SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 1 de setembro de 2019

MARIA DE LURDES, MULHER DO MATO



*Rangel Alves da Costa


Somente conversando, indo atrás dos fatos, catando informações, é que a gente fica sabendo das coisas. E cada coisa de não querer acreditar, principalmente quando envolve uma situação que, ante o progresso e a estreiteza do mundo, sequer imaginaria que pudesse ter ocorrido em tempos tão recentes. A história da mulher do mato é assim, um acontecido nas terras sergipanas e sertanejas de Poço Redondo, que mais parece ficcional, ou extraída da imaginação popular, do que mesmo realidade. Mas aconteceu.
Seu nome era Maria de Lurdes, ao menos assim ela dizia se chamar, mas talvez fosse mais coerente com sua história e realidade que sua denominação passe a ser “a mulher do mato”. Mulher do mato sim, das caatingas, dos escondidos da mataria, por detrás das ramagens e dos tufos lancinantes e espinhentos desses sertões matutos. Mas agora surge o mote maior: Por que uma mulher, de passado desconhecido, acaba escolhendo o mato como sua moradia?
Ora, há de se dizer que muita mulher mora no mato, que vive em meio às brenhas sertanejas na normalidade da vida. Mas há uma grande diferença entre esta moradora dos escondidos sertanejos e Maria de Lurdes. Aquela mulher mora em casa, possui família, tem endereço, familiares por perto, pode ser encontrada a qualquer instante. Com Maria de Lurdes, a mulher do mato, era muito diferente, eis que sem lar, sem nenhum familiar por perto, sem nada na vida que dissesse viver na normalidade.
Maria de Lurdes, a mulher do mato, vivia no meio do mato mesmo. Não possuía um ranchinho de palha ou de taipa, nada. Não possuía um chão de barro para colocar uma esteira nem uma trempe com pote em cima. Não possuía sequer um prato ou cuia, não tinha nada. Nem uma pequena junção de roupas ela tinha. Vivendo no meio do tempo, sua casa era qualquer lugar, debaixo de umbuzeiro, duma craibeira, ao lado dos xiquexiques e mandacarus. Seu teto era a lua e sua janela era o sol na face.
Mas o que teria levado esta mulher a viver assim, a de repente passar a ter essa situação de vida? Segundo relatos, Maria de Lurdes era uma alagoana que fugiu de sua terra e do convívio familiar após ter passado por um grande infortúnio na vida. Estuprada, ferida na alma, não mais suportou viver naquele cenário brutal e estarrecedor. Como opção para fugir das memórias do sofrimento, com a mente tomada por fantasmas devastadores, então ela resolveu sair pelo meio do mundo, sem destino, chegando um dia as terras de Poço Redondo.
Estaria Maria de Lurdes com perfeitas faculdades mentais? Difícil afirmar, mas certamente que com o juízo afetado e desarranjado pela violência suportada. A verdade é que a sã consciência dificilmente permite que uma pessoa deixe um lar para viver pelo mundo como eterno retirante ou que faça do meio do mato, ao relento e sem qualquer proteção, sua permanente moradia. E nela ainda era perceptível uma estranha atitude: temia se aproximar de qualquer homem. Cada homem era como se a representação de um perigo, de um inimigo, de alguém que pudesse violentá-la novamente.
Mas o viver nos escondidos do mato foi a opção de Maria de Lurdes. Apareceu pelos arredores de uma propriedade de familiares do poeta Edézio da Paixão, e neste mundo foi ficando. Os moradores da propriedade, ante aquela estranha e terrível situação, logo chamaram para si a responsabilidade de ajudar. Mas Maria nunca aceitou conviver com a família. Aparecia perto do meio-dia e ao entardecer, recebia comida e depois retornava às entranhas da caatinga. Outras vezes, nem da casa se aproximava. Então seu alimento era levado e colocado debaixo de um umbuzeiro.
Quando adoeceu certa feita e a família a conduziu até a cidade de Poço Redondo, ela nem quis repousar e já se danou a querer voltar ao seu mundo de mato e bicho. E sozinha voltaria se não fosse respeitada no seu desejo. Morena clara, de pele mais tostada pelo seu modo de viver, um jeito tão estranho de ser que faz lembrar aquela história contada por Rudyard Kipling, em “Mogli, o menino lobo” (Livro da Selva). Uma criança levada para o seio da floresta e criada em meio aos bichos, indo aos poucos adquirindo os mesmos hábitos dos animais.
Maria de Lurdes, de história tão comovente quanto encantadora, acabou vivendo em tal semelhança. Mulher do mato, um dia adentrou numa gruta para buscar água lá embaixo e não mais retornou. Ali mesmo pereceu. E dura apenas cerca de cinco anos que seus restos foram encontrados. E tudo verdade. Tudo acontecido em Poço Redondo.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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