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quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

ANGÚSTIA DA MEIA-NOITE


Rangel Alves da Costa*


Dia 31 de dezembro. À meia-noite os sinos irromperão nas igrejas, os relógios perfilharão os ponteiros, os fogos bradarão pelo ar, a data no calendário já poderá ser mudada. O limite entre anos, a fronteira entre o velho e o novo.
Vivas, abraços, gritos, beijos, sorrisos, champanhas espumando, cálices jorrando, vinho avermelhando lábios. Ainda as felicitações, o instante de erguer as mãos para o alto e invocar a proteção divina.
Nas praias, pelos rios e mares, passos nos beirais das águas se encaminham para as oferendas. Flores, perfumes, incensos, ervas, folhas, tudo espalhado pelas areias ou jogado nos leitos molhados. Presentes para Iemanjá, dádivas para os deuses, bocas que tremulam e olhos que lacrimejam de tanta fé.
É tudo como se o segundo atrás, do ano que se findou, fosse algo que realmente devesse ser sepultado, esquecido, relegado ao esquecimento. Daí em diante um tempo novo e esperanças de dias melhores. E por isso mesmo tanta alegria, tanta comemoração.
Contudo, nem todas as pessoas possuem motivos para comemorar, para brindar a contagem regressiva e anunciar festivamente o novo tempo. Diferentemente das lágrimas derramadas pela ultrapassagem da fronteira, rios cortantes se derramarão em faces angustiadas, verdadeiramente desesperançadas.
À meia-noite há tristezas e angústias de muitos matizes. Há sofrimentos, melancolias, aflições. Há terríveis sensações, dolorosas certezas que chegam e invadem tudo, deixando à míngua pessoas já fragilizadas. E quando se fala de dores terríveis diz-se das dores da alma e dos sofrimentos físicos e mentais.
Que bom que as angústias fossem motivadas pelas saudades, pelas indisposições de momento, por desacertos passageiros. Que bom que as aflições levassem à solidão noturna na beira de praias, nos silenciosos refúgios ou ambientes escolhidos para o momento. Mas não. As angústias são muito maiores.
Triste dizer, doloroso demais falar sobre isso, mas pessoas existem que sabem que este será o último final de ano. Pessoas existem que sabem que não estarão mais aqui à meia-noite no ano seguinte. Pessoas que não sabem quanto tempo mais viverão, mas que têm a certeza que seus dias estão contados.
As doenças do corpo e da mente, as enfermidades que vão se apossando de tudo e ressecando a vida como uma folha de outono. Tudo foi feito, todos os tratamentos já foram tentados, mas nenhum causou qualquer efeito. As raízes orgânicas já não vingam a seiva, as forças vitais já exauriram a essência. Sintomas degenerativos, moléstias progressivas, prenúncio de fim.
Como não chorar, como não sofrer, como não se desesperar? Os fogos ribombando e brilhando pelo ar, os sons das comemorações, as vozes, os gritos, o badalar dos sinos. E nos escuros, nos quartos fechados, quase nos escondidos da vida, o sofrimento fazendo seu festim maior. Lágrimas que molham as faces de muitas pessoas que na virada do ano passado também brincaram e festejaram.
São as angústias da meia-noite, as terríveis agonias da meia-noite. Não há mais prazer de experimentar nada, um pedaço de assado ou um cálice de vinho. Apenas doses de remédios, de comprimidos e injeções, numa embriaguez sem prazer nem riso. Apenas brindar o instante cruel de tudo que se vai despedindo.
Os olhares sem brilho se perdem nas distâncias das paredes, nos tetos, nas frestas ao encontro do raio de lua. Lágrimas afluem sobre as faces e secam no canto da boca. Sem palavras, os lábios trêmulos dizem a si mesmos: Adeus, adeus!


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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