SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 29 de setembro de 2019

DIÁRIO DE UM BAJULADOR



*Rangel Alves da Costa


Vou escrever com prudência, com o máximo de cautela, pois com esse povo é preciso muito cuidado. Mas que povo é esse que merece tanta atenção e vigilância? Logicamente aquele cujo diário, mais adiante transcrito, é tema destes rabiscos: o bajulador, aqueles mesmo tão conhecido puxa-saco, adulador, sabujo, baba-ovo, o mais rele dos serviçais. Muito cuidado porque tudo o que aqui estiver escrito, logo ele vai soprar no ouvido daquele que lhe sustenta com cusparada na cara. E para o seu máximo prazer.
O bajulador não é flor que se cheire, já dizia o jardineiro que perdeu o emprego por causa de um puxa-saco. Correu para dizer à esposa do prefeito que o cuidador de flores dizia ter a flor mais bela que o seu jardim. Não deu outra. No dia seguinte estava desempregado. Mas voltando ao cuidado, isso é verdade. Falar sobre bajulador corre-se até o risco de ele ir rastejando até o seu bajulado e segredar que o assunto destas linhas é falando mal dele. Triste ofício, o da bajulação.
Tal é o contentamento da bajulação que tudo faz sem pensar noutro proveito senão o de agradar o bajulado. Falar mal de um chefinho a um adulador é comprar briga feia. Uma das principais características do puxa-saquismo é esquecer-se de si mesmo para viver em função do outro. Na defesa, no ataque, na mentira, na falsidade, seja de que modo for, o que importa ao puxa-saco é revestir-se de um escudo para que nada atinja seu protegido. Nem que para tal exponha sua pouca vergonha, seu descaramento, sua desonra e seu mau-caratismo. O pior, contudo, é que o bajulador – tão cego que é no seu desavergonhado ofício, nunca se arrepende do que faz. E que fazer sempre mais, de modo a ser olhado pelo bajulado.
Mas um se arrependeu. Isso mesmo, e coisa dificílima de acontecer, mas um bajulador se arrependeu de tanto afagar e defender imprestáveis pela vida afora. Um dia, depois de tanto levar segredos e mentiras, de tanto ajeitar colarinhos e braguilhas, de tanto abrir portas e limpar sapatos com as mãos, de tanto arrastar cadeiras e colocar docinhos em bocas podres, resolveu abdicar de disso tudo. E fez mais, pois, num rompante jamais esperado num ser de tão desonrado percurso de vida, começou a escrever um diário narrando seu lixo existencial. Coisas assim:
“Somente hoje, depois de tanto me submeter aos poderosos, aos políticos e a todo aquele que estivesse acima de mim, é que passei a ter a amarga compreensão do que sejam termos como lambe-botas, subserviente, escova-botas, baba-ovo, cachorro de aluguel, leva-e-traz, gabador, sabujo, e tantos outros indignos de um ser humano que minimamente se respeita. Contudo, é a certeza de já ter sido qualificado como puxa-saco, que é a designação mais conhecida de todas, que ainda me deixa assim como um verme sendo pisado por solados imundos. Agora me sinto arrependido, mas no passado certamente até me glorificando por tão desprezíveis atitudes.
Lembro-me bem, comecei a bajular ainda meninote, enquanto brincava de bola na rua com outros meninos. Havia um filho de um rico que chutava a bola bem pra longe já sabendo que eu ia correndo buscar. Às vezes, chutava a bola no meu rosto só para me ver sorrindo de alegria e contentamento. Quando o pai desse menino chegava com seu carrão, então lá ia eu tirar minha camisa para afastar todo o pó que houvesse. Os outros meninos de minha idade começaram a me chamar de mariazinha, de adulador, mas eu nem sabia ainda o seu real significado.
Fui crescendo e não mudei. Não podia ver alguém importante, rico, todo bem vestido, que eu me aproximava para agradar. Dava os parabéns por nada, tecia elogios sem motivo algum, passava a mão pela roupa como se estivesse fazendo alguma limpeza. Mas foi numa campanha política que essa minha má atitude passou a tomar contornos de safadeza mesmo. Como se tratava de disputa, eu tudo fazia para ouvir e saber o que se passava do outro lado e em seguida correr para contar. Pensava que ele colocaria a mão no bolso para retribuir as informações, mas nada disso acontecer. O que eu ouvia eram promessas: Se eu ganhar não vou me esquecer de você!
O candidato ganhou, mas eu nunca fui lembrado. Então, raivoso, passei a ser puxa-saco da oposição. É triste dizer isso, mas estar lambendo botas de um num dia e no outro já estar ajeitando o colarinho de outro, não é fácil. Mas eu me submetia a isso como se fosse um destino meu: viver para bajular. Um dia, enfim, meu candidato foi eleito e me vi esfuziante. Pobre de mim! Não fui contratado, mas recebendo ‘por fora’ uma mixaria para o exercício do lastimoso ofício. Defendia o meu prefeito muito mais que meu pai e minha mãe. Quando ouvia alguém falando mal de sua administração, eu não só corria para dizer como rebatia na hora. Peguei brigas feias dizendo que nem gente ele era, mas um santificado.
Arrependi-me de tudo isso. Nunca ganhei nada com a bajulice, apenas inimizades. Um dia, já cansado de tudo, procurei saber se existia algum centro de Bajuladores Anônimos. Ora, eu tinha certeza que a adulação desmedida, compulsiva, era uma doença e que precisava ser tratada. Mas não encontrei. De vez em quando, é verdade, me dá uma vontade danada de ir novamente adular alguém. Mas tudo faço para evitar mais esse gole”.


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Lá no meu sertão...


Sou um rio...



Meu pássaro (Poesia)



Meu pássaro


Às vezes
o meu pássaro
não quer nem voar

a minha solidão
se fecha em gaiola
e sozinho quer ficar

lá fora o céu azul
e uma nuvem a chamar
e meu pássaro sem voar

sem ter um amor
um pássaro a soluçar
voo de passarinho é amar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - sou um rio



*Rangel Alves da Costa


SOU UM RIO - Sou um rio. E sou a passagem de suas águas. Sou o espelho e o leito. E sou o remanso sem pressa. Sou o volumo azulado. E sou o escondido sem cor. Sou a roupa sendo lavada nas margens. Sou a espuma que vai. Sou o canto das lavadeiras. E sou o silêncio que passa em barco e canoa. Sou a carranca e seu olhar de ferocidade. E sou o mistério e a lenda. Sou a criança ribeira e sou o viver ribeirinho. Sou o que era e o que já não é mais. Sou a profundeza e o raso. E sou a margem apenas molhada. Sou a lua sobre as águas e sou o sol sedento de azul. Sou a curva do rio, a esperançosa curva do rio. E sou o barco que nunca desponta ao longe. Sou a vela adormecida e a rede faminta de cardume. Sou o anzol enferrujado e a isca perdida no tempo. Sou o peixe que não existe mais. E sou o ser que ainda insiste ser...


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sábado, 28 de setembro de 2019

FERRO, FERRUGEM, VIDA...



*Rangel Alves da Costa


As lições estão por todo lugar. Nos mínimos detalhes das coisas, muitas vezes um livro aberto de sabedoria. Uma pedra lançada às águas pode provocar ondas, tsunamis, tragédias. O sopro das asas da borboleta pode provocar uma grande devastação. Um olhar, apenas um olhar, pode abrir uma terrível ferida. A palavra, esta então tem o poder da fúria de uma furação. E mais e mais.
As lições estão por todo lugar, mas ainda assim poucos querem avistar. Ora, basta saber que toda causa possui uma consequência, toda ação possui uma reação, nada acontece ao acaso. O Livro do Eclesiastes é bem claro quanto a isso. O que se tem hoje, amanhã já será de outra forma. Mas há gente, contudo, que insiste no erro de avistar tudo como o agora. A importância de tudo está somente no agora. E o amanhã? Será, por exemplo, que vai esperar o bem amanhã se faz o mal agora?
Não precisa ser sábio para entender o âmago das coisas, para compreender a realidade da vida, para encontrar a certeza naquilo que se tem como incompreensível. Basta querer, repita-se. O que falta, muitas vezes, é se espelhar no espelho na própria existência. Avistando o ontem, certamente compreenderá o hoje. Os erros do passado são meios mais que suficientes para que sejam reparados em ações futuras. Mas para muitos, para uma grande maioria, torna-se até difícil saber que a morte - ainda que destino certo - pode ser muito antecipado pela vida humana.
Há que mirar-se nos exemplos da vida, do mundo, da realidade. Uma janela aberta ensina, uma porta averta ensina, uma estrada é uma grande lição, um desatino na caminhada servirá como página jamais esquecida. Nada é eterno, nada terá sempre a força que mostra ter. Um dia, as aparências vão revelando as fragilidades. Assim acontece com a ferrugem e o ferro, ou o ferro e a ferrugem, que são o próprio homem na sua jornada de tudo e nada ser.
A pedra dura, inflexível e impenetrável, vai se tomando de musgos, vai sendo açoitada pelo tempo, vai, imperceptivelmente, sendo carcomida. O diamante, com sua solidez petrificada, ainda assim vai sendo alquebrado pela ação humana. E o que dizer do ferro, o tão conhecido metal que sempre aparenta força, durabilidade e resistência? O ferro e o ser humano vivem de aparências.
Este, o ser humano, sempre querendo se mostrar inflexível e inatacável, não suporta sequer o sopro do vento. A dureza humana é desfeita com simples ações. Quando sua máscara cai, tudo desmorona. Quando seu segredo é revelado, então todo o seu interior pode ser avistado. Quando desce do pedestal, então sente que tem de suportar os espinhos. Ainda assim muito ser humano se mostra com inexistente altivez.
Quanta ilusão em fingidas fortalezas que não suportam sequer um sopro de verdade. Os cemitérios, as sepulturas e as covas rasas, estão cheios de pedreiras humanas em pó transformadas. Fantasmas vagueiam achando que levam escudo e coroa. Apenas um nada sob a forma humana. Triste ouvir “Eu sou!”. És o que? Nada mais que uma ilusão. Bem assim aconteceu com o ferro. Imponente, inatacável, indestrutível, mas baixou a cabeça quando a maresia soprou.
Começou a sentir nas entranhas a fragilidade. Ainda assim se mostrou mais inflexível e mais arrogante. Então a ferrugem acariciou sua pele, dizendo: “Mostrarei o que és!”. E hoje do ferro nada mais resta. A ferrugem do tempo destruiu o ferro da vida.


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Lá no meu sertão...


Faça...



Janela fechada (Poesia)



Janela fechada


Passei
fechada a janela
mas deixei nela
uma flor bela

ali uma bela flor
onde estará minha flor
com sua face de seda
e seu lábio de pétala

retornei
a janela ainda fechada
nele deixei poesia declamada
de um coração assim ecoada.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – a girafa olhando pra baixo



*Rangel Alves da Costa


A girafa é animal muito alto. Pernas longas e pescoço no mesmo porte, já a cabeça parece pequena demais para o seu tamanho. Mas tudo na conformidade da natureza. Já imaginaram se a girafa tivesse a cabeça maior e olhos grandes? Lá do alto, toda imponente, e avistando com olhos grandes os insignificantes seres humanos abaixo, seria uma coisa terrível. Pois é, a girafa tão alta e outros seres tão baixos. O ser humano, por exemplo, é de tamanha baixeza que, muitas vezes nem vale a pena ser avistado. Seria muito triste à girafa que tudo pudesse avistar do ser humano, com sua mesquinhez, sua insensatez, sua insensibilidade. Por isso que ela, ao invés de perder tempo com a pequenez humana, simplesmente vaga lentamente em busca de frutos nas copas das árvores. E age muito bem ao fazer. Muito melhor que se preocupar com o homem, a não ser com sua arma e o seu traiçoeiro ataque. Disso a girafa jamais estará livre. Nem outros animais nem ninguém.


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sexta-feira, 27 de setembro de 2019

ESSE PALAVRÃO CHAMADO “PORNÔ”



*Rangel Alves da Costa


Que absurdo, diz o puritano. Que coisa desavergonhada, diz o conservador. Que coisa mais pecadora, diz a beata. Que coisa mais feia, diz a enrustida. Que coisa mais gostosa, diz qualquer um.
Realmente, falar em pornô espanta, assusta, avermelha, faz estremecer, torna o corpo em brasa. E logo chega um prazer: Deus me livre. Isso é coisa de rapariga e de homem safado. E mais safado ainda quem gosta de assistir.
Pornô. Um sexo qualquer ou um sexo diferente? Por que é geralmente visto como pecaminoso, escandaloso, impróprio, se tão normal nas intimidades humanas?
Pornô. Por que proibido para menores de dezoito anos se atualmente o sexo já aflora desavergonhadamente bem antes disso e que já não há inocência alguma depois dos quinze anos de idade?
Pornô. Em cada filme, em cada cena, um Kama Sutra de páginas abertas ou um manual libidinoso para pessoas reconhecerem suas próprias possibilidades sexuais? Ou apenas um livro já escrito na mente e somente visível através dos outros?
Pornô. Por que tanto mistério, tanta curiosidade, tanta proibição, se a grande maioria das pessoas se sente prazerosamente bem em assistir? Por que essa grande parte que assiduamente assiste é a mesma que sempre nega sua existência?
Pornô. Livros, revistas, filmes, tudo como um remédio de tarja preta, nunca acessível a todos. Livros com capas camufladas, revistas encobrindo cenas picantes, filmes com cartazes escondidos. Assim antigamente.
Pornô. Por que nomear revistas com temas sexuais ou cenas de sexo de revistas masculinas, femininas ou para púbicos exclusivos, segundo suas orientações sexuais? Por que proibir o que todo mundo lê, assiste, pratica?
Pornô. Não mais como antigamente, mas ainda existem cinemas dedicados exclusivamente a exibição de filmes pornográficos. Os cartazes já não escondem nada e nem as pessoas precisam entrar e sair como que camufladas dos cinemas.
Pornô. Ainda hoje, nos locais onde os cinemas exibem cartazes de filmes de sexo explícito, muitas pessoas se sentem verdadeiramente aviltadas com tamanha falta de vergonha, num verdadeiro atentado ao pudor. E até evitam passar pelas ruas dos cinemas.
Pornô. Os filmes pornográficos ou de sexo explícito continuam sendo, em muitos casos, verdadeiros fetiches para muitos. Não raro que prefiram assistir cenas de sexo a praticar o próprio sexo. Seus prazeres somente afloram com as cenas pornográficas.
Pornô. O termo pornô é tão apelativo que mesmo o que não é pornográfico assim se intitula para atrair pessoas. Exemplo disso são as pornochanchadas ou filmes eróticos. Na pornochanchada apenas insinuações, enquanto no erotismo apenas a conotação sexual.
Pornô. Há de se indagar qual o sentido sexual dos atores de sexo explícito. Enquanto personagens, apenas atuando para dar verossimilhança às cenas. Mas o sexo praticado pode ser sempre fingido ou os prazeres da carne também afloram entre uma cena e outra?
Pornô. Ora, nada do que é mostrado em filmes de sexo explícito diferencia-se da realidade entre casais. Muitos destes até se orientam pelas cenas nas suas relações amorosas. Então, por que se distinguirem duas realidades diferentes no mesmo sexo?
Pornô. Comumente se diz que ator e atriz pornô não sente prazer, apenas finge aquela emanação sexual toda. Também comumente se diz que até o mais breve gemido é ensaiado para que assim aconteça. Mas que máquinas de mero fingimento são tais personagens?
Pornô. Necessário observar que atores e atrizes de filmes pornográficos não deixam de serem homens e mulheres quando contracenam. Como um ator, por exemplo, se mantém em estado de ereção se apenas finge o sexo? Como uma atriz se entrega de tal forma sendo apenas máquina?
Pornô. Necessário ainda observar outro fator. A pornografia geralmente vem da prostituição. Esta geralmente vem da oferta de prazer em troca de dinheiro. Mas por que a prostituta pode aflorar seu desejo sexual e a atriz pornô não, como se aquela se transformasse em outra através de filme?
Pornô. Por que o denominado pornô de arte não é o mesmo pornô explícito? Quem assistiu O Império dos Sentidos conhece essa dimensão. Muitas vezes, a insinuação é mais apelativa que a mera demonstração carnal. Assim também com A Dama do Lotação e tantos outros filmes.
Pornô. Não se pode negar que muitos desejam fazer de cada relação sexual um filme pornô. Mas o que impede? O moralismo, o conservadorismo, o outro? Mas tudo é sexo. E só é explícito quando feito para os outros e não para dois.
Agora mesmo, nesse exato instante, o pornô acontece. Na tela, na cama, no pensamento. Neste caso, o pecado não mora ao lado, mas dentro de cada um.


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Lá no meu sertão...


No Poço de Cima, em Poço Redondo...


A vida (Poesia)



A vida


A vida
mesmo a da dor
do sofrimento
da angústia
e melancolia
é sempre bela
é linda
e única
e tudo

a vida
mesmo assim
cheia de tropeços
é porta e janela
é estrada e caminho
é possibilidade
de todo refazer
e todo viver
com amor
e paz.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – no escondido



*Rangel Alves da Costa


No escondido, longe de todos, afastado dos olhares, sem vigílias e censuras, o ser se completa em si mesmo. No demais, apenas um ser falso consigo mesmo. Perante todos, procura ser bonzinho para agradar, tem que sorrir para não ser desagradável, finge ser o que realmente não é, ao menos naquele momento. Mas no escondido não. Oculto, escudando em si mesmo, pode chorar, pode falar sozinho, pode fazer careta em frente ao espelho, pode ficar nu no quarto, pode dançar uma valsa vienense, pode simplesmente fazer o que jamais faria perante outra pessoa. É no escondido do quarto que a  saudade aflora e o amor é revelado em máxima dimensão. Chora, chora e chora. Faria isso na sala da casa? Lógico que não. Deita na cama e pergunta pelo nome, deseja uma presença, bate na parede, chuta o travesseiro, arremessa o jarro ao chão. Noutro lugar, com a presença de gente, certamente que se sentiria intimidada. Limpa os dentes com o dedo e toca no seu sexo. Abre a janela e avista o mundo. Ninguém sabe que nua está na parte de baixo.


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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

O TEMPO E O VENTO (E O DESCASO COM A HISTÓRIA)



*Rangel Alves da Costa


Atualmente, próximo à sede municipal de Poço Redondo, esta casa repousa sobre os escombros de sua história e de sua memória. Um retrato do que ainda resta do Poço de Cima, raiz primeira do atual Poço Redondo.
Tudo nasceu aí, na parte mais alta daquele desconhecido sertão, próximo às águas do riachinho e permitindo uma visão de tudo o que acontecia ao redor.
Foi também aí que se assentaram as primeiras famílias: Os Sousa, os Lucas, os Cardoso, os Feitosa, que desencavando nas entranhas permite avistar quase uma única família: a grande família do Poço de Cima.
Uma das casas que continua em pé, ainda que ninguém nela resida mais, pertencente originariamente aos Sousa, foi uma das mais imponentes da antiga povoação.
Muitas outras ficavam nas vizinhanças, algumas com melhor estrutura e até com escravos ao bel-prazer daqueles senhores de então. De profunda religiosidade, o catolicismo logo ganhou altar numa igrejinha ao lado: a Capela de Santo Antônio do Poço de Cima.
Erguida para os ofícios da fé, também servia como lugar sagrado para os sepultamentos dos membros daquelas famílias. Somente aqueles dos Sousa, Lucas, Cardoso e Feitosa, podiam ser enterrados por lá.
Com efeito, muitas sepulturas foram surgindo ao lado da capela e, no seu interior, os jazigos de alguns importantes personagens daquela saga. Ainda hoje é possível avistar as datas sobre as sepulturas.
A Capela de Santo Antônio, bem como umas quatro moradias do passado (algumas já em escombros, com o barro deitando ao chão), ainda testemunham aqueles idos do Poço de Cima.
Contudo – e infelizmente -, de memória e história que vão amarelar e sumir como um velho retrato desgastado nas paredes do tempo. Com o sol e a chuva, com o calendário do tempo, certamente que o desgaste vai colocando fim a tudo existente.
Sem qualquer tipo de preservação, sem que se jogue ao menos uma mão de barro sobre o que vai caindo, o que se terá será apenas a dor do vazio e de uma tão bela saga levada no vento.
O costume do abandono, ou de tudo abandonar pelo descaso, ainda custará muito caro à história de Poço Redondo. Chegará um dia – ainda que o Poço de Cima fique quase ao lado da cidade – que poucos saberão dizer onde tudo começou.
E nem retrato restará, vez que os jovens não querem ter o trabalho de caminhar um quilômetro e registrar ou conhecer sua própria história. Uma vez ou outra, para efeito de trabalho escolar, algum aluno é forçado a caminhar por aqueles caminhos e fazer algumas anotações.
Mas logo o esquecimento, vez que não se cultiva o interesse pela preservação. Pior ainda faz o poder público municipal, que nada, absolutamente nada, faz.  Então, que tudo fique à mercê do tempo e à força do vento!


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Lá no meu sertão...


"Sim"



Minha flor (Poesia)



Minha flor


Eis que me pergunto
qual a cor da mais bela flor
qual o aroma da mais bela flor
qual o viço da pétala da mais bela flor
qual o nome desta tão bela flor
em qual jardim está a mais bela flor

e de repente entre beijos e abraços
entre carinhos a afagos de amor
eis que chamo meu amor de minha flor
a mais linda e bela e perfumada flor!

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta – tapa na cara



*Rangel Alves da Costa


Poço Redondo é um dos municípios mais pobres do sertão sergipano. Baixíssimo índice de desenvolvimento humano, saúde sucateada, hospital local atuando com extrema precariedade, baixa qualificação educacional, falta de merenda na rede municipal de ensino, desemprego em situação alarmante, pobreza absoluta por todo lugar. Ademais, o município vive em constante em estado de emergência. Mas mesmo ante uma situação assim, eis que o prefeito municipal resolveu comemorar seu aniversário com suntuosidade. Utilizando equipamentos públicos e pessoal da administração na organização, a festa será promovida na praça de Eventos e com nada menos que oito atrações musicais, incluindo o festejado cantor Flávio Leandro. Certamente não será bem uma festa, mas uma verdadeira louvação ao prefeito, vez que o mesmo busca a reeleição. Vendo bem as faces deste absurdo, onde a Justiça não agre prontamente para dar um basta, outra coisa não há que se imaginar: o prefeito está zombando, achincalhando, dando um tapa na cara do povo. E certamente muitos apanham – tomados pelo puxa-saquismo e a bajulação – e ficam pedindo mais.


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quarta-feira, 25 de setembro de 2019

HOJE NÃO VOU ESCREVER



*Rangel Alves da Costa


Resolvi, decidi, já bati o martelo: hoje não vou escrever. Estou sem assunto, sem encorajamento, sem letra que me chegue com prazer e alegria. Então, em instantes assim, melhor nada escrever.
Alguém me dizia que é melhor o silêncio do que o grito na escrita. Mas nem gritar eu poderia. Os motivos são muitos, mas relacionados a fatos que mais espantam que encorajem à escrita.
Eu gostaria muito de escrever sobre uma revoada ao entardecer, sobre um por de sol entre as serras, sobre um vaga-lume querendo ser o rei da noite e do mundo. E só por que vagueia com o seu pequeno lume.
Seria muito poético para o momento. E não sou poeta. Até hoje eu não entendo como Clarice Lispector conseguiu transformar sua voz interior, tão cheia de dolorosas verdades, em escritos tidos como romanceados.
Na verdade, eu gostaria mesmo de agora estar deitado em cima de uma pedra grande, de rosto virado pra cima e com o olhar tomado pela luz do luar. E mais que isso: contando estrela por estrela, imaginando tudo aquilo lá em cima como um lugar bom pra viver.
Não é fácil a busca da aproximação da pessoa consigo mesma, quando tudo parece distante. É como se a pessoa saísse de si mesma e começasse a vagar por aí. Daí a falta de vontade de estar presente no lugar que não saiu.
Talvez a chuva me fizesse bem nesse momento. Sempre gosto quando a noite está molhada, chuviscando, com água escorrendo pelos canteiros. Uma sensação nostálgica e até poética, de sentimentalismo e forçado reencontro, mas um jeito bom de não ir muito distante de onde estou.
Não ouço grilos nem miados de gatos. Ainda bem. Apenas o silêncio em silêncio. Uma valsa vienense me faria bem, mas estou indisposto até para ligar a vitrola. Os personagens nos livros da estante chamam meu nome. Mas hoje não conversarei com nenhum.
Minha intenção era nesta noite caminhar um pouco mais pelo mundo de Jorge Amado. Gosto daquele mundo do cacau, dos coronéis, de baianas com seus tabuleiros, de mocinhas sonhadoras e prostitutas de beira de cais. Tocaias, emboscadas, coronéis tecendo a vida com seus ternos de linho branco, um mundo que gosto de acompanhar.
Deixo para outro dia os coronéis amadianos. Nada parece me despertar no momento. Penso em minha rede que já armada e no meu cansaço adormecido na solidão. Deito sozinho no exercício de uma filosofia existencial: a rede não nega a solidão. A pessoa vira de canto a outro e não encontra ninguém.
Minha memória sequer deseja buscar uma saudade. Mas também não é bom recordar um bem querer tão distante. Minha amada longe está, e dela tão longe estou. Sinto falta de seu abraço, de sua presença, mas a tudo suportando com a certeza de um breve reencontro.
Mas tenho que colocar água no fogo para um cafezinho. Deu vontade e não posso fugir desse ritual amigueiro. O café quentinho é meu amigo, sorvido aos poucos, como se estivesse adiante de um velho pilão espalhando seus grãos morenos.
Sei que minha noite se vai assim. Num ir, quase não ir. E indo porque tem de ir, mas seguindo pelos seus próprios passos, já que eu continuo aqui com pouca vontade de tudo, de escrever e até de me levantar de onde estou.
Dias que são assim, noites que insistem em nos prostrar como num exílio forçado. E nos silenciar como se até a voz interior também estivesse em mudez.


Escritor
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Lá no meu sertão...


De braços abertos...


Tanta coisa do sertão (Poesia)



Tanta coisa do sertão


Tanta coisa do sertão
doce e pamonha de feira
forró pé-de-serra e baião
tem inhame e macaxeira
cantoria e pinga com limão

um cheiro danado de bom
no arroz-doce e no mungunzá
na morena faceira o batom
o ceguinho a pedir e a cantar
na fole o trinado de acordeon
e na feira o sertanejo a dançar

tanta coisa no meio do sertão
o vaqueiro com seu terno de couro
o boi correndo do cavalo alazão
uma lua e um sol e um tesouro
o cirandeiro segurando uma mão
no sertão um relicário de ouro.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - casa de taipa



*Rangel Alves da Costa


Uma poesia de barro, ou o barro moldurando a humildade, a pobreza, simplicidade do viver. As casas de taipa ainda são avistadas por todo lugar, principalmente nas regiões mais remotas e empobrecidas. Pensar em casa de taipa é avistar uma casinhola levantada no barro amarrado em cipó. Estende-se ripa, amarra-se cipó, e o barro vai sendo colocado entre os entrelaçados. Barro molhado, visguento, tanto se prende na mão como entre as sustentações. Depois de seca, a argila firma-se até que o menino comece a escavacar pelas beiradas. No barro novo, cheio de sustentação, é até bonito, parecendo aconchegante. Mas sem cimento, pedra, viga de ferro, areia e brita, não tem força suficiente para suportar as chuvaradas, o sol e a ventania. E por isso mesmo envelhece e se fragiliza já com pouco tempo de habitação, ainda que algumas se mantenham ilusoriamente imponentes. Nas distâncias nordestinas, em áreas sertanejas desvalidas de tudo, as casas de taipa são encontradas de passo a passo. Algumas muito antigas, parecendo feitas de barro cimentado, mas nada que suporte uma aproximação para se constatar a deterioração por todo lugar. Raramente vai além de ser apenas uma velha casinhola caindo aos pedaços. A casa de taipa é o mesmo casebre, a mesma tapera. Tudo a mesma coisa. Ou o mesmo nada. Pequena e rústica casa, pobre e tosca, sem conforto ou acomodações dignas para os próprios habitantes. Tantas são avistadas em escombros e com viventes entre os seus restos. Pois lá nas distâncias do mundo há um povo vivendo assim, na desvalia.


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terça-feira, 24 de setembro de 2019

RAÍ E AS BELEZAS DE SEU CURRALINHO



*Rangel Alves da Costa


Raí de Telma, Raí de Curralinho, ou o Rei Raí do Velho Chico, seja qual for a forma para identificar esse abnegado moço de aguçado senso de preservação histórica e cultural, e que desenvolve um trabalho que precisa ser melhor conhecido e valorizado.
Ora, não é todo dia que encontramos um filho da terra ribeirinha, gestado nas beiradas do São Francisco, que retribui ao seu berço familiar com a luta pela preservação de sua história, da sociedade de antigamente, da fé enraizada e cultuada desde os tempos mais antigos, de seus aspectos culturais e geográficos e, principalmente, de suas belezas naturais.
Raí faz tudo isso com maestria e precisão. Tecendo como uma arqueologia de seu Curralinho, ele vai buscando, escavando, catando pedaços do glorioso passado daquela ribeira de águas passantes. E também registrando pelas lentes tudo aquele remansoso modo de vida, o leito e as curvas do rio, os barcos adormecidos nos beirais molhados, os casarios de tantos fatos e histórias, as montanhas ao redor, o que resta da grandiosa arquitetura local.
Raí não se cansa de ir atrás de antigos retratos e depois repassá-los ao conhecimento de todos pelas redes sociais. E ele tem uma página exclusiva: “Belezas de Curralinho”. Aquelas feições antigas, aqueles rostos esbranquiçados ou amarelados da fotografia, tudo simbolizando a grandeza de outrora daquela bela ribeira. Um Curralinho de calçadas altas e olhos brilhosos e maravilhados pela chegada das grandes embarcações. Um Curralinho de por de sol sem igual entre os montes e da poesia e dos cantos das lavadeiras. Aquele Curralinho de Seu Neguinho, de Chico Bilato, de Dona Perpétua, e de tantos outros de vivências anteriores. Curralinho de Valter, de Ciano, de Seu Aloísio, de João de Virgílio, de Otaviano...
Tudo isso faz parte do resgate de Raí. E Raí faz bem em fazer assim. Motivos há muitos para que guarde em páginas vivas toda a grandeza de seu lugar. Curralinho precisa ser mais conhecido, mais admirado, mais reconhecido na sua importância não só no surgimento do atual município de Poço Redondo como no desbravamento dos sertões sergipanos. Mesmo que hoje esteja apenas como uma página amarelada num álbum da história, Curralinho já esteve assentado em letras douradas, em escritos que diziam de sua riqueza e essencialidade.
Para uma ideia de sua importância - e, como tal, deve ser reconhecido, preservado e valorizado -, Curralinho foi a porta de entrada para todo o Poço Redondo. Num tempo aonde a única forma de se chegar aos hostis sertões era através das águas do Velho Chico, foi em Curralinho que um dia aportou a primeira leva de desbravadores que deram início à povoação. Enquanto porto de chegada e partida de embarcações, as margens curralienses eram responsáveis por todo o abastecimento da região. O açúcar, a farinha, o café, a carne salgada, o tecido, tudo era desembarcado ali. E dali também partindo o carvão, o algodão, a madeira, o couro, o feijão e o milho.
Depois de atravessar o rio, em 1874 o beato e missionário Antônio Conselheiro, acompanhado de mais de uma dezena de fiéis seguidores, deu forma e vida à igrejinha de Nossa Senhora da Conceição, ainda bela e imponente no alto do monte curraliense. Em seguida, transformou em estrada uma vereda fechada em direção aos sertões baianos, desde a beira do rio até a divisa. A atual Estrada Histórica Antônio Curralinho, num percurso de 14 km entre a sede municipal e a beira do rio, e por muito tempo conhecida apenas como Estrada de Curralinho, nasceu daquela saga do beato Conselheiro.
Curralinho nascido de um, dois, três currais, na beira do rio. Os desbravadores chegavam do litoral e outras regiões, trazendo levas de animais na bagagem. Para que não se perdessem sertões adentro, então pequenos currais iam sendo levantados na beira do rio. Daí o nome “curralinho”, ou curralzinho, ou ainda pequeno curral. Quando os animais foram levados para outras localidades, aquelas beiradas de rio ficaram apenas para as embarcações e o seus habitantes. Um povo que ribeirinho que bastava lançar a rede para chegar peixe muito: tubarana, surubim, uma riqueza. Mas que hoje, ante a magreza do rio, apenas lança o olhar de saudade.
Parabéns, Raí. Curralinho, Poço Redondo e os sertões, precisam que o seu trabalho de coleta e preservação frutifique cada vez mais. Que seja como as águas de seu rio: sempre passam, mas sempre chegam, e sem jamais perder a poesia do encantamento.


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Lá no meu sertão...



Calango em riba de pedra ou sertanejo debaixo do sol? Não sei se calango ou gente, mas sei que é bom demais sentir o sertão na pele e no coração! Saudade do Assentamento Madre Teresa de Calcutá, saudade da linda paisagem e do povo de lá.




Com afeto (Poesia)



Com afeto


Por amor
a lua bela
eu coloquei
na sua janela

a luz da estrela
e seu cintilar
eu fiz brilhar
no seu olhar

e a poesia
do anoitecer
eu fiz um buquê
só para você

e por fim
o mais difícil
de encontrar
o amor para te dar.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - o olho cego de Lampião (ou fazia de conta que nada via)



*Rangel Alves da Costa


Lampião era cego de um olho, mas a cegueira aqui tratada é outra. É a cegueira de não querer avistar mesmo. É o ofuscamento de não querer se dar conta do que está ocorrendo. Ora, todo mundo sabe se o cangaço agia segundo normas, possuindo até código de conduta. Por exemplo, uma vez entrado no cangaço só poderia sair por motivo de extrema necessidade, por motivo tão superior que nem o próprio Lampião podia dizer que não. A cangaceira Rosinha foi morta pelos próprios cangaceiros porque contrariou uma ordem do líder. Deixou-a visitar a família, mas com tempo certo de retornar. Não obedeceu, acabou pagando com a própria vida, ainda que tivesse retornado depois. Tal seriedade do Capitão parecia refrear em outras situações. Indaga-se: por que permitia tanta violência praticada pelos seus comandados? Lampião estava sob o comando quando ocorreu o episódio da ferrada das mulheres, quando Zé Baiano colocou ferro de ferrar gado no fogo e depois aplicou o ferro em brasa no rosto de três inocentes. E casos e mais casos tanto conta de humildes sertanejos sendo violentados, feridos, mortos pela cangaceirama. Se Lampião era tão exigente em outras situações, por que de vez em quando cegava perante os absurdos e a desmedida violência?


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domingo, 22 de setembro de 2019

HISTÓRIAS DO MEU LUGAR



*Rangel Alves da Costa


Poço Redondo, meu sertão querido, o seu álbum e suas molduras ainda vivem em mim como imagens eternizadas no coração. Por isso tanto me lembro, tanto recordo, tanto busco nas nostalgias suas feições mais singelas.
Ainda me lembro da tábua de pirulitos de mel de Dona Luisinha, do arroz-doce de Baíta ao entardecer, de Maria do Piau aparecendo na esquina com sua piaba salgada em cesto na cabeça. Mãeta em sua calçada dando a benção a quem passasse e pedisse a proteção. Seu João Retratista chegando de Pão de Açúcar e armando seu tripé perante aquele que desejasse uma fotografia como recordação. 
Nas proximidades da Festa de Agosto, Manezinho Tem-tem, famoso engraxate daqueles idos, atravessava o rio para fazer verdadeiros milagres em sapatos tortos, tronchos, de muito caminho andado. Delino vendendo banana, Delino com o seu bar, e das três portas adentro o forró comendo no centro.
Certa feita, num dia de forró de Festa de Agosto, Heraldo Carvalho da Serra Negra entrou pelas portas do bar com cavalo e tudo. Quem reclamava? Quantos sanfoneiros bons já animaram aquele passado poço-redondense: Zé Aleixo, Zé Goití, Dudu, Agenor da Barra, Dida e tantos outros. Zelito era a voz do forró de Zé Aleixo. Miltinho abria as portas de seu bar para resgatar aquele forró pé-de-serra que já descambava para o esquecimento.
Camisa chique de volta-ao-mundo, calça boca-de-sino, brilhantina no cabelo e nos bolsos um pente e um espelhinho ovalado. Ali na Praça da Matriz, bem defronte à casa de Tia Cordélia, a marinete de Seu Vavá parando depois de mais de cinco horas de viagem por estrada de chão, e todo o sacrifício para chegar ao sertão. E, tantas vezes, para fazer retornar sertanejos depois de uma estadia no sul.
Gente passando menos de ano pelo Rio de Janeiro e São Paulo e logo chegando com falar diferente, num carioquês ou paulistês desavergonhado que só. Trazia sempre uma radiola e discos de Maurício Reis, Odair José e Fernando Mendes. Depois era uma farra, mas só até o dinheiro ir minguando e o sertanejo se virar como podia para se manter. Tudo isso ainda possui presença forte na minha memória.
As calçadas do entardecer tomadas pelas senhoras e suas almofadas de renda de bilros. Araci, Maria de Iaiá, Dom, Clotilde, uma irmandade que era só maestria no tracejar dos bilros fazendo encantamentos sobre as marcações das almofadas. No barraco de Zé de Lola a pinga boa. Não havia quem não se encantasse com o doce de leite de bolas do Bar de Noélia. Também local onde a vaqueirama se juntava para a farra e o aboio.
Quando Zé Ferreira, Ademor e tantos outros chegavam por ali, então tudo parecia cheirando a terra e a gado, mas principalmente a aboio e toada, e tudo em meio a uma cervejada sem fim. Pelas ruas, o que sempre há em toda cidade interiorana: os doidos, desajuizados, ou aluados, como melhor se dizia. Zé Gabão, Expedito e até Tonho Bioto, quando a lua desandava o seu juízo. Tonho Doido e Nalvinha viviam na paz de seus poucos juízos, sendo amigos de todo mundo.
Pano de roupa de festa, florido, bonito, tudo era encontrado com a irmandade Izabel Marques, Mãezinha e Conceição. Uma vez por ano, eis que a cidade parecia ser outra. Além da roupa nova para a Festa de Agosto, também as fachadas das casas recebiam pintura nova. Nas calçadas, por riba de cadeiras, colchas e panos rendados ao sol. Também uma forma de mostrar as posses daquela família.
Um dia inesquecível foi a chegada da televisão na cidade. O colorido era apenas numa tela de plástico de diversas cores colocada sobre o chuvisquento preto e branco. Parecia coisa do outro mundo! Mas nada igual ao Cassimicoco de Julinho e as serenatas ao som da sanfona de Zé Goiti pelas noites enluaradas da cidade. Já perto da meia-noite a Praça do Cruzeiro parecia só de Alcino. Chegava com sua radiola e discos sertanejos e então deixava se embriagar pela lua e as estrelas de seu sertão.
Poço Redondo era um mundo assim, de viver singelo e pacato, mas de uma grandiosidade sem fim. Aquela Rua dos Vaqueiros e suas porteiras agora saudosas dos grandes homens: Abdias, Tião de Sinhá, Mané Cante, Bastião Joaquim e tantos outros. Chico de Celina ora passava esquipando em cavalo bom ora passava tangendo um carro-de-bois. Mariá juntava uma trouxa grande e seguia com as muitas roupas em direção às pedras do riachinho.
Maninho chegava junto pé do balcão e pedia uma relepada boa, não demorava muito e já estava esfuziante: “Ora, pois, pois...”. Dizia sem nada reclamar da vida. Nos anos 70, a inauguração da energia elétrica fez a noite virar dia. Galinhas, pintos e galos, confundidos com o clarão, desceram de seus poleiros e tomaram a cidade inteira, dividindo as ruas com as pessoas maravilhadas.
E eu aqui apenas com muita saudade, tendo que me contentar em abrir aqueles velhos baús para reencontrar o doce e nostálgico passado de Poço Redondo.


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Lá no meu sertão...


Memorial Alcino Alves Costa, Poço Redondo, sertão sergipano





Um cantinho pra nós dois (Poesia)



Um cantinho pra nós dois


Assim como um pequeno ninho
coisa pouca ou até um pedacinho
quarto miúdo ou mesmo apertadinho
eu quero pra nós dois um cantinho

um cantinho pra nós dois
que tenha feijão com arroz
ou mistura em baião-de-dois
café batido em pilão
fervido em fogo de chão
açucarado pelo mel do coração

que seja apenas um quartinho
mas que seja nosso cantinho
que caiba nossa grandeza de amor
e um jarro antigo com bela flor.

Rangel Alves da Costa


Palavra Solta - Lampião ainda não morreu



*Rangel Alves da Costa


LAMPIÃO AINDA NÃO MORREU. Isso é fato. Prometem matá-lo de vez no próximo ano, em pleno Seminário (evento que será realizado em Piranhas, nas Alagoas), em meio aos estudiosos, pesquisadores e fanáticos, como no Senado Romano: “Até tu, Brutus!”. Até agora está comprovado que o Rei do Cangaço não morreu. Estou esperando apenas que saia do ventre da mãe, vez que também ainda não nasceu. A verdade é que como andam as coisas, com todo dia surgindo um novo absurdo, Virgulino Ferreira ainda será dado à luz. E daí por diante podem matá-lo todo dia, como, aliás, vêm fazendo todo dia. Isso mesmo, todo santo dia inventam um fato novo sobre o cangaço, uma aberração, uma fantasia sem pé nem cabeça. Lampião morreu, não morreu. Morreu com um tiro, com três, com mil. Morreu envenenado, morreu baleado, nem morreu. Acreditar mais em que, em quem? Noventa por cento de mentiras, oito por cento de quase verdade, dois por cento de verdade que ninguém quer acreditar. Durma com um fantasma desses!


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sábado, 21 de setembro de 2019

O CAÇADOR



*Rangel Alves da Costa


Não é todo mundo que acredita em história de pescador ou de caçador. Dizem que é lorota boa ou simplesmente história pra boi dormir. Mas eu acredito, principalmente se o causo envolver aventuras de caçador. E quanto mais arrepiantes melhor.
Eu conheço um caçador que me conta cada uma de não acreditar ou de deixar o cabelo em pé. E assim por que suas caçadas sempre ocorrem no meio da noite e pelos caminhos sempre perigosos e medonhos da escuridão.
Mas Bastião é homem sério. Assim, prefiro acreditar a negar os relatos de suas aventuras no meio do mato, perante as tocas de pedras e tufos nos escondidos. Mas mesmo acreditando, difícil não ficar com alguma dúvida se a história contada aconteceu daquele jeito mesmo.
Segundo Bastião, caçar pelo dia, ainda que aconteçam mais coisas mirabolantes e misteriosas do que se imagina existir, não chega nem aos pés do que acontece depois da boca da noite. O caçador que entra no mato no meio da escuridão pode saber que vai encontrar de tudo, desse e doutro mundo.
Certa feita – nas palavras de Bastião -, caminhava por uma vereda em noite de breu, quando de repente tudo clareou como se fosse dia. Intrigado, já com cabelo arrepiado, olhou adiante e viu como se fosse um cemitério. Só podia ser cemitério, pois um lugar cheio de cruzes fincadas por riba de pequenos montes de terra.
Não pode ser, pensou Bastião. Aqui não há cemitério algum, disse a si mesmo. Encontrou alguma força nas pernas e deu mais alguns passos adiante. E foi quando conseguiu ler na madeira nas cruzes: O tatu que você matou, o peba que você matou, a cotia que você matou, o veado que você matou, a nambu que você matou, a onça que você matou...
E assim por diante. Acima de cada cova a cruz, o nome do bicho e a seguir “que você matou”. O que seria aquilo, pelo amor de Deus? Por que isso? Começou a se perguntar. O problema é que sabia que já tinha matado todo tipo de bicho mesmo. Mas o mais agonizante veio com o que avistou em seguida.
Lá no canto do tal cemitério de bichos, numa cova parecendo maior e com mais quantidade de terra por riba, avistou, conseguiu ler e quase desmaia. Lá estava escrito na cruz: “Aqui é pra você”. Passou a mão pelos olhos, leu novamente e não teve dúvidas do que estava escrito: “Aqui é pra você”.
Tremendo igual vara verde, já sem se encontrar em si mesmo, só lembra que se preparou para fugir dali em correria. Já aprumando o passo na maior velocidade que conseguiu encontrar, foi quando ouviu um barulho e viu quando os bichos começavam a sair de suas covas.
“Ai minha Nossa Senhora do Caçador. Ai minha Nossa Senhora da Cotia e do Guaxinim. Ai minha Nossa Senhora da Onça Pintada. Ai minha Nossa Senhora do Mato, me salve minha Nossa Senhora!...”. Ia gritando enquanto corria desembestado, na certeza maior do mundo de estar sendo seguido pelos bichos mortos.
Não lembra como, só sabe que caiu e ficou desacordado. Acordou já com o dia clareando e com uma caipora bem parada em sua frente. Abriu mais os olhos e viu que o ser encantado das matas e fumador sem igual, estava com feixe de cipós na mão, e em posição ameaçadora. E a ameaça ganhou vida quando ouviu da caipora: “Ei, seu safado, trouxe meu rolo de fumo?”.
Não havia levado. Havia esquecido o fumo daquela vez. Então já sabia o que iria lhe acontecer em seguida. Tomou uma surra tão grande da caipora que chegou em casa mais parecendo um molambo cheio de lanho e dor. Passou uma semana sem poder levantar da cama. E sonhando com aquela cruz: “Aqui é pra você”.


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