SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

O ROUBO DO SORRISO DA MENINA – 19 (Conto)

O ROUBO DO SORRISO DA MENINA – 19

Rangel Alves da Costa*


O médico aproveitou o momento mais expressivo de Lucinha e começou a puxar conversa, perguntando uma coisa ou outra, mas sempre tendo como resposta o mínimo possível, não passando da citação de um nome, um sim, um não. Voltada e olhando sempre para as plantas e flores, ela quase não dava importância à presença do insistente rapaz.
Mas bastou que ele fizesse uma rápida observação para tudo se modificar, para as coisas tomarem outro rumo. Foi no instante em que falou:
"É realmente um maravilhoso jardim com plantas e flores de todos os tipos. Algumas que eu já conhecia e outras que eu nem imaginava existir. De manhãzinha, ainda com o orvalho nas folhas e pétalas e um pouquinho mais tarde, quando surgem os primeiros raios de sol, isto aqui deve ficar um deslumbramento, um verdadeiro paraíso de cores, sons e alegrias. Contudo, Lucinha, também percebi uma coisa, que nesse reino está faltando a rainha. Como todo mundo sabe, todo jardim possui uma soberana, que é a rosa, por isso mesmo chamada a rainha das flores...".
"Fale baixo!", interrompeu rapidamente a menina, colocando o dedo nos lábios e se aproximando do rapaz. E continuou:
"Fale baixo senão as outras flores vão ficar com raiva de você. Todo mundo sabe que essas flores que você falou são as mais famosas mesmo, mas não as mais bonitas. São como os olhos das pessoas que enxergam a beleza onde acham que ela é mais verdadeira. Aqui todas as flores se acham as mais belas, perfumadas e perfeitas, e por isso mesmo não admitem que digam que aquelas outras flores são as rainhas. Pra mim é tudo princesa, e pronto...".
O médico ficou bastante entusiasmado com tais observações da menina, pois enfim podia ouvi-la com mais atenção e daí estenderem o diálogo para outros caminhos. Então continuou puxando conversa:
"Mas o que eu disse foi que não tinha encontrado nenhum sinal das rosas por aqui, nenhuma flor sequer. Você sabe por que aqui não tem rosas?". Então ela o segurou pelo braço e o fez caminhar até um banco próximo à cachoeirinha que fazia escorrer água incessantemente. Mandou que ele sentasse e se posicionou adiante, começando a falar baixinho, procurando responder à pergunta:
"Até bem pouco tempo as rosas daqui eram as mais lindas do mundo. As outras flores não reconhecem nem gostam que fale isso, mas esta é a verdade. E se elas não existem mais aqui é porque mataram as rosas. Como elas brigavam muito com as outras flores e praticamente eram inimigas de todo mundo no jardim, acabou que alguma mais raivosa ou mais enciumada se vingou e matou elas sem que nada ou ninguém percebesse...".
"Mas como você sabe que as rosas foram mortas, ao invés de terem simplesmente morrido de causas naturais?", perguntou o rapaz, cada vez mais entusiasmado. E Lucinha fez um rostinho mais triste ainda e respondeu:
"Depois de mortas elas foram ao meu quarto avisar. Não sabiam dizer quem as matou, pois no instante a natureza se transformou repentinamente, teve ventania, tudo escureceu e choveu bem forte, mas queriam ficar lá até que eu descobrisse e matasse também quem fez isso com elas. Pedi a papai que mandasse o jardineiro jogar elas bem longe, mas elas ainda voltam de vez em quando e ficam por trás do vidro da janela me olhando, às vezes sorrindo outras vezes chorando, e só não entram porque não deixo mais nem a porta nem as janelas abertas. Então a história é essa".
"Mas que linda e ao mesmo tempo triste história é essa", falou em seguida o médico. Estava mais espantado do que nunca, nervoso, pois havia percebido nas palavras de Lucinha um nexo estranhíssimo que inegavelmente servia como base de explicação para o problema com sua tristeza.
Não tinha dúvidas que a tristeza nela instalada se relacionava com aquela história por ela mesma contada. E que tudo poderia acabar de repente, bastando apenas olhar o fio da trama como se as rosas ainda estivessem vivas e fazer uma pergunta: se as rosas não tivessem sido mortas Lucinha ainda estaria triste?


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: