SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

ANGÚSTIA DA MEIA-NOITE


Rangel Alves da Costa*


Dia 31 de dezembro. À meia-noite os sinos irromperão nas igrejas, os relógios perfilharão os ponteiros, os fogos bradarão pelo ar, a data no calendário já poderá ser mudada. O limite entre anos, a fronteira entre o velho e o novo.
Vivas, abraços, gritos, beijos, sorrisos, champanhas espumando, cálices jorrando, vinho avermelhando lábios. Ainda as felicitações, o instante de erguer as mãos para o alto e invocar a proteção divina.
Nas praias, pelos rios e mares, passos nos beirais das águas se encaminham para as oferendas. Flores, perfumes, incensos, ervas, folhas, tudo espalhado pelas areias ou jogado nos leitos molhados. Presentes para Iemanjá, dádivas para os deuses, bocas que tremulam e olhos que lacrimejam de tanta fé.
É tudo como se o segundo atrás, do ano que se findou, fosse algo que realmente devesse ser sepultado, esquecido, relegado ao esquecimento. Daí em diante um tempo novo e esperanças de dias melhores. E por isso mesmo tanta alegria, tanta comemoração.
Contudo, nem todas as pessoas possuem motivos para comemorar, para brindar a contagem regressiva e anunciar festivamente o novo tempo. Diferentemente das lágrimas derramadas pela ultrapassagem da fronteira, rios cortantes se derramarão em faces angustiadas, verdadeiramente desesperançadas.
À meia-noite há tristezas e angústias de muitos matizes. Há sofrimentos, melancolias, aflições. Há terríveis sensações, dolorosas certezas que chegam e invadem tudo, deixando à míngua pessoas já fragilizadas. E quando se fala de dores terríveis diz-se das dores da alma e dos sofrimentos físicos e mentais.
Que bom que as angústias fossem motivadas pelas saudades, pelas indisposições de momento, por desacertos passageiros. Que bom que as aflições levassem à solidão noturna na beira de praias, nos silenciosos refúgios ou ambientes escolhidos para o momento. Mas não. As angústias são muito maiores.
Triste dizer, doloroso demais falar sobre isso, mas pessoas existem que sabem que este será o último final de ano. Pessoas existem que sabem que não estarão mais aqui à meia-noite no ano seguinte. Pessoas que não sabem quanto tempo mais viverão, mas que têm a certeza que seus dias estão contados.
As doenças do corpo e da mente, as enfermidades que vão se apossando de tudo e ressecando a vida como uma folha de outono. Tudo foi feito, todos os tratamentos já foram tentados, mas nenhum causou qualquer efeito. As raízes orgânicas já não vingam a seiva, as forças vitais já exauriram a essência. Sintomas degenerativos, moléstias progressivas, prenúncio de fim.
Como não chorar, como não sofrer, como não se desesperar? Os fogos ribombando e brilhando pelo ar, os sons das comemorações, as vozes, os gritos, o badalar dos sinos. E nos escuros, nos quartos fechados, quase nos escondidos da vida, o sofrimento fazendo seu festim maior. Lágrimas que molham as faces de muitas pessoas que na virada do ano passado também brincaram e festejaram.
São as angústias da meia-noite, as terríveis agonias da meia-noite. Não há mais prazer de experimentar nada, um pedaço de assado ou um cálice de vinho. Apenas doses de remédios, de comprimidos e injeções, numa embriaguez sem prazer nem riso. Apenas brindar o instante cruel de tudo que se vai despedindo.
Os olhares sem brilho se perdem nas distâncias das paredes, nos tetos, nas frestas ao encontro do raio de lua. Lágrimas afluem sobre as faces e secam no canto da boca. Sem palavras, os lábios trêmulos dizem a si mesmos: Adeus, adeus!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Pequena declaração de amor (Poesia)


Pequena declaração de amor


Mesmo que os anos
enfraqueçam o brilho do olhar
e tornem em  passo o que era voo
amo-te ainda com a mesma chama
tão ardente quanto o primeiro beijo

mesmo que a poesia
já não seja de versos rimados
e hoje seja tão difícil de ser escrita
amo-te ainda com a mesma palavra
que encantei-te ao sussurrar amor

mesmo que as estações
sejam mais duradouras no outono
e o nosso jardim não floresça sempre
amo-te ainda com a mesma primavera
com cores e perfumes e eterna paixão.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 839


Rangel Alves da Costa*


“Coisas simples na vida...”.
“Caminhar descalço...”.
“Tomar banho de chuva...”.
“Morder fruta no quintal...”.
“Jogar pedrinha na fonte...”.
“Voar no voo da borboleta...”.
“Simplicidades que encantam...”.
“Que alimentam a alma...”.
“Que fortalecem o espírito...”.
“Roubar uma florzinha no jardim...”.
“Beber água de moringa...”.
“Comer com a mão...”.
“Adormecer debaixo do sombreado da árvore...”.
“Escrever versinhos rimados...”.
“Caminhar sem direção...”.
“Conversar com a natureza...”.
“Nada normal na vida de muita gente...”.
“Mas que conhecem a ternura...”.
“De viver os encantos do dia a dia...”.
“E nada mais encantador...”.
“Que conversar sozinho...”.
“Prosear com amigos debaixo do pé de pau...”.
“Comer goiabada com queijo...”.
“Cantar porque quer cantar...”.
“Passear entre bananeiras e coqueirais...”.
“Visitar velhos amigos...”.
“Reler as cartas amareladas...”.
“Sorrir para as velhas fotografias...”.
“Chorar aquele chorinho saudoso...”.
“Tudo tão maravilhoso...”.
“Como o próprio maravilhamento do viver...”.
“E não há coisa mais singela...”.
“Que procurar palavras nas nuvens...”.
“Que caminhar pelo entardecer do cais...”.
“Que escrever na areia...”.
“Que molhar os pés nas ondas...”.
“Que sentar na pedra grande para ficar refletindo...”.
“E que beleza subir à montanha...”.
“Cantar a mesma cantiga do vento...”.
“Cantar o mesmo canto do passarinho...”.
“Ajoelhar-se perante o oratório...”.
“Dialogar com a fé...”.
“Abrir a janela pra folha seca entrar...”.
“Quanta beleza no apreciar a aurora...”.
“Escrever na vidraça embaçada...”.
“Adormecer numa rede...”.
“E sonhar sendo feliz...”.
“E acordar para a felicidade...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

ABRAÇOS FALSOS, FELICITAÇÕES FINGIDAS


Rangel Alves da Costa*


A cada final de ano e o que mais se observa são pessoas forjando um espírito fraternal que verdadeiramente não possuem.
Ao chegar o Natal e a virada do ano, forjam uma transformação que contradiz a maioria das ações nos meses e dias passados.
São verdadeiros espíritos de porco forjando fraternidade, amizade, amor. Ninguém é bom ou mal apenas num período do ano, ninguém se transforma em bondade apenas porque a época é de encontro e comunhão.
A pessoa é o que é. Não há Natal ou passagem de ano que diminua a frieza num coração que passou o ano inteiro fazendo de conta que o próximo nem existe. Não há espírito natalino que transforme um sentimento de pedra numa pétala de flor.
Contudo, nesse período do ano o que mais se encontra são lobos revestidos de cordeiros. É de se estranhar, de se sentir assustado quando a arrogância em pessoa vai a sua direção já de braços abertos e afabilidades. Será que endoidou? Não. Tudo falsidade, tudo fingimento, pois basta o primeiro encontro em janeiro e é como se a amizade jamais existisse.
Mas muitas pessoas agem assim mesmo. Imaginam que os outros são esquecidos ou idiotas e querem fazer de uma felicitação fingida todo o esquecimento do mal praticado ou de desconhecimento ao longo do ano.
Só mesmo tendo cara de pau para passar onze meses no ano destratando dos outros, agindo falsa e maldosamente, e repentinamente chegar com afagos e abraços.
Só mesmo não tendo um pingo de vergonha na cara para semear tempestades por onde passou, plantar a discórdia por onde andou, e depois sorrir perante o outro e desejar-lhe paz e prosperidade.
Só mesmo a pessoa sendo falsa consigo mesma para não reconhecer seus erros e maldades e fazer de conta que as comemorações de final de ano são instantes ideais para fortalecer os laços de amizade.
Soa como verdadeira piada que muitas destas abomináveis criaturas vistam roupas brancas desejosas de paz e saiam distribuindo felicitações na passagem do ano. Não só abraçam euforicamente como chamam de amigo e lançam palavras adocicadas.
Conheço muitas que sequer um cumprimento se permitem quando passam. Sempre egoístas e arrogantes, acham que o mundo é só delas. E depois de quase doze meses de distanciamento, de repente se lançam em cordialidades e carinhos. Tudo falsidade.
Sei de uma história de alguém que chegou perante outro e disse, olhando no olho, que não gostava nem um pouco deste, mas que naquele momento desejava boa sorte porque certamente ele não tinha culpa de sua estupidez e de sua mania de ficar mal com o mundo. E por isso recebeu um abraço afetuoso.
Sei de outra história de alguém que próximo à meia-noite correu para abraçar, beijar e desejar toda sorte do mundo a uma dita amiga do coração. Mas esta, aproveitando o momento da aproximação, disse baixinho ao ouvido: Talvez você esteja abraçando a pessoa errada, pois eu sou aquela que dias atrás você estava jogando à lama. Lembra?
Ao final de cada ano é que se confirma que as pessoas ruins são as que mais tentam se mostrar o contrário. Por reconhecimento de culpa e busca de remissão, ou por desencargo de consciência e tentativa de diminuição dos pecados, mas a verdade é que se encobrem de humanismos e virtuosidades que até parecem refeitas de suas maldades.
Sei que não adianta, pois as colheitas do ano novo já foram semeadas ao longo dos meses passados, mas ainda assim pessoas insensíveis e desumanas vão aos mercados e de lá saem com cestos de flores, colônias e oferendas de todos os tipos para agradar os seus deuses em busca de proteção. No entanto, esquecem-se de agir diferente no mundo humano.
E enchem os bolsos e as mãos de sementes, grãos e patuás. E o coração, o que faz mudar o coração?


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Na noite (Poesia)


Na noite


Sem a boca
beijo a fruta
sem o lábio
toco a pele
sem o corpo
sinto fome

sem o olhar
avisto o vazio
sem a palavra
apenas silêncio
sem você
tudo solidão

sem nada ter
apago a luz
e choro
ou canto
a tristeza
triste

não sei
não sei.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 838


Rangel Alves da Costa*


“Difícil acreditar em felicidade...”.
“Impossível ser feliz perante a realidade...”.
“Em tudo a violência e crueldade...”.
“Por mais que se busque a felicidade...”.
“O sentimento sofre pelo encontrado...”.
“E não há nada que anima a alma...”.
“Que fortaleça o espírito...”.
“Que traga esperança boa...”.
“Creio não ser possível ser feliz...”.
“Quando a pobreza se alastra...”.
“Tanta mão se estende em sua direção...”.
“Tantos sonhos sob marquises...”.
“Tantas inocências despedaçadas...”.
“Não há como ser feliz por dentro...”.
“Os olhos refletem a vida...”.
“E nela a dor sem véu ou escudo...”.
“Por isso difícil demais ser feliz...”.
“Quando ouço os gritos do sofrimento...”.
“Quando sei da falta de remédio...”.
“Quando sei da falta de pão...”.
“Quando sei da casa sem porta...”.
“Quando sei da casa sem teto...”.
“Quando sei da casa sem chão...”.
“Quando sei dos vícios e esquinas...”.
“Quando sei das mortes em vida...”.
“Tanto sei que não queira saber...”.
“Sim, eu bem poderia ser feliz...”.
“Ou encomendar uma felicidade...”.
“E sorrir e brincar...”.
“E viajar e passear...”.
“Mas sei que nada disso é felicidade...”.
“Não passando de instantes...”.
“Ou momentos de ilusões...”.
“Porque a verdadeira felicidade...”.
“Está no compromisso íntimo...”.
“Na fidelidade da pessoa consigo mesma...”.
“Para enxergar a realidade e não fingir...”.
“E jamais ser omisso diante da realidade...”.
“Jamais ser negligente perante o sofrimento...”.
“Jamais calar diante do medo...”.
“Jamais fugir por medo da infelicidade...”.
“Ser feliz é não aceitar tal realidade...”.
“É não pactuar com o que provoca o caos...”.
“É não aceitar que pretendam esconder...”.
“É sofrer porque o próximo sofre...”.
“Nada disso traz sorriso à face...”.
“Nada disso traz alegria no rosto...”.
“Mas que coração agradecido...”.
“E alma cheia de encantamento...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

RECONSTRUIR O AMOR


Rangel Alves da Costa*


O amor não é fácil de ser reconstruído. Há quem afirme que jamais terá a mesma sustentação o amor que sofreu grande abalo. Os alicerces já não serão os mesmos, ainda que sejam cimentados com mais pujança.
É que de repente o encanto vira pranto, a felicidade se torna desilusão, e a magia amorosa apenas um sofrimento. As perdas são constantes e sempre dolorosas, mas quando se fala em amor perdido, terminado ou rompido, então a pessoa parece que vai se esvaindo, morrendo também.
E assim porque o verdadeiro amor causa sofrimento ao ser afetado. Quem ama faz do sentimento amoroso uma verdadeira seiva de sobrevivência, faz da sensação amorosa um sentido sempre generoso à vida. Alicerçado no coração, basta que os tremores dos desvãos da vida ameacem e todo parece querer sucumbir.
A verdade é que o verdadeiro amor sempre permanece. Quem ama não apaga o outro do sentimento nem da memória após uma briga, uma separação, um distanciamento, um término, um adeus. O outro parte, se vai, mas o amor permanece como algo muito mais forte que a pessoa ou a situação.
E o sofrimento causado pela separação se torna assim tão doloroso exatamente porque o amor permaneceu. Porque continua no coração, permanece na mente, ainda envolve os sentidos, é que faz agonizar por dentro. Ora, se o amor fosse embora com a partida do outro seria diferente, não restaria sofrimento algum. Mas também não seria amor.
Por isso mesmo que quem ama sofre, lamenta e chora sua perda. Tudo que o coração acostuma se torna de difícil separação. Sempre que a pessoa entrega parte de si, por amar e confiar, acaba sendo a própria pessoa que se doa. E no adeus sempre fica faltando aquela metade tão difícil de ser reconstruída.
Por mais que as relações modernas tornem volúveis e inconstantes os namoros e os relacionamentos, ainda existem aqueles que são verdadeiramente amorosos. E falar em amor verdadeiro implica muito mais no convívio de um para o outro que um tirando proveito sexual ou meramente prazeroso do outro.
O amor verdadeiro possui características fáceis de serem reconhecidas, ainda que muitos jamais tenham sequer se aproximado de suas feições. Coisas simples: o amor não é sexo, o amor não é estar nem ficar, o amor não é qualquer coisa que se encontra, usufrui e depois relega ao esquecimento. Nada disso é amor.
Olha a singeleza do amor: O amor é saudade. Sim, pois somente quem ama sente saudade. O amor é sensação de prazer íntimo, de encantamento no coração. O amor é o desejo do reencontro, é sentir na distância a proximidade do lábio e o brilho do olhar. O amor é ternura, é palavra singela que contente o outro, é toque de mão e promessa não revelada.
O amor é bilhete, é verso rimando amor com sabor, é aquela sensação pulsante diante do outro. Uma carícia, um abraço apertado, uma tal satisfação que a pessoa já não possa mais negar a si mesma: está amando. O amor é construção, não tem sede de sexo, não vai tirando a roupa nem procurando camisinha. Não. O amor sabe esperar, e espera cheio de contentamento, pois sabe que aquela grandeza não se vive em instantes.
Mas eis o problema: O que fazer quando alguém que ama assim se vê, pelas forças do destino, sem aquele de tanto amor? O que fazer quando a perda ou a separação são inevitáveis, quando já não há mais esperança de reencontro e refazimento? Reconstruir o amor, apenas isso.
Reconstruir o amor, apenas isso. Impossível que a pessoa retorne, que retome seu lugar junto aos braços e aos lábios. O sofrimento, a angústia, a saudade, tudo persistirá por muito tempo. E talvez nunca se dissipe de vez. Mas o amor, por ser tão belo, possui, ele próprio, seus instrumentos de reconstrução.
E a pessoa continuará amando sem sofrer. Como? A pessoa que partiu, por não poder voltar se transformou na cor mais bela do entardecer, na lua imensa, numa flor, no silêncio espiritual do alto da montanha, no pássaro que segue a revoada, na borboleta que pousa no umbral da janela.
Haverá coisa mais bela que isso? Tão belo quanto o amor. Assim, reconstruir o amor de uma pessoa a partir do amor por coisas singelas da vida é a forma mais eficiente de conservação e preservação dos sentimentos. Então a pessoa olha a nuvem que passa e vê quanta poesia pode escrever naquela folha em branco, mira a grandeza da lua cheia e percebe o quanto de belo a vida tem a oferecer.
E assim vai reconstruindo seu amor. A partir do amor a outros amores que nem sempre são perceptíveis aos nossos sentidos: a chuva caindo, o nascer do sol, os encantos da vida.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Saudades (Poesia)


Saudades


Quando vim de lá
trouxe cuia de sol
trouxe pedaço de lua
e um pouco de chão

hoje juntei outras coisas
um bocado de saudade
uma lágrima na face
e um lenço de solidão

tudo entristece e dói
nada que tenho alegra
só resta abrir o embornal
e reencontrar meu sertão.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 837


Rangel Alves da Costa*


“Beijo...”.
“Rima com queijo...”.
“Mas não coma o lábio...”.
“Abraço...”.
“Rima com aço...”.
“Mas não aperte tanto...”.
“Sexo...”.
“Rima com nexo...”.
“Mas nem sempre tem a ver...”.
“Sorriso...”.
“Rima com paraíso...”.
“Mas nem tudo são flores...”.
“Adeus...”.
“Rima com Deus...”.
“Mas espere o seu tempo...”.
“Sono...”.
“Rima com abandono...”.
“Mas não pelas marquises...”.
“Fome...”.
“Rima com nome...”.
“Mas ninguém quer ter...”.
“Gostoso...”.
“Rima com gozo...”.
“Mas tudo tem limite...”.
“Vento...”.
“Rima com pensamento...”.
“Mas cuidado ao se soltar...”.
“Miragem...”.
“Rima com viagem...”.
“Mas tenha os pés ao chão...”.
“Sabor...”.
“Rima com amor...”.
“Mas pode ser rima pobre...”.
“Solidão...”.
“Rima com multidão...”.
“Mas pense onde quer estar...”.
“Céu...”.
“Rima com mel...”.
“Mas cuidado para não adoçar...”.
“Sobremesa...”.
“Rima com tristeza...”.
“Mas cuidado para não empanturrar...”.
“Ida...”.
“Rima com partida...”.
“Mas pense se quer ficar...”.
“Enfim...”.
“Rima com fim...”.
“Mas cuidado com as reticências...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

domingo, 28 de dezembro de 2014

NADA ACONTECE AO ACASO


Rangel Alves da Costa*


A questão do acaso sempre despertou debates filosóficos, religiosos e científicos. As ciências se preocupam com as leis das causalidades e também das casualidades. Aquelas como causa e efeito dos fenômenos, e estas como os acontecimentos fortuitos que modificam os mesmos fenômenos. A filosofia entende o acaso no contexto da aleatoriedade, o situando, portanto, na esfera da probabilidade. Já a religião não vê o acaso senão como uma intervenção divina, o que pressupõe não uma casualidade e sim uma confirmação do que já estava predestinado a acontecer.
No âmbito da filosofia há um sistema que procura negar totalmente a existência do acaso, mas sem, contudo, validá-lo na sua feição religiosa. Dá-se o nome de determinismo a tal sistema. Segundo a teoria determinista, todo e qualquer acontecimento é determinado por um acontecimento anterior. Assim, o segundo evento será sempre consequência do primeiro. Noutras palavras, há uma relação de causalidade entre os acontecimentos. Por consequência, nada existe ao acaso, pois tudo reflexo causal de algo anterior.
No conceito geral, contudo, o acaso é visto na esfera do fortuito, da casualidade, do inesperado. Assim, não há predeterminação no acaso porque é acontecimento aleatório, sem que possa haver qualquer previsão. Não haveria qualquer explicação aparente para determinado acontecimento nem se poderia antever probabilidade de incidência. Desse modo, nada possui relação anterior que permita a causa posterior. É neste sentido que se diz que somente o acaso para fazer algo inesperado acontecer.
Como observado, os entendimentos são diversificados e contraditórios. Contudo, pessoalmente – e filiando-me ao seu sentido religioso -, ouso afirmar que nada acontece ao acaso. Verdadeiramente nada, mas nada mesmo, acontece como acaso na vida. Em tudo há uma motivação, uma predisposição ao acontecimento, um chamado para que aconteça. Daí se ilude quem imaginar que as coisas simplesmente acontecem sem que forças próprias ou superiores ajam como mecanismos propulsores.
Verdade que o acaso está muito mais na esfera espiritual que nas intencionalidades pessoais. O homem não pode negar ou fugir ao que lhe foi predestinado fazer, mas o ânimo para a ação depende também da pessoa. Mesmo não sendo dono de seu destino, o ser humano se torna colaborador essencial com os acontecimentos que digam respeito à sua vida, ao seu bem-estar, à sua preservação. Ressoa, então, aquela velha história que cada um acaba trazendo para si o bem ou o mal que mereça.
Contudo, são alguns aspectos da espiritualidade que fazem com que a preexistência do acaso seja negada ou contestada por muitos. Aqueles que não creem em destino, em predestinação ou escrita de vida, certamente dirão que é o próprio ser humano que constrói seu instante e seu futuro, sem qualquer intercessão de força superior. Negam, pois, o acaso como uma junção de elementos que são interligados para que os eventos ocorram. E negam que Deus não é o poder que está por trás dos acasos da vida.
Ora, mas ainda assim não conseguirão negar que nada acontece ao acaso, e simplesmente porque nada acontece ao homem sem que o próprio homem motive o acontecimento. Mas o homem se move para que as coisas aconteçam porque assim já previsto nas páginas de seu destino. E este se pode moldar, mas não mudar. O que, em síntese, significa dizer que o destino pertence a Deus e o caminho ao homem.
Entretanto, sempre compreensível quando a maioria das pessoas nega a mão destino quando ocorrem tragédias. O termo tragédia logo provoca a sensação de algo acontecido contrariamente à vontade de Deus. E realmente é contra a vontade divina, mas não do homem. O destino concedido por Deus pode ser negado pelo homem. Deus coloca o homem no início da estrada como destino, mas os passos pelo caminho competem ao próprio homem. Pensar diferente seria o mesmo que dizer que a pessoa nada faz para que as coisas aconteçam. Ora, as pessoas buscam os acontecimentos, vão em direção aos fatos.
Certamente que Deus não concedeu a nenhum ser humano o destino da maldade, da crueldade, da bestial violência. Ninguém vive matando ou ferindo sob a alegação de que esteja cumprindo uma sina, um fadário. Deus não é partícipe do cometimento de nenhum mal. Ao homem foi dado o destino da existência, do crescimento e da multiplicação, e ainda o livre-arbítrio para suas escolhas na vida. Entretanto, transformar o livre-arbítrio em caminho do mal sujeita o indivíduo ao inesperado na normalidade da vida. Por conta própria, estará fugindo do seu destino e agindo segundo a casualidade.
Mas o que dizer quando pessoas de bem, vivendo na normalidade dos dias, prematura ou acidentalmente são ceifadas pelas forças do destino? Eis os mistérios, eis os planos secretos de Deus. Ainda assim, considerando que nada na vida acontece ao acaso, pois tudo em obediência a uma predeterminação superior, logo se há de compreender que nenhuma ira divina fez recair o chamado sobre o indivíduo. Por mais difícil que seja para o enlutado compreender, a morte é uma vida que Deus deseja que continue viva ao seu lado. E somente Ele sabe por quê.
Entendo, então, que nada acontece ao acaso. Tudo acontece segundo uma escrita imperceptível ao olho humano. Tudo existe a partir de planos secretos, divinos, embora ao homem seja tão difícil entendê-los.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

O silêncio (Poesia)


O silêncio


Meu silêncio
é de saudade
e não ausência
da palavra

meu silêncio
é na tristeza
e não a mudez
da boca

meu silêncio
é na lágrima
e não na falta
da voz

meu silêncio
nada me diz
mas ouço gritar
o teu nome.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 836


Rangel Alves da Costa*


“A saudade é livro...”.
“Aberto pelo vento...”.
“Páginas no pensamento...”.
“Trazendo recordação...”.
“Toda alegria e aflição...”.
“Um tempo posto ao desvão...”.
“A saudade é espelho...”.
“Pendurado na parede...”.
“Um lábio com tanta sede...”.
“Uma janela aberta...”.
“Numa paisagem incerta...”.
“Na estrada tão deserta...”.
“A saudade é retrato...”.
“Num velho álbum guardado...”.
“De um tempo tão revirado...”.
“Preto e branco tristonho...”.
“De pesadelo e sonho...”.
“Viver que nunca reponho...”.
“A saudade é viagem...”.
“Um voo com toda voragem...”.
“De passageiro sem passagem...”.
“Destino de passarinho...”.
“Que vai voando sozinho...”.
“Em busca de qualquer ninho...”.
“A saudade é lamento...”.
“A mente em sofrimento...”.
“Tornando em pó o cimento...”.
“Escavando a memória...”.
“E dela extraindo a história...”.
“Da luta e da inglória...”.
“A saudade é uma porta...”.
“De partida e de volta...”.
“Por estrada que é toda torta...”.
“Caminho cruzado sem fim...”.
“Com curvas esperando por mim...”.
“Para vencê-las enfim...”.
“A saudade é toda lágrima...”.
“Um lenço enxugando um mar...”.
“Oceano de tanto chorar...”.
“Um leito que se derrama...”.
“Na solidão que tanto clama...”.
“Por vela e sua chama...”.
“A saudade é oração...”.
“Uma prece com devoção...”.
“Que alimenta o coração...”.
“Uma súplica ajoelhado...”.
“Para trazer todo o passado...”.
“Do belo ao dilacerado...”.
“Assim a saudade vem...”.
“Como apito de trem...”.
“Como um sino também...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

sábado, 27 de dezembro de 2014

ILUMINADO


Rangel Alves da Costa*


Sim, iluminado sou. Não há escuridão que me alcance, não há negrume que me assuste. Guiado vou seguindo o bom sinal e mais adiante, na porta que encontrar, ali estará um mundo de luz que se somará ao farol que levo comigo pela graça divina.
“Se então teu corpo estiver todo cheio de luz, sem traço algum de escuridão, ficarás totalmente iluminado, como acontece quando a lâmpada te ilumina com seu clarão” (São Lucas 11:36).
Nascido nas terras distantes, num sertão esturricado de sol, caminhando pela estrada entre labirintos, esmorecendo, caindo para depois levantar mais fortalecido, somente tendo mesmo o destino iluminado. E quanta luz em cada passo da estrada. Fulgor que noutros tempos eu nem sabia que pudesse existir.
“Lembrai-vos dos dias de outrora, logo que fostes iluminados. Quão longas e dolorosas lutas sustentastes” (Hebreus 10:32).
Um dia caí parecendo não poder mais levantar. Mas eis a mão e a face de Deus diante da minha face e dizendo para levantar e prosseguir na caminhada. Meu instante de partida ainda não havia chegado e muito ainda tinha de fazer na estrada. E deu-me a luz dos iluminados.
“Vossa palavra é um facho que ilumina meus passos, uma luz em meu caminho” (Salmos 119:105).
Quando menino ainda, nos dias distantes do meu sertão, sequer imaginava que ter bom coração, compartilhar da amizade de todo mundo, jamais deixar de ouvir e dialogar com os mais velhos, humildes e desamparados, mais adiante tudo seria relembrado como uma boa luz somente existente nos olhos iluminados.
“Deixa atrás de si um rastro iluminado, e a água parece uma cabeleira branca. Não há, sobre a terra, poder igual, pois foi criado para não ter medo de ninguém” (Jó 41: 24-25).
Daí em diante, mesmo distante, jamais esqueci os meus nem agi como se tudo o que sou fosse fruto somente de minha luta. Ora, as conquistas são sempre fruto de uma junção de fatores e ninguém, por orgulho e vaidade, jamais poderá dizer que somente a si mesmo deva agradecer. O coração bondoso reconhece o quanto cada ação do passado acompanha os passos como feixe de luz.
“Porque aqueles que foram uma vez iluminados saborearam o dom celestial, participaram dos dons do Espírito Santo” (Hebreus 6:4).
Tudo o que sou e como sou remonta um passado, uma linhagem, uma herança, e não apenas familiar como de berço de nascimento, do chão da terra onde nasci. Jamais serei qualquer coisa se não souber o que sou e de onde vim. Jamais conquistarei qualquer coisa se não tiver a humildade de reconhecer minha raiz primeira e a semente ainda lançada à terra pelo meu povo.
“No semblante iluminado do rei está a vida, e a sua benevolência é como a nuvem da chuva de primavera” (Provérbios 16:15).
O que sou? Dependendo de como vejam, sou tudo ou sou nada. Mas nada disso importa, pois antes de tudo sou pessoa que se reconhece naquilo que me foi confiado ser. Por isso não sou além nem aquém, mas apenas alguém com sua luz e sua estrada.
“No semblante iluminado do rei está a vida, e a sua benevolência é como a nuvem da chuva de primavera” (Provérbios 16:15). “A luz do justo ilumina, enquanto a lâmpada dos maus se extingue” (Provérbios 13:9).
Nada acontece ao acaso. Deus mandou-me levantar e confiou-me a estrada. Deu-me o dom da sabedoria e da criação, o poder de transformar em conhecimento o que jazia em escombros. E deu-me o sol, deu-me a lua, deu-me toda luz. E me fez iluminado.
“Então o verás, e serás iluminado, e o teu coração estremecerá e se alargará; porque a abundância do mar se tornará a ti, e as riquezas dos gentios virão a ti” (Isaías 60:5).
E hei de sempre reconhecer que a quem foi confiada a luz dos iluminados jamais poderá transformar em trevas a dádiva recebida. E ser merecedor do reconhecimento de Deus significa preservar sua luz: acender no olhar a lâmpada do coração.
“O olho é a lâmpada do corpo. Se teu olho é são, todo o corpo será bem iluminado; se, porém, estiver em mau estado, o teu corpo estará em trevas” (São Lucas 11: 34).
Agora é noite, mas não importa que já não tenha sol nem que a luz se apague. Dentro de mim há uma luz que não se apagará enquanto o olho de Deus estiver sobre mim. E por ela me guio. E com ela jamais serei alcançado por qualquer escuridão, pois iluminado sou.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Das coisas simples (Poesia)


Das coisas simples


Um dia avistei o araçá
e vi apenas uma frutinha
pequenina e insignificante
até aquele instante
e assim também avistei
coisas simples e diminutas
quase retalhos e grãos
que apenas deixei passar

mas um dia mordi o araçá
senti o pingo de chuva
e mirei a lua e o vaga-lume
e na simplicidade a lição
que nada existe ao acaso
e nada é tão pequenino
ou que não mereça atenção
como a voz silenciosa
que tudo fala no coração.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 835


Rangel Alves da Costa*


“Não me importo com os gritos...”.
“Tranquilamente procuro estradas...”.
“O mundo se move feito redemoinho...”.
“Mas preciso da relva e da flor...”.
“Canto ainda antigas canções...”.
“Alegro-me com os passarinhos...”.
“Sei que a Caixa de Pandora está aberta...”.
“E por isso as dores e sofrimentos...”.
“As angústias e as misérias...”.
“Tristezas que se repetem a cada vão...”.
“E dias e noites desesperançados...”.
“Debaixo da lua e do sol...”.
“Flamejantes de agonia...”.
“Mas não me importo com o mundo...”.
“Ou com as dores do mundo...”.
“Pois tenho muito a fazer...”.
“Preciso dar milho aos pombos...”.
“Caminhar por trilhas solitárias...”.
“Preciso avistar colibris e borboletas...”.
“Preciso adormecer à sombra do arvoredo...”.
“Preciso abrir a janela para a manhã...”.
“Preciso sorrir e brincar...”.
“Preciso não esquecer a criança...”.
“Ainda existente em mim...”.
“Sim, sei que avisto ao longe...”.
“Os redemoinhos e turbilhões...”.
“As tempestades e temporais...”.
“Vidas à deriva e passos tortos...”.
“Pedras arremessadas no cais dos tempos...”.
“Sim, também sofro com tudo isso...”.
“Humano sou para o sofrimento...”.
“E tão humano sou para lacrimejar...”.
“Mas não posso desviar o meu passo...”.
“Não posso cortar meu passo...”.
“Para remendar as desgraças alheias...”.
“De pessoas contra si mesmas...”.
“Eis que tenho muito a fazer...”.
“Minhas flores precisam de afeto...”.
“Minha lua precisa ser admirada...”.
“Meus amigos necessitam de um abraço...”.
“A cadeira de balanço precisa de minha saudade...”.
“Preciso retornar aos quintais...”.
“Para colher frutos e plantas...”.
“Retirar a roupa do varal...”.
“Escrever poesia de maçã do amor...”.
“Mirar os horizontes...”.
“Abrir os braços no meio do tempo...”.
“Pensar em ser o rei que sou...”.
“E sorrir diante dos olhos de Deus...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

DECADÊNCIA: ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE


Rangel Alves da Costa*


Quando se ouve falar em decadência logo surge à mente a noção de queda, declínio, empobrecimento. Neste sentido se diz que determinada pessoa está em decadência, que os valores morais e éticos da sociedade entraram em decadência. E também que aquilo que se mostrava tão pujante e promissor, de repente declinou de seu progresso e caminha para o reles do nada.
Os teóricos e historiadores sempre abordaram acerca da ascensão e queda de impérios, nações e civilizações. Neste caso, a decadência significa o exaurimento do poder político e, consequentemente, da própria sociedade. A prosperidade vai dando lugar à fragilidade, os governantes perdem credibilidade, a economia fracassa, a sociedade começa a padecer de todos os males. E povos fragilizados e decadentes tornam-se alvos fáceis de invasores, como ocorreu com os bárbaros lançando mão de reinos inteiros.
Assim, a decadência presume uma mudança de situação, uma ruptura negativa, um descenso. A burguesia entra em decadência à medida que perde sua fonte de riqueza, privilégios e influências. As cidades entram em decadência quando perdem os sistemas produtivos que sustentam o seu desenvolvimento. As organizações entram em decadência quando não conseguem acompanhar as exigências sociais e os novos ditames do mercado.
Contudo, não se tem como verdadeira a noção simplista de que toda potência ou todo demasiado poder tenderá ao declínio, pois tudo que se eleva demais está propenso a cair. Em alguns casos assim mesmo acontece, pois impérios foram varridos do mapa quase que inesperadamente. Mas noutros casos não. Nestes, o poderio chega a um limite que não mais admite forçar crescimento. Contudo, ou se mantém apenas instável, com flutuações, ou vai diminuindo seu poder a um nível esforçoso de sobrevivência.
As sociedades se inserem nas ora denominadas linhas de reconhecimento, eis que possuem feições próprias e os seus colapsos são provocados por fatores pontuais, como aqueles que afetam a economia, a subsistência alimentar da população, as catástrofes climáticas e ambientais, dentre outros. Contudo, diferente ocorre com as pessoas, que podem provocar em si mesmas todas as decadências humanas. E igualmente nos governantes, agentes públicos e políticos, que podem fazer decair todos os valores morais e éticos.
A decadência política está visível no declínio da decência política, e decaimento este fruto de práticas que maculam a imagem não só dos agentes envolvidos como dos poderes aos quais correspondem. Atos de improbidade, corrupção, má-gestão, desvios, falcatruas com dinheiro público, formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, pagamento de propina, tudo isso leva ao declínio da decência, mas não a decadência dos envolvidos. E tanto é assim que a própria sociedade, através do povo eleitor, corrobora com a continuidade de tais práticas.
A sociedade não só referenda o declínio da imoralidade pública e da indecência política como, ela própria, se chafurda em verdadeiros lamaçais. Ao manter no poder pessoas envolvidas com escândalos e corrupções, logicamente que a população está pactuando e até aceitando tais ações. Ao referendar nas urnas os acusados de ilícitos e roubalheiras, certamente que está dizendo o que deseja como futuro a partir da escolha política. E ela mesma deixando de se reconhecer como agente de mudanças para ir cavando a sepultura dos submissos.
Uma sociedade tal, onde as pessoas parecem totalmente alheias às virtudes, aos princípios humanistas, aos primados éticos e morais, e no lugar da boa e justa escolha se permitem entregar-se aos desvãos, indubitavelmente que terá um desonroso destino. Ora, impossível um futuro promissor aos que se prometem e se comprometem somente com o que não presta, com o que é imoral, indecente, pernicioso, em confronto direto com o respeito próprio. Pode causar estranheza, mas grande parte das pessoas não se respeita mais, faz da vida uma imundície e ainda procura atrair o próximo para sua desonra.
Logicamente que os povos não convivem socialmente preservando sempre os bons costumes, as éticas nas relações e as moralidades nas condutas, pois tudo na dependência de um determinado contrato social mais proibitivo, permissivo ou liberalizante. Por consequência, dificilmente se tem conhecimento de um povo que viva resguardando o sentido bíblico do pecado, em todos os sentidos. Mas não é difícil encontrar povos que parecem se alimentar da verdadeira degeneração.
E a degeneração comanda o sentido da vida moderna. A decadência – em todos os sentidos – não é mais um conceito a ser estudado, mas observável em cada lugar, diante das feições, em muito da existência humana. E não adianta pretender justificar a sórdida decomposição social a partir da ideia de que novos tempos trazem novos costumes. Ora, as pessoas existem para conduzir a si próprias e não para serem conduzidas pelo imprestável. E o que mais se observa são sujeitos que abdicaram de viver decentemente.
Os sinais do presente são devastadores. Não foi para chegar a esse extremo de decadência que caminhou a humanidade. Mas ela, através de pessoas, chegou ao insuportável. Basta ver quantos se mostram satisfeitos e realizados com as músicas de “sofrência”, os sons aterradores nas malas abertas dos carros, os paredões com aqueles barulhos que são a própria feição da decadência humana. Eis aonde chegou o povo dito civilizado.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Minha paz (Poesia)


Minha paz


Ora, mas não estou preocupado
com o carro que não tenho
ou com a roupa nova do povo
pois estou mesmo preocupado
é com o jardim desfolhado
e com meu pé de laranja lima

choro o mesmo choro do menino
ao ter sua amiga árvore cortada
choro a dor do amigo do jardim
ao ter sua bela roseira desfolhada

ora, não me preocupo com nada
com nada que seja supérfluo
e que tenha rótulo de modismo
mas derramarei muitas lágrimas
se não houver manhã na janela
ou cortarem as asas de meus sonhos.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 834


Rangel Alves da Costa*


“O amor é um ser descontente...”.
“Nunca está satisfeito...”.
“Sempre quer mais...”.
“E por isso mesmo contraria os amantes...”.
“Tanto é assim que o amor...”.
“Vive sempre num limite...”.
“Permanece numa fronteira...”.
“Entre a alegria e a tristeza...”.
“Entre o desespero e a esperança...”.
“Entre a dor e o contentamento...”.
“Entre o ciúme e o fracasso...”.
“Entre a paixão e a perdição...”.
“O amor solta a mão do outro...”.
“E o joga ao precipício...”.
“Recolhe a mão da flor...”.
“Para oferecer a do espinho...”.
“Esconde o copo de vinho...”.
“E oferece o de veneno...”.
“Finge acenar feliz...”.
“E acaba dando adeus...”.
“E não somente isso...”.
“Pois o amor troca a paz pela guerra...”.
“Transforma o silêncio em grito...”.
“Faz o rio virar mar...”.
“Coloca estrelas em tempestades...”.
“Avista lua em pleno sol...”.
“E de tudo ele capaz...”.
“Capaz de trair...”.
“De açoitar e destruir...”.
“De prometer e não cumprir...”.
“De mentir para enganar...”.
“De enlouquecer qualquer um...”.
“Por amor transmuda-se o destino...”.
“Por amor renega-se toda a existência...”.
“Por amor confronta-se tudo...”.
“E mata e morre em seu nome...”.
“Mas também...”.
“Quando é verdadeiro...”.
“Torna os dias felizes...”.
“Enche a vida de encanto...”.
“Torna em poeta o iletrado...”.
“Transforma a solidão em saudade...”.
“Transforma a tristeza em espera...”.
“Abre a janela para a felicidade...”.
“Dá asas de passarinho...”.
“A quem jamais saiu do chão...”.
“Tudo por amor...”.
“E tudo no amor...”.
“Mas ele é tão difícil!”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

VARAL DO TEMPO


Rangel Alves da Costa*


Varal não é apenas uma corda sustentada por estacas onde roupas molhadas são estendidas para secar. Varal não é apenas o caminho certeiro depois da pia de lavagem, do banho ou da limpeza da casa. Varal é simbologia de transformação. E, por ser assim, nele também estendida parte da vida, da história, do passado e presente. Daí ser varal do tempo.
No varal, a roupa molhada não demora muito para enxugar. No varal, o que é estendido respingando logo estará balançando ao sopro do vento. No varal, o que depois de seco é esquecido vai bailando até se enrolar em sim mesmo. Ou novamente se molha de chuva e se põe a esperar o sol ou a ventania. Nada muito diferente do que acontece com a vida: de repente estamos tão encharcados que nos lançamos aos varais das esperanças.
O lenço fica encharcado de lágrimas, de angústias e sofrimentos, e somente o varal do coração confortado para enxugar. O corpo se banha em suor da luta, da correria, do desespero para sobreviver, e somente o varal de alguma conquista para enxugar. O íntimo se derrama em pranto por desilusões, amores perdidos ou ausências sentidas, que somente o varal da força para enxugar. E assim, a cada passo da existência e em toda situação de vida, de um lado o sentimento molhado e de outro o varal para transformá-lo.
Conheci muita gente que usava o varal para se lançar às boas e tristes recordações. Depois de lavar a roupa e ir estender, uma a uma, no varal armado perto da tamarineira, colocava uma cadeira de balanço no sombreado e ali sentava fingindo vigiar a molecada para não chutar bola na direção da roupa estendida. Levemente se balançando, lançando o olhar pelo horizonte, de repente estava chorando.
Não por acaso que assim acontecesse, eis que o varal também espelha saudade, recordação e, por consequência, também tristeza, melancolia, sofrimento. Basta observar o que acontece com a roupa estendida na corda. Fica estendida firme quando ainda molhada, mas aos poucos, assim que vai secando, começa a levemente se balançar até querer esvoaçar de lado a outro. Ora, assim também com o pensamento que vai buscando imagens e recordações até desfraldar todo o sentimento.
As recordações vão surgindo à mente como a roupa que apenas levemente se embalança. As imagens das pessoas queridas, ausentes pela distância ou eternidade, vão surgindo à mente como a roupa mais enxuta que já sente no tecido toda a força do vento. O coração começa a apertar, os olhos toma o seu próprio leme e as lágrimas começam a se derramar como furiosa ventania que arranca a roupa seca do varal e a joga pelo ar.
Então, quando a ventania já arrebatou o varal e fez de cada peça de roupa uma folha seca qualquer lançada pelos espaços, as lágrimas derramadas encharcam tudo novamente. E a pessoa toma para si, dentro do âmago, aquele mesmo varal que há pouco estendeu suas roupas. E vai buscar no conforto, na força e na esperança, o vento bom que lhe restaure as dores trazidas pelas saudades e recordações.
Ainda hoje relembro aquelas casas interioranas com seus varais pelos arredores. Meninote, de vez em quando chutava bola naquelas direções, fazendo que surgissem gritarias e cabos de vassouras na minha direção. Somente com o passar do tempo fui vendo com outros olhos aquelas cordas estendidas. E percebi que ali não estavam apenas roupas estendidas, que ali não tinha apenas a serventia de enxugar panos. Como afirmado no início, sua significação era muito maior.
E passei a ter o varal como analogia para muitas situações de vida, principalmente simbolizando a nossa existência. Eis que não passamos de um pedaço de pano estendido em varal. O pano está limpo quando ali colocado, e bem assim iniciamos nossas vidas. Depois vai sendo açoitado pelo vento até secar, e assim vivemos em constante amadurecimento. Mas não pode ser esquecido pendurado na corda, sob pena de ser corroído pelas intempéries ou levado na ventania. E de repente o varal solitário, assim como o que nos resta depois de tudo.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

Ao meu amor (Poesia)


Ao meu amor


O que mais confessarei
ao meu amor
para que compreenda
além do que sinto

o que mais revelarei
ao meu amor
para que reconheça
o que nunca minto

o que mais declararei
ao meu amor
para que seja jardim
jamais um labirinto

o que mais implorarei
ao meu amor
por medo de tudo  
pois tudo pressinto.


Rangel Alves da Costa

PALAVRAS SILENCIOSAS – 833


Rangel Alves da Costa*


“Canto a mesma canção...”.
“A velha canção dos tempos...”.
“Cantada pelo pai do meu pai...”.
“Cantada pelo avô de meu avô...”.
“Por uma geração inteira...”.
“A canção da lua e do sol...”.
“A canção da luta e suor...”.
“A canção do sinhô e da esperança...”.
“A canção do plantio e da colheita...”.
“Toda canção sertaneja...”.
“É minha cantiga de vida...”.
“Por isso canto a canção da estrada...”.
“Da bela noite enluarada...”.
“Das flores do campo em festa...”.
“Das matarias de catingueiras...”.
“Da terra nua e da pedra grande...”.
“Da porta entreaberta e da saudade tanta...”.
“Eis a minha canção...”.
“Um canto que é o meu povo...”.
“Um povo sertanejo bonito...”.
“De face esturricada de sol...”.
“E coração cheio de sentimentos...”.
“Um povo que não se entrega...”.
“Que faz da luta o seu amanhã...”.
“Que desafia a seca inclemente...”.
“Que faz do capim sua cama...”.
“Que conhece espinho e flor...”.
“Eis a canção do meu povo...”.
“Canção de cadeiras pelas calçadas...”.
“De vizinhanças nos proseados...”.
“Da debulha do milho...”.
“Da cantoria ao redor da fogueira...”.
“Da pinga ao pé do balcão...”.
“Dos pés descalços na terra quente...”.
“Do cachorro magro e caçador...”.
“Da nambu e da perdiz...”.
“E também uma canção namoradeira...”.
“Dolentemente apaixonada...”.
“Arrastada no forró pé-de-serra...”.
“Cantada em antigas serenatas...”.
“E ouço o aboio como cantiga...”.
“A toada dolente como cantiga...”.
“Tudo é cantiga no meu sertão...”.
“Na prece da velha beata...”.
“No canto cativante da lavadeira...”.
“Uma cantiga que chega do mato...”.
“Cheirando a destino de ser assim...”.
“Uma canção de todo o sertão...”.
“Essa cantiga que existe em mim...”.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

MALUCO DOIDO


Rangel Alves da Costa*


A insanidade possui variantes que pode interferir diversamente nos indivíduos afetados. Geralmente se tem a loucura como correspondência a todo tipo de distúrbio mental. Contudo, errôneo pensar assim, vez que o louco possui características próprias, bem assim com o demente, o alucinado, o maluco, o insano, e assim por diante.
Pensar em loucura logo vem à mente aquele indivíduo imprevisível, ora agindo mansamente ora num estado eufórico de amedrontar. Ou mesmo aquele que prefere a reclusão e quando desponta é com caretas, gestos e arremedos de fazer qualquer um recuar. Bem conhecido é o doido de pedra ou o sujeito mentalmente afetado que se regozija em se manter à espreita para atirar objetos em quem passar. Diz-se também daquele que age como verdadeiro maluco, pois animadamente conversando sozinho. Mas quase todo mundo é portador dessa maluquice intimista.
Para a maioria das pessoas, contudo, falar em distúrbio mental se resume apenas falar em maluco e doido. E de forma indistinta, sem qualquer diferenciação. Assim, basta uma ação estabanada de um e o outro logo diz que deve estar maluco ou doido. Sicrano só pode estar maluco, pois andar descalço por cima de espinho e da pedra não é coisa pra gente boa da cabeça. Fulano deve tá é doido mesmo, pois ninguém bom do juízo chupa melancia e depois bebe leite por cima. É pra estuporar!
Assim, o doido e o maluco vão tomando uma mesma conotação, ainda que existam diferenças nítidas entre as duas situações mentais. Os dois são anomalias psíquicas ou distúrbios mentais, mas o primeiro possui maior abrangência e visibilidade que o segundo. Assim, doido é o indivíduo portador de insanidade mental, que perdeu o tino ou o juízo, que não faz uso da razão ou da consciência. Doido também é aquele visto no contexto maior da loucura. Mas diz-se também daquele que age impensadamente, que num instante está como um barco em calmaria e no instante seguinte mais parece um furacão.
Já a maluquice é disposição mental muito mais sociável que a doidice. Não deixa de ser um transtorno mental, porém menos inconsequente. O maluco parece doido e age como tal de vez em quando, mas deste se diferencia por ser menos afetado, menos contumaz nas atitudes insanas tomadas. O maluco é conhecido também como desequilibrado mental, como personagem de ações estapafúrdias. Maluco é, assim, aquele cuja ação afronta a realidade aceita por todos.
Mas era Totonho e Leontina que conheciam bem a plenitude da diferenciação entre a maluquice e a doidice. Mesmo sem conhecerem absolutamente nada sobre problemas psiquiátricos, distúrbios mentais, insanidades e deficiências de juízo, sabiam em demasia o que era conviver com um doido, ou maluco. E assim porque o filho do casal era chamado de maluco e também de doido. E até doido de pedra. Ou mesmo maluco doido, como de vez em quando ecoava. E coisa pra se contar.
Ainda molecote o menino do casal fazia estripulias de deixar qualquer um de cabelo em pé, até mesmo os pais se viam aperreados diante das coisas do outro mundo que presenciavam. Apreciador do barro da parede da tapera, comedor voraz de tufos da argila endurecida, porém não o fazia do mesmo modo que os meninos sertanejos nas distrações para matar a fome. Agia diferente, pois abocanhava também pedaços e mais pedaços do cipó que prendia sua comida, deixando a morada cada vez mais tendente a desabar com a primeira tempestade que caísse.
Quem já se viu não se contentar em comer barro e agora se dana a roer cipó velho de parede, só deve tá maluco esse menino. Dizia a mãe preocupada, sem saber o que fazer para manter o barraco em pé. Não, ele deve é tá doido mesmo. Era o que ajuntava o pai. Não é coisa de maluco e sim de doido mesmo mastigar e engolir até cascudo que encontre nos escondidos das frestas. Se continuar assim logo vai ter que ser amarrado. Não bastasse o sofrimento da pobreza, agora ter de se preocupar com esse comedor de barro, cipó e besouro.
Depois passou a correr atrás de catenga pra cortar o rabo e guardar numa cuia. Em seguida sentava em cima de uma pedra grande e ficava falando sozinho, entristecido ou numa alegria descomunal. Então, com as mãos cheias de pedras, começava a jogá-las adiante, nos bichos e também em quem passasse. Ao observar o filho assim, todo desconcertado do juízo, o pai dizia que tinha de dar um jeito naquela doidice. Mas a mãe, toda pesarosa, reconhecia apenas a maluquice.
Já crescido e não tinha jeito de tomar prumo de gente normal. De vez em quando passava o dia inteiro sentado na pedra quente, falando sozinho. Noutras vezes se recolhia e permanecia num canto aboiando sem parar. Eram os momentos de tristeza, de afetação mental lacrimosa. Mas num rompante levantava e corria porta afora para mirar apaixonadamente o clarão da lua. A lua cheia o transformava num ser tão aflito e agonizante que mais parecia necessitado de voar naquela direção para arrefecer sua angústia.
E nestes momentos ninguém sabia se agia como doido ou como maluco. Ou como maluco doido, pois foi assim que a rezadeira o nomeou ao confirmar sua irremediável falta de juízo. E também de dizer que somente as forças de Deus e da lua cheia para domar aquele destino desatinado.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com