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domingo, 12 de dezembro de 2010

ECLESIASTES SERTANEJO (Crônica)

ECLESIASTES SERTANEJO

Rangel Alves da Costa*


Um dos livros poéticos e sapienciais da Bíblia, fazendo parte do Antigo Testamento, o livro do Eclesiastes talvez seja o mais realista e humano das sagradas escrituras. De autoria incerta, sendo que muitos afirmam que realmente poderia ter sido escrito por Salomão, verdade é que traduz em seu contexto uma verdade absoluta: debaixo do sol só cabe a luta e o desapego aos bens materiais para que a salvação seja talvez possível.
A assertiva de que nada de novo nasce debaixo do sol se assemelha muito bem à vida do sertanejo, cujo padecimento na insolação dos seus dias é a prova maior de que a grande vaidade existente não é senão a vitória por continuar sobrevivendo. A vaidade que possui é a da existência, pois sabe que os caminhos de dor e sofrimento serão sempre os mesmos, como foram os de ontem e serão os de amanhã.
Por mais que trabalhe produzirá resultados que tornem a vida apenas significativa (3-11). O sol se levanta e se põe, o vento roda o mundo e, da mesma forma, nenhuma riqueza é esperada nos trabalhos cada vez mais difíceis de aparecer, e ainda assim repetitivos e fúteis (5,6). E assim tem sido desde o princípio. Quanto mais se humilha, mais pede aos governantes, mais se fanatiza para votar e elevá-los ao poder, e disso ainda se orgulha, mais as coisas permanecem as mesmas, pois “nada há, pois, novo debaixo do sol” (9,10).
Assim, em muitas de suas passagens o livro de Eclesiastes poderia ser o livro do sertanejo, não só por nada acontecer de novo debaixo do sol, mas principalmente porque muitos daqueles que vivem na aridez das distâncias nordestinas ainda comungam a convicção de que vivendo sem vaidades e exageros – até porque não há como ser diferente – é possível ser feliz na vida terrena e ter sobre si assegurado a graça divina.
Transcrevendo algumas das passagens do livro bíblico para o sertanejo e o seu mundo seria possível extrair, por exemplo, as seguintes leituras:
"Vaidade das vaidades, diz o sertanejo, vaidade das vaidades! Tudo é vaidade. Que proveito tira o lavrador de todo o trabalho na terra esturricada com que se afadiga debaixo do sol?
Uma geração passa, outra vem; mas o sertão sempre subsistirá na sua forma e no seu conteúdo. A seca de ontem, será a seca de hoje e de amanhã; os sofrimentos suportados pelos ancestrais certamente serão as dores das futuras gerações. Eis que o sol se levanta, o sol se põe; apressa-se a voltar a seu lugar; em seguida se levanta de novo. E sempre o sol, o vento e as coisas fazendo o seu percurso e fazendo a mesma coisa no dia seguinte, de geração a geração, como se a vida sertaneja fosse sempre um amanhã de ontem.
O que foi é o que será; o que acontece é o que há de acontecer. Não há nada de novo debaixo do sol. Se algum progresso chega ao sertão que se possa dizer que é algo novo, ele já existia nos tempos passados. As esmolas governamentais de hoje são as mesmas de outros governantes; as cestas de alimentos doadas são as mesmas com mais ou menos gorgulho, com a farinha de fubá de melhor ou pior qualidade, em maior ou menor quantidade.
Não há memória do que é antigo, pois o sofrimento do bisavô é a dor sofrida pelo neto, e os descendentes dos sertanejos de agora não deixarão memória junto daqueles que virão depois deles. Haverão de dizer do João raquítico, filho do João desempregado, neto do João empobrecido, bisneto do João que não tinha outra coisa senão a vida.
Verdade é que Deus impôs ao sertanejo essa ocupação ingrata, que é estar sempre debaixo do sol. Por ser assim, o humilde trabalhador sem trabalho, o valente sem ter onde mostrar sua força, o obstinado sem ter onde mostrar sua capacidade, tudo se vê com o ingrato fadário de viver observando tudo que se passa e se faz debaixo do sol. E vê e sente que tudo é vaidade e vento que passa, pois muitos do que estão ao seu redor acreditam em bens materiais como tudo na vida. E Deus, onde está o Deus desse povo? Pergunta-se debaixo do sol.
Diante de tanta seca, de tantas promessas e sofrimentos, o sertanejo lança o olhar sobre tudo que há debaixo do sol e de repente sente que tudo é mau, é vão todo o esforço pra trabalhar a terra e ainda continuar empobrecido cada vez mais. Do fruto do suor do seu trabalho, ao menos o sertanejo deveria pensar em construir alicerces materiais para o amanhã. Mas nada disso acontece porque tudo que é conseguido não vai além da medida da sobrevivência.
Mesmo assim, com sua sabedoria e devoção a Deus, ele sabe que há um tempo para todas as coisas. O sertanejo sabe que para tudo há um tempo, para cada coisa há um momento debaixo dos céus.
Há tempo pra nascer, e tempo para morrer na vastidão do sertão; há o tempo de esperança que a seca não venha castigante naquele ano, pois também há tempo para plantar e para colher; tempo para reconstruir o barraco que vai sendo demolido a cada dia; todo o tempo para chorar, e tempo de alegrar coração quando o sertão fica verdejante.
Contudo, em muitas coisas o tempo não traz o retorno diferente, não traz o alívio depois da dor. Assim, há só um tempo, no tempo que se tem de juntar as pedras que são atiradas, de perder, de não ter o que guardar, de não ter o que rasgar nem coser, de calar porque não tem quem ouça, de odiar quando queria amar, de fazer a guerra porque ninguém quer a paz.
Que proveito tira o sertanejo de sua obra? De geração a geração se comprova que materialmente nada. Absolutamente nada, pois o luxo, a comida e a bebida, tudo em demasia, não são absolutamente nada. A fé em Deus é o único fruto que lhe pertencerá para sempre, pois o restante sempre será nada debaixo do sol".




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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