SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

DÓI DE DOER TUDO, SEU MOÇO! (Crônica)

DÓI DE DOER TUDO, SEU MOÇO!

Rangel Alves da Costa*


Os mais velhos contavam, e hei de acreditar sempre na sabedoria dos tempos, que a vida pra ser vivida é mais fácil na pobreza do que no progresso. E mostravam, com exemplos que eram lições, que o mundo decorou se desenvolver, mas nunca aprendeu a prosperar.
Quem sou eu para discordar da inteligência da terra, da boca da história, do olho eternamente mirando a vida debaixo do sol, da mão calejada de carregar nas costas o peso dos dias, do pé que caminha pela mesma vereda desde que o mundo nasceu sertão. Duvido não meu irmão, sou doido não!
Desconfie do anel, não dê importância ao nome, desacredite na formação e no cargo, nem queira saber do que diz o livro nem os dados da estatística, mas por tudo na vida confie no seu Gentil. É pobre, é analfabeto, é sertanejo, mas não há no mundo quem tenha mais valia na palavra do que o homem, a não ser outro caboclo da mesma estirpe e chão.
Pois bem, o tal do Luis Gentil, caboclo de roçado de estaca, de pastagem de malhada e quintal, um dia me chamou debaixo do umbuzeiro diante de sua moradia e num proseado de compadre que se acredita me deixou lá embaixo.
Envergonhado fiquei porque jamais podia acreditar que a filosofia sertaneja não se contentava em buscar as explicações últimas nas coisas, mas sim apontar a verdade tal qual peixeira que vai cortando a urtiga até encontrar a saborosa carne. Assim, mostrando na cara o que é e o que não é, e pronto.
E me disse o homem que se não fosse inventado esse negócio de cidade grande, de comércio, de tanta gente desconhecida andando de um lado pro outro, as pessoas seriam muito mais humanas e amigueiras. Em meio ao desconhecido, as pessoas também passam a se desconhecer, os parentes se distanciam, as famílias se dissolvem, cada um vai pro seu canto e de repente todo mundo está sozinho em meio ao vazio cheio de gente.
E olhe pra porta e pra o quintal e veja quanta diferença faz. Mas falo dos quintais antigos e não dos de hoje, digo da soleira da porta de hoje e não de antigamente. Nos tempos adormecidos, seu moço, quintal era farmácia e açougue, era mercado e feira, era prato e colher, pois tinha de tudo. Tinha o mastruz, a cidreira, alecrim, hortelã, o manjericão e o boldo, e tinha muito mais.
Nesse mesmo quintal a galinha corria e ciscava solta, o pato, guiné, o peru; mais adiante, lá perto do riachinho, havia o chiqueiro dos porcos. Pelos costados da cerca se plantava a melancia e a abóbora, o maxixe e a fava. Era planta de fruta que parecia pomar, coisa muita de não se acabar: goiabeira, cajueiro, mangueira e tudo o mais. Lembro de um umbuzeiro que anoitecia sãozinho e amanhecia doido varrido de doçura que fazia espalhar pelo chão.
Agora arrepare pra porta da frente de hoje em dia. É toque-toque, seu moço, com gente de mão aberta de palmo em palmo. Homem feito, mulher e menino, tudo vivendo pelas portas a implorar qualquer de comer pra enganar a barriga. E por que isso, seu moço? Mas só pode ser porque fizeram com que a terra de nascimento abandonasse seus os filhos para acolher o progresso, com a ilusão de que a riqueza seria dividida entre todos. E deu no que deu.
Prefiro sonhar com o pingo de chuva do que me arriscar por aí. Cada história que ouço contar arrepia mais do que tanta história que vejo. E olhe que vejo tudo, vejo muito, e não sou de mentir. E vou contar uma coisa que tudo mundo pode achar que é mentira, mas não é não.
Certa vez cortaram tudo e deixaram só um pé de mandacaru verdejante onde antes era mataria. Disseram que não podiam cortar o danado porque ele simbolizava o sertão. E foram passando máquina ao redor, abrindo buraco ao redor, construindo por todo lado. Mandacaru ficou sem sol, ficou sem ar, ficou sem saber o que era mais. E um dia mandacaru morreu.
E então os homens disseram que ali, com a morte do mandacaru, estava a prova maior de que o sertão também deve morrer em nome do progresso. E foram jogando pedra, jogando brita, espalhando cimento. Só sei que dói de doer tudo, seu moço!




Poeta e cronista
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Sorte nossa (Poesia)

Sorte nossa



Sorte nossa
que todo o sofrimento e dor
se findam no fim desse ano
e não acabaram com o amor

Sorte nossa
que vamos esquecer o passado
e prometer a nós mesmos
que o futuro será recompensado

Sorte nossa
que não fraquejamos na tentação
suportamos os sacrifícios
alicerçados na força do coração

Sorte nossa
que vamos brindar ao amanhã
destruir os cálices da discórdia
construir a felicidade artesã

Sorte nossa
que quando entrar em janeiro
celebraremos o novo dia
como se fosse o primeiro

Sorte nossa
que existimos para reconhecer
todos os espinhos da estrada
e toda caminhada a refazer.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 19 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 19

Rangel Alves da Costa*


Já dentro do barraco, o pai de Maria mandou que ela sentasse num tamborete, colocou seus instrumentos de tortura em cima da mesinha, arranjou nos apetrechos pendurados pelos cantos uma garrafa de pinga, cachaça limpa mesmo, e tomou uma golada de fazer cara feia.
Ficou dando volta no quadradinho que tinham como sala, abriu bem a porta da frente e escancarada deixou, e em seguida falou mais alto que a esposa saísse do lugar onde estava escondida e fosse até ali.
A mulher apareceu cabisbaixa, amedrontada, tremendo feito vara verde. Estava mesmo escondida debaixo da cama. O aspecto sujo e suado não dizia diferente.
Estou aqui marido, foi o que ela falou. Em seguida perguntou o que ele queria e se podia ajudar de alguma forma. Ao olhar para a filha não conteve o pranto.
E começou a chorar tão fortemente que o marido não suportou e foi ficar por instantes do lado de fora da porta.
Maria levantou apressada, correu e abraçou a mãe, colocando a mão nos olhos como se quisesse conter as lágrimas. E se entrelaçava carinhosamente ao corpo magro dela.
Não chore não mamãe, está tudo bem. Não chore mais não que estou aqui e como a senhora pode ver estou vivinha da silva, inteirinha, sã e salva.
É que eu pensei tantas coisas minha filha, estava temendo tantas coisas, minha filha. Ainda bem que você voltou e pode acreditar que essas lágrimas são de alegria. Foi o que conseguiu dizer no primeiro instante.
E continua tentando falar em meio a soluços. Temi pelo seu destino desabando pelo mundo com a idade que tem. E temi tantas coisas ruins que somente Deus há de testemunhar...
Temi pelo que seria de você se levasse adiante esse negócio de fuga, jogada por aí a qualquer sorte da vida, feito bicho brabo, sem conhecer ninguém e por ninguém ser conhecida.
Nem parente você sabia onde encontrar, como eu não sei mais se existe algum nesse mundão de meu Deus. A última vez que vi um parente foi quando olhei nos olhos de minha mãe quando saí de casa junto com o seu pai, pensando que ia rever todo mundo a qualquer momento.
Temi quando seu pai insistiu de ir atrás de você a todo custo, mesmo estando com o joelho machucado. A raiva dele era tanta que temi pelo pior quando colocasse as mãos em você.
Juro por Deus que acendi vela no pensamento, fiz três orações ao mesmo tempo, me ajoelhei pelos quatros cantos, me peguei com todos os santos do céu e implorei como nunca ao meu Senhor para que nada de ruim lhe acontecesse.
E Deus me ouviu, os santos e os anjos me ajudaram na minha aflição porque você está aqui. Agora me resta fazer tudo novamente. E em dobro, para agradecer pela glória de avistar novamente minha filhinha com vida.
Juro que meu coração se tornaria uma igreja se o seu pai mudasse esse jeito de ser, deixasse de lado esse modo tão ingrato e violento de tratar da gente, fosse apenas um pai e marido...
E que igreja bonita seria essa no meu coração se a felicidade pudesse reinar nessa casa, se você pudesse ter uma vida normal, pudesse estudar, ir até a cidade, conhecer pessoas, conversar, ter amigos, ser uma mocinha como tantas outras.
Oh! Minha filha que bom abraçá-la e senti-la ao meu lado, pois sem a sua presença sua mãe não duraria mais que o dia seguinte. Que bom saber que retornou e que agora, mesmo com as dificuldades que ainda temos de enfrentar, estamos juntas novamente.
E agora, minha filha, agora é só esperar o que vai sair da cabeça daquele homem.
Com efeito, percebendo que a mulher havia parado de chorar, o homem entrou novamente, tomou mais uma talagada de pinga e falou que havia chegado a hora de os três terem uma conversa muito importante.


continua...




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quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

UMA RADIOLA AO LUAR (Crônica)

UMA RADIOLA AO LUAR

Rangel Alves da Costa*


Sorte teve o meu pai, que lá pelos tantos idos de 1940 nasceu num sertão ainda virgem, matuto mesmo, de inocência cabocla e de infinito prazer da vivência na terra árida e cativante.
Naquela época certamente a natureza sertaneja ainda estava com o seu corpo imaculado, sem ter sofrido quaisquer desses abusos que hoje em dia nos faz entristecidos. Havia a sequidão pelos campos e matarias sim, pois sem as secas sertão não é sertão. Havia a pobreza grassando de palmo e palmo sim, pois a miséria parece ser filha do lugar e parente de todo mundo.
Mas havia muito mais, muito mais coisas encantadoras que amenizavam os sofrimentos e faziam o sertanejo viver na felicidade que somente ele sabe possuir, pois agradecido demais a Deus pelo galo cantando no alvorecer, pelo cuscuz e o leite tirado do peito da vaca, pelo café quentinho e pelo olhar que encontra sempre um dia bonito para viver.
Sertão é assim mesmo, seu moço! Bicho e poesia, cantiga e lamentação, bom dia e inté mais se ver, boa sorte e que Deus lhe ajude! E pelos caminhos que cortam a vida, os barracos se espalhando feito galinha no terreiro, bicho no berreiro, qualquer coisa no cercadinho e o prazer imenso de dizer isso é meu. Não tem nada não, seu moço, mas tudo é dele. É dele porque o sertão é dele e ele é o sertão em pessoa.
Meu pai nasceu num lugar assim, nessa vastidão sertaneja onde tudo mundo era feliz e não sabia. Somente mais tarde, quando o filho de Dona Emeliana e Seu Ermerindo ouviu pela primeira vez uma autêntica cantiga sertaneja, um legítimo violar caipira, é que começou a juntar a letra da moda de viola com a terra que pisava e a realidade vivida e decisivamente concluiu que as belezas do sertão são melodias de se caminhar e pegar com a mão.
Foi nesse momento que a viola caipira de Tonico e Tinoco entrou melodiosamente no coração de Alcino. Aquele rapaz, já político e prefeito do lugar, logo ao amanhecer escurecido ligava seu velho e potente rádio Philips, de quase meio metro de diâmetro, e sintonizava nas emissoras paulistanas onde sabia que não demoraria muito para ouvir a voz inconfundível da dupla coração do Brasil.
Sou filho - e por isso mesmo posso falar - que o rapaz já casado ainda assim era um inveterado namorador. Todo mundo sabe disso até hoje. Assim, quando um dia um primo seu chegado do sul lhe trouxe de presente uma radiola portátil novinha, pequenininha e azul, todas as noites, e sempre já em altas horas, Alcino seguia em direção à praça da matriz, colocava seu toca-discos em cima de um banco e ia escolhendo a dedo as músicas de Tonico e Tinoco.
Muitos dizem que ele fazia serenata louvando as belezas do luarar sertanejo, outros afirmam que era serenata mesmo, mas com outras motivações apaixonadas. De qualquer sorte, invariavelmente se ouvia todas as noites “Tristeza do Jeca”, “Eu e a lua” e “Pé de ipê” nas doces e inconfundíveis vozes de Tonico e Tinoco.
E se ouvia na “Tristeza do Jeca”: “Nestes verso tão singelo/ minha bela, meu amor/ pra você quero contar/ o meu sofrer e a minha dor/ Eu sô igual a um sabiá/ quando canta é só tristeza/ desde um galho onde ele está/ nesta viola eu canto e gemo de verdade/ cada toada representa uma saudade...”.
Na “Eu e a lua”: “Eu me desperto em arta madrugada/ Em arvorada ponho-me a cantar/ Em tom profundo lamento em meu pinho/ Triste sozinho vivo a recordar/ Vem ouvir ingrata quem deixou de amar/ Somente a lua no céu estrelado/ Está a meu lado, surgiu num clarão/ E tu querida nem abre a janela/ Vem ouvir donzela a minha canção/ Tu foi aquela muié sem coração...”.
E “Pé de ipê”: “Eu bem sei que adivinhava/ quando as veiz eu ti chamava/ de muié sem coração/ Minha vóiz assim queixosa/ vancê é a mais formosa/ das cobocra do sertão/ Certa veiz tive um desejo/ de prová ao meno um beijo/ da boquinha de vancê/ Lá no trio da baixada/ pertinho da encruziada/ debaixo de um pé de ipê...”.
Até hoje, já aos 70 anos, Alcino continua ainda mais apaixonado pela autêntica música caipira. Naqueles idos suas paixões eram muitas e até dizem que muitas eram as mocinhas que choravam nos travesseiros ou pertinho das janelas, com os apertos nos corações que sempre chegam altas horas da noite e com a serenata sertaneja de Alcino.




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Só pra lembrar... (Poesia)

Só pra lembrar...


Na carta acima
talvez eu tenha escrito tudo
mas antes que eu esqueça
quero reafirmar aquilo
que eu disse sobre
o amor que entristece quando
a gente não alegra o coração
sobre a incerteza de amar
se há dúvida na confiança
sobre o medo de perder
se não se sabe o que tem
sobre a brisa que sopra
e sempre se sente vendaval
sobre o aparentemente construído
e que não suporta um ciúme
sobre a vida que queremos ter
e o que fazemos para merecer
pense nessas coisas
e escreva pra mim
diga que estou inventando
ou dizendo o que não diria
se não fosse num papel
que se destrói e se rasga
como o amor que acaba.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 18 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 18

Rangel Alves da Costa*


Assustada, a esposa e mãe não sabia se seguia até a porta para receber os dois ou se iria se esconder pelos cantos ou embaixo da cama.
Muitas vezes, a escuridão entre o barro batido e o varal da cama foi o único refúgio encontrado para se esconder do marido em instantes de absurdez.
Não foram poucos os instantes que pensou em deixar aquela vida desgraçada de vez. Não suportava mais ser humilhada, viver feito bicho, subjugada pelo marido em todas as situações.
Certa feita teve que correr pelos matos para fugir da faca afiada do marido, e só porque havia dito ao homem que naquele dia não teriam feijão para ser servido à mesinha.
No dia anterior ele já havia sido informado que não havia mais feijão, nem mesmo um restinho com gorgulho. Não providenciou o legume que dá força ao sertanejo e deu no que deu.
Assim que a mulher botou o preá frito na mesa, a farinha, a moringa d’água e o caneco de alumínio, mas disse que não tinha o feijão, então o homem virou a mesa com comida e tudo e foi pegar a peixeira.
A mulher desabou a correr no mundo, se escondeu pelos matos e só voltou no meio da noite, pé ante pé, torcendo que ele estivesse mais calmo e principalmente por causa da filha, que encontrou chorando baixinho.
Em certas ocasiões pensou em seguir pelas veredas sem destino e deixar aquele brutamontes jogado à própria sorte. O destino que ele merecia não era outro senão acabar os dias no abandono.
Nunca seguiu tal intento porque não iria deixar a filha entregue à sorte do mundo e aos caprichos cruéis do homem que se dizia pai. Deixá-la sozinha com o pai seria o mesmo que enterrá-la viva.
Outras vezes tencionou em fugir levando a menina consigo. Já que não a deixaria ali sozinha de jeito nenhum, então a filha teria que seguir o mesmo destino da mãe.
O problema era que quanto mais pensava nessa possibilidade, mais se enchia da certeza que seria muito pior, pois o marido sairia atrás como um cão farejador e as encontraria a qualquer custa.
E quando as encontrasse seria a desgraça maior. Se já viviam como escravizadas, ao retornarem talvez fossem amarradas com cordas cujo tamanho não desse para chegar até a porta.
Triste sina a sua, pensava de vez em quando. Contudo, tinha certeza que o homem era daquele jeito somente porque vivia com o coração apertado demais. A pedra também sentia; o ferro também queimava.
Coração apertado demais porque queria ter um mundo somente dele e sua família e sabia que não conseguiria manter aquela situação por muito tempo.
O problema maior era o amor em demasia pela filha que o fazia ficar quase enlouquecido diante da ideia de que ela já estava mocinha, teria que sair daquela vida, teria que viver.
Pelo amor demais que sentia, tentava protegê-la de uma forma dolorosa. Tinha medo de sua filha no mundo, tinha medo que sua filha um dia saísse de casa, abandonasse os pais e, o que era pior, arrumasse um namorado e casasse.
Por isso mesmo é que sempre a deixou distante do mundo, aprisionada na sua própria casa, vivendo a infância e a mocidade dentro de um quarto velho e empoeirado, onde só tinha uma janela para avistar e sonhar com o mundo lá fora.
Por isso mesmo é que nunca deixou que ela estudasse, saísse de casa, fosse visitar a cidade, conhecesse pessoas, conversasse com elas. Tinha medo e ciúme de tudo.
Mas um dia seria impossível continuar com Maria dentro dessa fortaleza imaginária, ele bem sabia disso. E por isso mesmo essa loucura toda, esse medo enlouquecedor de que a porta da casa servisse como estrada para a mocinha.
Agora não tinha jeito. Haveria de tomar uma decisão.


continua...




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quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

BREVE HISTÓRIA DA FELICIDADE (Crônica)

BREVE HISTÓRIA DA FELICIDADE

Rangel Alves da Costa*


Felicidade é um lugar bem distante, lá no fim do mundo, onde mora um povo muito diferente dos demais povos conhecidos do planeta, onde a vida em nada se assemelha ao convívio que se observa nas demais sociedades.
O lugar tem características próprias, incomparáveis, com aspectos não encontrados em qualquer outro lugar. Quem nasce em Felicidade possui o gentílico de feliz mesmo, não de feliciano; quem é natural de Felicidade possui nacionalidade feliz, apenas isso. Feliz está em todos os sobrenomes, em todas as famílias, em todas as ruas, lugares e monumentos.
A religião de Felicidade é predominantemente felicidade praticante; a única entidade superior adorada e devotada por todos é o Deus da Felicidade; a padroeira do lugar é Nossa Senhora da Felicidade; os dias da semana, ao invés de serem compostos tendo feira ao final, são denominados segunda feliz, terça feliz e assim por diante. A mesma coisa ocorre com os meses, sendo que janeiro é a primeira felicidade, fevereiro a segunda, e assim todas as coisas.
Dizem que a história do lugar remonta aos tempos históricos mais esquecidos, de tão distante que data o primeiro passo humano que foi dado na região. Segundo relatam felizes historiadores, o primeiro habitante do lugar foi um tal de Feliciano Feliz. Homem pobre que chegou àqueles ermos esquecidos fugindo do reino da tristeza, que ficava mais ao norte de tudo.
Ao chegar ao local, Feliciano Feliz ficou maravilhado com tanta beleza, com a natureza encantadora, coisa que jamais viu igual. Um dia ouviu falar no paraíso e pensou que havia encontrado ele. Pomares por todos os lugares, com frutos bonitos e deliciosos; passarinhos cantando alegres de folhagem em folhagem; bichos passeando contentes e sem apresentar qualquer tipo de perigo.
Ali era tudo verdejante, com o clima propício para tudo na vida, nem muito frio nem muito quente, parecendo até que se amoldava às diversas situações. Árvores centenárias se misturavam à plantas miúdas, graciosas, muitas vezes floridas, com flores de todos os tipos e todas as cores. Tudo com o seu tempo de ser: chuva e sol no tempo certo, o vento fazendo o seu percurso sem estardalhaço, a noite e o dia cumprindo fielmente seus papéis de encantamentos.
Feliciano feliz só achava ruim uma coisa, que era uma tal de solidão que não agüentava mais. De tapera arrumada, sem faltar nada mesmo, e tudo feito com os objetos da natureza, faltava-lhe somente alguém ao seu lado, qualquer sorriso feminino que tivesse um corpo e o resto no coração. Um dia se ajoelhou e pediu a Deus uma presença feminina, mesmo sabendo que naqueles rincões não existia mulher alguma.
Depois disso foi tomar banho na cachoeira e antes de entrar na água percebeu a presença de alguém que saía bem de dentro da lâmina de água. Ficou sem reação diante de tanta beleza e viu se aproximar a mulher mais linda do mundo, parecendo índia, com feições de deusa, um misterioso ser de carne e osso que se aproximou dele e, após um sorriso encantador, perguntou se ele a estava esperando.
Foi amor à primeira vista. Ele jamais quis saber quem era ela nem de onde viera, mas amou no primeiro instante. E do mesmo modo ela se eximiu de fazer qualquer pergunta ou dar explicações. Só se sabe que não demorou muito e nasceu Feliciano Júnior, depois Feliz Felicíssimo e Feliciano da Felicidade.
Todos encontraram suas esposas na cachoeira e começaram a formar uma grande família. Com a falta de estranhos, primo casou com prima, até que de repente o lugar, batizado de Felicidade, já era uma povoação formada por muitos moradores, todos originários do sangue do velho Feliciano Feliz. Um dia o velho partiu sorridente. Não houve choro nem tristeza, mas felicidade pelo que aquele homem tinha significado para todos.
A povoação cresceu num passe de mágica. Todos vivendo felizes, trabalhando felizes, sem nada conseguir jamais afastar ao menos um pouquinho dessa felicidade. Hoje Felicidade é uma cidade imensa, enorme, mas inalcançável aos que pretendam visitá-la ou fixar moradia.
É que a felicidade existe, os felizes habitantes continuam por lá, mas um povo diferente, que mora do lado de cá, resolveu tudo fazer para dificultar o acesso a ela. Assim, ela existe, mas é cada vez mais difícil alcançá-la.




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Qualidades do amor (Poesia)

Qualidades do amor


Que o amor é valente duvide não
mas gosta de se esconder pelo corpo
e entrar no coração

Que o amor é teimoso duvide não
não desiste nunca de ver nascer
o que planta como paixão

Que o amor é estrategista duvide não
chora triste ao lado do peito amado
até conseguir o perdão

Que o amor é viajante duvide não
ao se perceber maltratado
segue em outra direção

Que o amor é inocente duvide não
se deixa levar por qualquer esperança
e aceita um olhar como se fosse pão

Que o amor é brincalhão duvide não
gosta de dengo e cafuné
adora rolar pelo chão

Que o amor quer amar duvide não
quer carinho e compreensão
quer pegar na tua mão.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 17 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 17

Rangel Alves da Costa*


Cinco minutos após e os dois caminhavam de volta ao casebre. Pai e filha de volta ao lar.
Milagrosamente o pai já curado de suas dores e a filha com o coração enobrecido por ter resolvido aquela situação de outra maneira, muito diferente do que imaginava.
Mesmo que entorpecida pela misteriosa ventania, ainda assim ela estava temendo pela sua vida e seu destino quando o pai despontou com aquele aspecto de fera ferida.
Vai ser agora, pensou. Ele vai bater até me deixar toda moidinha e ferida até morrer lentamente, aqui mesmo nesse lugar. Pensou, pois, que morreria ali mesmo no seu reino encantado.
A misteriosa ventania aplacou os ânimos dele com força surpreendente. E a fera escondeu suas garras, tornou-se homem e pai, e por isso mesmo fazia tudo para não dar o braço a torcer.
Para não admitir que deveria ter um diálogo com a filha, conversar melhor sobre aquela situação toda, agradecer pelas ervas maceradas que ela havia colocado no seu joelho machucado e havia dado tão bom resultado.
Para não demonstrar nenhum senso de bondade, compreensão e muito menos de amor para com sua filha. Reconhecer um sentimento tão nobre como o amor jamais havia passado por sua cabeça.
Haveria ainda qualquer resquício de amor naquele espírito dilacerado pelo ódio diante de tudo?
Certamente não lembrava mais que existia o amor paternal, o seu significado e o seu alcance. Não reconhecia mais nenhum tipo de amor, nada que dissesse respeito a ele, até porque o seu coração de ferro jamais havia sido submetido às chamas que têm o poder de derretê-lo.
Mas a verdade é que a menina não havia sido mais uma vez vítima de sua violência, não chegou a tempestade que se anunciava e eles estavam de volta sem muitas palavras.
E foi outro espanto para Maria quando percebeu que não teria de responder, ao menos naquele momento, uma saraivada de perguntas raivosas, cheias de ódio e acusadoras.
Os dois já saíam da natureza falante quando a menina olhou para trás como se quisesse se despedir, dar um breve adeus à amiga umburana cabocla, que majestosa como nunca reinava naquele mundo encantado.
Maria ergueu ligeiramente a mão num aceno. A cabocla balançou mais fortemente seus galhos retribuindo o adeus. Se a menina tivesse o dom de saber o que se passava no coração da árvore, iria se entristecer pela angústia que sobre ele se abatia.
Angústia porque sabia o que Maria ainda ia sofrer nas mãos daquele homem silencioso e taciturno. Sabia que ele apenas estava calmo, mas por dentro havia uma fornalha crepitando prestes a lançar suas chamas em todas as direções.
Por isso mesmo, no mesmo instante chamou dois passarinhos, segredou-lhes algo muito importante e sem demora eles voaram de pau em pau, de galho em galho, mais próximo e mais distante, repassando as informações recebidas.
Em seguida os passarinhos rumaram em direção ao casebre e pousaram no jardim de plantas secas, conversando conversas de canto e não deixando nada sem ter tomado providência.
Ninguém sabe ao certo o que a cabocla ordenou aos passarinhos, nem o que estes foram informar pelos arredores, mas certamente tinha algo a ver com aqueles dois que agora chegavam diante da porta de casa.
Ao avistá-los, a mãe caiu em incontido pranto, por satisfação e medo. Satisfação em rever a filha viva; medo do que poderia acontecer daí em diante.


Continua...




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terça-feira, 28 de dezembro de 2010

O QUE OUVI UM DIA (Crônica)

O QUE OUVI UM DIA

Rangel Alves da Costa*


Minha avó me dizia, meu avô me contou, meu pai repetiu, minha mãe confirmou. E assim fui ouvindo tantas lições pela vida que somente erro porque sou humano, como eles erraram por não serem eternos.
Menino, a noite é dos bichos e dos santos. Se você não quiser que o bicho venha lhe pegar, então tem de rezar para o santo lhe proteger. E assim foi nascendo o medo e a devoção, sentindo a necessidade de rezar sempre para a proteção contra os bichos que aparecem também pelo dia.
Meu neto, melancia com leite não faz mal a ninguém, o que faz mal é pegar escondido a melancia e o leite dos outros. Do mesmo modo, se avistar uma fruta madura diga ao dono do pé que ela vai cair, e se ele sentir que você está com vontade de mordê-la certamente vai dar permissão para você sentar à sombra da goiabeira ou do cajueiro e fazer a festa da barriga.
Meu filho, o respeito que se deve ter aos mais velhos e a necessidade de lhes dar a benção não têm nenhuma ligação nem com a idade nem com parentesco, mas tão-somente porque devemos enxergar a sabedoria e o conhecimento da vida com a máxima devoção.
E veja que quem abençoa não é a pessoa, pois ela sempre há de dizer que "Deus lhe abençoe". Então, nos mais velhos está um pouco da autoridade de Deus, que lhe é delegada para a benção dos mais jovens.
Venha cá, menino, sente aqui e ouça uma coisa de quem tem muito mais partida e chegada do que você. Quando você ouvir dizer que existem pessoas ruins, pessoas invejosas e que só querem o pior para os outros, acredite.
E acredite porque estas estão em todo lugar, em qualquer canto, onde a gente menos espera. Infelizmente é difícil a gente conhecer estas pessoas pela aparência, mas aquelas que são boas e de bom coração a gente sente de pertinho, pelo olhar e pela satisfação espiritual que nos dá a sua proximidade.
Ouça uma coisa meu filho, nunca julgue os outros pela aparência. Quem vê cara não vê coração; o brilho pode ficar empoeirado a qualquer instante; o sorriso não significa alegria, nem um rosto solene significa tristeza; não existem pratos em muitas mesas grandes.
Ás vezes o silêncio do outro está nos chamando e precisa conversar, desabafar com a gente; a frente da casa não mostra a verdade da moradia. Tudo isso é verdade meu filho. Quem dera Deus nos permitir o dom de enxergar o coração antes da pessoa!
O meu avô paterno era silencioso e triste, mas era um doce de pessoa quando abria a boca para falar, por isso mesmo dizia que a palavra do homem devia ser como uma refeição necessária. Somente para alimentar.
Ninguém deveria estar abrindo a boca a qualquer instante para dizer futilidades ou inutilidades, coisas irrelevantes e que muitas vezes só servem para prejudicar, pois carregadas de mentiras e aleivosias. Se vista como verdadeira fome, a palavra tem instante certo para sentar à mesa e se expressar na exata medida da boca do falante.
Mais tarde, meu neto, quando você crescer e encontrar uma mocinha de sua idade e der vontade de namorar, nunca veja a menina como qualquer coisa que se usa e joga fora. É preciso lembrar, e nunca esqueça disso, que toda mulher, por mais fácil que possa parecer ou mesmo que as más línguas digam que ela é da vida, não é apenas a mulher em si com sua fama.
Além dela, que de qualquer modo deverá ser merecedora de todo o respeito, há também uma família, um sobrenome familiar. E há também você, zelando o seu nome todas as vezes que respeita o outro e o seu nome.
Tudo isso ouvi, e ouvi muito mais. Muitas coisas ouvi que não direi aqui para não correr o risco de ser chamado de maluco. Imagine que minha avó me disse um dia que o amor existirá sempre naqueles que, a qualquer tempo, souberem pedir e perdoar.




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Talvez (Poesia)

Talvez



E não és nem a natureza
nem a estação
e sei que muda sim
feito outono e verão
e por ser assim
tanto sim tanto não
não hei de exigir
seu mundo para mim
tê-la em minha mão
plantada no meu chão
porque nem sei
se me tenho
nem sei se mereço ter
seu imenso coração
bastando que a felicidade
que talvez seja o amor
aconteça ao acaso da vida
como vão desvão
talvez sim talvez não
mas se a vida sorrir
afastaremos todo não
sempre sim, por que não?


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 16 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 16

Rangel Alves da Costa*


Com os passos se aproximando cada vez mais, a umburana cabocla silenciou, o espelho se desfez, tudo voltou ao normal.
Quem imaginasse que Maria agora estava desprotegida, à mercê da raiva e da brutalidade do pai, estaria enganado. A cabocla silenciosa havia providenciado para que nada de ruim acontecesse à menina.
Quando o homem espalhou com a mão a cortina da mataria e adentrou naquilo que a filha chamava de reino encantado, encontrou-a em pé, estática feita uma pedra, com os olhos brilhando como nunca e mirando o seu pai por inteiro.
Soltando verdadeiros grunhidos, o homem vociferava enquanto caminhava com dificuldades por causa da queda que havia afetado o joelho.
O aspecto do homem era verdadeiramente de assustar. Todo suado e nervoso, carregando na mão um chicote de couro cru, soltava faíscas pelos olhos e chegava a espumar pela boca.
A menina em pé, não se mexia um milímetro, esperando apenas a reação do pai quando estivesse ao seu alcance. E ele foi andando e andando, feito um furacão que caminha.
Quando já estava bem próximo da filha, no instante em que ia levantando o braço com o chicote, começou a soprar uma ventania que o fez olhar para cima e imediatamente mudar de feições.
Parecendo que alguma coisa havia caído sobre sua cabeça, passou a mão pelo rosto, limpou os olhos, guardou o chicote na cintura e perguntou à filha porque estava ali.
Maria, que também recebeu uma rajada de vento pelo corpo, respondeu que estava apenas passeando ali porque achava um lugar muito bonito e agradável.
E o pai, sem deixar o jeito sério de falar, disse que aquele lugar era muito perigoso, pois tinha cobra venenosa e outros bichos perigosos, até onça já tinha sido vista rondando o lugar.
Num impulso, Maria se aproximou dele e perguntou o que tinha acontecido com sua perna, pois andava mancando e doía muito pelo jeito.
Nada, nada. Foi o que o homem conseguiu responder.
Espere aí um pouquinho, disse Maria. Em seguida se ajoelhou e começou a erguer a calça do pai até a altura do joelho e, com um leve toque, perguntou se era ali que estava machucado.
Já disse que não é nada, e levante daí agora mesmo. Vamos embora pra casa agora mesmo, anda...
Vamos sim, mas primeiro vou colocar umas folhinhas de mato verde bem aqui e levar outras para fazer um chá, está certo?
E o coração do pai apertava, querendo se desmanchar e transbordar feito rio que corre diretamente para os olhos.
Nunca havia imaginado uma situação como essa. Tinha chegado ali para espancar a menina e levá-la arrastada pelo chão até a casa, e agora sem reação alguma diante daquele cuidado da filha.
Maria catou algumas folhas verdes, juntou tudo num monte, depois bateu por cima com uma pedra até formar uma pasta esverdeada, que em seguida foi colocada no joelho do pai.
Enquanto colocava o medicamento natural, percebeu que ele deixava escorrer uma lágrima pelo canto do olho e perguntou se ele estava chorando por causa da dor.
Sim, minha filha; sim, minha filha, tudo dói muito... Respondeu o homem, realmente sentindo o espírito remoer por inteiro.
Por que isso agora, meu Deus!? Perguntou-se o homem, e em seguida lembrou que havia chamado o nome de Deus depois de tanto tempo que nem recordava mais.


continua...




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segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

VALEI-ME DEUS, E AGORA!? (Crônica)

VALEI-ME DEUS, E AGORA!?

Rangel Alves da Costa*


Valei-me Deus, e agora!? Soou gritante o espanto, vindo do assombro de todas as bocas e todos os olhares logo ao alvorecer. O que teria acontecido para o povo amanhecer em polvorosa, tendo gente de pijama pela rua, mulher que levantou quase nua, pessoas saindo apressadas de onde não deveriam sair?
Valei-me Deus, e agora!?
Filipa se benzia na janela, a beata Mocinha fazia fervorosas orações ajoelhada pelos cantos, menino-flor deu um gritinho e depois se apoiou no vento para desmaiar, Miraldino ficava cabisbaixo sem querer acreditar, Juca do Inhame emudeceu, Dagô chorava pra se acabar, Sulane correu maluca pelo meio dos matos.
Seu Nitinho, que estava por cima da Zinha no instante do ocorrido, viu tudo murchar e irremediavelmente para sempre. Mas que coisa inexplicável, pois o ceguinho enxergou só pra cegar novamente pelo susto que teve pelo que viu. Já Maria dos olhos de mel cegou de não dar nem mais um passo à frente sem a ajuda de um dos tantos amantes.
E por todos os recantos do lugar era um espanto só: Valei-me Deus, e agora!?
Dentre os menos abalados emocionalmente, e que ainda podiam contar com a razão, começou a se comentar da necessidade de intervenção das forças armadas norte-americanas, da vinda urgente do padre que se achava ausente, do clamor para que o papa se fizesse presente, de avisar com rapidez todos os canais de televisão do mundo, enviar um comunicado a ONU, fazer com que o prefeito aparecesse no lugar, chamar o governador e o presidente.
Teve gente que afirmou que somente Deus. Se Deus não resolvesse o problema então tudo estaria perdido. Começaram a discutir como chegar até ele, mas a conclusão que chegaram não dava muito certo. Não havia no lugar quem morresse e fosse direto pro céu para avisar ao homem. Muito pelo contrário, o caminho de todos ali parecia que era mais pra baixo.
E quanto mais se discutia mais se repetia: Valei-me Deus, e agora!?
Verdade é que todos acordaram com algo diferente no meio da praça, logo em frente à matriz que vivia fechada como se ali fosse um povo sem fé. E era mesmo, pois o padre chegava ali, rezava missa com meia porta aberta e para apenas duas beatas e depois ia embora pela porta dos fundos, dizendo que jamais olharia na cara de um povo que um dia havia excomungado, amaldiçoado.
O padre sempre achou que tinha razão no que tinha feito, sempre achou ser para o bem da religião ter amaldiçoado um povo que não seguia os ensinamentos divinos, contradizia pecaminosamente todas as boas condutas cristãs, parecia ter feito pacto para tornar o lugar mais impuro que Sodoma e Gomorra juntas.
Ninguém era amigo de ninguém; sorriso era coisa que não se conhecia mais; respeito aos pais e aos mais velhos soava como brincadeira de mau gosto; ajuda ao próximo, compartilhamento e respeito à dignidade e integridade do outro eram coisas totalmente em desuso; família era cada um por si e todos se tratando como inimigos; o amor, essa coisa diferente e doce que deveria existir nos corações das pessoas, não prevalecia mais diante de tanta pedra bruta e navalha afiada. Nem coração parecia existir mais naquele povo.
Foi por isso que, naquela manhã, quando apareceu uma flor majestosa no jardim, com cada pétala com uma cor mais bonita e mais brilhante do que a outra, o mundo virou de cabeça pra baixo.
Um povo que não mais reconhece uma flor nem a sua beleza, e nem traduz para si o seu significado, certamente gritará diante do jardim: Valei-me Deus, e agora!?




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Da solidão que é tanta (Poesia)

Da solidão que é tanta


Não é tanto o tamanho da solidão
nem os frutos perversos colhidos
dessa solidão que é tanta
mas o cálice vermelho ainda cheio
o livro marcado no mesmo lugar
a fotografia que quer falar comigo
e essa música que não toca e ouço

não é tanto o tamanho da solidão
nem os frutos perversos colhidos
dessa solidão que é tanta
mas a tarde e o entardecer
a noite silenciosa e o anoitecer
a vida que lentamente se dispersa
e segue o vento em busca de você

não é tanto o tamanho da solidão
nem os frutos perversos colhidos
dessa solidão que é tanta
mas o simples fato da existência
dessa solidão que é tanta...


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 15 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 15

Rangel Alves da Costa*


Mas é um espelho e estou me vendo nele! Disse uma Maria espantada e maravilhada.
Pois é, e como você mesma disse, é um espelho e todos os seus reflexos. Confirmou a umburana cabocla.
Se meu pai encontrasse esse espelho, será que ele iria quebrar?
Não, esse espelho não e nenhum outro espelho ele quebrará mais, mesmo que você tenha um pendurado em todos os cômodos de sua casa. Mas esse espelho que você está se mirando agora ele não pode nem enxergá-lo.
Por quê?
Porque esse espelho só pode enxergar as pessoas de bom coração, as pessoas que possuem pureza e inocência e ainda aquelas que eu quiser. Agora me diga como está se achando?
Sei apenas que deve ser eu mesma, pois parece com a mesma menina que se viu nos outros dois espelhos, aqueles que meu pai destruiu.
Você está se achando feia ou bonita no espelho?
Se eu conhecesse outras pessoas eu poderia dizer, mas não conheço e assim fica difícil. E se as outras meninas forem iguais a mim, aí não haverá mais feia ou menos feia, mais bonita ou menos bonita...
Mas não foi isso que eu quis saber. Eu perguntei se você gosta do jeito que é, com esse sorriso, esse olhar, os cabelos, a cor da pele, tudo que você está vendo...
Ah!, sim, gosto sim. Pelo jeito não sou enjoada não e pareço ser uma pessoa normal...
Normal você não é não, isso eu posso garantir. Você nasceu com uma estrela brilhante no seu destino, com um coração repleto de bondade e amor, como alguém que vai fazer do sofrimento sofrido um grito de liberdade, e não somente sua, mas de muitos...
E todas as pessoas não são assim não?
Quem dera em Deus, se ao menos um grão da humanidade fosse assim. Daí que as pessoas que você encontrará pela frente parecerão verdadeiros inimigos aos vossos olhos, rudes, embrutecidos, brigando entre si e querendo atingir a todos. Não serão todas assim, mas garanto que a maioria procura mais prejudicar o próximo do que conviver harmoniosamente com ele.
Mesmo assim eu vou gostar de conhecer essas pessoas...
Certamente você irá gostar de todos porque é esse o seu destino de luz. É por isso que você nasceu diferente para viver num mundo diferente do que você é. Sua ação terá o dom de modificar muito essa situação, bastando que as pessoas sintam no exemplo o encorajamento para também se transformar.
E quando tudo isso poderá acontecer, quando eu vou poder encontrar com pessoas, com muitas pessoas?
Tudo tem o seu tempo de ser, Maria. Tudo tem o seu momento de acontecer. As coisas simplesmente acontecem mais cedo ou mais tarde, mesmo que a gente em certo momento comece a desesperar e achar que nada de novo acontece debaixo do sol...
Espero que seja logo, pois quero começar a viver diferente. Mas aonde eu vou agora, quando sair daqui?
E começou a ser ouvido um barulho, que ia aumentando cada vez mais e estava cada vez mais próximo. Então a árvore pediu para Maria ficar em silêncio e falou baixinho.
É seu pai que se aproxima. Ele está te procurando e irá encontrar. Fique onde está e não tema que nada de ruim irá lhe acontecer. Não diga nada e silenciosamente volte para sua casa. Não tema que ele não irá lhe agredir nem xingar, isso eu garanto.


continua...




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domingo, 26 de dezembro de 2010

O CEGUINHO DA IGREJA (Crônica)

O CEGUINHO DA IGREJA

Rangel Alves da Costa*


O ceguinho chegava cedo à igreja, entrava pelos fundos, lá pelos lados da sacristia, e depois de trocar a roupa normal por uma esfarrapada, de pobre mais pobrezinho, conversava por alguns instantes com o padre. Era nesse momento que lhe repassava os trinta por cento da esmola do dia anterior, conforme o combinado, e em seguida ia sentar ao lado da porta da entrada do templo cristão.
Um resto de chapéu na cabeça, paletó todo encardido e com mais de cem buracos, acompanhava uma calça ainda em situação pior. E que olhos mais tristes o do homem, todo pesaroso e até com a face um tanto suja de carvão que era para dar um aspecto de pobreza imunda. Ora, se o pobre fosse limpinho não era pobre, o povo logo poderia pensar e negar a esmola.
E assim o ceguinho se colocava todos os dias no seu lugar de sempre, bem na entrada da igreja, onde se presume que as pessoas que vão ali estão de bom coração, aberto para a caridade. E logo para um ceguinho, coitado, que se lamentava de tal destino quase chorando. E assim, mentindo vergonhosamente, balançava sua caneca de alumínio só para ouvir feliz o tilintar das moedas ou observar o reflexo da nota caindo.
Uma esmola para o ceguinho! Pelo amor de Deus, uma esmola para o ceguinho. Quem não o conhecia, ainda não sabia de sua treita, prestava o favor caridoso achando que estaria dispensando na hora uns tantos pecados. Mas quem já conhecia o safado, ia ali depositar o dinheiro com outras intenções.
É que o ceguinho era fofoqueiro de marca maior, via tudo, enxergava tudo, inventava quando não sabia, com a intenção de garantir seu ganha-pão e garantir a porcentagem do padre. Nesse contexto, as madames da sociedade, beatas e outras fofoqueiras do lugar se aproximavam da igreja e logo iam passar perto do ceguinho para saber se ele tinha alguma fofoca fresquinha para vender.
E todas já conheciam a senha, o mote: Uma esmola para ceguinho! Essa é das boas, e custa doistões. E quando a madame baixava a cabeça para colocar a esmola na caneca ouvia a notícia completa. E assim continuava o ceguinho. Uma esmolinha pelo amor de Deus. É de arrepiar e custa trêstões! E lá ia a mulher pagar para saber da vida dos outros.
Certa vez, como quem tem grande visão, o ceguinho resolveu aperfeiçoar seus serviços de fofoca. Teve uma grande ideia e disse ao padre que poderiam enriquecer se ele topasse ajudar no seu intento. Quando soube do que se tratava, o sacerdote se benzeu três vezes, mas por fim decidiu que não era um pecado assim tão grande se praticado na porta, portanto fora da igreja. E como não podia deixar de ser, exigiu dividir meio a meio os lucros.
A grande ideia do ceguinho consistiu numa estratégia até muito simples, plenamente realizável a cada dia. Bastava que o padre esmiuçasse a vida das mulheres no confessionário e em seguida repassasse as verdades arrepiantes e as coisas cabeludas para o ceguinho. Daí em diante bastava cobrar o preço que quisesse. Vivendo exclusivamente da vida alheia como eram aquelas falsas religiosas, até em banco tomariam emprestado dinheiro.
E dito e feito. E o ceguinho começou a implorar: Uma esmola para quem não vê a luz do dia! Mas viu uma coisa que você não vai acreditar e custa vinte contos de réis. E a dita catava na bolsa e depois ficava sabendo que a mulher do padeiro tinha um caso com o leiteiro. E assim ia tocando o negócio. Cem contos para saber que a filha do prefeito tomou remédio para desembarrigar de três meses.
Mas um dia aconteceu uma coisa inesperada. É que chegou um marido preocupado perguntando quantos contos ele cobrava para saber se a mulher o estava traindo. E o pobre do ceguinho achou de responder que o padre havia dito que esse segredo não tinha preço que pagasse, pois até ele mesmo era amante da tal mulher.
E o que se viu em seguida foram cenas hilariantes: o ceguinho e o padre correndo pelo meio do mundo e o marido traído correndo atrás com uma peixeira afiada que até alumiava ao sol.



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Minto não viu (Poesia)

Minto não viu


Se eu disser que te amo
faça o favor de acreditar viu
minto não viu
minto não pro coração
e esse amor é tão verdadeiro
que eu quis enganar a paixão
dizer que não era não
e foi besteira que fiz
passei vergonha na lembrança
coisa feia pra recordação
querendo enganar a mim mesmo
fazendo de conta que era forte
e foi a maior fraqueza
porque me veio a certeza
dizendo na minha cara
que assumir amadamente
o amor é coisa rara
mas quem faz desse jeito
terá mais tarde a satisfação
que é coisa muito mais cara

por isso se eu disser
que te amo
faça o favor de acreditar
minto não
meu amor minto não
minto não pro coração.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 14 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 14

Rangel Alves da Costa*


Mas o que vai ser de mim daqui em diante, já que não posso ficar aqui e não posso voltar pra casa? Não é melhor eu fugir de vez pra bem longe? Foram as indagações que Maria fez à árvore amiga.
Encontre a resposta para suas perguntas respondendo ao seguinte: Você sabe onde fica sua casa? Por acaso sabe o que é o mundo lá fora e como ele lhe espera? Você se acha preparada, com a idade que tem, para seguir sozinha mundo afora?
Não, não e não!
Já que respondeu agora falo eu. Pode ter certeza que falta pouco tempo para que alcance a liberdade que tanto deseja...
Para fazer tudo que eu quiser?
Não, mas tudo que for conveniente fazer. E qual a liberdade que falo? Só pode ser a liberdade que tem as pessoas normais, que podem sair, conhecer pessoas e lugares, viver a vida...
Conhecer meninos bonitos também, assim como um que um dia eu sonhei, que vinha descendo das nuvens no cavalo encantado e que passou por mim e deu um sorriso?
Sim, conhecer meninos bonitos também e os da realidade, não apenas os dos sonhos. Linda como você é, não faltarão meninos bonitos para olhar pra você e se apaixonar...
E o que é se apaixonar?
É complicado explicar, até porque ninguém sabe dizer perfeitamente o que seja paixão. Quem já sentiu diz que é uma coisa maravilhosa que depois vai se transformando em sofrimento.
Não estou entendendo. Pode explicar melhor?
É difícil, já disse, mas vamos tentar. Aquela plantinha ali, por exemplo, começa a sentir que o seu coração bate mais apertado quando encontra ou vê outra plantinha. Ela está com vontade de namorar com a outra plantinha e por isso que o seu coração tudo faz para que isso dê certo...
Mas tem de querer namorar primeiro?
Nem sempre, pois as pessoas às vezes ficam apaixonadas sem namorar. Então, quando começam a namorar é preciso tomar cuidado para que o amor que um sente pelo outro não ultrapasse os limites da satisfação pelo relacionamento, pois quando um começa a querer que o outro viva exclusivamente para si é porque virou paixão.
E aí?
Aí é um problema, principalmente porque o outro nem sempre aceita querer ser dominado, deixando de ter liberdade de viver o seu mundo. É nesse momento que o apaixonado quer demais e o outro começa a impor limites que terminam com as piores consequencias possíveis...
Quais consequencias, por exemplo?
Consequencias como a cegueira da paixão, quando o apaixonado esquece sua própria vida para tentar a todo custo tomar para si a vida do outro; como a loucura da paixão, quando o apaixonado fica completamente louco porque está se sentindo rejeitado; e como a chamada paixão mal resolvida, que faz com que o apaixonado faça tudo para que o outro não seja feliz com outra pessoa.
E depois da cegueira, da loucura e da paixão mal resolvida, como fica a situação entre os dois.
Não é esse o momento ideal para lhe falar sobre essas coisas, mas antecipo que é sempre um final muito triste.
E Maria percebeu que a cabocla estava chorando ao falar estas últimas palavras. E perguntou o que estava acontecendo.
É que já fui vítima da paixão, mas deixe pra lá. Era tão bonito o danado do jacarandá. Se não fosse louco!...
E a cabocla disse em seguida que depois falariam mais sobre o amor, a paixão e outras coisas do coração, pois no momento tinham que resolver outros problemas.
E então perguntou se uma menina tão bonita como ela tinha coragem de fugir de casa mesmo sem estar preparada para o mundo.
Mas eu nem sei se sou bonita. Nunca mais me vi num espelho. Eu já lhe contei sobre os meus dois espelhos?
Eu já sei de tudo, Maria, já sei de tudo. Mas venha aqui mais pertinho de mim e faça o que eu mandar. Escolha no meu tronco um local que fique na altura do seu rosto e passe a mão, esfregando muitas vezes para ver o que acontece.
Então Maria começou a alisar, depois foi passando a mão com mais força e de repente percebeu que o local no tronco estava ganhando uma cor diferente, ficando lisinho e por fim surgiu o espelho mais bonito e brilhante que podia existir na face da terra.


continua...




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sábado, 25 de dezembro de 2010

CANTAREI UMA NOVA CANÇÃO (Crônica)

CANTAREI UMA NOVA CANÇÃO

Rangel Alves da Costa*


Mesmo sem querer, tenho cantado muitas canções que falam em solidão, dor, tristeza, angústia, sofrimento e abandono. Compositor dos meus próprios ais, percebo que as rimas teimaram em esquecer o brilho da estética do amor, a concordância da harmonia com alegria e a precisão métrica da paz.
Juro que não cantarei mais estas canções. Vou jogar todo o meu repertório bem ao longe nas águas do mar, queimarei suas letras na fogueira dos dias idos e deixarei que o vento leve as lembranças do que cada verso triste dizia. Viverei outro tempo, um tempo maravilhosamente novo e cantarei uma nova canção.
Quero uma canção passarinho, revoada, canção ninho e canção filhote, verso pouso e pousada, como se pelos ares fosse agora minha estrada. Canção de pio, de piado, arrolho, chilreado, gorjeio, trinado, serei um pássaro treinado para cantar alegremente para a vida. Porque nunca quis ouvir o sabiá, nunca me dei conta do uirapuru, nunca me dei conta do canário, pensando que bastava meu cantar sozinho, gemido triste de passarinho.
Quero uma canção de alvorecer, de entardecer, de viver; quero um cantar orvalhado, molhado da noite, sem gosto de lágrima, sem lembrança de mágoa, um canto que chega sozinho e vai abrindo caminho, e de repente já é manhã, já é jardim, já é flor. E quando for primavera quero um cantar colorido, da cor do arco-íris do seu vestido, cor de coração reconstruído, com cor sobre cor, coração na canção.
Quero uma canção janela, com sol entrando nela; uma canção porta aberta, com um caminho adiante e uma fronteira que liberta; um canto sem trancas, sem fechaduras, com chaves esquecidas em qualquer lugar, com muros baixinhos e veredas por todos os lados, com buracos na parede por onde entre o sol e o luar, sem parede sem nada, que é pra todo mundo chegar. É essa canção que quero, feito bolha de sabão, onde tudo é ilusão e coisa mágica de viver.
Quero uma canção você, eu, os outros, todo mundo, quem é amigo e quem ainda não é. E que todos venham ouvir uma canção bonita, excluída a nota aflita, somente dizendo que amo você, que tenho amigos, que nunca estarei sozinho ao longo do caminho, pois todos que ouvem são capazes de cantar também, e em coro dizer que saia da rua, que entre que a casa é sua, que tome água e receba o pão, pois não o conhecia, mas veio certeza que é irmão.
Quero uma canção diário, bilhete, caderno guardado no armário, carta de amor e de amar, rabisco em qualquer papel, prometendo da terra ao céu. E toda escrita bonita, de doce recordação, tudo guardado num baú feito um coração, que abro pra não chorar ou sofrer, mas pra viver o passado que de contente me fez presente, mas fez agora para recordar o que de melhor a vida pôde ofertar. E veja como você é bela, e veja ainda você olhando para mim do outro lado, num ontem que não é passado porque sinto tudo como agora.
Quero uma canção com um prato na mesa e até com sobremesa; uma canção com Zezinho de barriga cheia e Mariazinha dizendo que quer mais um pouquinho, pois alguém fez pra eles uma canção de arroz com feijão, farofa e macarrão, salada e leite com pão, e não esqueceu o copo d'água, o de vestir e sorrir, de ser gente e ter dignidade, e que não é nenhuma bondade. Simplesmente reconhecer que uma canção tem o poder de encher barriga, presentear com sorriso e alegrar o coração.
Quero uma canção irmão, pai, filho, geração. Uma canção amém, pois Deus é meu cantar também, e sem Ele nem música nem ninguém.




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Cordel do amor encantado (Poesia)


Cordel do amor encantado


Não fale se não conhece o amor
pensando que ele é bicho sem cabeça
que ele é fogo-corredor
que faz medo assim que o dia anoiteça
que causa entre todos o pavor

Não se espante se isso for verdade
para os que não têm sentimento
que veem no amor a maldade
maltrata o coitado sem cabimento
e nega o seu poder na maior sinceridade

E mais cedo ou mais tarde
quando vem a danada da solidão
e o coração começa a bater de verdade
se ajoelha e ao amor pede perdão
implorando um olhar por caridade

Por isso não se brinca com fogo
pois o amor é fogueira bem ardente
faz da sua labareda um jogo
esturricando até quem não sente
quanto mais um coração demagogo


E depois ainda canta folgado
que é cordel do amor encantado
nunca foi visto nem foi achado
mas está de frente e do lado
pois é amor bicho arretado.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 13 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 13

Rangel Alves da Costa*


Enquanto o pai rugia, Maria se escondia; enquanto o pai vociferava; Maria se amoitava; enquanto ele prometia vingança, ela se protegia num exército de aliança.
Na sua correria para fugir do pai e ir conhecer o mundo, Maria não foi muito distante, não conseguiu ir um passo adiante daquele reino encantado que conhecera há instantes atrás.
Com efeito, na ventania que ia, parecendo que ia dar no outro lado do mundo em segundos, não conseguia ir além da mataria bem pertinho de sua casa.
Mataria, reino encantado, jardim de cinzas, aridez florida, lar da umburana cabocla, do passarinho fofoqueiro, das plantas e bichos falantes, das pedras sentimentais, do mundo ali existente.
Quando ela passou da cortina verde e pretendia romper o círculo da misteriosa e instigante natureza para seguir sem destino, eis que mil braços impedem, mil braços abraços, mil vozes ordenam que pare e uma voz em especial diz que não precisa fugir.
Essa voz absoluta, sobressaindo-se entre todas sem ser mais alta nem mais forte – na verdade, doce, sublime e suave – saiu da raiz da cabocla e espalhava-se pelo seu tronco, galhos e folhagens.
Mocinha linda que o vento leva, ou ela pensa que o vento vai levar, deixe dessa correria, deixe desse avoar, deixe de desespero, se acalme e venha cá.
Venha cá agora mesmo, e nem tente ser afoita, senão prendemos na terra, escondemos você na moita, deixemos que fique calma até que a razão lhe convenha. Venha...
Venha cá, deixe de pressa, é a paz que nos interessa, mesmo que sua atitude seja no mal uma virtude, pois ninguém nasceu bandido pra viver preso e escondido, ninguém merece viver sofrendo sem nada ter.
Isso é apenas uma parte do muito que tenho a dizer, pois desse momento em diante cuidaremos de você, e ninguém será maluco de vim aqui contradizer. Só entra por aquela entrada quem na vida tem estrada; quem anda por cima de espinho aqui não encontrará caminho.
E chegue mais, venha cá, descanse, é bom respirar, sente aqui nesse lajedo, que é pedra que não mete medo e que vai lhe confortar.
Venha logo, venha cá, sente aí, descanse já, e se der sono adormeça, deixe que o dia amanheça, dormirá bem protegida, sonhará com sua vida e quando no canto acordar poderemos conversar, dizer o que está se passando, essa história consertando, até tudo melhorar.
E Maria se aproximou da cabocla e disse que precisava sair dali agora mesmo, fugir de qualquer jeito, pois o seu pai a qualquer instante chegaria para lhe buscar.
E a cabocla bem calma, mostrando sabedoria, respondeu que gostaria de conversar com ela somente quanto estivesse mais calma e descansada, mas como ela insistia, no mesmo instante ouviria e encontraria solução.
E quando Maria começou a contar tudo desde o início, todo seu martírio e sina, a cabocla pediu desculpas e disse que não precisava reviver tanto sofrimento, vez que ela já conhecia tudo mesmo antes dela nascer.
Disse que por enquanto não falaria sobre isso, pois era assunto pra dia inteiro, mas que ela tivesse certeza que tudo que ocorria naquela casa e sua família, ela sabia primeiro.
E sabia não porque era fofoqueira, porque vivia perguntando ou se intrometendo na vida dos outros, procurando saber do que não lhe compete conhecer.
Mas sabia pelos olhos e ouvidos da natureza, que como o próprio Criador, é onisciente, onipotente e onipresente.
Mas como assim? Perguntou Maria.
A natureza é assim porque é a plenitude da vida; é a vida sem mácula nem nódoa; é a verdade absoluta da criação. E por não ser egoísta possui braços e olhos para proteger as pessoas boas como você.
Explique melhor, pedia Maria.
A natureza é também proteção, menina bonita. Mas a gente só sabe proteger conhecendo. Por isso mesmo é que o destino divino nos permitiu vim fazer moradia bem aqui ao seu lado, ao lado de sua casa, pois uma força superior já sabia o que lhe iria acontecer.
E como não deve haver tristeza sem alegria, é que nos foi dada a missão de ser o seu espelho para refletir toda a verdade e toda felicidade, qualquer dia e sempre, mesmo que se pense que é muito tarde.


continua...




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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

UM TEMPO DE ILUSÕES (Crônica)

UM TEMPO DE ILUSÕES

Rangel Alves da Costa*


Verdade seja dita, mas pouquíssimas pessoas sabem e vivem o significado do natal e da passagem de ano. Para uns, não passa de motivações para fazer compras; para outros é o tempo ideal para se fartar de comidas e bebidas; e ainda outras veem nas festas, nas comemorações e nas trocas de presentes os únicos simbolismos das festas de final de ano.
Pobre gente materialista, de espírito consumista e de pouco sentimento no coração. A grande maioria esquece esses momentos ideais de reflexão e deixa de ouvir seus gritos internos - que tanto precisam ser atendidos para saber que a vida precisa de atenção – para satisfazer aos apelos do comércio, dos festins e da banalização do senso de amizade e compartilhamento.
Quantos amigos secretos a pessoa precisa retribuir presentes para saber que a verdadeira amizade é retribuída a cada dia, com amor, com palavras de conforto, com afeto e compreensão? Quantos presentes alguém precisará embrulhar para se redimir das distâncias, das inimizades e da desvalorização do outro durante os onze primeiro meses do ano? Será que o coração se enche de tanta bondade apenas quando chega o mês de dezembro?
Muitas outras indagações poderão surgir e todas necessitando de respostas que devam ser dadas ao coração de cada um. Será que as pessoas são boas e amigas somente no período natalino? Quantas pessoas fazem do costume da troca de presentes um comércio, dando qualquer coisa e exigindo de volta algo luxuoso ou muito mais caro? Será que nunca viram comida, nunca se viram diante de uma mesa farta, para ter que provar ao vizinho que sua ceia natalina foi toda produzida com produtos importados?
Ao chegar o mês de dezembro o mundo se transforma num verdadeiro teatro de absurdos. Enquanto um dia um menino pobre nascia numa manjedoura, colocado em berço de capim e entregue às perseguições e adversidades do tempo, as pessoas comemoram o seu nascimento num luxo desenfreado e se endividando até o pescoço e até o mês de novembro do ano seguinte. Para quando dezembro chegar começar novamente as ilusões, as demonstrações de falsas amizades e a comercialização de sentimentos.
Tempos difíceis estes, de pura ilusão e de um povo que parece jamais ter aprendido que a humildade, a modéstia e a simplicidade são a verdadeiras riquezas do ser humano. As pessoas, ao invés de entupirem seus cartões, cheques e tudo o mais com banalidades, com futilidades que se rasgam e se quebram no dia seguinte, deveriam procurar saber quanto vale um abraço, um aperto de mão, uma visita sincera, um diálogo amigo, uma ajuda num momento de necessidade, um pão para quem tem fome.
Se Belchior levou ouro para ofertar quando do nascimento do menino em Belém, Baltasar presenteou com incenso e Gaspar ofereceu mirra, o fizeram diante suas hierarquias de sacerdotes e para simbolizar com o gesto a nobreza do pequenino que nascia, sua importância para a religiosidade e o caráter de imortalidade que passaria a ter dali por diante. E o que pretendem simbolizar essas pessoas que andam se atropelando pelo comércio para se endividar cada vez mais?
Além disso, e não há como esquecer, do mundo de aparências que se forma por toda parte. Quem decisivamente não gosta do outro e fala mal deste durante os onze meses do ano, quando chega dezembro vai com mil abraços, beijos, desejos de um monte de coisas. O inimigo de fogo a sangue de repente é escolhido como amigo secreto do outro, e então vão trocar presentes e serem amigos por um dia. Isso é simplesmente ridículo.
Enquanto isso, as luzes apagam mais cedo em certos lugares porque não haverá nenhuma ceia, como não houve almoço nem café da manhã, não há árvore de natal enfeitada nem troca de presentes, apenas a certeza que o natal existe. E antes de deitarem de barriga vazia, ainda assim os vizinhos de sorte se cumprimentarão e se desejarão um feliz natal e próspero ano novo.
Bastaria-me ganhar um presente vindo destas vozes e com estas palavras. Seria verdadeiramente um feliz natal.



Poeta e cronista
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Para nós e os outros (Poesia)

Para nós e os outros



Se por onde caminhamos
há tanto fogo e tanta chama
há uma pedra cortante que inflama
há labirintos e curvas a nos olhar
bem que poderíamos caminhar felizes
porque tudo vai ficando para trás
e ainda nos restam forças
para todo o percurso da vida

Se por onde chegamos
há tanta inveja fazendo cortesia
há tanta falsidade pregando desarmonia
há tanto inimigo a nos rondar
e ainda assim conseguimos sobreviver
bem que poderíamos fazer moradia
e onde houver tristeza levar alegria
mostrar o possível amor noite e dia
e que a paz reinará ainda que tardia.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 12 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 12

Rangel Alves da Costa*


Quando o pai de Maria saiu da choupana para saber onde estava a filha, só avistou um vulto veloz correndo adiante, já sumindo por dentro da mataria.
O homem vociferou, estremeceu, avermelhou de raiva dos pés a cabeça, ficou com os olhos chispados e mãos que pareciam estridentes. Espumou pelo canto da boca, começou a fumaçar pelo nariz.
O homem balançou o corpo nervosamente e se preparou para sair em perseguição. Contudo, mesmo parecendo um cavalo arredio, sua correria não demorou muito.
Nem avançou cinco metros e caiu horrivelmente no chão. E foi realmente uma queda horrível, terrível, estrebuchadora, dolorida demais para quem ia numa velocidade estonteante.
Stribuummm! Ploft, pluummm! E o homem ficou esparramado no chão parecendo melancia quando cai ou jaca madura demais despencando do alto. Stribuummm! Ploft, pluummm! E o perseguidor todo estendido no terreno pedregoso e de mataria baixinha.
Maria não viu e nem podia ver, pois estava cumprindo seu destino de fugitiva. Mas a verdade é que só não foi alcançada facilmente por causa de uns cipós que se espalhavam pelo terreno defronte sua moradia.
Já tendo conhecimento de tudo e sabendo do desespero da menina em correria, os cipós não pensaram duas vezes quando o pai da menina quis correr por ali para alcançá-la. Só foi o homem abrir a perna para formar o vão do passo e os cipós se enroscaram no pé de trás.
O pé da frente esperou, porém o pé de trás não foi. E o resultado todos já sabem. Um homem com quase dois metros de altura, sem ser magro nem nada, vergonhosamente estirado no chão e sem poder se levantar.
Sem poder levantar porque os cipós não esqueceram de se entrelaçar nos dois pés quando o homem já estava estrebuchado.
E lá vai a esposa correndo, avexada, sem saber ao certo o que tinha acontecido com o homem. Não viu a história toda porque tinha sido impedida de sair da cozinha, sob ameaça.
Ao ouvir o baque da queda e depois alguns gemidos, não suportou ficar aprisionada e correu para ver se o pior tinha acontecido.
E quando viu o homem estatelado, querendo se mexer sem poder, gemendo feito um garrote laçado e jogado ao chão, pensou que ele havia tido um piripaqui, um ataque do coração ou qualquer coisa muito grave.
Com a queda o joelho do homem ficou afetado, por isso os gemidos. Mas gemia também de raiva porque não podia levantar de jeito nenhum. Quanto mais fazia esforço, mais o joelho doía e os cipós apertavam-lhe o calcanhar.
Assim que viu a esposa tentando ajudá-lo a levantar, a primeira coisa que disse, com o embrutecimento de costume, foi que podia se virar sozinho. A segunda foi perguntar por que havia saído da cozinha. E a terceira foi se tinha visto Maria.
A mãe respondeu que não e disse que quem deveria saber era ele, vez que estava com ela.
Já em pé, todo torto e estropiado, com o joelho machucado, disse que Maria havia escapado de suas mãos, havia fugido, mas que não tardaria de voltar pra casa, tinha certeza.
E quando ela voltasse ia ver com quantos paus se faz uma canoa, o que é bom pra tosse, ia sentir o que é o inferno em vida.
Cruz credo, homem, vire essa boca pra lá, tenha fé em Deus! Foi o que disse a esposa, toda medrosa pela reação que pudesse vir. E veio.
Já disse que não tenho filha para o mundo. Se ela resolveu conhecer outras coisas por conta própria, então vai primeiro conhecer a dor. E pelas mãos do próprio pai.


continua...




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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

ESPELHO SUJO DE SANGUE (Crônica)

ESPELHO SUJO DE SANGUE

Rangel Alves da Costa*


Ainda não se derrama pelo vidro, sujando a moldura, respingando pelo chão e pela parede, mas é meu esse sangue no espelho. Tem o meu cheiro, tem a minha veia, tem a minha lágrima, tem o meu suor, tem o meu sangue. Tem a minha vida! Por isso é meu esse sangue no espelho.
Pedi que ouvisse a música de Beto Guedes e você nem deu atenção: "(...) Quando eu falava dessas cores mórbidas/ Quando eu falava desses homens sórdidos/ Quando eu falava desse temporal/ Você não escutou/ Você não quis acreditar, mas isso é tão normal/ Você não quis acreditar e eu apenas era/ Cavaleiro marginal lavado em ribeirão/ Cavaleiro negro que viveu mistérios/ Cavaleiro e senhor de casa e árvores/ Sem querer descanso nem dominical/ Cavaleiro marginal banhado em ribeirão/ Conheci as torres e os cemitérios/ Conheci os homens e os seus velórios/ Eu olhava da janela lateral/ Do quarto de dormir/ Você não quis acreditar, mas isso é tão normal/ Você não quis acreditar, mas isso é tão normal/ Um cavaleiro marginal banhado em ribeirão/ Você não quis acreditar que eu apenas era...".
Pedi a você, mas você não quis acreditar. Agora não adianta pranto nem lágrima, se o momento de pavor já passou, se a dor já passou e só resta um espelho sujo de sangue. Se fosse possível colocar outro vidro, comprar outro espelho e colocar no mesmo local e assim tudo voltar a ser como antes, até que seria menos sofrimento. Mas você não poderá colocar novamente minha fotografia no espelho, o meu sorriso triste nem aquele que pensava que era sem jamais ter sido. Um dia eu disse que isso poderia acontecer, mas você não quis acreditar...
Pedi a você que ouvisse Titãs para me entender, para mais tarde não reclamar, mas você não quis acreditar: "Devia ter amado mais/ Ter chorado mais/ Ter visto o sol nascer/ Devia ter arriscado mais/ E até errado mais/ Ter feito o que eu queria fazer.../ Queria ter aceitado/ As pessoas como elas são/ Cada um sabe a alegria/ E a dor que traz no coração.../ Devia ter complicado menos/ Trabalhado menos/ Ter visto o sol se pôr/ Devia ter me importado menos/ Com problemas pequenos/ Ter morrido de amor.../ Queria ter aceitado/ A vida como ela é/ A cada um cabe a alegria/ E a tristeza que vier... (...)".
Tudo isso pedi a você, mas você não quis acreditar. Você não me escutou. Ainda bem que você não ouviu nenhum barulho, pois o tempo, ao menos esse tempo triste e de nuvens carregadas sempre era meu amigo. E há um temporal lá fora, há tempestade destruindo tudo, há um vendaval levando o que encontrar, há uma escuridão de sangue no meio da noite, e há também a vida e a morte nos escombros e aqui nesta sala. A natureza está em fúria, mas satisfeita pelo dote que não há de herdar.
Mais tarde, depois, daqui alguns dias ou nunca, se um dia o sol voltar a brilhar abra um baú que certamente será encontrado em qualquer lugar e leve para sua estante algumas coisas escritas que tanto li e aprendi a gostar. Leve Goethe e "Os sofrimentos do jovem Werther", leve Salinger e "O apanhador no campo de centeio", leve Baudelaire e "As flores do mal", leve James Joyce e "Ulisses", Dostoievski e "Crime e castigo". Lembre de queimar os demais livros, principalmente aqueles de poesia.
Coloque-os todos numa fogueira e depois leia o meu testamento: "O verso é afiado, e mata; a palavra é punhal, e mata; a rima é cortante, e mata; a métrica é armadilha, e mata; a verdade dói, e mata; a palavra erguida, vivente e ameaçadora, é inimiga, e mata; os personagens, todos os personagens sou eu, e morro".



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Sol dessa noite (Poesia)

Sol dessa noite


Tão só essa noite
que até fui sol
sol dessa noite
pensando que seria só
só essa noite
mas não
e nunca mais
nem a noite
nem o luar
por causa do sol
quando estava só
no sol dessa noite

comecei olhando a noite
depois chamei a lua
e veio a lembrança tua
e me vi tão só
que a tristeza ardeu
feito sol
no sol dessa noite
e eu tão só
deserto e sol
no meio da noite.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 11 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 11

Rangel Alves da Costa*


Novo espelho, novo espelho, que maluquice é essa? De onde essa árvore cabocla foi tirar a ideia desse espelho, o que ela sabe sobre os meus espelhos?
Árvore falante já é maluquice, e imaginar que ela já estava sabendo de segredos seus, aí já era maluquice demais.
Caminhou cuidadosamente pelo caminho de casa, com a maior precaução do mundo para não ser vista por seu pai. Melhor não ser vista por ninguém.
Se sua mãe soubesse que ela havia cumprido a promessa feita e saído para passear naquela manhã, certamente que ficaria sem acreditar, principalmente pelo perigo que tal atitude poderia provocar.
Mas se além disso ela soubesse que sua filha falou com planta, bicho, vento, passarinho fofoqueiro e uma árvore misteriosa, aí não tinha dúvida que ela poderia até desmaiar.
Foi se achegando devagarzinho, pé ante pé, até o local da janela. Porém quando já estava defronte, prestes a se preparar para subir e entrar, percebeu que ela estava fechada.
Não havia deixado aquela janela fechada. Lembrava muito bem que nem encostada ela estava, mas totalmente aberta. Ela estando escancarada ninguém pensaria que ela havia saído.
Ela estando agora fechada era diferente, pois alguém tinha estado ali. E se entrou no quarto percebeu que ela não estava lá. E agora?
Sua mãe fechou a janela. Ouviu a mesma plantinha que quase pisava da outra vez dizer.
Olhou assustada para a plantinha e percebeu que, diferentemente da cor acinzentada de instantes atrás, agora ela já estava com uma cor diferente, como se estivesse retomando completamente a vida.
Depois quero falar com você, mas agora preciso mesmo é entrar na casa sem ninguém perceber. Com a janela fechada não sei o que fazer.
E a plantinha pediu que ela se abaixasse um pouquinho que iria dizer o que fazer para entrar na casa sem ser percebida.
Como se fosse o maior segredo do mundo, disse no ouvido da menina que bastava que ela desse três toques bem leves na janela, pedisse baixinho pra ela acordar e depois fosse empurrando devagarzinho.
Dito e feito. Num minuto percebeu que a janela já podia ser aberta e quando empurrou-a de vez teve uma inesperada surpresa.
Seu pai estava em pé na entrada do quarto, e pelo visto somente esperando que ela chegasse.
No mesmo instante Maria começou a temer o pior. Tremeu de corpo inteiro, ficou da cor de tomate, o cabelo talvez tivesse sumido da cabeça. Ela mesma queria deixar de existir.
Filha minha não pula janela. Entra e sai pela porta da frente. Nem pense em pular novamente a janela. Se quiser entrar nesta casa tem que ser pela porta da frente. E vá logo que estou esperando. Falou o homem estático.
Maria olhou nos olhos do pai. Viu a mesma violência de antes, sentiu o mesmo ódio e o desejo de investir furiosamente contra ela novamente.
Maria olhou pelo restante do corpo e o via estremecer de raiva, deixando cair na mão direito um arreio de couro cru, daqueles que ele usava para bater em bicho brabo e que não queria ser domado.
Cada lanhada com aquele arreio era certeza de ficar filete de sangue.
Maria disse apenas que já ia entrar pela porta. Assim que saía do lugar lhe veio a estranha ideia de dar mais três leves toques na janela.
Assim ela fez. Deu três leves toques e a janela fechou imediatamente. E então Maria saiu em disparada pelo meio do mundo.
Maria corria feito vento. Maria era veloz feito ventania...


continua...




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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

ARIDEZ (Crônica)

ARIDEZ

Rangel Alves da Costa*


Até que a estação está chuvosa, orvalha na noite, o vento sopra seu sopro apressado, a lua se derrama na escuridão e até o sol anda meio sonso, com poucas palavras, querendo se esconder um tantinho aqui, um tiquinho acolá. Até que a vida dá para ser vivida, mesmo com a aridez que penetra no espírito feito espinho de quipá.
Juro por Deus que eu pensava que aridez era somente coisa de sertão, de sol que se espalha pelas paisagens e vai deixando tudo triste, penoso, murchando e faminto. Pensava que existia somente na terra que secava pela falta da água milagrosa, no verdejante cenário que se tornava acinzentado e depois ia tudo virando pó e morrendo.
Eu juro que pensava que aridez era sinônimo de terra rachada, esturricada, inadequada para chamar vida para o seu leito de pedra e dor. Tudo isso eu pensava, mas hoje sei que a aridez que comecei a conhecer possui outras feições e outras causas, presentes sempre na desertificação da esperança, na secura da alma e na estiagem espiritual.
Tal qual a outra, a minha aridez é também castigante e causticante, é coisa de clima adverso mesmo. Climatologia num ser presentemente ausente. E talvez seja no clima que haja uma possível explicação para essa aridez molhada no canto e face.
Ora, vejam o que dizem os homens do tempo: o clima árido ou desértico é caracterizado pela escassez de chuvas, pelo sol escaldante e pelas paisagens mortas, com massa de ar quente durante o dia e frio ao anoitecer, com terra disforme e pedregulhos espalhados ao longo de suas extensões e marcados pela vegetação rasteira, arbustos espinhosos e plantas cactáceas.
Ora, mas esse não é o clima, sou eu. E sou eu porque sou desértico, com escassez de tempo bom para nutrir a vida e proporcionar esperança de qualquer semente, vagando pelos sóis escaldantes dos dias infindos e afogado nas lágrimas derramadas no rio da noite. Sou eu porque sou terra disforme, árida, pobre, cortante, habitada por espinhos cortantes e com o mesmo amanhã de angústia e sofrimento.
Não me afastei um só ponto do que sou, buscando assim que a voragem da esperança chegue na próxima ventania e retome se lugar em. Tenho aos meus olhos os meus salmos, os meus provérbios, as minhas lições de sabedoria, todos os cânticos dos cânticos, até falo por Eclesiastes e caminho pelos mesmos caminhos dos evangelistas. Ainda assim me sinto árido, impotente para sorrir qualquer lábio de satisfação.
A igreja do meu coração está mais cheia de fé do que nunca, velas acendem e os anjos chegam para brincar comigo e dizer que logo a alegria virá, pois tudo é passageiro. Mas nada acontece de novo debaixo do sol, nem a mesma água do rio corre mais, nem o vento norte desponta do lado norte, nem os dias são mais divididos em noites e dias. Tudo é noite, açoite, grito, aflito, eco de dor, desamor...
Queria ao menos ouvir tua voz agora. Vejo que o horizonte está mais escurecido e talvez chova ao entardecer. Se for tempestade melhor ainda, pois chegará com a força de levar pra longe toda essa aridez espinhenta que me faz vegetar na minha vegetação cinzenta. Queria conversar contigo e dizer que se a chuva não cair será difícil chegar ao nosso encontro marcado para qualquer dia na vida.
Posso partir antes de esse dia chegar. Porque o horizonte lá fora está escurecido, mas ontem também foi assim, e antes de ontem e sempre. E se a chuva não chegar não tenho mais lágrima para chover, não tenho mais lágrima, não tenho mais...




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O sabor (poesia)

O sabor



Nunca mais experimentei
amor com groselha
dizem que é muito bom
beijar sabor de pimenta
prefiro suco de tamarindo
pra beber no próprio corpo
do que sugar suor
com morangos silvestres azuis
mas é tudo questão de gosto
pois gosto de melancia
antes de fazer amor
e pinha sem caroço depois
mas tem gente que prefere
carambola com ki-suco
e suco verde de pimentão
e tudo jogado pelo corpo
suas curvas e passagens
como se o sexo não tivesse
o sabor único e gostoso
de café com leite
quentinho ao anoitecer
requentado ao amanhecer.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 10 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 10

Rangel Alves da Costa*


Ficou pouco tempo naquele lugar que logo passou a chamar de reino encantado. Não sabia o que reino nem encantado, mas ouviu uma vez sua mãe falar em coisa parecida.
Gostou do nome. Gostou do reino encantado, então aquele misto de mato e folhagem seria o seu reino dali em diante, onde buscaria se encantar com as coisas da natureza.
Além da cabocla, pois preferia chamar assim, pôde perceber outras árvores miúdas, rasteiras; uma grande quantidade de plantinhas e que certamente dariam flores se por ali chovesse com frequência.
Capinzal de pele macia e cactos sempre verdejantes e espinhentos, moitas, buracos, pequenas veredas, de onde de vez em quando surgia algum pequeno animal. Pelo cantar disperso, logo se percebia a grande quantidade de passarinhos existentes.
E muitas pedras, galhos pendidos, mortos; garranchos tronchos, espalhados pelo chão, pisoteados, carcomidos. E uma pedra bonita, parecendo um banquinho talhado à mão logo abaixo da cabocla.
E quando já caminhava para sair, percebeu uma pequena ventania se formar unicamente no lugar e folhas ziguezaguear em festa ao seu redor. Era tudo diferente, bonito e envolvente.
Mas tinha de sair porque seria perigosa sua ausência no quarto por muito tempo. Se o seu pai chegasse ali e não lhe encontrasse o resto do resto da choupana cairia.
Mas conhecendo esse lugar e tendo gostado tanto, certamente que viria ali outras vezes, todos os dias, sempre que pudesse, pois alguma coisa falava ao seu espírito que muitas coisas importantes poderiam acontecer no local.
Ao dar o olhar de adeus aos novos conhecidos e dar um passo em direção à estradinha, ouviu vozes. Eram vozes, tinha certeza.
Menina bonita, foi bom conhecê-la!
Não vá agora não, fique mais um pouquinho com a gente. Esse lugar sem vida já estava se tornando num verdadeiro jardim.
Se você voltar mais vezes prometemos muitas surpresas boas. Você volta?
Você vem aqui mais tarde ou amanhã. Se vier eu peço por favor que traga uma cuia de água pra matar um pouquinho a sede de muitas plantas que estão precisando ao menos de uma gotinha de água.
É, a flor do campo tá morrendo, o lírio do campo também. A maioria das plantinhas daqui estão adoecendo rapidamente, estou enfraquecendo e não viverão muito tempo se não receberem ao menos uma gotinha d'água.
Muitas das que estão aqui e parecem já mortas, ainda não partiram não. Estão em estado terminal, mas se chover um tiquinho logo recuperarão as forças e viverão ainda por muitos anos.
Ei, menina de olhar triste, olhe pra cá!
Eram vozes e mais vozes, palavras e palavras que chegavam a confundir Maria. Nunca tinha visto planta nem bicho falar, nunca que soubesse que ao menos isso pudesse acontecer. Mas a verdade é que estava acontecendo.
Pensou que aquilo tudo não passava de uma fantasia, de uma miragem, de algum sonho maluco ou de qualquer coisa que acontece somente com as pessoas que nunca estiveram no meio da natureza.
Responderia ou não. Não iria responder por que senão tão cedo não sairia dali e precisava voltar pra casa urgentemente. Mas uma voz lhe chamou a atenção de modo diferente. E essa voz repetiu:
Ei, menina de olhar triste, olhe pra cá!
Olhou em direção à voz e se deparou com a cabocla. Era ela que falava sim, e dia mais:
Amanhã volte aqui e verás como está diferente no seu novo espelho!


continua...




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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

TRÊS REIS MAGROS (Crônica)

TRÊS REIS MAGROS

Rangel Alves da Costa*


Como se percebe pelas ilustrações nos livros de episódios natalinos, os três reis magos da história bíblica – que talvez tenham sido sacerdotes ou astrônomos - eram corpulentos, bem apessoados, com grande disposição física, e isto comprova a empreitada que fizeram para homenagear o nascimento daquele menino em Belém.
Com efeito, conta a tradição cristã que Belchior, Baltasar e Gaspar, guiados pela estrela da natividade que anunciava a vinda ao mundo do menino Jesus, seguiram do leste rumo ao local da manjedoura para dar as boas-vindas ao Salvador, e lá depositaram seus presentes: ouro, significando a realeza; incenso, representando a fé; e mirra, representando a imortalidade.
Eram muito diferentes, pois, de outros três reis que se tem notícia, que ao invés de magos eram magros. E magros na inteira concepção da palavra, pois eram esqueléticos, raquíticos, ossaturas vestidas em frangalhos, coisa de causar dó a quem os olhasse na sua caminhada pelas terras esturricadas de um outro Belém. Seguiam suados, famintos, sedentos, cansados e desesperançados, e ainda por cima debaixo de um sol de mil fornalhas crepitantes.
Os três reis magros cortando as terras sertanejas, diferentemente daqueles outros três citados pelo evangelista Mateus, não levavam nenhum presente, não iriam reverenciar ou agraciar ninguém. Muito pelo contrário, o nascimento em que eles estavam envolvidos era mais um fugir da morte. Seguiam debaixo do sol a pino com a intenção de pedir na cidade qualquer alimento que pudesse afastar por instantes a fome dos seus.
Eram três os reis magros. Bastião carregava um saco vazio nas costas, implorando aos deuses das caatingas e ao Deus maior de toda sorte que alguém de mais posses colocasse ali dentro um pão dormido, uma farinha de milho ou um pouco de qualquer coisa.
Niceto levava um pequeno cesto de cipó na cabeça, também esperançoso que alguma mão bondosa colocasse ali um punhado de arroz, um tiquinho de feijão e, com a graça divina, um pedaço de mortadela.
O último, Beraldo, que era o mais triste dos três, não levava nada não, apenas a vontade de pedir e a desconfiança de que não conseguiria nada daquela vez, como ocorreu nas outras vezes, que teve de se humilhar atrás de um remédio para amarelão. O prefeito disse que só tinha remédio para vermelhidão, lascando-se a gargalhar em seguida.
Aos saírem de suas taperas, em terras muito distantes, nos escondidos do fim do mundo, deixaram suas famílias desalentadas em frente ao barro carcomido pelo tempo e pela impiedade da natureza.
Tudo parecia que iria cair: os barracos na próxima ventania, os meninos a qualquer dia, as senhoras não se sabe até quando suportariam em pé. Quem olhasse para os meninos via somente um monte de cambitos e ossos e uma barriga descomunal, emoldurando as feições marcadas pela fome e tristeza.
Nem os meninos nem as mulheres sabiam, mas os três reis magros seguiam rumo à cidade em plena véspera de natal, no dia em que as comemorações, as trocas de presentes e as comilanças são vastas e até exageradas. Carneiros, porcos, perus, galos e galinhas, carne de todo tipo, é um festim que faz parecer que todos vivem em eterna bonança.
Ora, mas que dia mais inapropriado para esmolar na cidade. No dia da troca de presentes, as pessoas só pensam nos presentes e não têm tempo pra dar atenção a pobre. No dia de fogões entupidos e fornos soltando sabores pelos ares, ninguém vai querer saber da fome dos outros. No dia de se comemorar o natal não era momento para se entristecer com a angústia e pobreza dos outros. Se ao menos fossem levar presentes, mas foram logo pedir qualquer coisa...
E os três reis magricelas fizeram o caminho de volta. Não conseguiram nada na cidade, mas cada um levava um presente para os seus: a fé, a esperança e o amor.




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Não (Poesia)

Não


Ai de mim
de tanto sim
e apenas sim
e tudo enfim
ter que ser sim
sem nunca um não
não é essa a vida
não é isso que quero
não é o que vou aceitar
não é o que vão me fazer
viver assim
com tanto sim
que não existe em mim
porque sou não
não sou o que querem
porque sou o quero
e sou não
não e em tudo não
até onde não sou
onde não sei se sou
se sou não ou não.


Rangel Alves da Costa

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 9 (Conto)

A SOLIDÃO E A ÁRVORE - 9

Rangel Alves da Costa*


Prometido e cumprido. Dito e feito.
Logo ao amanhecer do dia, sem ao menos querer saber se o seu pai estava nos arredores ou não, Maria abriu a janela, cumprimentou o sol que ainda estava mansinho e pulou para fora.
Pulou a janela e desceu tranquilamente até um pequeno jardim de galhos secos que sua mãe insistia em manter rodeando o barraco.
Sua mãe, talvez com a inocência de sertaneja que nunca perde a esperança, vivia dizendo que um dia ainda ia chover, ainda ia verdejar, ainda ia florir.
Ao dar o primeiro passo para seguir adiante, Maria pensou ter tropeçado numa plantinha seca e se agachou para ajeitá-la, acariciá-la. Fez isso com tal formosura que parecia estar cuidando da mais bela flor de um jardim florido.
Ao terminar seu reparo, dizendo que encontraria água para molhar ali, ela se preparou para seguir em frente quando parou por um instante porque pareceu ouvir um "muito obrigado, mãos de fada".
Teria ouvido isso mesmo, saído de uma voz suavemente fininha? Não, não seria possível. E seguiu adiante, lembrando que tinha de sair dali o mais rápido possível antes que o seu pai pudesse aparecer e destruir sua manhã.
Quanto já estava entrando nos matos, saindo da visão de sua casa, um passarinho passou bem rente ao seu ombro e disse que a plantinha não parava de elogiar a delicadeza de suas mãos.
Mas não é possível, será que estou enlouquecendo? Primeiro penso ter ouvido a voz de uma planta e agora tenho certeza que ouvi um passarinho falar.
Deve ser porque não estou acostumada com a liberdade, com a natureza, com os matos, com os bichos e com as plantas e então todo som maravilhoso que ouço me parece uma voz.
Deve ser porque estou feita passarinho quando passa anos e anos numa gaiola e quando é colocado em liberdade não sabe mais voar. Fica tão encantado por estar livre que não sabe mais o que é viver em liberdade.
Deve ser porque tudo isso, mesmo estando ao lado e bem próximo de minha casa, é muito estranho e muito novo, e até eu me acostumar vou achar que estou ouvindo vozes.
Talvez seja o vento que vem soprando e acho que os seus zumbidos soam como palavras. E as palavras do vento devem ser as mais sinceras que existem, pois não se preocupam em ficar repetindo e nem tem tempo para mentir.
Entrou no mato, mas não era mataria fechada, dessas de não poder caminhar por causa dos galhos, folhas e troncos.
Só era mais fechada na parte que dava para a casa, formando como se fosse um muro, pois dali em diante tudo era como um jardim sortido, numa efervescência de plantas pequenas em meio a uma única planta maior, grande, portentosa, parecendo centenária.
Essa planta maior e única existente naqueles arredores era uma árvore popularmente conhecida como umburana-de-cheiro ou simplesmente umburana.
Da familia fabaceae, de nome científico amburana claudii, era também conhecida por ambaúrana, amburana, angelim, cabocla, cerejeira rajada, cumaré, cumaru, cumaru, emburana, emburana de cheiro, imburana, imburana cheirosa, imburana de cheiro, louro ingá, umburana de cheiro.
Maria chegou adiante da árvore e disse bem sossegada que aquilo era que era uma árvore bonita, alta, majestosa, com a pele bonita e buscando sempre se renovar, pois via a árvore soltando uma fina casca para dar lugar a uma nova pele.
É uma umburana, mas gosta de ser chamada de cabocla. Ouviu uma voz falando perto do seu ouvido. Virou a cabeça assustada e viu novamente o passarinho.
Não tinha jeito. O passarinho falava e ela ouvia o passarinho falando.
E o passarinho repetiu que aquela árvore era uma umburana, mas gostava mesmo que lhe chamassem de cabocla.


continua...





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segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

GENTE DE SOL E DE CHUVA (Crônica)

GENTE DE SOL E DE CHUVA

Rangel Alves da Costa*


Sem dúvida que a vida se apresenta desigualmente entre as pessoas e para as pessoas. Alguns já nascem em berço de ouro, sem precisar de qualquer esforço para ter uma vida no luxo e na riqueza. Outros dão um duro danado para melhorar e crescer na vida, sendo que apenas uma parte consegue alcançar o ramo de ouro. Já outros...
Outros são felizes assim mesmo, com a medida que Deus lhes deu, conformados com o destino e impregnados de alguns elementos que somente eles têm: coragem para trabalhar, esperança, destemor, força para continuar lutando sempre, paciência e muita dedicação àquilo que pouco têm ou possuem.
Não é fácil, mas antes do galo cantar e depois de tomar uma xícara de café fumegante com uma mão de farinha e uma perna de preá, o matuto encorajado pela necessidade já vai botando enxada ou enxadeco no ombro, ajeitando o chapéu pelos olhos e seguindo para mais um dia de labuta dura e difícil. Roçar, plantar, desmatar, remover, refazer, coivarar...
Nem sempre leva comida no alforje nem o cantil cheio de água, mas sempre caminha com esperança certeira para o roçado distante onde vai prestar qualquer serviço pra ganhar doistões. No fim de semana, juntado o ganho todo, mal dá pra comprar o de comer. Mais ainda assim tem que suportar o calorão, a ventania, a chuva, a tempestade, a cobra escondida na moita, e tudo pela necessidade de sobrevivência.
De sol a sol, na lua ou no dia, uma gente destemida faz do suor sem cansaço o único destino da sobrevida. Carreiro carreia mil léguas com uma carrada de palma pra os bichinhos não morrer de fome na seca inclemente; vaqueiro se lanha todo nos galhos da jurema e da catingueira, mas não deixar o boi valente se perder de vista, desabar no meio do mundo; planta palma, colhe capim, junta o mato no aceiro, toca fogo, vai atrás de teiú e preá, é um pega e não pega, é uma vida de danar.
Conheço gente que caminha pelos matos, corta veredas, desce ribeira e ribeirão, limpa o chão, cava a terra e vai juntando a argila apropriada para a sua produção cotidiana, para garantir o ganha-pão do dia a dia. Muitas vezes o próprio quintal tem barro do bom pra não acabar mais. E então vai o ceramista, o artesão da argila e do barro, debaixo de chuva ou de sol construindo seu destino em potes, moringas, panelas de barro e uma série de objetos que a gente sempre encontrava nas cozinhas interioranas.
Mais adiante, ainda descendo o ribeirão, há um pequeno riacho, com água salobra e barrenta, mas correndo sempre, mas gente chamando pra labuta e pra cantoria. E lava a roupa, e torce o pano, e esfrega o encardido, bate aqui e joga acolá, o sabão tá pouco, não tem mais sabão, esfrega com a mão, espalha na pedra, deixa o sol bater, deixa o vento soprar, mas enquanto isso se põe a cantar: "Estava na beira da praia ouvindo as pancadas das águas do mar/ Essa ciranda quem me deu foi Lia que mora na Ilha de Itamaracá ..."
E um pouco mais abaixo, no outro lado do riacho, tem gente fazendo telha, cortando tijolo, arrumando a forma, batendo o barro, experimentando o ponto, acendendo o fogo da olaria, pois entra noite e chega dia é a mesma agonia de água, de barro e fogo. Fica tostado igual a tijolo, com o sangue fervendo igual a vulcão, mas não arreda o pé da fumaça, pois exige a profissão. Êta vida, sei não...
E quando tem tempo pra descansar e se deita na esteira da varanda, é só pra sonhar em arrumar o que fazer amanhã, pois o menino tá chorando, tá chorando, e quer farinha e quer mingau, quer papa e bolachão. Êta vida, sei não...




Poeta e cronista
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