SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 9 de maio de 2017

APÓS A JANELA HAVIA UM JARDIM


*Rangel Alves da Costa


Os outonos chegam devastando tudo. Noutros idos, em tempos agora tão nostálgicos e melancólicos, logo após a janela e pelos arredores, havia um mundo de alegria e contentamento. Um jardim florido, canteiros verdejantes, pomares de doces sabores, pássaros e borboletas, pétalas viscosas, abelhas tecendo mel. Um banquinho de madeira debaixo de uma frondosa amendoeira onde pombos pousavam após ciscamentos atrás de grãos. Uma bela canção chegada na primeira cor da aurora. A mata despertando, as folhagens dançando ao sopro do vento, horizontes após montanhas e montanhas abrindo caminho aos trilhos do trem. E hoje, e hoje, o que resta desse ontem de maravilhosa feição? E você, triste e solitário homem, o que fazes aí rente a janela, sentado em cadeira de balanço, como se a vida se resumisse em melancólica e saudosamente avistar o lado de fora, principalmente onde havia um jardim? Sei muito bem que não há muita coisa a fazer entre estas paredes lanhadas de tempo e na eterna semiescuridão desde o amanhecer. Seria doloroso demais passar o dia inteiro mirando as paredes velhas e os seus retratos mais velhos ainda. Ali grande parte da geração familiar, avôs, avós, pai, mãe, irmãos, parentes. Os vidros amarelados e as molduras carcomidas de tempo dizem bem das distâncias, dos adeuses, das saudades. Não há mais flores para cuidar, não há mais flores para regar. No meio da mesa apenas um jarro antigo com flores de plástico, tristonhas, empoeiradas, já sem cores definidas. Também não se interessa mais em estar cutucando a estante atrás de livros para a leitura do dia. Muitos desses livros estão em desordem, espalhados por todo lugar, até pelos cantos da casa. Era ávido leitor, e de avidez imensa por Proust, Somerset Maugham, Pearl. S. Buck, Poe, Whitman, Florbela Espanca, Joyce, Voltaire, Shakespeare, mas também João do Rio, Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, dentre tantos outros. Um dia se deu de poeta e rabiscou mil versos. Os que não foram levados ao vento foram queimados pelo fogo dos anos. Dizia-se de poesia incompreendida, a não ser que o leitor se predispusesse a ter um punhal à mão. Poemas cheirando a limão, a rum envelhecido, a vinho de safra boa, a cachaça comum. Litros e mais litros ainda se acumulam pelo quintal. Mas já não bebe. Tentou certa feita beber um cálice de veneno, porém já perto do lábio resolveu desistir para continuar sofrendo. Assim, ele intimamente se confessou. Então continuou no seu mundo enlaçado de nada. Ou de tudo. Abdicando de andar pela cidade, de caminhar entre as pessoas e de fazer amizades, cuidou apenas de fechar a porta. O que quase nunca estava fechada era a janela. Era, pois, rente a esta janela que ele sentava para o balanço lento na cadeira e também lançar o olhar às paisagens lá fora, ao redor e mais adiante de onde antes havia um jardim. Tal jardim agora inexistente lhe atormenta dia e noite. Toda vez que senta ali, então aquele jardim da memória começa a renascer em cinzas, em gravetos, em pedras, em pétalas, em flores, em viços verdejantes. Avista tudo pelos olhos do passado. Avista o jardim, mesmo inexistente agora. Mas não dura muito e o embaçamento do olhar vai transformando tudo numa cortina idílica, fantasmagórica, entremeada de tempestades e vendavais. Passa o leiteiro, passa o enterro em triste acompanhamento, passa a lavadeira com cesto de pano na cabeça, passa a carruagem de fogo, passa a bruxa montada em vassoura, passa o séquito real. E também passa sua mãe, passa o seu pai, passa o seu avô. Certa feita, ao avistar passando um barco na areia, então correu e quis pular a janela gritando, gritando, gritando: também quero ir, também quero ir! E depois desaba em sono profundo. A noite cai, a escuridão se apossa de tudo. Nenhum candeeiro, nenhuma lamparina acesa, somente aquele vulto sentado perante a janela aberta. Lá fora, no meio do mundo, um céu estrelado, uma lua bonita, um frescor de brisa. Um leve perfume avança pela janela. Um gato mia no telhado. Alguém começa a bater à porta. Um toque mais outro, mais outro, cada vez mais forte. E ele desperta assustado para dizer: Já vou abrir mãe, já vou abrir a porta. Em seguida, depois de a porta aberta, ele começa a chorar. Sua mãe não chegou. Todo dia a mesma espera. Mas ela nunca vem.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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