*Rangel Alves da Costa
Vou escrever com prudência, com o máximo de
cautela, pois com esse povo é preciso muito cuidado. Mas que povo é esse que
merece tanta atenção e vigilância? Logicamente aquele cujo diário, mais adiante
transcrito, é tema destes rabiscos: o bajulador, aqueles mesmo tão conhecido
puxa-saco, adulador, sabujo, baba-ovo, o mais rele dos serviçais. Muito cuidado
porque tudo o que aqui estiver escrito, logo ele vai soprar no ouvido daquele
que lhe sustenta com cusparada na cara. E para o seu máximo prazer.
O bajulador não é flor que se cheire, já
dizia o jardineiro que perdeu o emprego por causa de um puxa-saco. Correu para
dizer à esposa do prefeito que o cuidador de flores dizia ter a flor mais bela
que o seu jardim. Não deu outra. No dia seguinte estava desempregado. Mas
voltando ao cuidado, isso é verdade. Falar sobre bajulador corre-se até o risco
de ele ir rastejando até o seu bajulado e segredar que o assunto destas linhas
é falando mal dele. Triste ofício, o da bajulação.
Tal é o contentamento da bajulação que tudo
faz sem pensar noutro proveito senão o de agradar o bajulado. Falar mal de um
chefinho a um adulador é comprar briga feia. Uma das principais características
do puxa-saquismo é esquecer-se de si mesmo para viver em função do outro. Na
defesa, no ataque, na mentira, na falsidade, seja de que modo for, o que
importa ao puxa-saco é revestir-se de um escudo para que nada atinja seu
protegido. Nem que para tal exponha sua pouca vergonha, seu descaramento, sua
desonra e seu mau-caratismo. O pior, contudo, é que o bajulador – tão cego que
é no seu desavergonhado ofício, nunca se arrepende do que faz. E que fazer
sempre mais, de modo a ser olhado pelo bajulado.
Mas um se arrependeu. Isso mesmo, e coisa
dificílima de acontecer, mas um bajulador se arrependeu de tanto afagar e
defender imprestáveis pela vida afora. Um dia, depois de tanto levar segredos e
mentiras, de tanto ajeitar colarinhos e braguilhas, de tanto abrir portas e
limpar sapatos com as mãos, de tanto arrastar cadeiras e colocar docinhos em
bocas podres, resolveu abdicar de disso tudo. E fez mais, pois, num rompante
jamais esperado num ser de tão desonrado percurso de vida, começou a escrever
um diário narrando seu lixo existencial. Coisas assim:
“Somente hoje, depois de tanto me submeter
aos poderosos, aos políticos e a todo aquele que estivesse acima de mim, é que
passei a ter a amarga compreensão do que sejam termos como lambe-botas,
subserviente, escova-botas, baba-ovo, cachorro de aluguel, leva-e-traz,
gabador, sabujo, e tantos outros indignos de um ser humano que minimamente se
respeita. Contudo, é a certeza de já ter sido qualificado como puxa-saco, que é
a designação mais conhecida de todas, que ainda me deixa assim como um verme
sendo pisado por solados imundos. Agora me sinto arrependido, mas no passado
certamente até me glorificando por tão desprezíveis atitudes.
Lembro-me bem, comecei a bajular ainda
meninote, enquanto brincava de bola na rua com outros meninos. Havia um filho
de um rico que chutava a bola bem pra longe já sabendo que eu ia correndo
buscar. Às vezes, chutava a bola no meu rosto só para me ver sorrindo de
alegria e contentamento. Quando o pai desse menino chegava com seu carrão,
então lá ia eu tirar minha camisa para afastar todo o pó que houvesse. Os
outros meninos de minha idade começaram a me chamar de mariazinha, de adulador,
mas eu nem sabia ainda o seu real significado.
Fui crescendo e não mudei. Não podia ver
alguém importante, rico, todo bem vestido, que eu me aproximava para agradar.
Dava os parabéns por nada, tecia elogios sem motivo algum, passava a mão pela
roupa como se estivesse fazendo alguma limpeza. Mas foi numa campanha política
que essa minha má atitude passou a tomar contornos de safadeza mesmo. Como se
tratava de disputa, eu tudo fazia para ouvir e saber o que se passava do outro
lado e em seguida correr para contar. Pensava que ele colocaria a mão no bolso
para retribuir as informações, mas nada disso acontecer. O que eu ouvia eram promessas:
Se eu ganhar não vou me esquecer de você!
O candidato ganhou, mas eu nunca fui
lembrado. Então, raivoso, passei a ser puxa-saco da oposição. É triste dizer
isso, mas estar lambendo botas de um num dia e no outro já estar ajeitando o colarinho
de outro, não é fácil. Mas eu me submetia a isso como se fosse um destino meu:
viver para bajular. Um dia, enfim, meu candidato foi eleito e me vi esfuziante.
Pobre de mim! Não fui contratado, mas recebendo ‘por fora’ uma mixaria para o
exercício do lastimoso ofício. Defendia o meu prefeito muito mais que meu pai e
minha mãe. Quando ouvia alguém falando mal de sua administração, eu não só
corria para dizer como rebatia na hora. Peguei brigas feias dizendo que nem
gente ele era, mas um santificado.
Arrependi-me de tudo isso. Nunca ganhei nada
com a bajulice, apenas inimizades. Um dia, já cansado de tudo, procurei saber
se existia algum centro de Bajuladores Anônimos. Ora, eu tinha certeza que a
adulação desmedida, compulsiva, era uma doença e que precisava ser tratada. Mas
não encontrei. De vez em quando, é verdade, me dá uma vontade danada de ir
novamente adular alguém. Mas tudo faço para evitar mais esse gole”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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