarnição do Batalhão da Caatinga - grupo policial especializado e sempre temido pela bandidagem -, já não conta com sua atuação diuturna no combate à criminalidade. Quer dizer, enquanto a bandidagem e a criminalidade aumentam, a atuação estatal diminui. Então fica difícil. Fica tudo ao deus dará mesmo. Ou ao sangue jorrando por todo lugar.


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Lá no meu sertão...


             O Rio São Francisco bebendo água após a abertura das comportas da Hidrelétrica de Xingó.




Dizendo tudo (Poesia)


Dizendo tudo


Ela não pediu amor
eu é que me fiz doado
e ela não me desertou
quando fiquei apaixonado

agora não adianta mais
negar o beijo e o carinho
de fugir do laço sou incapaz
e muito mais viver sozinho

então espalhe ao mundo
que somos dois namorados
senão espalho em segundo
que já estamos bem casados.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - a alegria com a chuva no sertão


*Rangel Alves da Costa


Até parece um maravilhamento, um encantamento, alguma coisa do outro mundo, mas é apenas chuva no sertão. Mais parece a grande beleza da vida, o acontecimento mais grandioso que possa existir, o livro mais lindo aberto, mas tão somente a chuva chegada ao sertão. Com efeito, o delírio é tamanho do sertanejo que mais parece a sorte grande encontrada. Mesmo não sendo chuva de trovoada, forte e constante, molhando a profundeza da terra, alagando tudo e transbordando fontes e ribeirões, ainda assim há uma alegria sem igual com as últimas chuvas caídas. Quando em outros centros urbanos, principalmente nas capitais, as chuvaradas provocam transtornos e enraivecimentos, no sertão é motivo de jubilo, de alegria, de contentamento sem fim. Só em saber que os tanques passarão muitos dias com água, que o bicho de cria e do mato não vai continuar sofrendo tanto, que o verdor e o viço da planta logo ressurgirão, que a terra talvez logo possa acolher a boa semente, tudo isso é verdadeira magia aos olhos do sertanejo. É como se a caneca vazia e a boca sedenta de repente reencontrasse o gole d’água. Tudo coisa pouca, ainda. Mas tudo tão imensamente esperançoso que a vida mesma parece renascida em cada um.


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quinta-feira, 25 de maio de 2017

TEMER JÁ DITA A DITADURA


*Rangel Alves da Costa


Tristes tempos, mas é verdade: Temer já está ditando uma ditadura. Quando ele afirmou aos brados, em cadeia nacional, bem ao estilo dos arrogantes tiranos, que “Não renunciarei!”, já estava sinalizando o que seria capaz de fazer para se manter no poder. E desde os últimos dias que o governo Temer, através do Departamento de Produção e Divulgação de Imagem da Presidência da República, vem tentando impedir que memes (montagens humorísticas a partir de fotografias) sejam produzidos a partir de qualquer foto do presidente.
Isso é censura explícita, algo impensável num regime democrático e num Estado de Direito. Censura que bem lembra Vargas e o seu Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), que bem lembram os generais do Golpe de 64 e suas botinas massacrando as liberdades. E nesta quarta-feira, ao decretar o uso das Forças Armadas, basicamente o Exército, contra manifestantes, então deixou claro que não haverá limites na sua ação.
Com bem acentuou um senador, se este governo não sustenta, não serão as Forças Armadas que irão sustentar o governo. Certamente que não será colocando armas amedrontadoras nas ruas que o governo irá refrear os descontentamentos da população nem diminuir sua participação nos últimos acontecimentos da delação. O desespero governamental não pode e nem deve ser acobertado por truculências nem pela mão de ferro da incoerência. No trotar dos fatos, logo virão os cerceamentos a todo tipo de manifestação, a censura aos órgãos informativos e a redução das liberdades ao crivo das ordens brutais, ferinas, das chibatas e dos açoites.
As repercussões das recentes medidas foram as mais desfavoráveis possíveis ao governo Temer. Utilizar-se da própria Presidência da República para inibir que a imagem pessoal de Temer - ou mesmo sua imagem enquanto governante - seja utilizada em memes é uma clara tentativa de proibir as liberdades de manifestação. Após o advento da internet e da divulgação das imagens humorísticas produzidas, nenhum governante procurou coibir de forma tão dura e veemente a divulgação de tais peças. Somente agora com Temer a mão de ferro bate sobre a mesa e diz o que é proibido ou não fazer. É a ação algoz e autoritária de um governo que perdeu sua razão de ser e agora ataca para se manter no poder a todo custo.
Já com relação à utilização do Exército para, em nome da ordem pública, conter as manifestações populares, a atitude governamental gerou críticas até mesmo de aliados. Um ministro do STF afirmou estar estupefato com tal medida. Os sites informativos reproduzem os descontentamentos e as palavras de juristas, e quase todos no sentido de confirmar exageros nas medidas, acentuando que por trás disso tudo há uma tentativa do governante se manter no poder através da força. Segundo um especialista, afeiçoa-se a um verdadeiro Golpe de Estado uma medida tão truculenta levada a efeito por um governo que já não se sustenta na legitimidade. Já outro afirmou que a medida pode ser entendida como um ato de exceção, autoritário, proveniente de um governo afundado pelos recentes acontecimentos.
A militarização do governo faz lembrar a militarização do regime. Assim aconteceu em 1964 e ninguém mais aceita que a democracia seja novamente enclausurada depois de tanta luta para a sua retomada. O sangue de muitos teve de jorrar para que novamente o Brasil conseguisse alcançar seus tempos de liberdade, de democracia e de esperança. O Brasil não se afeiçoa mais a uma republiqueta de bananas nos moldes de algumas ainda existentes no continente latino-americano. A luta do povo para a redemocratização não pode agora ser ameaçada como escudo pelos malfeitos do governante.
E pensar que mesmo na dor chegaríamos ao futuro, eis que os retrocessos fecham as portas e janelas e nos deixam na escuridão do medo e do terror governamental. E o medo maior é que não restem mais flores no jardim das liberdades nem sorriso bom de qualquer esperança. Medo que não restem mais nem o verbo da contestação nem o grito contra o mal do mundo, que é todo e qualquer governante que tenta se impor e se manter pela força. Como dizia o poeta: Ninguém precisa de morte se o próprio governante é sua má sorte!


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Lá no meu sertão...


NASCER DO SOL EM POÇO REDONDO - O orvalho no capim é vestígio de uma madrugada chuvosa. (Por Danillo Rodriguez - Conheça Poço Redondo)




Luas (Poesia)


Luas


Uma lua lá em cima
outra no céu da boca
não sei qual lua anima
a minha noite tão pouca

quero a lua de lá
e quero a lua de cá
acima todo o brilhar
na lua da boca beijar

olho a lua de cima
quero a lua da boca
toda luz que me sublima
na noite que é tão pouca.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - as flores não gostam de tempos assim


*Rangel Alves da Costa


Não Temer, as flores não gostam de tempos assim. Não arrogante tirania, as flores não gostam de tempos assim. Não insustentável leveza do poder, as flores não gostam de tempos assim. Não democracia fragilizada, aviltada, ferida, as flores não gostam de tempos assim. E as flores não gostam de tempos assim por que relembram outros tempos que começaram assim. Num de tempo de janelas abertas, de manhãs sobre canteiros, de jardins com suas cores, mas que de repente as botinas dos generais esmagaram tudo. Quem não se recorda quando aqueles ditadores de 64 devastaram sonhos e esperanças, dizimaram vidas, trucidaram dignidades, mortificaram as esperanças? As flores temem os retrocessos, as ditaduras, as tiranias, as arrogâncias. As flores sabem o quanto dói não restar pétala sobre pétala, perfume sobre perfume. As flores não se reconhecem entre frangalhos, entre restos de liberdades, entre somente os espinhos. Que a vida não seja transformada em nome do poder pelo poder. De uma hora pra outra e o infiel jardineiro pode mandar que as Forças Armadas acabem com os jardins das liberdades e das esperanças. Por isso que as flores não gostam de tempos assim!


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quarta-feira, 24 de maio de 2017

PRAIA EM DIA DE CHUVA FORTE


*Rangel Alves da Costa


“Nas areias brancas o soluço das águas. Ou a dança e o respingo das águas. Sem pedras no cais a chorar, apenas as conchas se movem no fluxo e refluxo das ondas. Os corpos não estão deitados ao sol. Não há criança brincando de castelo de areia. Banhistas não se lançam afoitos além de onde é permitido. Apenas uma bruma que se perde ao longe. As águas descem sobra as águas. Chove na praia, chuva no mar, olhar que se molha perdido em pensamentos...”.
Assim alguém escreveu depois do encorajamento de ir até a praia em dia de chuva forte. Sua intenção não era encontrar pessoas deitadas ou caminhando pelas areias, pois sabia da solidão daquelas margens perante tanta chuva caindo. Seu intento foi exatamente presenciar os inusitados das águas da praia bebendo das águas da chuva, mas principalmente sentir aquele espelho tão anuviado pelo dia chuvoso e talvez não experimentar sofrimentos ante a beleza e a tristeza daquela paisagem.
Eu também gostaria muito de caminhar pelas areias da praia em dia de chuva. E ontem seria o dia mais que ideal a tal propósito. No meu pensamento, não há ocasião mais propícia para reflexões e meditações sobre a poesia das águas, a solidão da praia, o silêncio cortado apenas pelo barulho das ondas e da chuva caindo. Caminhar pela praia sem medo de molhar, sem medo da chuva, sem medo da solidão nem das ilusões que surgissem adiante das águas tantas.
Creio na infinita sensação de liberdade. Em qualquer situação, a queda do pingo d’água sobre outras águas já motiva sensações profundas, já desperta imagens mentais instigantes. E numa praia então, perante aquela vastidão tão diferente em dias de sol e tão silenciosa, solitária e triste em dias de chuva forte. Adiante do olhar sempre um retrato molhado, chuvisquento, brumoso, mas tão profundamente tentador que a pessoa imagina o que quiser enquanto caminha pela maciez encharcada.
Já há mais de cinco anos que não vou à principal praia de Aracaju: Atalaia. Mas nesta terça-feira, diante das chuvas fortes que desabaram sobre a cidade, inundando tudo, eis que me coloquei rente ao portão e, enquanto os pingos grossos caíam logo adiante, fiquei imaginando como estaria a Praia de Atalaia naquele momento. A tão bela praia e certamente tornada em deserto o dia inteiro.
A Praia de Atalaia é linda, exuberante, maravilhosa. Próxima ao centro da capital, todos os dias recebe muitos visitantes nas suas areias brancas, na sua orla convidativa e nos seus atrativos de canto a outro. Nos finais de semana então, fica totalmente tomada por banhistas e visitantes. Mas quando a chuva cai tão forte como nesta terça-feira? Indaguei e conclui que em dias assim, apenas de chuva e muita chuva, a praia passa a possuir a serventia do encantamento.
Encantamento pela magia transposta pelas paisagens molhadas, pelos pingos caindo sobre as águas, abrindo sulcos nas águas e se alastrando em mais águas. Um pingo e outro pingo, água sobre água, como se nada passasse de mesmice. Mas não. Não é apenas o pingo que desce e cai, que se mistura, mas a junção de fatores que a tudo transforma em encantamento: a chuva molhando a água, a chuva caindo sobre as águas, a chuva tornada em apenas água em meio a tanto água.
Certamente que as areias estavam somente das ondas, das conchas, da solidão. Aquelas vastidões bem diferentes dos dias comuns, ensolarados, calorentos. Olhando-se de cima dos calçadões e avistando somente os areais molhados, as ondas chegando e voltando, os pingos grossos caindo e se misturando às águas e os vultos distantes de barcos e outras embarcações. Momentos mágicos, poéticos, alegres e tristes ao mesmo tempo. E únicos. Hoje já foi ensolarado desde o amanhecer. A Praia de Atalaia já era outra. A poesia já havia ido embora.


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Lá no meu sertão...


Quem tiver um sertão e não quiser mais me dê. Quero trazer um também para a capital...




Música brega (Poesia)


Música brega


Apagou-se a luz do cabaré
fecharam a porta da ilusão
ela perdeu o trem e foi a pé
levando na bolsa o coração

mas nada de batom vermelho
nada de perfume e bijuteria
a manhã quebra o seu espelho
a tristeza cobre o véu da alegria

sem mais tempo pra viver
o seu dia é molhado em cobertor
esperando o luar aparecer
e fazer do corpo o prazer da dor.


Rangel Alves da Costa

Palavra Solta - fome


*Rangel Alves da Costa


A fome é humilde, pede qualquer coisa, aceita quase tudo. A fome é sem luxo ou riqueza, é serviçal e não rainha, é vassala e não burguesa. A fome é pedinte calma, submissa, apenas esperançosa. A fome verdadeira jamais é arrogante, exigente ou de esnobês. O prato da fome não é de cristal, não é de porcelana, não é de ouro nem reluzente à mesa. O prato da fome é qualquer prato, é qualquer mão, é qualquer cuia, é qualquer estanho, é qualquer coisa. A fome não sabe o que é menu, cardápio ou lista a escolher. A fome não é macarronada, a fome não é churrasco, não é strogonoff, não é fígado acebolado ou galinha caipira, não é bife requintado ou pernil assado. A fome é qualquer coisa, num prato de qualquer jeito, sem muito nem pouco, mas quase tudo que se oferece. A fome se alegra com o pão, com o arroz, o macarrão, com o pedaço de carne, com a bolacha e o bolachão. A fome se farta sem luxo, se assume tão humana que desconhece sobremesa ou gula de querer sempre mais. Mas somente a fome verdadeira, não aquela que pede por pedir e ainda exige quentinha ao invés de pão. E ainda assim há tanta fome sem prato, sem mesa, sem resto de qualquer coisa, sem um só grão de doação. Há uma fome que é tão fome que assim permanece em muitos, que assim esvazia em muitos, e a muitos mata sem qualquer grão, sem qualquer pão. E o que a vida tanto desejava era um prato de qualquer coisa. Ou um resto, ou um pedaço, ou um grão de qualquer coisa.


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terça-feira, 23 de maio de 2017

A DELAÇÃO PREMIADA DE ZEZINHO AROEIRA


*Rangel Alves da Costa


De repente Zezinho Aroeira caiu na boca do povo. A imprensa interiorana, aquela de boca em boca, na fofoca e no ouvi dizer, não comentava outra coisa: a prisão do homem. Envolvido em que? Numa tal de Operação Esperteza.
Tal operação, de nome bem sugestivo, fora deflagrada depois que começaram a espalhar notícias sobre venda batizada de cachaça, de balança viciada no peso, de venda de pirulito de mel sem ter mel algum e de venda de galinha de capoeira falsificada, dentre outras acusações.
E Zezinho Aroeira, que não passava de um pobre desempregado, com dificuldade até mesmo de comer alguma coisa durante o dia, foi surpreendido e preso enquanto batia à porta de um vizinho atrás de um pão dormido. Preso, algemado, encaminhado à delegacia.
Quando os autos foram enviados ao doutor juiz, este não teve dúvida que se tratava da maior ação criminosa do mundo. Quem já viu dizer vender galinha de granja como se fosse de capoeira? Misturar água na cachaça era o fim do mundo. Levado o caso ao doutor promotor, o homem ficou com tamanha cólera que enrubesceu de quase pegar fogo. Como a pessoa pode cobrar o preço de um quilo quando o peso não passa de 999 gramas? Um absurdo. E tome-lhe processo em cima do Aroeira.
Não tinha jeito. Ou Zezinho Aroeira delatava ou a culpa recairia toda nas suas costas. Honrado, não admitia ser acusado de tais práticas, ainda que lembrasse alguma coisa ou outra de algum erro cometido. Então foi forçado a fazer o que não sabia sequer o que era: delação. Tudo uma questão de demonstrar que a culpa não era só dele.
Ladeado por agentes, promotores e juízes, perante um gravador potente, um microfone, uma câmara filmadora, além de um digitador, então se pôs a falar. Antes da primeira palavra, então lhe veio um redemoinho. Num só instante e sua mente foi buscando o passado inteiro, contando acertos, somando erros, coisa de doer coração.
A pergunta já havia sido feita, bastando somente o Aroeira começar a falar, a esmiuçar aquela história toda, as acusações recaídas e o que de mais soubesse. Então soltou o verbo:
“Eu sabia que Jeromão Marchante roubava na balança. Todo mundo sabia disso. Cada quilo de carne não passava de novecentos gramas, e mal pesadas. Mas eu nunca mais tive dinheiro nem pra comprar um quilo e ser roubado no peso. Se cometi algum erro foi quando eu tinha dinheiro, comprar o quilo de carne, mesmo sabendo da safadeza daquela balança”.
“Sobre a cachaça batizada, do mesmo jeito todo mundo sabia que o vendeirim fazia assim. Mas sabe como é pinguço, né? O beberrão já chega no botequim doido pra tomar uma e não quer nem saber se a casca de pau é boa mesmo ou se a cachaça foi misturada com água. Só vai saber depois que o mocotó e a cara começam a inchar. Quando meu mocotó começou a ficar assim, então nunca mais botei os pés lá. E até hoje o safado do vendeirim faz assim. E ganha muito dinheiro com a esperteza. Só que já enterrou uns cinco”.
“Sobra a galinha de capoeira falsificada, tudo mundo sabe que quase todo mundo faz isso. A pessoa compra galinha de granja, bota no quintal e depois vende como se fosse galinha de capoeira. Mas tudo mentira. Agora não nego que já fiz isso também. Só deixei no dia que um comprador veio me reclamar que a carne estava branca e macia demais pra ser galinha de capoeira. E me ameaçou com uma faca peixeira. Corri três dias pensando que o cabra estava atrás de mim. Mas já faz muito tempo que não como nem uma asa de galinha de granja. Nunca tenho dinheiro nem pra comprar um caroço de milho, quanto mais uma galinha”.
“E sobre...”. Quando ia falar sobre as outras acusações, todos os juízes e promotores bateram à mesa esbravejando, raivosos, indignados. Aquilo era demais, foi o comentário geral. Mil anos de cadeia pra esse safado. Foi a sentença que começaram a dar ali mesmo. Acuado, o pobre do Zezinho Aroeira só teve cabeça pra perguntar: “E num disseram que se eu contasse tudo eu não ia ficar preso muito tempo?”.
“Mas você é pobre. Pobre e condenado. Condenado, condenado e condenado, com todos os rigores da lei”.


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