*Rangel Alves da Costa
Esse pedaço de história já foi contado,
debulhado, peneirado e novamente contado, mas vou debulhar novamente porque sem
o seu mote não há como chegar ao final, principalmente por que tudo começou
quando a cruz se deparou com a espada e a batina ameaçou a cartucheira de
excomungamento sem fim. Vixe Maria!
Aquela mesma história do encontro entre o
sacerdote Artur Passos, da Paróquia de Porto da Folha, mas na povoação de Poço
Redondo para celebração de missa, e o Capitão Virgulino Ferreira, o temido e
terrível Lampião. O encontro entre os dois, na casa de China de Poço e sua esposa
Marieta, de impossível fiel descrição, assemelhou-se mais ao encontro do acaso
com o inesperado. Mas aconteceu.
A verdade é que no ano dia 19 de abril de
1929, o Padre Arthur Passos, vigário de Porto da Folha e região sertaneja,
tendo chegado de sua paróquia a Poço Redondo em lombo de burro, cansado e
exausto logo procurou guarida no local de repouso de sempre: a casa de China e
Marieta. Chegou, foi acomodado num quarto, trancou a porta e logo adormeceu.
Descanso necessário porque logo mais celebraria missa na igrejinha logo do
outro lado da casa do casal sertanejo.
Mas no mesmo dia, e chegando em direção à
mesma moradia, eis que desponta Lampião e parte de seu bando. Eita gota serena,
e agora? Lampião batendo à porta da mesma casa onde o acabrunhado vigário
descansava, e agora? Seria o dia do Juízo Final? Não era ainda o tempo do
Apocalipse, mas naquele dia os ares sertanejos estavam anuviados e carregados
demais para um dia de sol.
Imaginem vocês qual a reação do casal ante a
chegada do mais famoso dos cangaceiros. Contudo, não pelo fato da presença de
Lampião e parte do bando, mas pelo que poderia ocorrer acaso o Padre Artur de
repente abrisse a porta do quarto e desse de cara com rei do cangaço. Toda a
preocupação do casal era essa, era de não saber qual poderia ser a reação do
sacerdote perante a presença do rei das caatingas, daquele homem tido como
sanguinário e algoz. Mas não somente isso. E qual seria a reação de Lampião
ante o inimigo do pecador?
Dona Marieta começou a suar frio. China do
Poço começou a avermelhar. As reações eram tão aparentes que Lampião perguntou
o que estava acontecendo. Então o casal juntou forças e contou tudo. Mas ao
invés de o mundo se acabar, o que se viu em seguida foi algo verdadeiramente
singelo e respeitoso. O rei cangaceiro simplesmente pediu para ir bater à porta
do padre, avisar que estava ali e, em paz, queria somente cumprimentá-lo. Tudo
resolvido para o casal e o cangaceiro, mas não para o vigário, que quando soube
de quem se tratava quase chamou os canhões do mundo.
Impertinência do padre, apenas isso.
Demonstração de descabido orgulho e poder do vigário, nada mais que isso. Ora,
se um liderava sua paróquia, o outro liderava um sertão inteiro. Ou alguém
duvida disso? Acabaram brindando o mesmo vinho de jurubeba e sentando à mesma
mesa para um desmedido regabofe sertanejo. Contudo, enquanto comia e bebia,
Lampião atinava em dar outro bote. Qual seria? Simplesmente dizer ao padre que
ele e seu bando tinham interesse em assistir missa. Como de fato ocorreu.
Ante o pedido do Capitão, e mais uma vez
querendo afastar seu reinado de impuros e pecadores, certamente que o vigário
se fez de meditativo antes de responder. Nada disso ele disse, mas não deixou
de dialogar em pensamento acerca de outras situações envolvendo Lampião e a
igreja. Veio-lhe à mente a amizade entre o cangaceiro e o Padre Cícero, a
devoção daquele perante este. E também a conhecida religiosidade de Virgulino,
devoto de Nossa Senhora e jamais afastado de orações. Por fim, aceitou.
Mesmo reformada diversas vezes, a igreja
daquela missa ainda está no mesmo lugar, ainda se localiza na principal praça
de Poço Redondo. Naqueles idos de 29, enquanto os católicos sertanejos se
apertavam nas laterais e na entrada, já pertinho do altar, perante o vigário em
fervor da liturgia, a cangaceirama a tudo assistia, de modo silencioso, e
alguns até com mãos unidas em oração. E talvez numa passagem do Sermão da
Montanha, o sacerdote quase gritou:
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque
eles serão fartos. Bem-aventurados os que sofrem perseguição por causa da
justiça, porque deles é o reino dos céus. Bem-aventurados sois vós, quando vos
injuriarem e perseguirem, e mentindo, falarem todo mal contra vós por minha
causa...”. Quando mais as bem-aventuranças falavam em injustiça e perseguição,
mais Lampião se agitava querendo falar. E disse, por fim:
“Bem-aventurados sejamos nós, homens
incompreendidos e perseguidos pelo poder, caçados como desumanos e emboscados
como feras, pois eles têm o poder da traição, e nós temos o poder da luta
contra a injustiça”. E depois todos se despediram e cada um seguiu seu destino.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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