*Rangel Alves da Costa
As canções do cangaço são muito conhecidas
atualmente. Quando o fenômeno cangaceiro passou a ser visto mais pela vertente
histórica e sociológica, e não apenas como banditismo explicado na violência,
então o estudioso passou a compreender que aqueles homens das caatingas eram
também humanizados, festeiros, poetas e cantadores.
Mesmo no desvão da luta, entre as fugas,
vinditas e embates sangrentos, ainda assim o cangaceiro encontrava tempo,
geralmente nas noites cansadas debaixo da lua grande, para cantarolar sua
saudade e assuntar versos sobre o seu mundo ou sobre os amores nas distâncias
ou mais além. Dessa verve poética, surgiram trovas, estrofes, canções, melodias
que até hoje encantam e instigam a todos.
Quem não se recorda de versos dizendo:
“Acorda Maria Bonita, acorda, vai fazer o café, que o dia já vai raiando e a
polícia já está em pé...”. Ou a beleza de mais adiante: “Se eu soubesse que
chorando, empato a sua viagem, meus olhos eram dois rios que não lhe davam
passagem...”.
O cangaceiro Volta Seca é tido como autor de
versos sublimes, como os acima, e outros de verdadeira plangência: “Eu não
pensei que um dia tão criança, na flor da infância padecer assim, ainda te vejo
em braços de outro, arrependida chorando por mim. Ela chegou bem juntinho a
mim, ela pediu meu coração eu dei, meu peito ao dia em nosso amor queimava,
banhado em lágrima em teus pés jurei...”.
E a tão conhecida Mulher Rendeira?: “Olê mulé
rendera, olé mulé rendá, e a pequena vai no bolso e maior vai no borná. Se
chorar por mim não fica, só seu eu não pude levar. O fuzil de Lampião tem cinco
laços de fita, no lugar que ele habita não falta moça bonita...”.
Pois bem. O cancioneiro do cangaço é hoje
reconhecido e admirado pela sua força poética, como demonstração de que o
cangaceiro também tinha instantes onde os sentimentos alcançavam outros mundos
que não somente aqueles da refrega odienta. A prova de um sentimentalismo que
estava acima daquele modo de viver tão medonho, tão violento e assustador.
Mesmo distante de tudo, talvez moderna verve
poética imaginasse um cancioneiro assim:
Das mocinhas do cangaço
com flores em cada feição
em cada uma a fita e laço
de apaixonar cangaço e sertão
moça bela e flor do mato
a beleza em vida tão enfeada
em cada uma o doce retrato
do amor em espinhenta estrada.
Ou ainda, debaixo da lua grande daqueles tempos
atravessados, sentar numa pedra para declamar a tristeza e a alegria da vida:
Não sei se destino ou sina
um dia da família apartar
por um caminho traquina
em meio ao viver ou matar
ponta de punhal no olhar
bala faminta na cartucheira
o cano feroz querendo soprar
sem lua debaixo da cumeeira
no tufo do mato o inimigo
mais um lutar cangaceiro
vencer toda bala e perigo
no mundo ser assim justiceiro.
É como se lá no coito, debaixo da pedra
grande ou nos escondidos da mata, em meio à escuridão ou de passeio de
vaga-lume, o cangaceiro soltasse a voz bem baixinho, mas gritando no coração,
seu verso de vida e destino, como se coubesse poesia num passo de aflição.
A humanização no coração. O sentimento
aflorado aonde se imaginava apenas ódio e rancor. Mas havia tempo pra tudo.
Tempo de guerra e de embate, mas tempo de poesia e de amor. E assim, mesmo na
ponta afiada do espinho afoito, mesmo por riba da ponta de pedra, o encontro
com a sensação de que o cangaceiro era gente.
E gente ecoando o sublime e a afeição: “Se eu
soubesse que chorando, empato a sua viagem, meus olhos eram dois rios que não
lhe davam passagem...”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário