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sábado, 4 de dezembro de 2010

AMIGO DO REI (Crônica)

AMIGO DO REI

Rangel Alves da Costa*


Sou amigo do rei, e isso eu digo com orgulho e com muito prazer. Conheço o rei desde sua herdade, o sangue soberano que corre nas suas veias, seus ancestrais e linhagens. Por tudo isso digo com grande satisfação que sou amigo do rei.
O problema é que tenho certeza que o rei não é meu amigo. Deveria ser diferente, o reconhecimento ser proporcional ao que já fiz, faço e com certeza farei por ele, mas vejo imensa desigualdade nessa amizade porque o rei precisa de mim, não vive sem os meus ensinamentos e conselhos.
O rei não assina um decreto ou dá uma ordem sem me ouvir, não vai para as caçadas sem me perguntar se o dia será promissor, não faz sexo com a amiga da rainha sem antes me fofocar, não manda invadir outros reinos ou matar inimigos sem que eu demonstre concordância. Mas ainda assim sinto que o rei não é meu amigo.
Ora, se o soberano fosse meu amigo me daria um emprego, me garantiria o recebimento de um salário, me incluiria na imensa folha palaciana dos que recebem sem fazer nada, baixaria um decreto me nomeando bobo ou confidente da corte, indicaria um posto ou posição de comando onde eu tivesse vez e voz para mandar nos subordinados.
As opções são imensas: me escolheria como laranja nos seus negócios escusos, envolveria o meu nome nos escândalos palacianos, roubaria mais e jogaria toda a culpa pelas falcatruas em meu nome. Mas ele não faz nada disso comigo, então o rei não é meu amigo.
Certa vez, por ter jurado fidelidade ao rei e a fazer tudo aquilo que ele ordenasse, fiz correr pelo reino uma longa carta descrevendo todas as bondades, princípios éticos e cristãos, todas as virtudes do rei.
Por ser amigo, menti e omiti que ele é um beberrão, desumano e malcriado, corno convencido, é imundo e malcheiroso, ladrão da própria fortuna, só pensa em enriquecer cada vez mais tirando o tostão do pobre, que pensa em mandar cobrar impostos de todos aqueles que estejam vivos no primeiro dia de cada ano novo. O nome do imposto será taxa por continuar vivendo.
Tudo isso é a mais pura verdade, mas porque sou devoto ao rei e sou seu maior amigo, nada disso fiz constar. Pelo contrário, apenas consta da carta que ele dá um cestinho de feira às famílias pobres, fornece gratuitamente mudas de ervas medicinais para que as pessoas plantem e não necessitem dos curandeiros do reino.
E ainda que paga todos os funerais daqueles que morrem com mais de cem anos, permite que qualquer um possa se candidatar como herdeiro do reino desde que seja filho do rei, dentre muitas outras coisas que só um rei bondoso e humano faria. De tão mentiroso que é o rei pensa que isso é verdade.
Faço tudo isso por ele e ainda assim parece que o mesmo não enxerga nada do que é feito. Por saber que gosto de abrir as portas para ele passar, me ajoelho na sua presença e limpo os seus sapatos com o meu próprio lenço ou até com a língua se for preciso, não deixo que nenhuma poeira se aproxime de onde ele está ou que pessoas inoportunas se aproximem, talvez ele tenha a intenção de me reconhecer com o mais alto posto que houver. Mas por enquanto nada. Mas não tem nada não, pois continuou sendo amigo do rei.
Além dessa falta de reconhecimento imediato, algumas outras pequenas tristezas vinham injustamente se assomar, pois fruto de acusações infundadas e mentirosas. Eis que as más línguas começaram a me nomear de puxa-saco, bajulador, lambe-botas, baba-ovo. Quando queriam ferir mais educadamente chamavam de subserviente ou servil de cozinha palaciana.
A situação foi se tornando insuportável. Um dia perguntei ao rei se ele achava que era justo eu servir tanto sem jamais ser reconhecido com um cargo importante. E foi quando ele me disse que naquele reino somente o inimigo poderia ser agradado, de modo que não se transformasse em ameaça para a manutenção do poder.
O pior é que o meu amigo rei me disse que se estivesse achando ruim que fosse embora para o Brasil, pois lá quanto mais se beija as mãos e lambe os sapatos do rei mais surgem as chances de fazer parte do poder.
Cheguei ao Brasil e amanhã já vou me filiar a um certo partido político.



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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